quinta-feira, 17 de abril de 2014

Jangada de Versos do Ceará (Haroldo Lyra)

(Nasceu em Icó, radicou-se em Fortaleza)

SUBLIME AMOR

Numa clínica, um velho procurava
Rápido curativo à mão doente.
Dizia-se apressado, que era urgente,
Pois tinha um compromisso e se atrasava.

O médico, atendendo ao paciente,
Perguntou por que tanto se apressava!
É que, num certo Asilo, costumava
Tomar café co’a esposa, já demente.

O médico ressalta: “Por descaso,
Não reclamara ela desse atraso?”
E ele: “Nem mais me reconhece, até”.

“Então! É apenas um capricho seu?”
“Oh, não! Ela não sabe quem sou eu,
Mas eu sei muito bem quem ela é”.

COISIFICADAS

Hoje é comum mulher tirar a roupa
Pra revelar nas bancas de jornal,
Despudoradamente o colossal
Segredo da virtude, já tão pouca.

Desnuda-se, aos apelos do mural;
Na crapulosa folha a pose louca
Que a revista conduz de boca em boca
E faz dessa mulher coisa venal,

Que assim exposta nua à sordidez;
Dependurada à espreita do freguês,
Nem percebe aonde e como vai chegar.

Mas chega ao pai, os sonhos carcomidos,
Por ver da filha os garbos preteridos,
E oferecida a quem puder pagar.

AMIZADE

Depois de salpicada uma amizade,
Por leve farpa num fugaz momento,
Traz o fato, humana realidade,
Carência de afeto e entendimento.

Se à prosa que se faz se põe maldade,
Perde, a amizade, o doce encantamento.
Há de perder também sinceridade
E lesto se avizinha o rompimento.

Mas, valham as que têm, irrelevante,
O dardo que feriu por um instante
Involuntariamente a fidalguia.

Nisso, aquela que impõe severa norma,
Inexoravelmente se transforma
Em triste olá de falsa cortesia.

APANIGUADOS I

Tenho pena de quem não é capaz
De sustentar-se pelos próprios meios,
Nos donativos finca os seus esteios
E a propaganda de um viver falaz.

Tenho pena dos que romperam veios
Das batalhas que não enfrentam mais;
Mendigos de padrões oficiais
Classificados sem quaisquer receios.

Que pena!… quando o silo esvaziar-se
E o joio dessa safra esparramar-se
Sobre as mentes que o dolo enfeitiçou.

Será penoso então o amanhecer,
Pois apenas terão para comer:
As sengas do pão que o diabo amassou.

DUAS TAÇAS

O álcool sempre vem abrilhantar
Os banquetes em salas requintadas,
Servido nas baixelas prateadas
Que aos olhos serve mais que ao paladar.

O álcool é um prazer bem popular,
Nos bares, nas barracas empalhadas,
Servido n’umas taças mal lavadas,
Agrada à boca, à venta, a quem tomar.

Um drink, salgadinhos de salmão;
Uma cereja adorna a taça à mão
E o fino aristocrata se enaltece.

Um trago, um tira-gosto de buchada;
A banda de um limão, já machucada,
E o jeca deita e rola e a pinga desce.

TROVAS

A gaiola me resguarda
da fatal atiradeira:
do chumbo da espingarda,
da pedra da baladeira.

Bailar na vida é rotina
de quem sabe ser feliz,
e nunca fecha a cortina
do baile que não tem bis.

Considero a efervescência
dessa densa multidão,
estressante consequência
da tal globalização.

Cores de outono bizarro
que a paisagem modifica;
E a estrada tosca de barro
juncada de folhas fica.

No cais, sem vela, ancorado,
o barco sofre a lacuna,
de um capitão reformado
que abandonou velha escuna.

O luar no mar refrata
feixe de raios azuis,
realça a onda e retrata
a praia que nos seduz

Os sentimentos do mar
as ondas cantam na areia,
afagando o firme olhar
da solitária sereia.

Pode até conter amor,
mas a emoção será pouca:
beijos por computador!...
prefiro os de boca à boca.

Rio de curvas simétricas
emoldurando a paisagem,
cinzela as veias poéticas
da natureza selvagem

Tens a missão importante
num mar sereno ou escuro,
indicando ao navegante
aquele porto seguro.

Fonte:
O Autor

Nenhum comentário: