quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Rinaldo de Fernandes (Oferta)

para Mário Chamie

I

Vou parando o carro, encostando-o embaixo da árvore, a sombra extensa. A cena parece que eu já vi, a cena do casebre beirando a estrada. Eu já vi, sim, naquela propaganda na TV, era uma casa muito pobre, o rapaz desce da camionete de carroceria já apodrecendo, a madeira fendida em várias partes. A camionete segue, o rapaz fica na beira da pista olhando o tempo, o espaço em volta. O sol forte, ele olha outra vez em volta, desce a rampa que dá acesso ao casebre. Um homem de chapéu de palha, pele escura, o espera no casebre, no bar ao lado do alpendre. O homem, sério, está atrás de um balcão rústico. O rapaz vai chegando, o suor pingando-lhe do rosto, e vê do outro lado do balcão, por trás do homem, o refrigerador vermelho. A um gesto do rapaz, o homem abre o refrigerador, tira de dentro uma cerveja bem gelada, a fumaça do gelo fugindo em torno. O rapaz toma um copo da cerveja de uma vez, estala a língua, o olhar parado no teto. Depois deixa o bar, a pobreza do ambiente, a cara satisfeita.

Agora, novamente, o casebre. Sou o rapaz caminhando no trecho de terra antes de chegar à parte do casebre onde há uma venda. Eu ando, a barba por fazer, a mochila nas costas (por que desci do carro com a mochila?), os cabelos sobre o rosto, o olhar duro, eu ando do mesmo jeito que o jovem da propaganda e já vou me aproximando da porta da venda. Encosto-me no balcão, onde já estão as mãos enrugadas para atender a cerveja que eu penso, a voz rouca da velha que, ao me ver, com um gesto impreciso, indica-me o rumo da porta que dá para uma pequena sala na outra parte do casebre, onde há um sofá sujo (a mesinha de centro com manchas) e uma geladeira de porta rebentada. Ela oferta-me o sofá desconfiando que eu vim de longe, sabendo que cheguei cansado.

Pela janela olho em volta, procurando o mar, sim, o mar, pois na propaganda o casebre ficava à beira-mar, a pista seguia beirando a praia onde, fechando a cena, o rapaz se perdia nas areias alvas. Não há mar, mas uma paisagem rubra, de pedras pretas e raros arbustos, paisagem seca, de muitos gravetos. Sim, afinal reconheço, longe, as toscas casas de pau-a-pique do sertão. O calor é forte e, ao espiar a geladeira, sinto que a fria fumaça dorme ali dentro, espera que eu a solte pela sala. Adianto-me um pouco, puxo a porta e vejo as cervejas (qual a marca daquelas outras?) bem postas dentro da geladeira. É necessário que, além do sofá, a velha me ofereça um abridor para eu espocar uma das cervejas, eu preciso muito, como o jovem da propaganda, pois a sede dói. Porém, eu percebo que a velha sumiu, deixou a venda por algum motivo, indo para o interior, para o mistério que é o restante desse casebre. Não vem o vento do mar, mas um bafo quente misturado ao cheiro do asfalto onde, vez por outra, passa um caminhão. Não brilha a onda, mas a grande pedra fincada ao lado do cercado, perto das bananeiras.

Uma dormência invade-me as pernas, o corpo amolecendo com o calor, as costas suando contra o tecido do sofá. Ajeito melhor as costas, estico-me, vou afundando no sofá rasgado, vou descendo o corpo para um descanso, para um pouso merecido, enquanto não chega minha cerveja, enquanto não escapa da geladeira a fumaça que, se intensa, certamente irá roçar na cumeeira e nas paredes com rachaduras da sala. Sem que ouça mais um movimento da velha (há pouco ela tossiu lá dentro), vou baixando cada vez mais meu corpo nessa paz de cigarra no bico de alguma pedra próxima, vendo através da janela que dá para a lateral da casa as bananeiras pensas, as folhas brilhando ao sol do meio-dia. Tanta sonolência não abafa um latido distante de um cachorro, um berro lento de um boi, aviso de que, além do vento agora balançando a cortina de fitas sebentas onde zune uma mosca, algo sobrevive a esta casa. Ponho a cabeça nas mãos, os olhos vão se fechando, o latido vai ficando cada vez mais próximo e, no sono, o cachorro espanta a velha, que fecha a venda e foge sem me trazer um suco bem gelado que ela preparava, o boi põe a cabeça na porta e me pergunta, com uma voz de mulher (voz de velha?), por que eu tenho tanta sede.

O sono é interrompido por uns passos no pequeno corredor, passos que trazem uns olhos que de repente eu descubro por trás da cortina, olhos que me vigiam atentos, como quem não quer perder a presa. E, também atento, nada me escapa nesse instante, nem os olhos escondidos nem o voo rápido da mosca da parede para a porta da geladeira e, em seguida, da porta da geladeira para a fita verde da cortina. Quem me olha? Ah, como ele, ter tomado a cerveja em goles firmes, o líquido descendo no canto da boca. Como ele, ter retomado a pista, seguido para a praia ao fundo, voltando apenas um olhar vago, satisfeito, para o bar, o homem já no alpendre. Quem me olha não olha como se eu fosse um desconhecido, mas alguém esperado. Desde quando? Alguém mexe em algo lá na venda, o cheiro de cachaça espanta a mosca na vareta de pescar. A velha afinal reapareceu? A mosca pára um pouco na foto na parede, anda no rosto do candidato, mas retorna à vareta. Quem pesca aqui? Em que águas? Um açude, sim, deve existir um açude por estas bandas, o mar à beira do qual deverei seguir após a minha gelada. Quem me olha? O cheiro de cachaça agita a mosca, que foge da vareta para a folha da bananeira, lá fora.        

II

Ainda sonolento, fico olhando os pés com nódoas atrás da cortina, as unhas azuladas. A perna, com o vento que de repente afasta a cortina, se apresenta – e vejo o joelho magro. Quem me oferece essa coxa? Os olhos me vigiam, atentos em minha mochila ao lado do sofá. Seguro a mochila, puxo-a para perto de mim. A cortina balança – desaparecem os pés, a perna, o joelho. Quem me espiava?

Fico vendo as folhas da bananeira lá fora, a cigarra quebrando na pedra um canto fino, em ziguezague. A rocha onde pousa um anum faísca. A voz da velha pula lá de dentro:

– Tem bebida aí na geladeira! Se quiser logo, pode ir pegando...

Sim, agora entendo, aqui nesta sala se descansa, mas também se bebe, sentado ou recostado no sofá, a garrafa posta na mesinha. Aqui é o recanto dos fatigados, dos que, como eu, velho vendedor, merecem uns minutos para pôr os pés sobre a mesinha com manchas esverdeadas. Aqui a sombra amolece o viajante, mas também lhe dá vigor, repõe-lhe as forças.

Ouço um barulho atrás da parede do único quarto (é mesmo um quarto?), alguém abre alguma coisa, a gaveta de uma cômoda, a porta de um guarda-roupa. É isso? Da venda parte a voz rouca da velha:

– Vai logo, Rosa!

Alguém volta a se movimentar do outro lado da parede, sobe um cheiro doce de desodorante. Passados alguns minutos, sai, de trás da cortina, uma menina segurando um abridor de garrafas, o short curto, os lábios brilhosos de batom.

– Cerveja ou refrigerante? – quer saber.

Em pouco tempo, diligente, ela empurra a cerveja na mesinha, passa o pano na borracha da geladeira, encosta-se na porta, fica mexendo nas fitas da cortina – vez por outra manda um olhar para a mochila. Reconheço a perna, o joelho, mas os pés agora estão num tênis laranja. A velha vem, mete o rosto na porta, lança um olhar para a menina e, após dizer que já está saindo, desaparece. O anum, voo torto, desce na pedra. A cortina balança – a menina me sorri.

Quando peço a segunda cerveja, a menina, após abri-la, cata com a mão um dos seios, deixa-o exposto diante de mim. Gira o dedo na extremidade dura, arroxeada. E encara-me sorrindo. Se eu fosse o rapaz, aqui, sozinhos, pegaria-a rapidamente pelo pescoço, partiria-a num beijo. Mas na propaganda não aparece a menina, só o jovem, o homem atrás do balcão. E a estrada, o casebre, a praia. Vejo pela janela que a velha já vai longe, na pista.

Não peço, mas ela se senta do meu lado, fica olhando a mochila.

– Quem é ela?

– Minha avó.

As duas moram juntas há 3 anos, sozinhas nesse recanto de estrada. Tenho 48 anos e a menina tem idade de também ser minha neta. Digo que preciso de mais uma cerveja, ela diz, sem maiores rodeios, que está lhe faltando uma mochila. Sinto vontade de cantar.

Assim que a cigarra pára de zoar, a menina vem, ergue a perna, senta-se no meu colo. Passa a mão na minha barba, põe a língua na minha boca, toca-a na minha orelha. A folha da bananeira treme lá fora.

Ela me leva pelo braço para o quarto quente, com um buraco ao pé da parede (e se vem um cachorro?). Sobre o colchão, um lençol azul, um travesseiro esfiapado. Sinto como se estivesse deitando com a minha filha mais nova (...)

Após pagar as cervejas, estico-lhe uma nota. Retiro alguns papéis, enrolo-os nas bermudas e camisas que trago, ofereço-lhe a mochila de presente. Ela beija minha mão. Quando vou para o carro na sombra, vejo-a abraçada com a mochila, dando-me adeus. Definitivamente, não há mar aqui para eu contornar, não há praia onde, depois dessas cervejas, eu possa pôr os pés – apenas a pista tremulando entre as rochas. A velha deve perambular por alguma vereda. Entro no carro, parto. Ainda vejo pelo retrovisor o caminhão parar na sombra, o motorista, um gordo, apeando para o seu bom e merecido descanso.

Começo a assoviar.

(Rinaldo de Fernandes, O Perfume de Roberta)

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

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