quinta-feira, 13 de março de 2014

Rudyard Kipling (Rikki-tikki-tavi) III


Teddy levou-a para o quarto, à hora de dormir, e teimou em fazê-la deitar-se junto ao seu peito. Rikki-tikki resignou-se, mas logo que o menino caiu no sono saltou dali para rondar a casa. No escuro que fazia deu de encontro com Chuchundra, o rato mosqueado, que, como sempre, se ia esgueirando rente à parede.

Chuchundra é um animalzinho triste, que choraminga toda noite, experimentando ganhar coragem para correr pelo meio dos quartos sem jamais o conseguir.

- Não me mate ! exclamou Chuchundra quase em lágrimas.

- Julgas por acaso que um matador de serpentes persiga ratos mosqueados? - respondeu Rikki com desprezo.

- Os que matam serpentes serão por ela mortos - disse Chuchundra sempre choroso. - E como estarei seguro de que Nag não me tome por você durante alguma noite escura ?

- Não há o menor perigo, respondeu Rikki-tikki, porque Nag mora no jardim e você não anda por lá.

- Meu primo Chua, o rato, contou-me que... - ia dizendo Chuchundra, mas interrompeu-se.

- Que contou ele ?

- Caluda! Nag anda por toda parte, Rikki. Você devia conversar com Chua, no jardim.

- Não o conheço. Conte logo o que ele disse. E depressa, Chuchundra, que se não...

Chuchundra sentou-se e duas lágrimas lhe rolaram pelos bigodes.

- Sou um coitadinho, soluçou ele, que nunca teve coragem de correr pelo meio dos quartos... Caluda! Não é preciso que eu fale. Não está ouvindo nada, Rikki?

Rikki-tikki pôs-se à escuta. A casa estava imersa no maior silencio, mas mesmo assim pareceu-lhe ouvir um imperceptível "crá-crá...", um leve rumor como de abelha caminhando sobre vidro de vidraça ... um esfregar seco de escamas sobre o tijolo.

- É Nag, ou a esposa de Nag, que para cá vem vindo pelo cano d'água do banheiro, murmurou a mangusta. Você tem razão, Chuchundra. Eu devia ter conversado com Chua.

Disse e dirigiu-se, cautelosa, para a sala de banho de Teddy, onde nada encontrou; de lá encaminhou-se para a sala de banho da mãe de Teddy. Viu logo no rodapé da parede urna abertura para o escoamento da água, através da qual pode ouvir a conversa de Nag e Nagaína lá fora, no
jardim. Dizia Nagaína:

- Quando a casa ficar vazia ela terá de mudar-se daqui - e nós então ficaremos de posse do jardim. Entre devagar e não se esqueça de que o homem que matou Karait é a pessoa que deve ser mordida em primeiro lugar. Depois venha contar-me como a coisa foi e combinaremos o modo de atacar Rikkitikki.

- Mas está você certa de que teremos alguma coisa a ganhar matando tanta gente? - indagou Nag.

- Teremos tudo a ganhar. Havia mangusta no jardim quando a casa esteve desabitada? Se a casa ficar novamente vazia voltaremos a ser os donos do jardim - e não se esqueça de que logo que os nossos ovos, no canteiro dos melões, terminem o choco (será talvez amanhã), as cobrinhas vão ter necessidade de espaço e sossego.

- Não pensei nisso, observou Nag. Vou iniciar o ataque, mas acho inútil dar caça a Rikki-tikki logo em seguida. Matarei o homem, a mulher e, caso possa, também o menino; depois voltarei tranqüilamente. Vendo a casa vazia, Rikkitikki muda-se logo.

Rikki-tikki estremeceu do focinho a cauda, de raiva, ao ouvir tal conversa. Logo em seguida a cabeça de Nag surgiu na abertura, seguida de metro e meio de corpo escamoso e frio. Apesar de furiosa, Rikki-tikki não deixou de amedrontar-se diante do tamanho da serpente. Nag ergueu a cabeça e olhou para dentro do banheiro, então no escuro. Rikki viu seus olhos brilharem.

- Se a mato aqui, refletiu a mangusta, Nagaína virá a saber; e se para atacá-la eu espero que Nag saia do buraco, as vantagens ficam do lado dele. Que fazer?

Nag saiu do buraco e coleou pelo assoalho; Rikki ouvia-o beber num jarro bojudo de encher a banheira.

- Está bem, disse a cobra. Quando Karait foi morta, o homem tinha na mão um pau. Ele pode ter ainda esse pau, mas se vier ao banho pela manhã certo que não o trará consigo. Esperarei por esse momento. Está-me ouvindo, Nagaína? Vou esperar aqui até pela manhã.

Não veio nenhuma resposta de fora, o que fez crer à mangusta que a outra cobra já se tinha ido. Nag enrodilhou-se no jarro e Rikki permaneceu imóvel, como morta.

Ao cabo de uma hora, porém, começou a mover-se lentamente na direção do jarro. Viu que Nag estava adormecida; pôde correr os olhos pelo seu longo dorso a fim de estudar em que ponto morder.

- Se não lhe quebro a espinha do primeiro bote, pensou ela, Nag poderá ainda lutar - e se Nag luta, ai de Rikki!...

Considerou depois a espessura do pescoço da cobra logo abaixo do capelo e achou muito para sua boca; mas uma mordida mais para perto da cauda só serviria para tornar a serpente ainda mais furiosa.

- É preciso ser na cabeça, resolveu-se por fim; na cabeça, bem rente ao capelo; e, quando a agarrar, tenho de ficar agarrada, haja o que houver.

Deu o bote. A cabeça da cobra jazia um tanto afastada do jarro, bem sob a curva da asa; logo que seus dentes ferraram, Rikki encostou o cangote de encontro ao rebojo da vasilha, a fim de melhor manter a cabeça junto ao chão. Isso lhe deu melhor jeito. Mas foi sacudida da direita para a
esquerda e da esquerda para a direita, como rato seguro em boca de cão - e para diante e para trás, e para cima e para baixo, e em círculos largos e curtos. A mangusta, porém, que estava os olhos bem rubros, manteve-se firme, enquanto a cauda da serpente chicoteava às tontas, derrubando saboneteiras e escovas, e ressoando surda de
encontro ao metal da banheira. Sempre firme, a mangusta apertava os dentes cada vez mais, pois que, certa como estava de ser batida na luta, queria ao menos, para honra da raça, que a encontrassem de dentes cerrados. Sentia-se já completamente tonta, moída de golpes, como prestes a desfazer-se em pedaços, quando algo atrás dela estrondou
horrível, e uma fulguração quente a pôs sem sentidos, com a pelagem tostada.

Desperto pelo barulho, o pai de Teddy havia pulado da cama e viera disparar a sua espingarda de dois canos bem sobre o capelo da cobra.

Rikki-tikki, de olhos fechados, continuava de dentes cerrados, convencida de que estava morta e bem morta; mesmo assim percebeu que a cabeça da cobra não mais se mexia e que o homem a levantava do chão, dizendo:

- A mangusta outra vez, Alice; acaba de salvar as nossas vidas, esta amiguinha...

A mãe de Teddy acudiu, muito pálida, e contemplou os restos mortais de Nag, enquanto Rikki-tikki se arrastava para o quarto do menino, onde passou o resto da noite a estudar-se cuidadosamente, a ver se realmente estava partida em vinte pedaços, como supunha.

Ao romper da manhã mostrava-se muito satisfeita com a sua façanha.

- Tenho agora de justar contas com Nagaína, que é pior que cinco Nags; e há ainda os ovos que estão em fim de choco. Ai, ai, ai! Preciso ver Darzee...

Sem esperar pelo almoço, correu para o espinheiro, onde encontrou Darzee entoando um canto de triunfo no tom mais alto possível. A notícia da morte de Nag já havia dado volta ao jardim, depois que um criado lançou o cadáver da cobra à estrumeira.

- Ó estúpido chumaço de penas! exclamou Rikki-tikki encolerizada. É então tempo de cantar?

- Nag morreu - morreu - morreu! cantava Darzee. A corajosa Rikki-tikki agarrou-a pela cabeça e não largou mais. O homem veio com o canudo comprido que faz pum! e Nag foi partida em dois pedaços! Nunca mais nos comerá os filhotes...

- Tudo isso é verdade, mas onde está Nagaína? - indagou Rikki-tikki, olhando cautelosa para os lados.

- Nagaína chegou até a boca do esgoto do banheiro para chamar Nag - disse Darzee, mas Nag saiu na ponta dum pau, pendurada, e foi dormir no monturo. Cantemos louvores à grande mangusta de olho vermelho!

E Darzee estufou o papo e cantou...

- Se eu pudesse alcançar esse ninho, dava com os filhotes no chão! - gritou a mangusta. Vocês não sabem fazer nada a seu tempo. Aí no ninho estão os dois bem seguros, mas cá embaixo tudo me cheira a guerra e perigos. Pare um minuto com essa cantoria, Darzee!

- Pelo amor da grande, da bela, da heróica mangusta, vou calar-me - respondeu Darzee. Que é que teme a matadora da terrível Nag?

- Temos Nagaína. Onde anda ela?

- No monturo, perto da cocheira, chorando a morte do marido. Viva Rikki-tikki, a gloriosa heroína dos dentes brancosl

- Para o diabo meus dentes brancos! Não sabe você por acaso onde Nagaína guarda seus ovos?

- Sei, sim. Estão no canteiro dos melões, no lugar onde o sol bate o dia inteiro. Faz já muito tempo que ela os escondeu lá.

- E só agora lembra-se você de contar-me isso ? Perto do muro, não é?

- Será que Rikki-tikki quer comer os ovos da cobra?

- Comer, propriamente, não, Darzee. Venha cá. Se você tiver um grão de juízo na cabecinha, vai já à estrumeira, fingindo estar de asa quebrada, para que Nagaína o persiga até àquela moita. Tenho de ir ao canteiro dos melões, mas sem que Nagaína me veja.
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continua

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