quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Natalício Barroso (Rastro de Fogo)

"O ato de escrever é uma espécie de lepra, uma enfermidade cancerosa e opaca que deve ser escondida das pessoas que transitam normalmente à luz do dia"
Kafka


As vinhas da ira bem que poderiam ter uma outra composição se tivesse ocorrido com John Steinbeck o mesmo que aconteceu comigo. Havia terminado de dar um ponto final no meu último romance quando, por descuido, toquei uma das teclas do computador que, no lugar de salvar, deletava depois de mandar as mensagens, via e-mail, para outros computadores – pois foi o que aconteceu. O endereço, felizmente, era de um sobrinho meu mas, como não o encontrei em casa, deixei para telefonar depois; quando telefonei, mais tarde, havia saído novamente. Assim, passei o dia inteiro procurando localizar meu sobrinho; quando dei com ele, à noite, disse-me que havia enviado aquele mesmo texto para uma outra pessoa (não sei qual); como possuía o endereço eletrônico desta pessoa, passou para mim. Não tinha o telefone dela, asseverou, mas não era difícil localizá-la pelo e-mail. Assim tentei.

A sensação que tive quando comecei a mandar e-mails pra um conhecido e outro em busca de Rastro de fogo (como se chamava meu romance) era a de que ele havia se perdido. Tinha entrado na boca de um monstro que, mesmo que atenda pelo nome de Internet, nem por isso é menos voraz do que um buraco negro no interior do qual – se alguém conseguisse vê-lo por dentro – havia de se deparar com coisas extraordinárias: textos antiquíssimos, da época de Assurbanipal, ou outros, mais recentes, mas, nem por isso, menos valiosos.

A noite, quando chegou, encontrou-me debruçado sobre o computador. A luz da vela, que havia posto no canto esquerdo da tela para iluminar meus rascunhos, tal como os monges faziam no tempo dos velhos castelos medievais, apenas bruxuleava enquanto eu escrevia.

Moro sozinho. Minha casa tal como um velho solar abandonado à beira de uma estrada, mais parece um casarão antigo – destes mal-assombrados – do que uma residência; no entanto, é aí mesmo que moro. A intenção, quando resolvi comprar um prédio antigo e mal assombrado num lugar ermo como este foi, justamente, a de não ser importunado por ninguém. Mas sou. As pessoas passam defronte da mansão onde moro e, como a acham muito estranha, resolvem parar o carro para vê-la por dentro. Fosse eu um assassino – ou algo parecido – já teria morto várias delas mas, como não sou, deixo-as pensar que a velha herdade de dois andares com um brasão na fachada está vazia realmente. Assim, seguem adiante. Eu fico por trás das cortinas olhando para elas; quando vão embora respiro fundo. A casa é muito pesada; fosse um trailler dava um jeito de levá-la para longe da estrada; como não é, o jeito é ir me acostumando com ela.

Kafka, autor de livros importantes como O processo e A metamorfose, escreveu, certa vez, que "o ato de escrever é uma espécie de lepra, uma enfermidade cancerosa e opaca e opaca que deve ser escondida das pessoas que transitam normalmente à luz do dia" – e tem razão. Afinal, qual o profissional que, para trabalhar, precisa se isolar dos outros?

A comparação mais acertada sobre a vida e a literatura que considero, no entanto, não é nem a de Kafka; a comparação mais acertada que acho é a que fez um autor anônimo quando comparou os poetas e romancistas de seu tempo com monstros tal como o Dr. Jekyll de Louis Stevenson e Charles Ward de Howard Philip Lovecraft. A comparação é evidente. A literatura, assim como uma droga qualquer servida por uma feiticeira em uma taça de ouro, transforma o indivíduo num homem solitário; capaz de praticar qualquer desatino.

Alexandre Dumas, se não tivesse sido escritor, talvez tivesse se tornado um homicida. Basta dizer que, quando escrevia, tinha o hábito de pendurar vários bonecos diante dele; quando seus personagens começavam a brigar o autor de Os três mosqueteiros também se punha a atirar ou a traspassar os seus bonecos com uma espada. Isso, para mim pelo menos, é uma prova mais do que evidente de que Dumas era, no fundo, um assassino.

A maior tolice da humanidade, portanto, é imaginar que a poesia – tanto quanto a música ou a pintura – é inútil. Tenho para mim, que não sou genial, que a poesia é muito mais importante aos homens do que todo o petróleo que se encontra atualmente sob a terra. Assim, a única comparação possível que se pode fazer entre a produção literária e o mundo circundante, é com o amor – pois só o amor, a exemplo da inspiração, é capaz de mudar, completamente, o comportamento das pessoas.

Mas não enveredemos por este caminho.

Voltemos à minha preocupação inicial: a perda de meu livro.

Quantos escritores perderam seus livros no passado? Muitos. Camões foi um deles. Nenhum, contudo, perdeu o seu original da maneira como perdi o meu. Camões, se não me engano, perdeu os seus poemas ("livro de muita erudição, doutrina e filosofia", segundo um de seus contemporâneos, Diogo do Couto) numa viagem que fez de Goa para Moçambique. Eu perdi o meu sem sair de casa e é sem sair de casa que pretendo achá-lo novamente. Afinal, fazer como os escritores antigos que batiam de porta em porta em busca de seus originais, é impossível – pois não há original algum. Há uma série de palavras iluminadas que, da mesma forma como surgiram no mundo, podem desaparecer.

Gostaria até de saber o que acontece com os textos quando a pessoa que trabalha neles digita a tecla destinada a apagar todos eles. Será que desaparecem completamente ou será que viram uma pequena centelha dentro do computador capaz de incendiar uma cidade inteira se, por acaso, forem tocados outra vez? É difícil dizer. A minha situação, em todo caso, não é nada fácil. Camões, quando perdeu seu livro em Moçambique tinha muito mais chances de encontrá-lo do que eu – apesar de não tê-lo achado. Um dia o encontram – quem sabe? A minha obra-prima, infelizmente, jamais. Ela pode até está sendo acessada, neste exato momento, por um português ou um gaulês. Tudo isso é possível. Como ela não existe, porém (pelo menos na mente destas pessoas) ninguém vai imaginar que se perdeu ou que alguém a procura, desesperadamente, na Internet.

Outro dia recebi uma mensagem em árabe no meu site. Como não sei árabe, resolvi apagar a mensagem; hoje, se tivesse recebido esta mesma mensagem não teria feito isso; iria pensar que alguém, depois de atirar o tapete no chão e rezar para Alá com o rosto voltado para Meca, tinha lido o meu apelo e, tendo encontrado o meu livro, mandava um recado para mim.

Como ainda não havia perdido nada na Internet, porém, dei pouca atenção àqueles garranchos todos. Pobre de mim!, comparo-me, na situação em que me encontro, a um pirata que, como o Capitão Ahab no Perquot, procura por uma baleia que, se não é Moby Dick, é, pelo menos, algo tão difícil de encontrar quanto ela. E aqui estou, navegando noite e dia neste mar que, se não tem céu nem estrelas tem, pelo menos, as ondas cibernéticas de um veículo de comunicação.

A aldeia onde nasci é pequena e fica a poucos quilômetros daqui. De vez em quando aparece gente de lá. "Seu pai", dizem elas, "mandou isso e aquilo para você". Eu recebo. Afinal, como todo escritor pobre que tem, como único orgulho, a sua literatura, não posso me dar ao luxo de dispensar seja lá o que for. Assim, recebo meus antigos vizinhos, mas sinto que não gostam de mim.

Houve um tempo, quando morava na aldeia, que me tratavam até com certa deferência; neste tempo, contudo, eu era uma outra pessoa, ainda não tinha descoberto a literatura; hoje, depois que li Tolstoi, Dostoievski e Proust, não sou mais o mesmo. É natural, portanto, que meus antigos vizinhos, quando me veem, se sintam mal. A casa onde moro, por outro lado, não ajuda muito; como costuma ficar fechada noite e dia e a única pessoa que se move, dentro dela, sou eu, não há como negar o pavor que isso provoca nos outros.

Mas isso pouco importa. Melhor do que estas observações fortuitas e pouco esclarecedoras, é que tenho tido notícias de Rastro de fogo. Foi visto no Himalaia, ao pé de um rio que, segundo dizem, percorre aquela região durante o verão; também foi visto na Índia ou em regiões mais distantes como a China; teve um amigo meu que, como morou por lá, disse haver acessado os sites brasileiros e viu o meu livro passar por ele tal como aquele rio que desce o Himalaia durante o verão.

A história mais incrível que ouvi a respeito de meu romance, porém, não foi a de que passou por choupanas ou por palácios requintados; a história mais incrível foi a de uma senhora que, se dizendo muito emocionada depois de folheá-lo (parece que o imprimiu), me falou de vários personagens que, infelizmente, não eram os meus. assim, fica muito difícil dar, na Internet, com o que existe apenas em potencial mas não concretamente; por outro lado é interessante dar com estas pessoas que, antes mesmo que você se apresente, parece que já sabem tudo sobre você: quando nasceu, onde e quando (chegam a este tipo de perversão) vai morrer. No início até estranhava isso; com o tempo, porém, passei a dar pouca importância a este tipo de vidente. Hoje, quando ligo o computador, a única coisa que me interessa é o meu romance. Onde se encontra? Em que tipo de rede está sendo acessado neste momento? Não sei. Alguém, no entanto, talvez o esteja lendo justamente agora quando pergunto por ele e não consigo localizá-lo.

A vida é estranha. As pessoas, por mais que pareçam próximas, por causa da Internet, continuam distantes; esta ideia de que o computador foi capaz de reduzir o mundo a uma simples aldeia de pescadores, não passa de especulação; pois a única coisa que se vê, no mundo, depois do computador, não é a sabedoria mas a ignorância.

Rafael, meu amigo, apareceu no solar onde moro e me trouxe notícias do mundo real. A aldeia onde nasci e onde meus pais ainda residem, foi praticamente varrida por um vento muito forte. As pessoas ficaram tão impressionadas com aquilo – a força do vento – que tiveram medo; algumas delas, por sinal, foram obrigadas a repor as telhas que o vento, depois de sua passagem, havia levado consigo; a casa de meus pais, felizmente, não sofreu nenhum dano – exceto, contou-me Rafael sorrindo, uma árvore enorme, do tamanho de uma torre, que praticamente desabou; não fosse o muro que cerca a casa, ela teria caído mas, como o muro é alto e resistente, manteve-a praticamente suspensa no ar por um bom tempo.

Todas essas histórias de um mundo que eu praticamente havia esquecido, me impressionava bastante. Rafael, enquanto isso, continuava falando: meus pais, depois que o vento passou e levou as folhas verdes (e outras nem tão verdes), resolveram dilapidar a árvore. E assim foi feito. A frente da casa onde moram, portanto, não tem mais aquela velha carnaubeira que, como uma palmeira no deserto, anunciava para as pessoas que o oásis começava ali; a carnaubeira tombou, sob o peso das intempéries; felizmente, como não tombou para dentro mas para fora do terreno onde a casa se encontra, não feriu ninguém.

Rafael, quando me dava essas notícias, sorria. Havia alguma coisa de ingênuo em Rafael, é verdade. Ele via o mundo como sempre foi; era incapaz de reter algo, na memória, que não tivesse, primeiro, passado por um de seus sentidos. Agia, no tempo dos computadores e dos satélites artificiais, com a mesma simplicidade com que os irmãos de José, segundo o Velho Testamento, agiam quando partiam em grupo para o Egito. A maneira de Rafael contar uma história, portanto (ou dar uma notícia) não diferia muito da maneira como os velhos escribas do tempo de Israel relatavam suas profecias; caso tivesse paciência para ouvir Rafael por mais algum tempo, era bem possível que, assim como os aviões que cruzam os céus, ele me falasse de tropas de jumentos que, à semelhança dos camelos que atravessam o Saara, na África, cruzam os sertões com as cangalhas carregadas de frutas ou legumes; como o meu tempo é todo ele dedicado à leitura ou às minhas pesquisas infrutíferas, é verdade, na Internet, despedi-me dele e vi quando, no lugar de entrar num carro, como seria de esperar no século XXI, montou num cavalo – tão bem selado quanto o de qualquer outro do século XIX – e saiu por aí, trotando.

Com a partida de Rafael voltei a meus afazeres costumeiros. A tela do computador, como sempre, mostrava um quadro de Rembrandt que, com o tempo, se transformava num outro, de Rubens, e assim sucessivamente até retornar ao quadro de Rembrandt outra vez; depois que apertei um botão no teclado, porém, tudo isso desapareceu; surgiu, no lugar da pintura voluptuosa de Rembrandt, de Rubens ou de Ticiano, a página branca da Internet sobre a qual me pus a trabalhar. Meu livro, como sempre, era uma incógnita, mas não custava nada dar um novo passeio por aí e ver se o localizava em algum lugar.

Havia um recado para mim. A língua na qual havia sido escrito me era inteiramente desconhecida; em todo caso, como estava determinado a não deixar passar nenhuma informação (mesmo que não fosse sobre meu livro) resolvi imprimi-la e mandá-la para alguém em algum lugar do mundo, que pudesse identificá-la. Assim, imprimi o seguinte:

Os caracteres, como se pode observar, não são ocidentais, mas asiáticos; as letras, imitando ideogramas chineses ou japoneses, até parecem esculpidas e não apenas desenhadas sobre a superfície branca do papel. A decifração delas, contudo, e não a sua aparência, era o que mais me chamava a atenção. O que será que significavam? De onde vinham e quem, dentre as milhares de pessoas que possuem computador no mundo, pode ter pensado em mandá-las para mim? Terão elas alguma relação com meu trabalho literário perdido na Internet ou não? A única maneira de saber isso, naturalmente, era lendo a mensagem – e foi o que fiz. Mandei-a para alguns japoneses que conhecia no Japão, exatamente, e eles me enviaram a resposta. Aquelas garatujas não pertenciam à terra dos samurais nem à China mas a Coréia; um deles, como lia coreano perfeitamente, me mandou dizer o seguinte: meu livro tinha sido lido por uma grande figura da Coréia do Norte; ela, a figura, ficou interessada na história mas, como estava incompleta, gostaria de saber como poderia obter os outros capítulos.

A leitura de meu livro, como se vê, tinha sido feita em coreano. Isso significa que estava sendo traduzido para outras línguas. O esquisito, nisso tudo, era que, apesar de traduzido parece que meu nome e meu e-mail continuavam na capa ou na folha de rosto do romance.

Por outro lado nada me tirava da cabeça que, como meu livro estava sendo impresso e traduzido por aí, não acharia nem um pouco estranho se ele aparecesse publicado com o nome de outra pessoa. Como não estava registrado com meu nome, era natural que não tivesse como provar sua autoria – o que muito me preocupava, evidentemente.

A tela do computador, assim como um buraco negro no interior do qual se pode ver de tudo, funcionava, para mim, como uma janela enorme depois da qual eu tanto podia ver quanto ouvir tudo aquilo que passava na minha frente.

A alegria que senti quando soube que aquelas figuras geométricas que vinham da Coréia tinham algo a ver com meu livro, me deixaram quase sem fôlego. Como manter contato com tal criatura? Como perguntar a ela em coreano ou em inglês que eu não tinha mais os capítulos que faltavam nem possuía aqueles que ela – este seguidor de Buda mal disfarçado em militar – havia lido?

Tudo isso passava por minha cabeça com a mesma velocidade com que os meteoros atravessam a atmosfera terrestre, se iluminam por um instante e desaparecem para sempre em seguida.

Havia, porém, uma alternativa. Aqueles mesmos japoneses com os quais eu me comunicava em inglês e que sabiam do meu romance, podiam me ajudar. E assim aconteceu. A informação de que eu gostaria de receber os poucos capítulos que meu leitor coreano possuía, foi enviada para ele; estes poucos capítulos, contudo, nunca chegaram. A impressão que eu tenho é a de que o coreano, desconfiando de que talvez eu não fosse o autor daquela obra-prima, resolveu não me importunar mais ou, quando muito, não se preocupar mais comigo. Assim, a segunda vez em que tive a informação de meu livro (a primeira foi quando aquela velhinha me escreveu dizendo que o havia lido mas, quando citou os personagens percebi que não se tratava de meu romance mas de um outro) foi uma nova decepção.

As regiões montanhosas da Coréia que ficam entre a China e o Japão, parece que guardam, para sempre, pedaços deste meu trabalho que, pelo visto, se perdeu para sempre.

Santa ignorância!, a Internet, já disse alguém, se parece muito com os redemoinhos que se agitam nas proximidades da Noruega; ali, quando eles aparecem, as pessoas têm o hábito de contemplá-los de longe mas nunca de se aproximar. A tolice que cometi, na minha busca desesperada de ser lido, foi esta: ter apertado um botão, no computador, que não só joga os trabalhos escritos na Internet; também os desmancha completamente no monitor onde foram gerados; assim acho que agi como um náufrago que, tendo encontrado uma ilha e não sabendo como se comunicar com o continente, se serve da única alternativa que dispõe no momento: esvazia as velhas garrafas de rum para colocar, dentro delas, cartas e mapas onde supostamente se encontra no oceano; feito isso espera o momento em que um navio ou um homem de bom coração que tenha lido suas mensagens venha procurá-lo e salvá-lo da solidão.

A casa onde moro, como já disse antes, é um tanto quanto misteriosa. De vez em quando as portas e as janelas batem, sozinhas. Quando isso acontece tenho a impressão de que não estou realmente sozinho neste velho bangalô. Mas deve ser só impressão. Mesmo assim – para tirar todas as dúvidas – desço as escadas de madeira que dão no térreo e saio por aí abrindo e fechando portas e janelas; quando estou muito disposto vou mais longe. Levanto um velho alçapão, em tudo parecido com aqueles que se vê em filmes de terror, e desço uma escada que, se não é de madeira nem por isso deixa de ser tão tétrica quanto aquela: trata-se de uma escada de ferro – bastante enferrujada, por sinal – que vai dar numa antiga adega e num poço cheio de sapos e casas de aranha. Ali abro os baús que se conservam amontoados no chão para ver se encontro algum vampiro dentro deles mas não acho nada nem ninguém.

Não há nada mais absurdo do que procurar fantasmas onde eles talvez não existam – mas como dizem que moro com alguns deles (há quem diga que sou um deles) tomo as minhas precauções pois a fantasia, mais do que a realidade, é responsável por coisas absurdas. Gontcharov, autor de Oblomov, passou a vida toda acusando Turgueniev de haver roubado parte de suas novelas. Chegou ao cúmulo de se trancar com algumas delas num quarto.

Tinha medo de Turgueniev – considerado um pilantra por ele – aparecer por acaso em sua residência e levar as suas últimas produções. Assim, quando penso que há alguém em casa ou que algum fantasma – mal saído das páginas de Oscar Wilde – se infiltrou nos compartimentos lúgubres do velho prédio onde percorro as salas e corredores em silêncio, não penso duas vezes, corro atrás dele; quando o encontro (como se isso fosse possível) (mas há sempre indícios deles em lugares tristes e remotos como este onde me refugio) dou-lhe as boas vindas; quando não me deparo com eles fecho as portas e janelas para que não batam mais e volto para o computador.

A sala onde trabalho também é tão lúgubre quanto o resto da casa, mas, como tem duas janelas – uma que dá para o mar, muito longe, e outra que dá para a aldeia onde nasci – é até arejada. A ventania, quando entra na sala, no entanto (e faz isso com certa frequência), penetra nela com tanta violência que não deixa nada – nem mesmo as cortinas (e olhe que são pesadas) – imóveis. A luz do sol, por sua vez, me deixa ver coisas incríveis. Marcas de antigos quadros que foram pendurados durante muito tempo nas paredes; livros, quase do tamanho de códices medievais retirados das estantes em volta aparentemente com violência e pesados bustos de bronze que apenas sugerem a sua presença com o recorte ainda visível por cima dos plintos mal conservados. Mesmo assim me sinto bem aqui. É como se o corvo de Allan Poe estivesse aqui, entre essas quatro paredes, batendo as asas e esperando o momento certo para, como fez com o poeta norte-americano certa vez, me dizer aquilo que mais temo ouvir neste mundo: "never, never more..."

Foram poucas as pessoas que leram meu romance, realmente. Com exceção de meu sobrinho, para quem mandei uma cópia sem saber, acho que só o amigo dele para quem havia enviado o e-mail, leu o meu livro; esta criatura que mora na Coréia e que teima em ignorar meu apelo para que me mande pelo menos algumas páginas de meu trabalho, foi outro leitor. Assim, num mundo onde habitam quase cinco bilhões de pessoas, talvez apenas quatro ou cinco tiveram a oportunidade – mais do que o prazer, penso eu – de ler meu último romance.

Todos que o leram, felizmente, dizem que gostaram muito. Apenas uma delas – aquela velhinha que, no final, vi que não tinha lido o meu mas outro original – fez uma ressalva: "seu livro é muito bom, disse-me ela, mas há um porém..." Foi a partir deste porém, por sinal, que vi que não se tratava do meu mas de outro texto.

Dizem por aí que quando alguém escreve um livro tem que esperar pelo menos alguns anos para publicá-lo; isso, felizmente, no tempo de Horácio que, quando editou aquele opúsculo a que deu o nome de Poética, escreveu, textualmente, que todo poeta que se preza terá que aguardar pelo menos nove anos para, finalmente, dar à luz seus rabiscos. E quem sou eu para me contrapor a Horácio?

O mundo no qual vivemos, no entanto, não permite mais tamanha disparidade. Tudo no mundo hoje (devido à televisão e ao computador, naturalmente) tem que ser imediato. Talvez por isso não se redijam mais livros como antigamente. Virgílio, quando morreu, ainda não havia terminado a Eneida e Dante, que passou boa parte de sua vida no exílio, só publicou a Comédia (aclamada como "divina" posteriormente) após dez anos de trabalho. Mas será que a literatura terá que ser sempre assim: cheia de exigências? Stendhal, autor de livros famosos como Lucien e Crônicas italianas, que o diga; ele que publicou O vermelho e o negro após muitos anos de trabalho (mas não tanto quanto pretende Horácio) teve que enfrentar um dilema gravíssimo: a partir de quando O vermelho e o negro seria entendido? Stendhal, ele mesmo, respondeu: "daqui há trezentos anos". E foi o que aconteceu.

Pobre Stendhal, fosse médico, o que teria ocorrido? A literatura, felizmente (ou será infelizmente?), tem esta virtude: o autor pode até ser derrotado; a sua produção literária, contudo, pode se sair vitoriosa.

Hoje, no entanto, não se pensa mais assim. A fúria com que os meios de comunicação procuram desvendar o futuro é tão grande que, por mais que se queira exaltar aqueles que se contrapõem a isso, não se consegue.

A literatura, por outro lado, não foge à regra: a poesia, que era escrita com a maior parcimônia (porque era feita para as gerações futuras e não as contemporâneas) sofreu um abalo tão grande com os novos meios de comunicação que deixou de ser poesia para se transformar em letra de música: sendo assim fica difícil imitar Camões ou Fernando Pessoa. Camões porque, como não tinha condições – nem físicas nem financeiras – para publicar Os lusíadas, passou a vida inteira esperando uma oportunidade que só surgiu à beira da morte; Fernando Pessoa, que não estava nem um pouco interessado em se exibir para o mundo como poeta apenas deixou escrito, no baú, o seguinte: "Mesmo que os meus versos nunca sejam impressos,/ eles lá terão a sua beleza, se forem belos/ (...)/ porque as raízes podem estar por debaixo da terra/ mas as flores florescem ao ar livre e à vist" – e assim aconteceu. Seus poemas, como eram belos, vieram à luz e, com eles, a vida boêmia e obscura deste cidadão pacato que ganhava seu sustento traduzindo cartas comerciais num pequeno escritório da Baixa, em Lisboa.

A necessidade de se exibir hoje em dia é tão grande, no entanto, que tanto a poesia quanto as outras artes não têm mais importância alguma: ninguém publica livros ou promove vernissage para mostrar seus trabalhos: o objetivo é outro. A imprensa está aí. A televisão, como atinge milhares de pessoas ao mesmo tempo, é capaz de dar notoriedade a qualquer um, independentemente da qualidade de sua produção. Por isso as "instalações", que não exigem nada do artista, a não ser "boas relações", pululam por aí.

Mas aqui estou eu me metendo onde não devo. Melhor do que falar mal da criatividade alheia é voltar a falar de meu livro que, como continua viajando pela Internet, talvez já tenha sido publicado na Indonésia com o nome de outra pessoa enquanto o autor, que sou eu, fica por aqui remoendo tamanha desdita.

Miguel de Cervantes, para escrever Dom Quixote, imagina que o autor deste livro é um árabe chamado Cide Hamete Benengeli cujos rascunhos encontrou num mercado, comprou e pagou a um outro árabe para o traduzir. O mesmo acontece comigo. O autor de Rastro de fogo (título do meu livro) sou eu; o tradutor, no entanto, seja ele quem for, é quem passou a deter os Direitos Autorais a partir do momento em que assumiu a sua paternidade – e talvez seja assim mesmo. Marco Polo, que nunca escreveu uma linha sequer sobre a sua vida, também é considerado autor daquele livro que desde a Idade Média circula pelo mundo e que tem a China como cenário principal; o verdadeiro autor do livro de Marco Polo, contudo, não foi ele mas um outro veneziano chamado Rusticiano ou Rustigielo de Pisa que, como foi preso pelos genoveses numa torre em 1298 ali se encontrou com o filho de Nicolo Polo e passou a ouvi-lo: ao sair da prisão, Rusticiano, que não era tolo, escreveu e publicou o livro que, até hoje, leva o nome de Marco Polo e não de seu verdadeiro autor.

Meu livro, certamente, não fará o mesmo sucesso de Dom Quixote nem, muito menos, de Marco Polo mas só o fato de ser meu e não ser assinado por mim me machuca tanto quanto aquela segunda parte do Cavaleiro da Triste Figura, escrita, supostamente, por Lope de Veja e que tanto mal causou a D. Miguel – a ponto deste investir furiosamente contra o falsário: "isso não é carga para os seus ombros", vocifera o pacato Dom Miguel contra Lope de Veja, "nem assunto para seu resfriado engenho".

Agora, porém, é tarde. Não dá mais para recuperar o que foi perdido. Miguel de Cervantes conseguiu: matou o ingenioso hidalgo no final de sua segunda saída pelas terras da Mancha; eu, como não disponho nem da primeira nem da última página de minha produção literária, só possuo um consolo: a casa onde moro e que, se fosse vista por um escritor genial – Edgar Allan Poe, por exemplo – é bem provável que tal criatura, num rasgo de imaginação sem limites, comparasse a minha situação com a de "um vírus perdido no interior de um arquivo morto" – e estaria certo. Difícil seria dar com estas palavras num dos textos de Poe.

Mesmo assim fica a imagem: a casa onde moro é, de certa forma, um arquivo; eu, por outro lado, não passo de um vírus que, fuçando os computadores da Europa e da Ásia, procuro um livro que, como a luva de um astronauta antigo que se perdeu no espaço sideral, também se perdeu num espaço que, se não é tão incomensurável quanto o Cosmo, não deixa de ser mais ou menos equivalente a ele: a Internet.

Assim, para que minhas lamúrias não se prolonguem por muito tempo e este "desabafo" não se transforme num novo romance, reproduzo, aqui (à guisa de informação) o refrão que todo dia envio pela Internet: mandem meu livro de volta, ordeno mais do que suplico; preciso muito dele, choramingo em seguida – tanto quanto Merlin quando foi aprisionado por Morgana e ainda hoje se encontra lá mais indefeso do que cativo em sua nuvem.
 
Rastro de fogo, como disse, é o nome do romance que escrevi e que sumiu. A história, banal, tem, pelo menos, uma virtude: boa parte dela se passa no espaço sideral e não aqui, na Terra. As personagens principais, portanto, são um asteróide e um arquiteto. A função do asteróide é a de atingir o arquiteto, no futuro; a deste é servir como prova de que o futuro da humanidade talvez, como diz lá o ditado árabe, já esteja escrito nas estrelas.

A grande surpresa que tive estes dias, no entanto, foi assustadora: alguém, não sei quem, me mandou trechos deste bendito romance pela Internet. Abri o computador um dia e, quando fui ver, lá estavam eles – os trechos. A alegria, no início, foi imensa; com o tempo, porém, vi que não tinha muito motivo para comemorar. Havia tantas mudanças na composição do romance que não era mais o mesmo que redigi. Era outro.
 
As pessoas quando mudam ou fazem uma viagem muito longa, são altamente admiradas por isso – principalmente quando aprendem línguas novas ou falam de lugares por onde passaram e ninguém nunca imaginou que tal coisa fosse possível um dia.
 
A situação do livro é diferente: ninguém quer saber de ler um romance que, tendo sido escrito por uma pessoa, passou por tantas transformações ao longo de sua trajetória, que nenhum leitor saberia identificar o autor nem a língua em que foi redigido. De repente passa do português para o inglês, deste para o alemão e assim por diante como se isso fosse a coisa mais natural do mundo. Assim, para quem lê Homero é preferível pensar que se trata de um único autor do que de vários que, se revezando ao longo do tempo, nos deram estas duas obras-primas que são a Ilíada e a Odisséia.

A mesma coisa – ou quase – ocorreu com meu livro na Internet. A diferença – se houve alguma – foi apenas de lugar (e tempo) mas não de comportamento. As pessoas que se debruçaram sobre a Ilíada e a Odisséia para modificá-los ou para acrescentar alguma nova aventura, todas elas eram gregas; a língua que usaram, portanto, foi a grega; as pessoas que se aproveitaram do meu romance para criar novos personagens ou dar vida às suas idéeas macabras nem todas elas eram portuguesas -–ou de língua portuguesa – pertenciam a vários países e a várias etnias.

As ideias do Dr. Frankestein quando se pôs a juntar restos de cadáveres, eram a de criar o homem do futuro; o mesmo homem que Nietzsche havia profetizado em seus livros e que o Dr. Mengelli, médico nazista, tentou reviver durante a II Guerra Mundial. A criatura que surgiu destas duas experiências, contudo, não foi nem um super-homem, como queria Nietzsche, nem um ser altamente civilizado como o Dr. Mingelli sonhou no futuro mas, como afirma a autora, um monstro abominável.
 
Rastro de fogo, como passou pelo mesmo processo de formação adotado pelo professor Frankenstein no romance de Mary Shelley (Dr. Mengelli não existe neste universo), também não foge à regra. Aquelas criaturas que Santo Agostinho pensava que existiam na América antes desta ser descoberta, perdem é feio para a aparência miserável de meu romance. Caso Rastro de fogo tivesse tido a sorte de ser modificado por aqueles mesmos escritores que substituíram Homero no passado, a sua redação teria melhorado consideravelmente, mas como quem interferiu em sua narrativa não tinha a mesma genialidade dos colaboradores de Homero, o resultado foi o pior possível: Rastro de fogo, hoje, é mais digno de um estudo de teratologia do que de estética.

A história, no entanto, não muda. Continua a mesma. Trata da viagem interplanetária de um meteoro.

A viagem, no meu livro, pelo menos, começa em Saturno, o planeta; dali o objeto perdido no espaço sideral se dirige para a Terra. Neste exato momento nasce, na Terra, uma criança que se chama Eduardo. A trajetória de Eduardo, desde o instante em que nasce até aquele em que se torna adulto, está intimamente relacionada com a do meteoro pois este – mesmo sem Eduardo saber – está destinado a matar o filho de Dona Creuza. Assim, todos os passos que Eduardo dá, na Terra, são imediatamente relacionados com os movimentos que o meteoro executa no espaço.

No meu texto Eduardo não vive no melhor dos mundos; também não vive no pior – tem lá as suas paixões e as suas ambições: arquiteto, pai de família, sai por aí desenhando plantas de casas e acompanhando a construção de algumas delas; quando o engenheiro o interpela por algum motivo, Eduardo não se deixa convencer: exige que a casa em construção seja levantada de acordo com a planta que elaborou e não de acordo com as ponderações apresentadas pela engenharia civil.

A vida de Eduardo, neste caso, é semelhante a de qualquer outro que, como ele, exerce uma profissão dita liberal – pois este homem feliz (pelo menos até certo ponto) – está condenado a ter um fim trágico: o fragmento espacial que surgiu no Universo antes mesmo de a Terra ser o que é – o habitat não só da humanidade mas de uma imensa quantidade de seres vivos – parece que o persegue desde que o mundo foi criado.

Aí está o resumo – mal pincelado, é verdade – de meu romance. A intenção, quando escrevi este livro, foi a de chamar a atenção das pessoas para o fato de que o futuro – se existe – já está no passado: a nossa morte, neste caso, já está resolvida há muito tempo assim como as nossas aspirações, tão difíceis de serem atingidas, talvez já tenham sido alcançadas de alguma maneira.

A história que me chegou pelo computador, como disse antes – apesar de todas as interferências apontadas – não é muito diferente desta. Eduardo que, no meu romance, se chama José Eduardo Horta, no livro que me foi enviado, tem outro nome: Eduardo, apenas; a mulher dele, que se chamava Ane, passou a se chamar Luiziane e a mãe – uma personagem importante na novela – também não se chama Creuza mas Lucíola.

A mudança do nome dos personagens principais, penso eu, tem um objetivo muito claro: confundir o leitor ao mesmo tempo em que procura dar maior credibilidade à nova narrativa.
 
A história principal – aquela que trata da morte de Eduardo por um asteróide – esta é contada na íntegra – com algumas alterações, logicamente: a morte de Eduardo, no romance que escrevi, não se dá num espaço aberto, mas fechado; a morta de Eduardo no livro em questão ocorre numa praça e não numa sala. A diferença de lugar, como se pode notar, também é uma outra estratégia do Lope de Veja moderno para, como no caso do nome dos personagens do meu romance, confundir tanto o leitor quanto o autor verdadeiro.

Agora, porém, não há mais alternativa. Rastro de fogo, o livro que escrevi, não me pertence mais: pertence àqueles que o copiaram e o publicaram na Internet mas, como a Internet tem as suas peculiaridades – nem tudo o que está nela pertence a quem o introduziu mas a quem o descobriu – talvez tenha alguma outra oportunidade: provar que Rastro de fogo me pertence e não a um aventureiro que, tendo tomado conhecimento dele por intermédio da rede mundial de computadores dele se assenhoreou e o publicou como sendo o dono de um livro que nem sequer copiou direito.

A dificuldade que vou ter, claro, vai ser a de provar isso perante a justiça. Caso houvesse uma legislação específica de Direitos Autorais para quem trabalha na Internet, seria mais fácil; mas, como não há, o jeito vai ser apelar para a sorte.

Rafael esteve comigo novamente na casa onde moro e, como sempre, trouxe novas notícias da vila. Meu pai, segundo ele, está muito preocupado comigo; afinal, andam dizendo por aí que não sou mais o mesmo. Aquela criança que jogava bola em torno da aldeia e que todo mundo conhecia como sendo o filho do seu Nô, não existe mais.

As ideias de Rafael, claro, se confundem com as da aldeia mas como o mensageiro de meu pai está mais próximo de mim e de minha família do que os demais, parece que não dá muita atenção ao que escuta. Por isso Rafael, quando fala, me faz rir por dentro.

O fato de meu pai está preocupado comigo, no entanto, me deixa apreensivo. Ele sabe muito bem o que levou a me isolar completamente do mundo no qual vivi até então. Kafka, como citei antes, foi muito feliz quando disse que todo escritor é como um vampiro que não deve ser sequer tocado pela luz do sol quanto mais pelas pessoas que o rodeiam.

A conversa que tive com Rafael, portanto, foi bastante proveitosa. Como Rafael lida com o mundo de uma maneira bastante diferente da minha, acho que esta disparidade facilita – e muito – a nossa conversação mas não é o suficiente para me tirar deste mundo de sonho e fantasia no qual me habituei e no qual outros escritores – Sófocles e Montaigne, por exemplo – também mergulharam completamente.

Após esta longo digressão que começou com as dificuldades que a poesia, o conto ou o romance trazem para aqueles que se dedicam à sua produção e terminou agora com o retorno – feito aos pedaços, é verdade – de meu último romance, voltamos a falar da minha casa e das histórias macabras que a cercam – e por quê? Porque a minha vida, aqui dentro, não difere muito da dos ascetas que, pretendendo se afastar do mundo – seja lá porque for – escolhem um lugar ermo e distante como este para morar; quando estes ascetas são monges ou pessoas dadas à religião, o lugar onde moram (ou o pequeno oratório que constroem perto do tugúrio onde dormem) se transforma em igreja ou em capela que, com o tempo, vira catedral; a minha situação, logicamente, não é nem um pouco semelhante à de tais criaturas até porque, como não tenho a menor pretensão de ser pioneiro em nada, é natural que esta casa velha e mal assombrada venha a ser, no futuro, o que sempre foi: um antro medonho de morcegos e fantasmas.

Por falar em fantasma, aqui vai um segredo aterrador: tenho visto coisas surpreendentes estes últimos dias; desde que meu livro – ou pedaços dele – reapareceu no meu site, aliás, que tenho tido visões estranhíssimas. A primeira delas foi a de que o mar, pacato a princípio, levantava,, como se fossem páginas mal arrancadas de um temporal, ondas e mais ondas de poesia em torno de mim; a segunda – tão esquisita quanto esta – foi a de uma mulher que, como carregava um ramo de oliveira numa das mãos, confundi com uma Suplicante de Minerva – e assim era – mas, no momento de depositar os ramos sob os pés da deusa adorada pelos tebanos no tempo de Édipo, a Suplicante mudava de direção e punha os ramos de oliveira diante de mim.

A explicação mais satisfatória que encontrei – isso depois de vários dias de meditação – foi a seguinte: as ondas do mar, quando se ergueram na minha frente, não estavam apenas me mostrando poemas e contos fabulosos: estavam me incitando, penso eu, a voltar a escrever; as Suplicantes de Minerva, por outro lado, fazia a mesma coisa só que, no lugar de me mostrar o reino mágico da poesia e da prosa, me tratava como se eu fosse um deus – pois só um deus (apontava ela com seu gesto) era capaz de exercer a mesma profissão de Homero.

As visões, neste caso, se sucediam – eram uma atrás das outras e cada uma delas mais fascinante que a outra. Assim, cada janela que batia, cada degrau que rangia ou cada lufada de vento que por acaso entrava no prédio ou na sala onde me encontrava e levantava a poeira quase secular que me envolvia, me chamava a atenção para uma destas visões ou para uma ideia que eu ainda não tinha tido e que era quase impossível esquecer.

Desta forma aqui estou escrevendo estes rascunhos que, a princípio, não tinha a menor intenção de publicar, mas, como parece que se tornaram imprescindíveis para o romance que perdi, aqui estão eles expostos à luz do dia como se fossem velhos manuscritos do Mar Morto recém descobertos em Quram, na Palestina.

Mal conservados e mal traduzidos ainda nem por isso deixo de publicar na íntegra para que tanto os escritores quanto os leitores mais afoitos tomem conhecimento do meu infortúnio e possam se precaver melhor contra tudo e todos que os cercam no momento em que estão lendo ou escrevendo.

Acho até que foi a partir deste dia – este dia em que tomei esta decisão heróica de mostrar as próprias entranhas – que tudo mudou. Abri as portas e janelas do casarão onde moro, afugentei os fantasmas que me perseguiam e deixei que as visões – aquelas visões de escritor mal sucedido que me importunavam tanto – desaparecessem completamente.

Agindo assim cheguei à conclusão de que a poesia, tanto quanto o romance, também tem a sua luz interior, como aquela que guiou os hebreus no deserto no tempo de Moisés, e é capaz de transformar um ser esquivo e arredio como todo escritor num ser humano mais ou menos tratável e equilibrado emocionalmente como deve ser toda e qualquer pessoa…

Fonte:
http://www.jornaldepoesia.jor.br/nb2.html

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