quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Márcia Theóphilo (1940)

artigo por Cláudio Willer

Márcia Theóphilo, poeta nascida em Fortaleza, CE, vem publicando poesia na Itália há mais de três décadas; mais precisamente, desde 1972. Além disso, desenvolve uma atuação importante, através de apresentações públicas e outras modalidades de intervenção, abrangendo não só aquele país, mas toda a Europa. Nesse percurso, também tem promovido a boa divulgação da literatura brasileira, reconhecendo como suas fontes o nosso romantismo, em sua temática indianista, e o nosso modernismo, especialmente em sua vertente primitivista, de Raul Bopp ou do Mário de Andrade de Macunaíma, além de evidenciar seu diálogo com a poesia contemporânea do Brasil.

Imediatamente após sua chegada a Roma, impelida pela diáspora provocada pelo regime militar, seu talento já foi reconhecido por figuras da estatura do extraordinário poeta brasileiro Murilo Mendes, do ensaísta e diretor teatral italiano Ruggero Jacobbi (participante da criação do TBC, Teatro Brasileiro de Comédia, na década de 1950 em São Paulo, Jacobbi, ao retornar à Itália, contribuiu enormemente para a difusão da literatura brasileira, chegando até mesmo a traduzir Invenção de Orfeu de Jorge de Lima – por motivos como esse, precisaria ser mais lembrado), e do expoente da geração espanhola de 1927, Rafael Alberti.

Personalidades literárias de primeiro plano continuam a prestigiá-la, a exemplo do notável poeta italiano Mario Luzi e do importante crítico brasileiro Fábio Lucas. O reconhecimento por esses e muitos outros leitores qualificados foi corroborado através de inserções da poesia de Márcia Theóphilo em boas antologias poéticas, de inúmeros convites para apresentações públicas, e pela outorga de prêmios importantes.

A poesia de Márcia Theóphilo é, evidentemente, de temática brasileira; mais especificamente, amazônica, como declara através de alguns dos seus títulos, a exemplo da recente coletânea Amazônia Canta (Abooks Editora, São Paulo, 2004) ou em Io canto l’Amazzonia (Edizioni dell’Elefante, Roma, 2002). Sua Amazônia é, evidentemente, aquela das matas a serem salvas, dos povos indígenas ameaçados de extinção, dos rios que, por suas dimensões, resistem aos avanços de uma civilização destruidora, e de um patrimônio simbólico, de usos, costumes, lendas e falas dos habitantes originários do Brasil, indissociável da riqueza natural.

Mas sua obra não se restringe ao tratamento da Amazônia e das culturas indígenas, como pode ser visto pelo exame de sua lírica, editada em antologias, e da série de poemas sobre a Sardenha. Contudo, Márcia Theóphilo se qualifica e se faz ouvir como “privilegiada intérprete”, como diz Fábio Lucas; e, por isso, como porta-voz da defesa do meio-ambiente, não apenas na condição de brasileira, porém como descendente de índios, e antropóloga. Portanto, sabe do que fala, tem um duplo conhecimento do assunto, por suas próprias raízes, sua origem familiar (seu pai veio do Acre), e por tê-lo estudado de modo sistemático, dispondo de uma sólida base factual, suporte da intuição poética e da expressão da sensibilidade.

Entre outros traços em sua poesia, que a caracterizam como individual, com estilo próprio, temos a enumeração dos termos indígenas, a exemplo da dramática enunciação dos nomes das tribos exterminadas em Mães e Pais da América (publicado, assim como as citações a seguir, em Amazônia Canta). Revela a disposição, conforme diz em Floresta meu Dicionário, de cantar o som das palavras/ Açana, Yana, Nacaira/ Cajá, Pacaba, Maçaranduba. Para ela, ; e, por isso, palavras que escrevo são aquelas de um ar cheio de palavras, pois a floresta é meu dicionário. Assim, o poeta não é apenas o narrador: é aquele que entende a linguagem da floresta, os signos da natureza, e que lhes confere sentido, por ser capaz de traduzi-los, em uma função semelhante à dos sacerdotes tribais, emissores e intérpretes dos mitos.

A marca distintiva dos poemas publicados em Amazônia Canta, até agora sua coletânea de maior vulto editada no Brasil, é mesmo a exuberância. Mimetiza e reproduz a vitalidade amazônica e seu mundo mágico, em textos que buscam relações de equivalência com o mundo neles apresentado, tornado-o presente, mais que representado ou meramente descrito. Por isso, apresenta-se como intérprete, narradora, e ao mesmo tempo como avatar, encarnação da vida selvagem. Usa a primeira pessoa, confunde o próprio “eu” com a natureza, como em Munguba, onde fala do …meu esplendoroso corpo/ mas eu, Munguba frondosa/ sou mais ampla. Em O Vento, também procede ao animismo, a confusão entre a esfera do sujeito e do mundo dos objetos: Eu danço, e tu?/ soa, baila, assobia, canta. Daí resulta a imagem poética, como em E o vento continua/ devorando a noite; dentro dele, há uma música dos ramos. A Kupahúba ou Copaíba, uma de suas plantas totêmicas, também é antropomorfizada, apresentada como pessoa, encarnação do arquétipo feminino, no poema do mesmo título.

De todas as metáforas de um confronto entre o mundo mítico, tribal, e a civilização moderna, a mais expressiva talvez seja aquela em Da Amazônia a Nova York, seu poema de 2001. Aponta para uma síntese, uma saída para os impasses e conflitos da sociedade em que vivemos, sugerindo que seja ocupada pela selva. A mesma já antevista em Última Orgia, equivalente à ruptura do limites do humano, confundindo-o de vez com o natural: Um rio caudaloso são nossas vozes/ que cantando arrastam tudo: as máscaras, os carros, a serpente sinuosa dos corpos. Essa fusão do pessoal e do natural, do mundo das coisas e da subjetividade, mostra as razões pelas quais Márcia Theóphilo se qualifica como poeta, e vem recebendo reconhecimento como tal, e não apenas como antropóloga ou jornalista. Como ela diz em Pitanga, O amor nasce como raízes. Por isso, o mundo mítico, natural, é o espaço verdadeiramente humano.

Fonte:
http://www.marciatheophilo.it/index.php/articolo-di-claudio-willer/?lang=pt

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