sábado, 25 de janeiro de 2014

Teófilo Braga (Contos Tradicionais do Povo Português) O Surrão

Recolhido no Algarve

Era uma vez uma pobre viúva, que tinha só uma filha que nunca saía da sua beira; outras raparigas da vizinhança foram-lhe pedir, que na véspera de S. João deixasse ir a sua filha com elas para se banharem no rio. A rapariga foi com o rancho; antes de se meterem no banho, disse-lhe uma amiga:

– Tira os teus brincos e põe-os em cima duma pedra, porque te podem cair na água.

Assim fez; quando estavam a brincar na água passou um velho, e vendo os brincos em cima de uma pedra, pegou neles e deitou-os para dentro do surrão.

A rapariga ficou muito aflita quando viu aquilo, e correu atrás do velho que já ia longe. O velho disse-lhe que entregava os brincos, com tanto que ela os fosse buscar dentro ao surrão. A rapariga foi procurar os brincos, e o velho fechou o surrão, com ela dentro, botou-o às costas e foi-se de vez. Quando as outras moças apareceram sem a sua companheira, a pobre viúva lamentou-se sem esperança de tornar a achar a filha. O velho, ao passar a serra, abriu o surrão e disse para a pequena:

– Daqui em diante hás de me ajudar a ganhar a vida; eu ando pelas ruas, a pedir, e quando disser:

Canta surrão,
Senão levas com o bordão…

– Tens de cantar por força. Toma tento.
   
Por toda a parte onde o velho passava todos ficavam admirados daquela maravilha. Chegou a uma terra, aonde já chegara a notícia de um velho que fazia cantar um surrão, e muita gente o cercou para se certificar. O velho depois que viu que já estavam bastantes curiosos, levantou o pau e disse:

– Canta surrão,
Senão levas com o bordão…

Ouviu-se então um canto que dizia:

– Estou metida neste surrão,
Onde a vida perderei;
Por amor dos meus brinquinhos
Que eu na fonte deixei.

As autoridades tiveram conhecimento daquele caso, e trataram de ver onde é que o velho pousava; foram ter com uma vendeira, que se prestou a deixar examinar o surrão quando o velho estivesse dormindo. Assim se fez; lá encontraram a pobre rapariga, muito triste e doente, que contou tudo, e então é que soube do caso da viúva a quem tinham furtado a filha. A pequena saiu com as autoridades, que mandaram encher o surrão de todas as porcarias, de sorte que quando o velho foi ao outro dia mostrar o surrão, este não cantou; deu-lhe com o bordão, e então derramou-se pelo chão toda aquela porcaria que o povo lhe obrigou a lamber, sendo dali levado para a cadeia, e a menina foi para casa de sua mãe.
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Notas Comparativas

A lenda cristã de Sta. Margarida, engolida por um Dragão, representa a luz solar escondida pela noite. Pertence a este ciclo, como observa Tylor, a história do Petit Chaperon rouge, em França e Inglaterra: «Na Alemanha as velhas conservam-no com toda a sua pureza. Segundo a sua narrativa, o lobo engole a encantadora criança, vestida com o seu brilhante manto de cetim vermelho, e a sua avó; mas elas saem incólumes da barriga do animal que um caçador abriu enquanto ele dormia. Acha-se um conto parecido na coleção de Grimm, em que se pode igualmente reconhecer o mito do sol. Como no Petit chaperon rouge, abre-se a barriga do lobo e enche-se-lhe de pedras». Tylor, Civilisation Primitive, t. I, p. 390.

Aparece em francês nos Contes populaires lorrains de Emm. Cosquin, L'homme au pois; e em Fernán Caballero, El zurrón que cantaba. Sobre o caráter mítico deste conto, aplicamos o dito de Gubernatis:

«O saco representa um importante papel na tradição do herói escondido ou perseguido; este saco é a Noite, ou a nuvem (o inverno), etc.» Mythologie Zoologique, t. I, p. 255 e seg. E em outra passagem, acrescenta: «Achamos aqui não somente a heroína é a Aurora...» (p. 259).

Nos romances populares portugueses há donzelas metidas em esquifes de vidro ou deitadas ao mar em cofres. Nos costumes domésticos, as crianças são intimidadas com a ameaça de um velho que as leva em um saco. O surrão é o saco de couro das tradições indo-europeias e dos costumes jurídicos da penalidade simbólica medieval.


Fonte:
Wikisource

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