segunda-feira, 10 de março de 2014

Isabel Dias Neves (Fardo Florido)

Primeiro livro de poesia de Isabel Dias Neves, a Belinha, Fardo Florido, foi publicado em 1995.

O que faz a grandeza deste livro de poemas e torna muito especial o fazer poético de Belinha, é a sua ligação com a terra, o fio condutor do livro, tornando-a a mais autêntica representante dos cantores do Cerrado e uma das poucas (senão a primeira) poetisa do Tocantins, o Norte tão amado de onde veio, trazendo no coração essa bússola que aponta ininterruptamente para as suas raízes mais profundas.

Belinha já recebeu alguns importantes prêmios literários, o que garante a qualidade do seu trabalho de poeta exemplar que exercita a palavra com esmero. Demonstrando habilidade técnica, a poeta tira seus versos das moendas, dos moinhos loucos, amassando com os pés o barro das estrofes e enchendo nossas vidas dessas coisas principais e primeiras, paisagens tão esquecidas, como as madrugadas, as luas, rios, matas, as mangueiras, os pomares, os frutos, o plantio, o plantação, pássaros, gaivotas, ninhos: é “a mulher que planta” o encanto do seu canto de poesia.

Há, em Fardo florido, importantes registros históricos e sociológicos sobre as festas populares, o folclore, os usos e costumes dos povos do interior do Brasil, mais especialmente de Goiás e do Tocantins, “um povo que se abraça/ e só vive de promessa”, um povo cujo “suor de mãos calejadas/ dá comida pros romeiros”. Nossa poeta é corajosa quando propõe a beleza do verso ousado e profundamente verdadeiro: “Sentindo o cheiro de bosta de vaca”, que companheiro, igual, tem a mesma significação simbólica do “ouvindo o canto da fogo-apagou”- são os sentidos, o olfato, o ouvido, interpretando o mundo onírico das terras interioranas. A grande verdade é que a arte em Goiás é uma resistência cercada de bois e vacas por todos os lados. Obviamente, há muito estrume (aqui, sem conotação, por favor).

Nesse canto, quase que épico, na lírica de Belinha, não passaram despercebidas as diferenças sociais que desfilam com as crianças carregando enxadas e semeando o milho; a fome do pobre que morre roçando a terra e, fundamentalmente, “o suor do roceiro que se reparte entre aqueles que não roçam”. O poeta é o porta-voz do seu momento histórico e, mesmo não pretendendo realizar uma poesia engajada, a poeta nos mostra, de forma diluída pelos poemas, toda a problemática social que é profundamente dolorosa.

Fardo florido não é um grão que nasce, é um que renasce no coração da poeta que fez o seu plantio de sol e promete uma colheita farta. Isabel Dias Neves, a cantora da Gesta, a Terra, está colhendo o fruto sazonado da maturidade, “no reencontro (di)gesto/ da mulher com o seu chão”. Assim, este fardo que é florido torna-se leve e torna-se, principalmente, um livro que deve ser lido e dever ser amado.

Textos escolhidos

P(OMAR) DE NÓSPara Marcelina Dias Neves, minha mãe

É doce e vão esse pomar;
sombra feita,
flores fartas,
frutos gerados
sensualizam a boca.

Pomar que se almeja e conta
é o que se planta.

Sombra firme - reduzida,
flores novas - raras,
frutos fartos - racionados.
Tudo à mão - sem suor
nem invenção.

Pomar que se almeja e planta
é o que conta.

o trabalho com a terra
é um gesto de promessa:
molha a raiz com pranto e riso,
canta o plantio e a colheita,
sonha e arde a todo canto.

Pomar que se planta e conta
é o que se canta.

NOS PASSOS DE EVA

Rasgada a grossa veste,
brinca branco o algodão
nos dedos silenciosos
que lhe deliciam o âmago.

Batido, vira nuvem
e se deita no balaio,
ciente do novo corte
- o seu destino rodando.

Roda na roda ou no fuso;
faz-se infinito em fios.
O algodão que se fia
faz a maciez das redes.

Trançando rendas e rodas,
Eva semeia os sumos
e cria novos rostos.

Muda o mundo em silêncio
com o suor dos seus restos.

CHAMA

A chama que alimenta o passo
cassa o vôo na direção do eterno.

É inútil traçar o mundo
que não vai fundo na vida-morte
do amor. Todos dançam. Uns se entortam
na (di)gestão do doce e do acre - na aorta.

EXATO MISTÉRIO

A rachadura exorta
o canto e a aliança
que se deixam

e dilacera o manto
desse elo desvelado.

A racha é dura
e esmaece o gosto
desse laço
que foi denso
e misteriosamente ex(ato).


Fonte:
Cleber Toledo e Antônio Miranda. Disponível em Passeiweb

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