quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Airton Donizete (O certo, o эяяado e a língua portuguesa)

Quando eu morava no sítio, ainda menino, ia com minha mãe levar almoço ao meu pai e irmãos, que trabalhavam na roça. Eles derriçavam* café, plantavam arroz, feijão e milho, conforme a época. No sistema de porcentagem, a produção era divida com o patrão. A cada dia estavam num lugar da imensa roça. Minha mãe cortava caminho e chegava rápido ao eito de trabalho. Ela nunca fazia o trajeto normal. Sempre desviava das habituais trilhas.

Certa vez, perguntei como os encontrava. Minha mãe explicou que antes de sair de casa fazia um traçado mental do terreno. Ela calculava aonde eles haviam chegado de acordo com o trabalho do dia anterior. E seguia, desviando de possíveis obstáculos até chegar ao lugar desejado. Usei essa metáfora para dizer que quem escreve, antes de se atentar à gramática normativa, deve aprender a formar frases, imaginar um roteiro, saber aonde chegar e conhecer o que vai dissertar.

Os maiores erros em redações de vestibular, textos jornalísticos, entre outros escritos, é a falta de domínio do assunto. De pensamento claro e lógico para produzir um texto coerente.

Não faz muito tempo, houve aquela celeuma de parte da mídia em torno de um livro didático, lançado pelo governo federal, que mostrou variantes da língua portuguesa, mas foi confundido com o certo e o errado.

Na época, a consultora de língua portuguesa do Grupo Folha, Thaís Nicoleti de Camargo, escreveu: “A ideia (do livro) é mostrar que realizações sintáticas como ‘os livro’ ou ‘nós pega’ têm uma gramática, que, embora diversa da que sustenta a norma de prestígio social, constitui um sistema introjetado por um vasto grupo social – daí ser possível falar em variante linguística”.

Portanto, a respeito de dois embates que tive recentemente sobre gramática, que me levaram a escrever este artigo, digo que fizemos barulho por quase nada. Meus interlocutores estavam preocupados apenas com uma faceta da língua: a norma culta. Que não é mais nem menos importante. Ela faz parte da língua, como outra variante qualquer. O problema é que o senso comum confunde a norma culta com a língua.

Para andar pela roça não devemos apenas aprender o caminho convencional. Mas conhecer o café, o arroz, o feijão, o milho e os limites do sítio, como fazia minha mãe. Aí, vamos fugir da "educação bancária", como ensina Paulo Freire.

Por que tanto barulho se alguém diz a presidenta ou a presidente (pela norma culta, ambos estão certos). Ou se fulano escreve as placas do carro (Recomenda-se a placa). Não estou dizendo que não se ensine a norma culta, que é um código de mediação necessário. A questão é bem mais embaixo. Estamos diante da língua com suas muitas possibilidades.

Finalizo com o professor Marcos Bagno: “As regras das variedades populares são, muitas vezes, bem mais racionais do que as regras normatizadas. Criando-se assim um ambiente acolhedor e culturalmente sensível, o aprendizado da tão reverenciada ‘norma culta’ se torna menos traumático do que sempre foi”.
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* Derriçavam = debulhavam

AIRTON DONIZETE, jornalista, mestrando em Comunicação Visual pela UEL e especialista em linguística pela UEM

Fonte:
http://angelorigon.com.br/2014/01/23/o-certo-o-errado-e-a-lingua-portuguesa/

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