segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Machado de Assis (Gazeta de Holanda) N.° 48 – 24 de fevereiro de 1888

Juro-lhe, meu caro amigo
Leitor, pelo que há sagrado,
Que eu, que a triste regra sigo
De viver apoquentado;

Que suporto as sanguessugas
Humanas e desumanas,
Que não ganhei estas rugas
Em redes e tranquitanas;

Que aturo todo o importuno,
Que me refere a maneira
Por que o demo de um gatuno
Lhe foi levando a carteira;

Ou me conta tudo, tudo
(Mas tudo!) o que há padecido,
Para que, após longo estudo,
Ver que foi indeferido;

Que com ânimo quieto,
Leio, depois de almoçado,
Tudo o que sobre o arquiteto
Magalhães se há publicado;

Juro-lhe, leitor, repito,
Que cometer não quisera
O mais pequeno delito
Que este mundo haver pudera.

Furtar um par de galinhas,
Dizer algum nome feio,
Chegar mesmo às facadinhas,
Dar dois cachações e meio.

Não porque a moral condene
Tais atos; condena, é certo,
De um modo grave e solene,
Determinativo e aberto;

Nem também porque, somadas
As contas, mais ganha a gente
Passando as horas caladas
No belo sono inocente.

Não, senhor; outra é a causa,
É outra, uma certa lista,
Que é preciso ler com pausa,
Mente clara e clara vista.

Do rol dos processos digo
Que ao tribunal dos jurados
Foram, para seu castigo,
Inda agora apresentados.

Que traz esse rol? Descubro
Entre outros muitos nomes
Que em oitenta e seis, outubro,
Foi preso um Antônio Gomes.

Pronunciado em janeiro
De oitenta e sete, entra agora
No julgamento primeiro
Do que fez em tão má hora!

Mais três, um Afonso Rosa,
Um Coelho, uma tal Francisca
Xavier, trempe graciosa,
Ao parecer, pouco arisca.

Visto que foi agarrada
Logo em março, dezessete,
Em março pronunciada,
Em março de oitenta e sete!

Há também na lista um certo
Francisco Peres Soares,
Já em abril descoberto
E mandado a tomar ares;

O qual logo em maio teve
Pronúncia do seu delito;
Fez um ferimento leve,
Foi preso ao som de um apito.

Ora, com franqueza, vale,
Ser criminoso em tal era?
Uma peça de percale
Paga tão comprida espera?

Um tabefe, uma rasteira,
Mesmo uma canivetada,
Pagou de alguma maneira
A espera desesperada;

Portanto, e vistos os autos,
Dou de conselho prudência,
E digo aos homens incautos
Que inda o melhor é a inocência.

Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.

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