sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Emilio de Menezes (Viagem a Aparecida do Norte) Impressões

"Já que entramos nesse detalhe das refeições, justo é fazer uma referência à boa qualidade e à abundância dos pratos servidos aos peregrinos pelo Hotel. Andrade. Uma nota que não pode deixar de ser registrada aqui abona grandemente a comissão da imprensa que esteve naquele hotel.

Creio que raramente se poderá observar fato idêntico. 0 vinho, para todos os peregrinos, era pago como extraordinário. Pois bem, tendo os jornalistas presentes ordens francas da respectiva comissão e apesar de o vinho ser ali vendido a 2$ a garrafa (vinho nacional!) as despesas extraordinárias de vinho e águas minerais, para cinco jornalistas e mais seis pessoas agregadas à comissão geral, montaram à fabulosa soma de 34$500! ...

E ainda dizem que os jornalistas são chupistas!. .

Mas, volvendo ao Cônego Andrade- Era de esperar, como dissemos apesar de sua idade, um dos esplêndidos triunfos oratórios a que ele, de há muito, habituou os nossos fiéis. É um consagrado do púlpito, e não raros são os que o preferem, e nesse caso estamos nós, ao atual bispo de Olinda, Monsenhor Brito, uma das figuras mais sugestivas da tribuna sagrada.

0 seu sermão foi, portanto, brilhantíssimo admirável de dialética, sóbrio de gestos, conciso, mas não foi uma surpresa. Todos esperavam por isso.

Uma verdadeira revelação, para nós, foi o discurso do Padre Ricardino Séve. Não o conhecíamos em pessoa.

0 seu nome no entanto, nos passara diversas vezes pelo bico da pena, pois não poucas foram as objurgatórias que paroquianos de São Cristóvão nos vieram trazer contra o eminente sacerdote, sob forma de reclamações. Nessas reclamações o Padre Séve era dado em geral, como um desvairado, um energúmeno, sem o menor senso sacerdotal, sem o menor critério de. homem, sem mesmo a mínima intuição moral.

Tinha de falar, à noite, na despedida dos romeiros, um outro sacerdote, que não sabemos bem por que motivo se escusou à última hora.

Soubemos, então, que o Sr. Arcebispo mandara chamar um outro padre e lhe pedira que subisse ao púlpito. Não sabíamos qual fosse o padre. A certeza, porém, de que nenhum dos pregadores presentes poderia exceder Monsenhor Andrade, fez com que deixássemos igreja, finda a cerimônia, em busca das acomodações no "especial" Mal ganháramos o pátio e uma voz forte, clara, vibrante, se ouvir. Paramos.

-É fulano, dissera quase imperceptivelmente um nosso companheiro.

-Quem?

Não tivemos resposta.

O companheiro reentrara na igreja. Reentramos. Todas as faces voltadas para o púlpito. Erguemos os olhos. A nossa primeira exclamação, sopetada, ter sido esta:

-Que belo padre!

Ouvíamos. Queríamos ao mesmo tempo observar na grande mas dos fiéis a impressão produzida por aquela palavra estranha que nos arrebatava, também. Vimos e ouvimos.

Terminada a estupenda peça oratória, esperamos o padre escada do púlpito. Queríamos dizer-lhe qualquer coisa, mesmo no atrapalhamento da emoção, saber-lhe o nome, felicitá-lo.

Qual! O homem curvou-se como quem não quer ver e disparou para a sacristia.

Lá lhe fomos ao encalço. Suava, risonho, mudando as vestes. Um redentorista alemão nos embargava o passo, teutonicamente comovido, e nos explicava na sua meia-língua, trôpega como um ébrio e áspera como um cardo bravio:

-Tifino! Tifino! jamados última horas, badre Zefe, faz tisgursa zuplime!...

Afastamos o redentorista e nos precipitamos para o pregador:

-Reverendo, somos da imprensa. Em nome dela viemos felicitá-lo pelo seu brilhante sermão.

-Discurso, volveu ele, discursinho...

-Quis tomar notas, lhe disse Oscar Dermeval, mas...

-Difícil, difícil! Quando preparo os meus sermões, ainda pode ser apanhados, mas assim, pegado de improviso, como fui, o me desejo é terminar, acelero sem o querer, deixo-me levar na corrente e se estou feliz, não me sei refrear na impetuosidade que levo. Abandono-me ao impulso adquirido.

-Pois, reverendo, em nome da imprensa...
 
-Da imprensa? Que jornais? Tenho sido muito vitimado por ela, acrescentou risonho. Correio, Tribuna, Paiz, jornais caricatos todos enfim me têm atacado.

Isto dizia sem ódios sem rancores, mas numa afirmação de superioridade, em que se lhe sentiam o vigor, a energia, a aptidão para a luta. Afinal, não nos contivemos:

-Mas reverendo, o seu nome. Não sabemos de padre assim tão atacado.

-Ricardino Séve! ...

-O Padre Séve?! o de São Cristóvão?! ...

-Esse mesmo!

-Pois então reverendo! Batemos o nosso mea culpa, porque também o temos
descomposto à vontade! ...

-Já sei, é natural, não me conhecem, informações. . .

-Chegamos com Vossa Reverendíssima até à torpeza do trocadilho.

-Sim? Qual foi?

-Dissemos alhures que os dois padres mais dignos. . . de nota eram o Séve e o Seve... riano! - Riu. Disse-nos então todo o motivo dessa luta em que tem estado na paróquia, mas sem recriminações, sem ressentimentos.

Sente-se nele o homem superior, tenaz, enérgico, que pode vencer todas as campanhas, pois para isso não lhe faltam qualidades físicas e intelectuais.

É um forte na melhor acepção da palavra.

Alto, varonil, de uma inexcedível beleza máscula, olhos de uma mobilidade inenarrável, insinuantíssimo, e depois com aquele poder mágico da palavra, estamos convencidos de que ele há de, em breve, chamar a si as boas graças de todos os seus paroquianos.

Nós pelo menos, consideramos uma verdadeira felicidade o acaso que nos proporcionou o conhecimento desse belo espírito que se chama Ricardino Séve!

O remate, que esse estupendo senhor da tribuna sagrada deu aos festejos propriamente rituais da Aparecida, foi em tudo digno dos prodígios de eloquência que fez nessa piedosa romaria o excepcional talento de Afonso Celso Júnior.

E se isso foi um bem, se tivemos a felicidade de embalar o espírito, durante horas, ao acalentador carinho da fé católica e da intelectualidade brasileira, devemos esse bem, devemos essa felicidade à gentileza, ante a qual todos os agradecimentos são poucos, do Sr. Com. José Pereira de Sousa.

Com meia dúzia de crentes da ordem desse digno cavalheiro, cremos que muitas conversões se fariam no nosso meio.

A ele, pois, todas estas linhas."

Fonte:
Emílio de Menezes, Obra Reunida. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980.

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