quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Nilto Maciel (Contistas do Ceará) Outros Contistas – Natalício Barroso

Natalício Barroso nasceu em Itapipoca, 1957. Em 1977 ingressou na Faculdade de Letras da Universidade Federal do Ceará. Trabalhou no Instituto Municipal de Arte e Cultura – RioArte – e na Fundação Biblioteca Nacional. Publicou Poemas de abril, Philobiblion, 1987; Sintonia, Achiamé, 1992; A triste sina do Imperial, Espaço e Tempo, 1998; e O capacete de Aquiles, Esteio, 1997. De 2006 são A vida amorosa de Marco Polo, Aníbal Barca e a Família Cordebar, num único volume.

Nas quatro narrativas enfeixadas no volume intitulado Novelas Reunidas, Natalício Barroso se mostra um narrador consciente de seu ofício, movendo-se em diversos espaços temáticos. Assim, sem nos atermos à ordem dada por ele às narrativas, parte do passado mitológico e mítico da Grécia antiga, passa pelo século XX e termina num futuro remoto, numa viagem interestelar. Aparentemente, não há nada em comum entre as novelas. No entanto, há muito de “grego”, de busca do destino do homem, na novela “interestelar”. O mesmo se pode afirmar em relação às novelas “cariocas”: nelas está também presente o mito da eterna busca da origem do homem, do destino, do fim. Sendo assim, os conflitos poderiam ser de ordens diversas. Todavia, há um elo comum entre as novelas, no que diz respeito ao cerne do prisma dramático – a morte, a angústia, a dor.

Na primeira novela, “Viagem Sem Fim”, a própria viagem pelo espaço se constitui na célula dramática central, não fosse também o conflito de gerações: os astronautas humanos, de um lado, e os astronautas nascidos na espaçonave, descendentes dos primeiros, de outro. Os dramas vão se desenrolando no dia-a-dia: mortes, crimes, traições. O grande drama é, pois, a infinitude da viagem, como se vê na última frase: “A nossa viagem, definitivamente, não tem fim”. E aí reside a angústia dos personagens, dos navegadores do espaço: nunca mais regressarão à Terra. Como se isso significasse a morte.

As duas novelas intermediárias, “A Triste Sina do Imperial” (na verdade, “O Velho Marinheiro, a Baía de Guanabara e a Triste Sina do Imperial”) e “A Casa de Gustavo”, são de um mesmo tempo histórico, o final do século XX. Os dramas são semelhantes: na primeira, a vida atribulada do velho marinheiro José Valdivino, suas peripécias, suas andanças ou naveganças, e a obsessão do romancista Matheus por escrever o romance da vida do marinheiro; na segunda, mais uma vez um narrador-literato às voltas com um personagem incomum, um jogador de futebol que, após pendurar as chuteiras, decide ser poeta, e, mais do que isso, escrever o grande poema épico brasileiro. Na verdade, não há conflitos nas duas narrativas. As histórias vão se desenrolando como num diário. O tempo vai passando, os personagens vão envelhecendo, perdendo as ilusões, e morrendo. Apenas isto. Nada de tragédias, de grandes traições, de crimes bárbaros.

A última novela (será mesmo novela?), “Cartas de Pilos”, é uma transcriação de um capítulo da Guerra de Troia, dos dias seguintes ao conflito entre gregos e troianos. Não há propriamente dramas. Na verdade, são mencionados alguns “trechos” de dramas (ou tragédias) da Grécia antiga, encontrados nos livros de mitologia e nos poemas homéricos, como o de Édipo.

Natalício Barroso sabe situar muito bem os personagens no espaço da ação, embora na novela “espacial” isto se torne mais difícil. Fora da nave os personagens terão como espaço o “vácuo” e as estrelas; dentro da nave (e há pouca descrição dela) o espaço é minimamente mencionado. Acredito até que Natalício não tenha tido a intenção de escrever ficção científica. Conhecedor da cidade do Rio de Janeiro, onde viveu durante alguns anos, locomove os personagens das duas novelas lá ambientadas pelos mais famosos logradouros e pelas ilhas. O velho marinheiro e o narrador Matheus palmilham a Cidade Maravilhosa, palco da ação de ambos: um como aventureiro, outro como caçador de histórias. Para o leitor é um passeio turístico dos mais gostosos. O espaço da ação na narrativa do  jogador de futebol é mais restrito: a casa onde morava. Os personagens aparecem jogando xadrez na sala de jogos, passeando pelos corredores e pelos jardins, ceando na sala de jantar. E por que o espaço nesta novela não é um estádio ou um campo de futebol? Talvez porque o herói da narrativa seja um ex-jogador de futebol, cujo grande mérito consistia em converter em gol pelo menos um chute em cada partida, e cujo grande demérito se resumia em nada jogar.

O tempo nas novelas de Natalício é um tempo longo, quase interminável na viagem espacial. Nas “Cartas de Pilos” ele flui lentamente: vão cartas, vêm cartas. A cada missiva, uma novidade. A história do marinheiro dura anos e anos. Ora estamos na juventude do herói, ora na sua velhice. Assim também na história do jogador. O tempo referido em ambas novelas é, porém, “controlado” por seus respectivos  narradores, no uso constante do flashback.

            Os personagens de Natalício são bem delineados, sobretudo os principais. São notáveis as aparições de Sorel, o primeiro narrador; Heidegger, “um poeta nato”, filho de Sorel; Kátia, a mulher de Sorel; a outra Kátia; Helsing, Dilthey e outros. As personalidades de cada um afloram a cada momento. Lembrar do velho marinheiro José Valdivino e do jogador-poeta Gustavo é mais fácil ainda. As loucuras sublimes de ambos, seus sonhos, suas angústias – tudo neles é narrado com a riqueza das histórias fabulosas. E o que dizer dos narradores (alter-ego de Natalício?), com seus problemas de relacionamento conjugal e amoroso, suas ânsias de colher os melhores frutos nos pomares das vidas de seus amigos “personagens”?

A linguagem nas novelas de Natalício Barroso é simples, sem ser coloquial. Vê-se concisão nas frases, embora quase não use a frase curta, cortada. Não há excesso de frases. O diálogo cede lugar à narração. O uso do travessão nas falas é pouco frequente nestas narrativas. É mais comum o narrador transmitir as falas dos demais personagens no interior de suas narrações. A descrição é discreta, a não ser num momento, quando se refere às ilhas do Rio de Janeiro. Mesmo nesse caso, a narrativa não perde fôlego e não enfada o leitor.

O ponto de vista na primeira novela, apesar de ser o da primeira pessoa ou o do narrador-testemunha, traz uma novidade: ao morrer o primeiro narrador, outro o substitui, como na vida, como numa viagem, como na “viagem sem fim”.  Nas novelas “cariocas” o narrador às vezes assume a posição de protagonista, sem nunca se confundir com o narrador onisciente. São técnicas usadas por quem leu muito e exercitou em larga escala a arte de narrar.

                Natalício Barroso, poeta de grandes méritos, deu-nos quatro boas novelas, verdadeira viagem sem fim pelos caminhos da imaginação. A prosa de ficção tem mais um cultor erudito, consciente de seu papel no palco da literatura brasileira e da importância de ser um cultivador de palavras e histórias.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

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