quinta-feira, 6 de março de 2014

Rachel de Queiroz (Ser "alguém")

Nestas últimas décadas, um dos fatos sociais mais importantes é a saída da mulher do seu casulo doméstico e a sua entrada, quase em massa, nas profissões e atividades dantes reservadas ao homem. Tivemos agora a prova disso com a espetacular vitória das mulheres nas recentes eleições, em muitos casos com maioria esmagadora sobre os seus adversários - homens. E aquelas que ainda não tiveram a sua oportunidade - a sua hora e sua vez, como diria mestre Rosa - ficam num desespero de "aparecer", de "vencer", de "ser alguém".

Na minha área, por exemplo: as que me procuram, o que elas chamam de "ser alguém" é ver o próprio nome em letra de forma, assinando colunas de prosa e verso, é aparecer nos jornais, nas revistas, na TV.

Não sabem que isso de "ser alguém" acaba não sendo nada. É apenas um nome impresso ou uma imagem no vídeo. É renunciar a si, conformar-se em ser apenas a figura que o público imagina que ela é, encher o molde do figurino que lhe traçaram, realizar perante o auditório a personalidade que o público quer que ela seja -, sem consideração nenhuma pela sua própria personalidade. Ser alguém é não ser ninguém, é ser um boneco, uma voz, uma assinatura. Posso dar muitos exemplos práticos, como demonstração. E, para não ofender ninguém, começaremos com o exemplo da mulher que assina esta coluna, que é pau para toda obra e já não se ofende com coisa nenhuma.

Em geral, as moças me escrevem dizendo que "gostariam de estar no meu lugar, serem conhecidas, citadas", etc. Muito bem. Pois então quem é que sou?

Na minha própria opinião sou uma pobre de Cristo, mas isso não vem ao caso.

Aos olhos delas, sou uma senhora que escreve nas folhas, tem retrato impresso e é lida ou citada em toda parte onde se lê o jornal ou se vêem os programas "educativos" da TV. Mas já se lembraram vocês que este nome que lêem impresso e que vai a todo lugar é apenas um nome, não é uma pessoa? Que não tem nada comigo, apenas me dá trabalho e incômodo? Nada tem a ver coma minha vida propriamente dita, com o que eu queria ser e que não fui, com o que eu sofro e com o que eu gosto? A entidade que vocês conhecem, o nome que vocês pensam que eu sou, é apenas aquela assinatura no alto ou ao pé do artigo. Não é uma mulher, é uma contrafacção. Não me pertence, antes me escraviza, me obriga muitas vezes a dizer o que não quero, a fingir o que não sinto.

Se eu por exemplo, quisesse mudar e escrevesse nesta página receitas de crochê ou segredos de cozinha - temas de que gosto, ou, pelo menos gostava quando não tinha as limitações da vista e dos movimentos - o homem do jornal teria vindo, com todo o respeito, me tomar satisfações, porque sou paga para outra coisa. Era como se o cachorro ensinado de circo de repente deixasse de fazer aqueles papéis ridículos e ladrasse contra a platéia, feito um cachorro normal.

É verdade que posso comentar meus aborrecimentos, minhas singelas alegrias - mas dentro de determinadas condições, submetendo tudo à deturpação literária, "escrevendo", maculando a pureza e a autenticidade do desabafo com a obrigação de transformar aquilo em matéria impressa. Se conto apenas que tive uma úlcera ou uma dor de fígado, talvez os enoje ou pelo menos os enfade; preciso usar de astúcia e transformar a dor e a náusea em qualquer coisa comovente, ou engraçada, ou curiosa. E, no entanto, o que tive foi uma dor comum, igual à dor de todo mundo, mas que me incomoda ou me assusta, e da qual eu gostaria de falar, como todo doente gosta.

É esse o meu, o nosso privilégio - o privilégio de ser escravo. Outro exemplo: imaginemos que a nossa artista predileta, no meio do espetáculo, se chateasse, largasse a peça, tirasse a caracterização incômoda e se pusesse a falar de outra coisa. A menos que o gesto não fosse tomado como um novo maneirismo gracioso da atriz, o público ficaria danado da vida, reclamaria aos gritos e obrigaria a fugitiva a repor a cabeleira falsa, a voltar docilmente a dizer as linhas alheias, prisioneira do público, do papel, prisioneira principalmente do seu cartaz, da sua obrigação.

É no anonimato e no silêncio que se pode realmente ser alguém. Na paz, na decência da vida particular, o homem é dono do mundo inteiro. Tudo que tem ao redor é seu, pode sonhar, ou dormir, dizer o que quer ou transformar-se à vontade. Recitar a peça ao seu gosto, não tem leitor nem ouvinte que o obrigue a conformar-se com um papel ou uma figura, como é o caso quando ele quer ter valor comercial e êxito. Aliás, a palavra êxito só agora apareceu aqui, mas é ela é a chave de tudo. Pois toda a nossa vida está condicionada a isto: êxito. Por amor dele nos padronizamos num tipo que no fundo detestamos, por culpa dele vivemos no terror da frase errada, do gesto errado.

E, no final de contas, já que me dei como exemplo, feliz de mim que não fui, não sou, praticamente ninguém nessa escada perigosa. Quem menos sobe, menos tem medo da queda. Mas quem está lá nos pináculos do favor público, mais forte sente a melancólica ameaça da descida. É que, além dos cimos, não há nada - senão a vertente oposta.

 Fonte:
Jornal O Estado de São Paulo. 12 de outubro de 2002.

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