sábado, 15 de fevereiro de 2014

Ray Silveira (Lúcidos delírios)

   
    Ultimamente andava dormindo demais. Não me preocupava. O sono ambulante deixa de ser metáfora da morte para se tornar hipérbole de vida. Nesta noite, porém, uma chuva me despertou em plena caminhada. Abrolhos. Tento fugir me abrigando sob uma marquise. Os fios de água me perseguem. Enviaram uma ventania para me encontrar. Sem alternativas, deixo-me molhar e me ponho a refletir a luz da verdade. Enquanto isso, a chuva chapinhava chorosa girandolando, a seguir, sobre a chapa cheia d’água de um ralo de esgoto. Não tenho futuro, nem presente, nem particípio passado. Vivo no próprio passado. Não naquele que suscita ressuscitações de acontecências agradáveis nos normais e nos poetas. Nem sou obcecado por pretéritas peripécias ou por maus influxos da infância, como sucede com os doentes d’alma. Minha agoridade é cada instante sofrido no ontem acontecendo, de fato, de novo. Continuamente. Não me queixo, não busco consolo, nem sinto autopiedade. De fato, existem pessoas vivendo o seu presente e sofrendo tanto quanto eu. Hoje não é hoje, e sim um dia tal de um mês qualquer de um ano que já houve. Contudo, tudo se passa agora, outra vez. Alguns desses pós-aconteceres são frutos privativos meus e não há como aposentá-los por invalidez. Pois apesar de serem mais velhos do que eu, jamais foram adversados.
   
   O desastre é outro: não consigo me concentrar em apenas um deles. Fogem de mim, assim como fugi da chuva. A sensação de quem vai morrer daqui a pouco não é tão diferente da de quem vai morrer daqui a muito. Todos acreditam num fim remoto (com ou sem controle), e esperam suceder algo de bom antes da morte. Curiosa esperança! Parece que a consciência - aquele atributo que dizem servir para distinguir um homem de um animal - não passa de um instinto em plena seleção natural, no estrito sentido darwiniano da expressão. Não há melhor explicação para a tolerância dos humanos à expectativa do aniquilamento total. Se assim for, não fica difícil prenunciar a extinção da espécie humana, através de suicídios em massa, enquanto a consciência avançar para a sua completude evolutiva.

       Comparo o tempo que me resta de vida com a vida restante na Terra, e me pergunto se ela, como um todo, não seria apenas isso mesmo: mera sobra de infinito; sobejo cósmico; rejeito do universo. Não. Não é desespero, nem pânico o que me leva a pensar assim. E é muito fácil demonstrar. Primeiro, se estivesse em pânico ou desesperado, seria mais lógico me apegar ao instinto de conservação e valorizar a sobrevivência. Em segundo lugar, estou suficientemente lúcido para deduzir: um medo súbito causador de uma reação descontrolada ou de uma desesperação, não permitiria a ninguém reflexões dessa natureza.

       Impossível me concentrar... Surge outra questão. Agora sofro por não ser capaz de identificar a velocidade dos pensamentos. Sinto uma forte impressão de passar demasiado rápido por acontecimentos constrangedores do meu passado-presente. Um ato de semostração que pratiquei está agora mesmo reacontecendo. Será orgulho ou vaidade? Seria desimportante distinguir? A moral condena mais o orgulho. Mas para mim ele é quase nada diante da vaidade. Sempre cuidei ser o orgulho convicção não ostensiva do próprio mérito. A vaidade, uma ambição. Gananciosidade de reconhecimento. Portanto, sou vaidoso, não orgulhoso. Então, mais fatuidade, mais nescidade e mais bestagem compõem o meu caráter. Ansiedade. Estou sendo maniqueísta. Não existe a vaidade, nem o orgulho exclusivos. Embora um deles predomine. Mas qual será o que predomina em mim? Só o existir da semostração mostra ser a vaidade.

       A chuva passou. O meu passado-presente, não. Agora ando acordado, mas sem destino. Observo tudo. Nada interessa. Os gritos dentro da noite. O calor do dia escondido no azeviche do asfalto, que nem a chuva logrou desarquivar. A suntuosidade de “estranhas catedrais” desafiando a miséria das favelas.

       Minhas ideias e eu fugimos cada vez mais. Eu, do meu passado que insiste em ser presente. Elas, de suas primas tristes: as lembranças. Minhas ideias escapam. Eu não. Quanto mais fujo, menos me liberto. Complexo de culpa não é o estado aparentemente louvável de quem se sente responsável por um desastre. Trata-se de puro egoísmo. Por isso, nem a própria morte redime. Se, involuntariamente, cometesse um crime, me sentiria culpado. Não por estar arrependido ou sofrendo remordimentos. Mas por causa da censura alheia. Do veredicto da opinião pública. Da sensação narcisista da rejeição e do desaplauso social. Logo, morrer, seria escapar de um martírio. Renunciar à redenção pela crucificação. Nestas circunstâncias, morrer é um crime perfeito.

       Encontro-me diante de um terrível acontecimento passado acontecendo novamente. Cato a causa cardinal daquele acaso. Tenho como a mais provável, a saudade de não ter tido pais. Fruto de uma geração espontânea, comecei a ser sem ter sido. Não me pariram: nasci-me. Sou filho adotivo de um ninguém. Um descendente em linha reta do absurdo. No máximo, um enteado de Deus. De gota em gota, o tempo modulou a minha infância. E quando me entendi por gente, já era como fui na véspera de hoje. Bolinei uma lâmpada de Aladim que não havia, e um gênio mouco escutou meus três pedidos. A partir de então, sofro alternadamente a sucessão e a simultaneidade dos instantes.

       Um sanguinoso doutor operou a minha alma e, de propósito, deixou um camundongo dentro da cabeça. Mãos avaras de piedade complementaram o trabalho, arrepanhando o coração. E restaram somente dois olhos supurando lágrimas, uns farrapos de pele porejando mágoas e uma artéria aberta vertejando vida. Sinto sendas sinuosas - sem saber a sua destinação - se estreitando à minha frente. Palmilho-as acicatado só pelo instinto. E me extravio num labirinto de tremuras, de tonteiras, de náuseas e de desbrios, sem nenhum porventura para me mostrar a saída. Nuvens carregadas de esquivanças anoiteceram minha tarde ao meio-dia. Meus cartões de crédito de esperança há muito já estouraram seus limites. Tenho, enfim, a impressão de que estou morto e me esqueci de parar de respirar...

       Cansado de aconteceres que não consigo compreender, volto a ter sono. Ando enxergando demais ultimamente. Preciso parar de andar e me deitar para dormir.

Fonte:
http://cronopios.com.br/site/colunistas.asp?id_usuario=40

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