sábado, 15 de fevereiro de 2014

Nilto Maciel (Contistas do Ceará) Outros Contistas – Ray Silveira

               
Ray Silveira (Raymundo Silveira) nasceu em Fortaleza, 1947. Médico aposentado. Adepto da literatura na Internet. Vencedor de vários concursos literários. Seus contos estão espalhados em sites e blogs, assim como em antologias. Conquistou diversos prêmios literários.

                Alguns narradores de Ray Silveira são seres incomuns, em constante conflito interior, como se delirassem em suas ruminações. O de “Lembranças do inexistido”, na verdade, “jamais tivera mãe. Fruto de geração espontânea, começara a ser sem pré-existir. Enteado de Deus, nasci-me. Ninguém me pariu”. Busca explicações para sua vida e a morte de sua mãe, em narração de acontecimentos em tempos variados. Em “Sacrifício” o contista se vale de outro expediente: ao lado do narrador principal, o protagonista, dá voz a outro personagem. As falas de ambos se intercalam, em diálogos (“Falei com o diretor. Estão te esperando. Senhor... O quê? Desististe? Não! Pelo contrário: o mecanismo de lavagem interior não funcionou ontem.”) e em narrações (“Senti-me como quem entra são numa clínica de check-up, e sai com um diagnóstico de te prepara. Passou aquela noite transpirando poças de terror...”).

                Ray dá aos personagens uma liberdade quase que ilimitada, como se perdesse o controle sobre eles. Disso resultam considerações filosóficas, éticas, umas demasiadamente óbvias ou há muito repetidas ou desgastadas pelo uso: “A condição humana é um emaranhado de contradições”; “Só os bêbados conhecem este hiato diabólico entre a embriaguez e a sobriedade.”

                Talvez nem seja essa a razão pela qual Ray se abeire tanto da filosofia, dos conceitos, das definições, em detrimento da narração. Sua vontade quiçá nem seja a de contar histórias ou pintar personagens e paisagens. Certamente a ele interessam os temas essenciais do ser, motivo por que se vale tanto da alegoria. “Deplorável véu”, que lembra sonho, pelo ambiente opaco, nebuloso, sombrio, nos remete à busca da essencialidade humana: a alma, o ser. “Quem?” poderia ser crônica, não fosse a alegoria da feminilidade, afirmada no final da peça.

                Há também nas narrativas de Ray Silveira um constante jogo de palavras e sons: “dos hediondos cozinheiros que flambaram, tostaram, fritaram, refogaram, guisaram, torraram, assaram, cozinharam, sapecaram, esturricaram, carbonizaram o corpo e a alma da Joana do Arco e de milhares de outros inocentes”. Faz uso também da associação de ideias e nomes: “valsando às margens de vienenses Danúbios straussianos. Bailando o bailado das Alegorias da Primavera, ao som de sinfonias entremeadas de bemóis de suspiros e sustenidos de desejos, acompanhada de cavalheiros de longos cabedais e de cavaleiros de távolas redondas”. Vale-se ainda das sequências de substantivos e adjetivos: “sonatas mozartianas, tocatas e cantatas bachianas, cavalgatas wagnerianas e sambatas noelroseanas...”. Além disso, se dá bem com os neologismos.

                Percebe-se também a preocupação do escritor em se mostrar cosmopolita, como na ambientação das tramas em cidades europeias (sem explicação aparente). No conto “Via dolorosa”, o protagonista explica: “Soube apenas, em fragmentos, que fui removido do Hotel Ibis, no centro da cidade, para o setor de Urologia do Kaiser-Franz-Josef-Spital, na zona sul da capital austríaca.” Em “A última vez que viu Paris” toda ação se passa na capital de França. “... E os dois choraram” é de inspiração grega: “Viveu, no Asclepion de Trica, na Tessália”. Em Londres se ambienta “O duplo eu”. Mas nem só na Europa vivem os seres fictícios de Ray. Moram também em Fortaleza, como o narrador de “Alguém me viu?”: “Moro nas proximidades da rua Treze de Maio, entre Assunção e Floriano Peixoto”.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

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