sexta-feira, 30 de maio de 2014

Dorothy Jansson Moretti (Baú de Trovas) 13


Folclore Brasileiro (Mitos Indígenas) Arutsãm, o sapo astucioso

O sapo Arutsãm foi ao encontro de seu cunhado onça, para dele tomar emprestado um arco e uma gaita de bambu.

Aproximando-se de seu território, foi alertado por outros animais, com ironia, do perigo que estava correndo. Mesmo assim prosseguiu.

A onça mostrou-se gentil ao recebê-lo, convidando-o para um banho no lago, cuidando, porém, para que sempre caminhasse atrás do convidado.

Arutsãm desconfiado, manteve-se atento.

Ao anoitecer a onça esperou ansiosa que o cunhado adormecesse, aguardando o momento ideal para devorá-lo. Arutsãm, entretanto, colocou sobre os seus, olhos de um vagalume, ludibriando assim a onça, que o julgava acordado e não ousou atacá-lo.

No dia seguinte, já de posse do arco e da gaita, despediu-se agradecido de seu anfitrião. Esperto que era, espalhou formigas no caminho, que, atacando a onça, faziam com que esta batesse as patas no chão, acusando sua proximidade.

Arutsãm seguia o seu caminho. Passava agora pelo território das serpentes, a quem seu inimigo incansável pediu que o apanhassem. O astuto sapo atraiu-as até o lago, saltando velozmente para outra margem, escapando à sua perseguição.

Chegando à aldeia das cobras, apressou-se em quebrar todas as panelas de barro de suas fêmeas. Ao verem o estrago, estas o perseguiram enfurecidas.

Neste momento, partiu Arutsãm para seu grande salto: como um toque mágico, pulou para a lua, onde, zombeteiro, está eternamente a tocar sua gaita.

Ainda hoje, em noites claras, a onça contempla a lua (Iaê), lamentando o fracasso do seu plano traidor.

Fonte:
Jayhr Gael (Mitos indígenas). www.caminhodewicca.com.br

Machado de Assis (Almas Agradecidas) Capítulo II

Três dias depois, apareceu Magalhães no escritório de Oliveira; falou na sala a um porteiro que lhe pediu o cartão.

— Não tenho cartão, respondeu Magalhães envergonhado; esqueci-me de o trazer; diga-lhe que é o Magalhães.

— Queira esperar alguns minutos, tornou o porteiro; ele está conversando com uma pessoa.

Magalhães assentou-se numa cadeira de braços, enquanto o porteiro assoava silenciosamente o nariz e tomava uma pitada de rapé, que lhe não ofereceu. Magalhães examinou detidamente as cadeiras, as estantes, os quadros de gravuras, os capachos e as escarradeiras. A sua curiosidade era minuciosa e sagaz; parecia estar avaliando o gosto ou a riqueza de seu ex-colega.

Minutos depois, ouviu-se um rumor de cadeiras, e não tardou que viesse da sala do fundo um velho alto e empertigado, vestido com certo apuro, a quem o porteiro fez largos cumprimentos até o patamar da escada.

Magalhães não esperou que o porteiro fosse avisar Oliveira; atravessou o corredor que separava as duas salas e foi ter com o amigo.

— Ora, viva! disse este apenas o viu entrar. Estimo que não lhe houvesse esquecido a promessa. Sente-se; chegou a casa com chuva? — Começou a chuviscar, quando eu me achava a dois passos da porta, respondeu Magalhães.

— Que horas são? — Pouco mais de duas, creio eu.

— O meu relógio está parado, disse Oliveira, lançando o olhar de esguelha para o colete de Magalhães, que não tinha relógio. Naturalmente, ninguém mais me procurará hoje; e ainda que venham, quero descansar.

Oliveira tocou a campainha apenas acabou de proferir estas palavras. Veio o porteiro.

— Se vier alguém, disse Oliveira, não estou cá.

O porteiro inclinou-se e saiu.

— Estamos livres de importunos, disse o advogado, apenas o porteiro virou as costas.

Todas estas maneiras e palavras de simpatia e cordialidade foram angariando a confiança de Magalhães, que começou a parecer alegre e franco com o seu ex-colega.

Longa foi a conversa, que durou até às 4 horas da tarde. As 5 jantava Oliveira; mas o outro jantava às 3, e se o não disse, era talvez por deferência, se não fosse por cálculo.

Um jantar copioso e escolhido não era melhor que o ramerão culinário de Magalhães? Fosse uma ou outra coisa, Magalhães suportou a fome com admirável denodo. Eram 4 horas da tarde, quando Oliveira deu acordo de si.

— Quatro horas! exclamou ele, ouvindo as badaladas de um sino próximo. Naturalmente, já você perdeu a hora do jantar.

— Assim é, respondeu Magalhães; eu costumo jantar às 3 horas. Não importa; adeus.

— Isso é que não; há de ir jantar comigo — Não; obrigado...

— Ande cá, jantaremos no hotel mais próximo, porque a minha casa é longe. Eu ando com ideia de mudar de casa; estou muito fora do centro da cidade. Vamos aqui ao Hotel de Europa.

Os vinhos eram bons; Magalhães gostava de vinhos bons. No meio do jantar, tinha-se-lhe desenvolvido completamente a língua. Oliveira fazia quanto podia para tirar ao amigo da infância toda espécie de acanhamento. Isto e o vinho deram excelente resultado.

Desta ocasião em diante foi que Oliveira começou a apreciar o ex-colega. Era Magalhães um rapaz de agudo espírito, boa observação, conversador ameno, um pouco lido em obras fúteis e correntes. Tinha, além disso, o dom de ser naturalmente insinuante. Com estas prendas juntas não era difícil, era antes facílimo angariar as boas graças de Oliveira, que, à sua extrema bondade, reunia uma natural confiança, ainda não diminuída pelos cálculos da vida madura. Demais Magalhães tinha sido infeliz; esta circunstância era aos olhos de Oliveira um realce. Finalmente, o seu ex-colega já lhe confiara no trajeto do escritório ao hotel, que não contava um amigo debaixo do sol. Oliveira queria ser esse amigo.

Qual importa mais à vida, ser Dom Quixote ou Sancho Pança? O ideal ou o prático? A generosidade ou a prudência? Oliveira não hesitava entre esses dois opostos papéis; nem sequer pensara neles. Estava no período do coração.

Apertaram-se os laços da amizade entre os dois colegas. Oliveira mudou-se para a cidade, o que deu azo a que os dois amigos se encontrassem mais vezes. A frequência veio a uni-los ainda mais.

Oliveira apresentou Magalhães a todos os seus amigos; levou-o à casa de alguns. A sua palavra afiançava o hóspede que, dentro em pouco tempo, captava as simpatias de todos.

Nisto era Magalhães superior a Oliveira. Não faltava ao advogado inteligência, nem maneiras, nem dom para se fazer estimado. Mas os dotes de Magalhães superavam os dele. A conversa de Magalhães era mais picante, mais variada, mais atraente. Há muito quem prefira a amizade de um homem sarcástico, e Magalhães tinha seus longes de sarcástico.

Não se magoava com isto Oliveira, antes parecia ter certa glória em ver que seu amigo obtinha por seu mérito a estima dos outros.

Facilmente acreditará o leitor que estes dois amigos se fizessem confidentes de todas as coisas, principalmente de coisas de amores. Nada esconderam a este respeito um ao outro, com a diferença de que Magalhães, não tendo amores atuais, confiou ao amigo apenas algumas proezas antigas, ao passo que Oliveira, a braços com algumas aventuras, não dissimulou nenhuma delas, e tudo contou a Magalhães.

E foi bem que o fizesse, porque Magalhães era homem de bom conselho, dava ao amigo pareceres sensatos, que ele ouvia e aceitava com grande proveito seu e para maior glória da recíproca amizade.

A dedicação de Magalhães ainda se manifestava por outro modo. Não era raro vê-lo desempenhar um papel de conciliador, auxiliar uma inocente mentira, ajudar o amigo em todas as dificuldades que o amor depara aos seus alunos.
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continua...
 
Fonte:
www.dominiopublico.gov.br

Gonçalves Dias (Primeiros Cantos) 5

Amor! Delírio – Engano

Y el llanto que en su cólera derrama,
La hoguera apaga del antiguo amor!
- Zorrilla


Amor! delírio - engano... Sobre a terra
Amor tão bem fruí; a vida Inteira
Concentrei num só ponto - amá-la, e sempre.
Amei! - dedicação, ternura, extremos
Cismou meu coração, cismou minha alma,
- Minha alma que na taça da ventura
Vida breve d’amor sorveu gostosa.
Eu e ela, ambos nós, na terra ingrata
Oásis, paraíso, éden ou templo
Habitamos uma hora; e logo o tempo
Com a foice roaz quebrou-lhe o encanto,
Doce encanto que o amor nos fabricara.
E eu sempre a via!... quer nas nuvens d’oiro
Quando ia o sol nas vagas sepultar-se,
Ou quer na branca nuvem que velava _
O círculo da lua, - quer no manto
D’alvacenta neblina que baixava
Sobre as folhas do bosque, muda e grave,
Da tarde no cair; nos céus, na terra,
A ela, a ela só, viam meus olhos.
Seu nome, sua voz - ouvia eu sempre;
Ouvia-os no gemer da parda rola,
No trépido correr da veia argêntea,
No respirar da brisa, no sussurro
Do arvoredo frondoso, na harmonia
Dos astros inefável; - o seu nome!
Nos fugitivos sons de alguma frauta,
Que da noite o silêncio realçavam,
Os ares e a amplidão divinizando,
Ouviam meus ouvidos; e de ouvi-lo
Arfava de prazer meu peito ardente.
Ah! quantas vezes, quantas! junto dela
Não senti sua mão tremer na minha;
Não lhe escutei um lânguido suspiro,
Que vinha lá do peito à flor dos lábios
Deslizar-se e morrer?! Dos seus cabelos
A mágica fragrância respirando,
Escutando-lhe a voz doce e pausada,
Mil venturas colhi dos lábios dela,
Que Instantes de prazer me futuravam.
Cada sorriso seu era uma esp’rança,
E cada esp’rança enlouquecer de amores.
E eu amei tanto! - Oh! não! não hão de os homens
Saber que amor, à ingrata, havia eu dado;
Que afetos melindrosos, que em meu peito
Tinha eu guardado para ornar-lhe a fronte!
Oh! - não, - morra comigo o meu segredo;
Rebelde o coração murmure embora.
Que de vezes, pensando a sós comigo,
Não disse eu entre mim: - Anjo formoso,
Da minha vida que farei, se acaso
Faltar-me o teu amor um só instante;
- Eu que só vivo por te amar, que apenas
O que sinto por ti a custo exprimo?
No mundo que farei, como estrangeiro
Pelas vagas cruéis à praia Inóspita
Exânime arrojado? - Eu, que isto disse,
Existo e penso - e não morri, - não morro
Do que outrora senti, do que ora sinto
De pensar nela, de a rever em sonhos,
Do que fui, do que sou e ser podia!
Existo; e ela de mim jaz esquecida!
Esquecida talvez de amor tamanho,
Derramando talvez noutros ouvidos
Frases doces de amor, que dos seus lábios
Tantas vezes ouvi, - que tantas vezes
Em êxtase divino aos céus me alçaram,
- Que dando à terra ingrata o que era terra
Minha alma além das nuvens transportaram.
Existo! como outrora, no meu peito
Férvido o coração pular sentindo,
Todo o fogo da vida derramando
Em queixas mulheris, em moles versos.
E ela!... ela talvez nos braços doutrem
Com sua vida alimenta uma outra vida,
Com o seu coração o de outro amante,
Que mais feliz do que eu, inferno! a goza.
Ela, que eu respeitei, que eu venerava
Como a relíquia santa! - a quem meus olhos,
Receando ofendê-la, tantas vezes
De castos e de humildes se abaixaram!
Ela, perante quem sentia eu presa
A voz nos lábios e a paixão no peito!
Ela, ídolo meu, a quem o orgulho,
A força d’homem, o sentir, vontade
Própria e minha dediquei, - sujeita
À voz de alguém que não sou eu, - desperta,
Talvez no instante em que de mim se lembra,
Por um ósculo frio, por carícias
Devidas dum esposo!...
Oh! não poder-te,
Abutre roedor, cruel ciúme,
Tua funda raiz e a imagem dela
No peito em sangue espedaçar raivoso!
Mas tu, cruel, que és meu rival, numa hora,
Em que ela só julgar-se, hás de escutar-lhe
Um quebrado suspiro do imo peito,
Que d’eras já passadas se recorda.
Hás de escutá-lo, e ver-lhe a cor do rosto
Enrubescer-se ao deparar contigo!
Presa serás também d’atros cuidados,
Terás ciúme, e sofrerás qual sofro:
Nem menor que o meu mal quero a vingança.

Delírio

Quando dormimos o nosso espírito vela.
- Ésquilo


A noite quando durmo, esclarecendo
As trevas do meu sono,
Uma etérea visão vem assentar-se
Junto ao meu leito aflito!
Anjo ou mulher? não sei. - Ah! se não fosse
Um qual véu transparente,
Como que a alma pura ali se pinta
Ao través do semblante,
Eu a crera mulher... - E tentas, louco,
Recordar o passado,
Transformando o prazer, que desfrutaste,
Em lentas agonias?!
Visão, fatal visão, por que derramas
Sobre o meu rosto pálido
A luz de um longo olhar, que amor exprime
E pede compaixão?
Por que teu coração exala uns fundos,
Magoados suspiros,
Que eu não escuto, mas que vejo e sinto
Nos teus lábios morrer?
Por que esse gesto e mórbida postura
De macerado espírito,
Que vive entre aflições, que já nem sabe
Desfrutar um prazer?
Tu falas! tu que dizes? este acento,
Esta voz melindrosa,
Noutros tempos ouvi, porém mais leda;
Era um hino d’amor.
A voz, que escuto, é magoada e triste,
- Harmonia celeste,
Que à noite vem nas asas do silêncio
Umedecer as faces
Do que enxerga outra vida além das nuvens.
Esta voz não é sua;
É acorde talvez d’harpa celeste,
Caído sobre a terra!
Balbucias uns sons, que eu mal percebo,
Doridos, compassados,
Fracos, mais fracos; - lágrimas despontam
Nos teus olhos brilhantes...
Choras! tu choras!... Para mim teus braços
Por força irresistível
Estendem-se, procuram-me; procuro-te
Em delírio afanoso.
Fatídico poder entre nós ambos
Ergueu alta barreira;
Ele te enlaça e prende... mal resistes...
Cedes enfim. . . acordo!
Acordo do meu sonho tormentoso,
E choro o meu sonhar!
E fecho os olhos, e de novo intento
O sonho reatar.
Embalde! porque a vida me tem preso;
E eu sou escravo seu!
Acordado ou dormindo, é triste a vida
Dês que o amor se perdeu.
Há contudo prazer em nos lembrarmos
Da passada ventura,
Como o que educa flores vicejantes
Em triste sepultura.

Epicédio

Passa la bella donna e par che dorma.
- Tasso


Seu rosto pálido e belo
Já não tem vida nem cor!
Sobre ele a morte descansa,
Envolta em baço palor.
Cerraram-se olhos tão puros,
Que tinham tanto fulgor;
Coração que tanto amava
Já hoje não sente amor;
Que o anjo belo da morte
A par desse anjo baixou!
Trocaram brandas palavras,
Que Deus somente escutou.
Ventura, prazer, ledice
Duma outra vida contou;
E o anjo puro da terra
Prazer da terra enjeitou.
Depois co’as asas candentes
O formoso anjo do céu
Roçou-lhe a face mimosa,
Cobriu-lhe o rosto co’um véu.
Depois o corpo engraçado
Deixou à terra sem vida,
De tênue palor coberto,
- Verniz de estátua esquecida.
E bela assim, como um lírio
Murcho da sesta ao ardor,
Teve a inocência dos anjos,
Tendo o viver duma flor.
Foi breve! - mas a desgraça
A testa não lhe enrugou,
E aos pés do Deus que a crIara
Alma inda virgem levou.
Sai da larva a borboleta,
Sai da rocha o diamante,
De um cadáver mudo e frio
Sai uma alma radiante.
Não choremos essa morte,
Não choremos casos tais;
Quando a terra perde um justo,
Conta um anjo o céu de mais.

Sofrimento

Meu Deus, Senhor meu Deus, o que há no mundo
Que não seja sofrer?
O homem nasce, e vive um só instante,
E sofre até morrer!
A flor ao menos, nesse breve espaço
Do seu doce viver,
Encanta os ares com celeste aroma,
Querida até morrer.
É breve o romper d’alva, mas ao menos
Traz consigo prazer;
E o homem nasce e vive um só instante:
E sofre até morrer!
Meu peito de gemer já está cansado,
Meus olhos de chorar;
E eu sofro ainda, e já não posso alivio
Sequer no pranto achar!
Já farto de viver, em meia vida,
Quebrado pela dor,
Meus anos hei passado, uns após outros,
Sem paz e sem amor.
O amor que eu tanto amava do imo peito,
Que nunca pude achar,
Que embalde procurei, na flor, na planta,
No prado, e terra, e mar!
E agora o que sou eu? - Pálido espectro,
Que da campa fugiu;
Flor ceifada em botão; imagem triste
De um ente que existiu...
Não escutes, meu Deus, esta blasfêmia;
Perdão, Senhor, perdão!
Minha alma sinto ainda, - sinto, escuto
Bater-me o coração.
Quando roja meu corpo sobre a terra,
Quando me aflige a dor,
Minha alma aos céus se eleva, como o incenso,
Como o aroma da flor.
E eu bendigo o teu nome eterno e santo,
Bendigo a minha dor,
Que vai além da terra aos céus infindos
Prender-me ao criador.
Bendigo o nome teu, que uma outra vida
Me fez descortinar,
Uma outra vida, onde não há só trevas,
E nem há só penar.

terça-feira, 27 de maio de 2014

Dorothy Jansson Moretti (Baú de Trovas) 12


Folclore Brasileiro (Mitos Indígenas) Igaranhã - a canoa encantada

Um índio da tribo Kamaiúra iniciou a construção de uma canoa com a casca do jatobá. Ao terminá-la retomou para junto de sua mulher, que há pouco dera à luz, permanecendo por alguns dias.

Algum tempo depois, voltando à mata onde havia deixado a canoa, não mais a encontrou. Entristeceu-se e, pensativo, tentou imaginar o que ocorrera. Talvez a tivessem roubado, ou algum animal a tivesse destruído. Como poderia pescar agora? Absorto, despertou com um ruído.

Foi grande o seu espanto ao perceber que em sua direção movimentava-se lentamente, por si mesma, uma canoa, a mesma que ele construíra, agora com vida e olhos na proa.

Talvez houvesse se transformado em um animal, pensou. Dar-lhe-ia então um nome: Igaranhã - o crocodilo. Entrou na canoa, ordenando-lhe que seguisse em direção ao lago.

Assim que Igaranhã tocou a água, cobriu-se com muitos peixes, dos mais variados tipos, cores e tamanhos, que saltavam sem cessar da água para dentro da embarcação.

Os primeiros, a própria canoa devorou, ficando no entanto a maior parte para o índio.

Á sua mulher, maravilhada, falou apenas de um lugar ideal para a pesca, que houvera encontrado.

Dias depois, retomando ao mesmo local, nada encontrou sob a frondosa árvore. Como por encanto a canoa surgiu novamente da mata, dirigindo-se ao lago e o fenômeno repetiu-se.

O índio ambicioso recolheu rapidamente os peixes, sem deixar à Igaranhã sua parcela do alimento. Esta então, muito contrariada, acabou por devorar seu próprio dono.

Fonte:
Jayhr Gael (Mitos indígenas). www.caminhodewicca.com.br

Gerson Cesar Souza (Peça Teatral: A Floresta da Tristeza sem Fim)

ATO 1:

(Caco e Magú jogando futebol. Leleco entra e quer jogar também).

LELECO - Mano, deixa eu jogar também?

CACO - Não, não, tu é muito ruim.

LELECO - Ah, mano deixa...

MAGÚ - Não, da outra vez tu quebrou o vidro da casa da véia chata ali do lado, e ela ficou brigando com a gente. (Imita a véia)

LELECO - Ah, só um chute vai.

CACO - Tá, espera a gente jogar e depois tu joga. São só 150 chutes prá cada um.

LELECO - Tá

(Leleco faz que vai esperar, mas na hora que Caco vai chutar ele chuta e a bola vai para o pátio da vizinha)

MAGÚ - Bá, foi lá pro pátio da véia!

CACO - Eu te falei Leleco, agora tu vai buscar.

(Leleco indeciso começa a falar. Enquanto fala a vizinha aparece atrás dele com a bola na mão).

LELECO - Ah, eu vou. Eu não tenho medo, não sou covarde como vocês. Não vou ter medo daquela véia chata e coroca.

VIZINHA - Quem é véia chata e coroca?

LELECO - Aquela que mora ali ó!

(Se vira, vê a véia e leva um susto).

LELECO - Oi vizinha; trouxe a bola, que bom. Toma a bola mano e cuidem prá não incomodar a vizinha.

VIZINHA - Escuta aqui seu pivetinho, fecha essa matraca. E vocês, parem de ficar jogando essa bola pro meu pátio, pois se eu pegar ela  novamente, vou picar tanto essa bola que açougueiro vai querer vender como guisado.

MAGÚ - Desculpa vizinha, mas nosso irmão é um pouco mal educado. Eu já não te falei Leleco prá não chamar a véia de vizinha?

VIZINHA - O que tu disse?

MAGÚ - Quer dizer, não chamar a vizinha de véia.

CACO - Dona, isso não vai acontecer mais. Eu vou guardar essa bola e ninguém mais vai jogar.

VIZINHA - É bom mesmo, porque se quebrar o meu vidro outra vez eu esmago vocês.

(Velha sai. Assim que ela vai embora Caco larga a bola no chão)

CACO - Tá liberado pessoal, vamos jogar.

LELECO - Oba, eu chuto, é minha vez...

MAGÚ - Tu não, tu quase estragou o nosso jogo.

CACO - É, tu não joga mais.

LELECO - Ah, vocês vão vê! Então eu vou pegar a minha funda e vou caçar passarinho lá na Floresta.

MAGÚ - Tu é louco? Essa é a Floresta da Tristeza sem Fim. Tem fantasma!

CACO - Dizem que tem uma bruxa também. Ela pega as crianças e transforma em sapos.

MAGÚ - E essa bruxa tem três monstros que ajudam ela.

LELECO - Eu não tenho medo de bruxa nem de fantasma. Se eles vierem eu pego minha funda e ó... Tchau prá vocês.

MAGÚ - É louco!

CACO - A bruxa vai pegar ele...

ATO 2:

(Leleco entra na Floresta. Caco e Magú saem de cena. Leleco procura passarinhos, dá tiros com a funda e conversa com a plateia ).

LELECO - Ah, o Caco e o Magú disseram que tinha fantasma aqui, mas não tem nada. Bom eu vou dormir um pouco, se aparecer um fantasma vocês avisam, tá?

(Quando Leleco dorme, entra em cena a Fantasminha Rafaela, plantando flores. A plateia grita para avisar. Rafaela vai até Leleco com curiosidade. Leleco acorda e Rafaela esconde-se atrás das árvores).

LELECO - Porque vocês estão gritando? Não tem fantasma nenhum aqui.

(Vai atrás das árvores, procura e vai dormir de novo)

LELECO - Eu vou dormir de novo. Qualquer coisa vocês gritam.

(Rafaela vai até ele novamente).

LELECO - Vocês estão gritando de novo, não tem fantasma aqui. Atrás de mim não tem nada.

(Vira e leva um susto. Pega a funda.)

LELECO - Ah meu Deus, sai prá lá coisa ruim...

RAFAELA - Calma, calma.

LELECO - Quem é você?

RAFAELA - Eu sou a Fantasminha Rafaela.

LELECO - Os fantasmas são do mal! Sai!

(Rafaela senta e começa a chorar)

RAFAELA - Eu não sou do mal, sou do bem! Ninguém gosta de mim, todo mundo foge de mim.

(Leleco tenta fugir, árvores fecham o caminho)

ÁRVORE1 - Menino mau!

ÁRVORE2 - Você fez a Rafaela chorar.

LELECO - Vocês falam? Eu vou fugir!

ÁRVORE1 - Na na não. Volte lá e peça desculpas!

LELECO - Mas ela é um fantasma...

ÁRVORE2 - Vá lá agora!

LELECO - Mas eu tenho medo...

ÁRVORE1 - Se você não for lá nós vamos fazer soprar um vento forte, que vai levar você para muito longe daqui.

ÁRVORE2 - Você nunca mais vai voltar.

LELECO - Tá bom, eu vou!

(Leleco vai até Rafaela. Quando toca nela, ela chora mais ainda, e ele se assusta. Rafaela fala chorando e ele não entende. Leleco acalma ela)

RAFAELA - Eu sou boazinha, mas ninguém quer ser meu amigo... Todo mundo tem medo de mim.

LELECO - Mas eu pensei que os fantasmas fossem maus.

RAFAELA - Mau é você que fica com essa funda matando os passarinhos. E eu não era um fantasma! Eu era uma menina normal, e cuidava dessa floresta. Plantava flores, dava comida pros bichinhos. Aí, a Bruxa Magnólia me pegou e me jogou um feitiço. Eu virei uma fantasma e esta floresta virou a Floresta da Tristeza sem Fim.

LELECO - Puxa! que bruxa malvada. E não tem como acabar com esse feitiço?

RAFAELA - A única maneira é pegar a varinha mágica da Bruxa e quebrar. Mas ninguém consegue chegar perto dela.

LELECO - Deixa comigo Rafaela. Vou pegar essa varinha e acabar com o feitiço)

(Risadas da Bruxa)

RAFAELA - É a Bruxa Magnólia, ela vem vindo... Vamos nos esconder!

LELECO - Não, eu vou enfrentar ela. Dou um soco assim, outro assim...

RAFAELA - Mas ela tem três monstros que ajudam ela, e adora transformar as crianças em sapos, e depois arrancar as pernas prá fazer feitiços.

LELECO - Pensando bem, vamos nos esconder.

ATO 3:

(Rafaela e Leleco escondem-se. Entra a bruxa com os três ajudantes).

BRUXA MAGNÓLIA - Eu estou sentindo cheiro de crianças. Tem crianças aqui! Trac, Trec e Troc, procurem!

(Monstros procuram e não acham.).

BRUXA MAGNÓLIA - Olhem essas flores! Aquela Fantasminha idiota andou plantando flores na minha floresta outra vez. Eu acabo com a Rafaela.

(Enquanto a Bruxa fala, gesticula e derruba Trac)

BRUXA MAGNÓLIA - Arranquem essa flores e depois venham me ajudar a procurar a Rafaela!

(Bruxa sai, Monstros – sempre em fila – vão arrancando as flores, e entregando um para o outro. O último monstro vai replantando as flores. Quando acabam:).

MONSTRO1 - Serviço completo.

MONSTRO2 - É, serviço completo.

MONSTRO3 - Completíssimo!

(Olhar para trás.)

MONSTRO1 - Seu idiota, é prá arrancar as flores, e não para plantar. (Arrancam de novo e saem)

(Rafaela e Leleco saem do cenário, depois dos monstros. Magú e Caco voltam a jogar bola)

MAGÚ - Acho que o Leleco está na floresta agora e não vai nos incomodar.

CACO - É, vamos aproveitar e jogar...

(Jogam um pouco até quebrarem a janela da vizinha)

CACO - Iiih, Magú, a velha vai nos pegar...

(A vizinha grita de fora do cenário)

VIZINHA - Quebram a minha janela, eu vou matar vocês!!!

MAGÚ - E agora???

CACO - Vamos nos esconder na floresta!

MAGÚ - Mas na floresta tem a bruxa!

(Ficam na indecisão e decidem pela floresta)

ATO 4

(Meninos na floresta)

MAGÚ - Que floresta horrível. Agora é sei porque chamam de Floresta da Tristeza sem fim. Chega a dar medo...

CACO - É, dizem que a bruxa é má e transforma as crianças em sapos.

MAGÚ - É, e os monstros que ajudam ela são terríveis...

(Monstros entram e escondem-se atrás das árvores. O monstro Trac se disfarça de árvore)

MAGÚ - Ah, que árvore mais feia....

(Trac começa a rir e outros monstros cutucam ele)

CACO - Parece um monstro!

MAGÚ - Vamos Caco, vamos achar o Leleco e dar o fora desta floresta.

(Sai um atrás do outro. Monstros saem das árvores e pegam Caco. Outro monstro segue atrás do Magú. Bruxa dá uma risada)

MAGÚ - Ouviu é a Bruxa.... Dá a mão, Caco, porque senão ela nos pega...

(Magú agarra a mão do monstro).

MAGÚ - Lelecoooo! Leleeeeco, onde é que tu tá?

(Magú dá a volta puxando o monstro e chega aonde Caco está preso)

MAGÚ - É Caco, não achamos o Leleco.

(Caco tenta avisar, mas está amordaçado)

CACO - Hummmmmm.

MAGÚ - Que foi Caco, fala.

CACO - Hummmmmm.

MAGÚ - Ô Caco, como é que tu está aí e aqui atrás?

CACO - Hummmmmm.

MAGÚ - Se tu tá aí...

(Se vira e leva um susto, Monstros correm atrás e pegam. Amarram junto com Caco).

MONSTRO1 - Trac, chama a Bruxa!

(Trac sai e vai chamar a Bruxa. Troc e Trec ameaçam os meninos. Trac volta com a Bruxa).

BRUXA MAGNÓLIA - Eu sabia que haviam crianças aqui!!! Eu falei! Agora vou transformá-los em sapos e arrancar as pernas de vocês. Monstros, cuidem deles. Eu vou buscar meu livro de feitiços. Vou deixar minha varinha aqui. Não saiam de perto dela.

(Bruxa sai de cena)

ATO 5


MONSTRO1 - A bruxa ficou contente, pegamos os meninos...

MONSTRO2 - É, nós somos bons.

MONSTRO3 - É, agora ela vai transformar essas crianças em monstros feios como vocês.

MONSTRO1 - Cale essa boca, você não serve nem prá ser monstro.

MONSTRO2 - É, tu te disfarçou de árvore, quase estragou tudo!!!

MONSTRO3 - Mas...

MONSTRO1 - Sai daqui. Tu cuida da varinha e nós cuidamos dos meninos.

MONSTRO2 - É, babaca.

(Trac sai chorando até a varinha. Chegando na varinha, tem a ideia de vingança. Pode até conversar com as crianças para decidir transformar os monstros em animais. Após todas as transformações a Bruxa volta).

BRUXA MAGNÓLIA - O que é isso, o que você fez com eles? Chega! Eu quero que vocês voltem a ser monstros.

(Bruxa transforma eles em monstros novamente).

BRUXA MAGNÓLIA- Vocês três, agora, agarrem as crianças e calem a boca que eu vou procurar o feitiço no livro.

ATO 6

(Rafaela e Leleco voltam à Cena e conversam encobertos pelas árvores, próximos à plateia)

LELECO - Rafaela, a Bruxa pegou os manos...

RAFAELA - Ela vai transformar eles em sapos!

LELECO - Temos que fazer alguma coisa!!!!

RAFAELA - Mas a gente precisa pegar a varinha...

LELECO - Já sei, você vai lá prá trás da Bruxa. Eu vou chamar a atenção dela. Você pega a varinha, joga prá mim e eu quebro.

(Leleco combina com as crianças da plateia, pedindo que elas ajudem a quebrar a varinha. Enquanto a Bruxa começa a falar, Rafaela desloca-se com a árvore por trás dela.)

ATO 7

BRUXA MAGNÓLIA - Achei! Achei o feitiço! Silêncio, eu tenho dizer “Xixi xiriri xipum. Pelos poderes das trevas, eu Bruxa Magnólia, transformo em sapos essas crianças!”.

(Bruxa pede ajuda das crianças para falar o xixi xiriri xipum)

BRUXA MAGNÓLIA - Tudo bem, tudo bem, vamos começar. Xixi xiriri xipum. Pelos poderes das trevas, eu Bruxa Magnólia, transformo...”

MONSTRO1 - Majestade...

BRUXA MAGNÓLIA - Cale a boca. Tenho que me concentrar!!!! Xixi xiriri xipum. Pelos poderes das trevas, eu Bruxa Magnólia, transformo...

MONSTRO2 - Mas Majestade...

BRUXA MAGNÓLIA - Fiquem quietos.

(Rafaela se posiciona atrás da bruxa e combina com as crianças em fazer de conta que vai ajudar)

RAFAELA - Senhora Bruxa, agora a gente vai te ajudar a dizer tudo!!!

BRUXA MAGNÓLIA - Ah, muito obrigado!!!!

RAFAELA - Xixi xiriri xipum!

BRUXA MAGNÓLIA - Xixi xiriri xipum!

RAFAELA - Pelos poderes das trevas...

BRUXA MAGNÓLIA - Pelos poderes das trevas...

RAFAELA - Eu, Bruxa Magnólia...

BRUXA MAGNÓLIA - Eu, Bruxa Magnólia...

RAFAELA - transformo em sapos...

BRUXA MAGNÓLIA - transformo em sapos...

RAFAELA - esses monstros!

BRUXA MAGNÓLIA - esses monstros!

(Monstros viram sapos)

BRUXA MAGNÓLIA - O quê? Rafaela, você me enganou. Eu vou acabar com você!!!!

(Leleco aparece, chama atenção da Bruxa cantando)

BRUXA MAGNÓLIA - Eu é que vou te transformar numa minhoca, seu pirralho!!!! Xixi xiriri xipum! Pelos poderes das trevas, eu Bruxa Magnólia transformo em minhoca...”

(Leleco atira com a funda. A varinha cai. Rafaela pega. Joga prá Leleco. Bruxa corre de um lado para o outro. Até que a Bruxa pega Leleco e ele joga a varinha para a plateia quebrar.)

LELECO - Quebrem!!!

BRUXA MAGNÓLIA - Devolvam minha varinha!

RAFAELA - Quebrem a varinha!!!

(Crianças quebram a varinha. Bruxa morre. Rafaela volta a ser criança, bem como os monstros)

LELECO - Rafaela, você voltou a ser uma menina!!!

RAFAELA- Voltei sim!!! Obrigado Leleco, vocês me salvaram!!!

MONSTRO1 - Nós também estamos livres.

(Monstros soltam os meninos)

RAFAELA - Agora minha floresta vai voltar a ser alegre, com flores, com pássaros, ninguém mais com fundas.

LELECO - Isso mesmo Rafaela. Ninguém mais vai maltratar os bichinhos e a floresta, que agora será a Floresta da Alegria sem Fim.

(Final cantando)

Fontes:
SOUZA, Gérson César. Dons Diversos.
Imagem = http://www.desvendandoteatro.com

Marcelo Spalding (A importância do conflito na criação literária)


    Quem não lembra do tempo das redações escolares? Ao voltar das férias, invariavelmente escrevíamos sobre "Minhas Férias". E só hoje penso na professora, coitada, que lia 30 textos iguais em cada turma. Vamos nos colocar no lugar de uma professora de séries iniciais. Pense que você está lendo pela 28ª vez um texto mais ou menos assim:

    "Minhas férias foi boa, fomos para a praia, brincamo muito de bola e de piscina e de mar e comemo muito churrasco. Mamãe e papai estavam muito feliz. E eu também, claro."

    Até que, de repente, na 29ª redação, você lê isso:

    "Minhas férias foi boa, fomos para a praia, brincamo muito de bola e de piscina e de mar e comemo muito churrasco. Só que no último dia a mamãe encontrou um cara cabeludo na praia, conversou com ele e os dois fugiram. O papai ficou muito, muito brabo, pegou uma arma e saiu correndo atrás deles..."

    Opa! Esse texto me interessou! Esse texto eu quero ler até o final! Por quê? Porque esse texto tem conflito.

    O segredo da narrativa é ter um conflito. Se tudo estiver bem, a história não precisa ser contada. Outra comparação: quando você cruza por um conhecido e pergunta, sem sequer parar de caminhar: "Tudo bem?". O outro, também sem parar de caminhar, diz: "Tudo". É sempre assim.

    Se um dia seu amigo ou colega de trabalho disser "Não, não está tudo bem" você irá não só parar de caminhar como se voltar a ele, arregalar os olhos e perguntar com sincero interesse: "O que aconteceu???".

    Conflito, porém, não é necessariamente uma morte, a troca de um bebê na maternidade, o sequestro da mocinha, a traição, a doença terminal. A não ser que você queira trabalhar escrevendo novelas para a Globo, os conflitos podem - e devem - ser mais sutis. Para escrever uma história sobre traição, você pode começar narrando um jantar do casal em que ele sequer olha para ela, envergonhado. Eis um conflito. O leitor pode terminar o conto e sequer ter certeza do que houve. Mas o conflito está ali e o leitor irá até o final da história para tentar resolvê-lo.

    Há conflito, por vezes, em um simples olhar. Em um rosto. Em um gesto. Saber explorá-los é o grande segredo do bom escritor. Observe a imagem abaixo.

 
    
Inicialmente essa fotografia era uma entre milhares que um repórter fotográfico da National Geographic, Steve McCurry, fez na região do Afeganistão. Anos depois, alguém a achou no arquivo e pensou que seria uma boa foto para a capa, tornando-se uma das capas de revista mais famosas da história.

    Ainda sobre conflito, é importante você saber que tipo de texto irá escrever para determinar quantos conflitos cabem nele. A rigor, o conto é a narrativa de UMA história, ou seja, deve haver nele UM conflito.

    Claro que esse conflito (digamos a traição) pode estar espalhado em várias cenas de maneira mais sutil (o olhar, o silêncio, a raiva, o choro). E pode, até, uma doença grave da mulher justificar o conflito inicial. O problema é quando, no meio do texto, surge e é desenvolvido um novo conflito que não é causa nem consequência do primeiro (se refere a outra personagem, por exemplo).

    Já em narrativas longas, como romances ou telenovelas, há mais de um conflito (embora um costume ser o principal) e essas histórias (cada uma com seu conflito) se sobrepõem. O planejamento dessas ações e dessa história é fundamental para que o leitor não se perca.

Fonte:
Marcelo Spalding in http://www.cursosdeescrita.com.br/4108/a-importancia-do-conflito-na-criacao-literaria

Gonçalves Dias (Primeiros Cantos) 4

Seus Olhos

Oh! rouvre tes grands yeux, dont la paupiére tremble,
Tes yeux pleins de langueur;
Leur regard est si beau quand nous sommes ensemble!
Rouvre-les; ce regard manque à ma vie, il semble
Que tu fermes ton coeur.
- Turquety


Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros,
De vivo luzir,
Estrelas incertas, que as águas dormentes
Do mar vão ferir;
Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros,
Têm meiga expressão,
Mais doce que a brisa, - mais doce que o nauta
De noite cantando, - mais doce que a flauta
Quebrando a solidão.

Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros,
De vivo luzir,
São meigos infantes, gentis, engraçados
Brincando a sorrir.

São meigos infantes, brincando, saltando
Em jogo infantil,
Inquietos, travessos; - causando tormento,
Com beijos nos pagam a dor de um momento,
Com modo gentil.

Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros,
Assim é que são;
Às vezes luzindo, serenos, tranquilos,
Às vezes vulcão!

Às vezes, oh! sim, derramam tão fraco,
Tão frouxo brilhar,
Que a mim me parece que o ar lhes falece,
E os olhos tão meigos, que o pranto umedece
Me fazem chorar.

Assim lindo infante, que dorme tranquilo,
Desperta a chorar;
E mudo e sisudo, cismando mil coisas,
Não pensa - a pensar.

Nas almas tão puras da virgem, do infante,
Às vezes do céu
Cai doce harmonia duma Harpa celeste,
Um vago desejo; e a mente se veste
De pranto co’um véu.

Quer sejam saudades, quer sejam desejos
Da pátria melhor;
Eu amo seus olhos que choram sem causa
Um pranto sem dor.

Eu amo seus olhos tão negros, tão puros,
De vivo fulgor;
Seus olhos que exprimem tão doce harmonia,
Que falam de amores com tanta poesia.
Com tanto pudor.

Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros,
Assim é que são;
Eu amo esses olhos que falam de amores
Com tanta paixão.

Tristeza

Que leda noite! - Este ar embalsamado,
Este silêncio harmônico da terra
Que sereno prazer n’alma cansada
Não espreme, não filtra, não difunde?

A brisa lá sussurra na folhagem
D’espessas matas, d’árvores robustas,
Que velam sempre e sós, que a Deus elevam
Misterioso coro, que do Bardo
A crença quase morta inda alimenta.

É esta a hora mágica de encantos,
Hora d’inspirações dos céus descidas,
Que em delírio de amor aos céus remontam.
Aqui da vida as lástimas infindas,
Do mirrado egoísmo a voz ruidosa
Não chegam; nem soluços, risos, festas,
- Hilaridade vã de turba incauta,
Néscia de ruim futuro; ou queixa amarga
De decrépito velho, enfermo, exangue,
Nem do mancebo os ais doidos, preso
Ao leito do sofrer na flor da vida.

Aqui reina o silêncio, o religioso,
Morno sossego, que povoa as ruínas,
E o mausoléu soberbo, carcomido,
E o templo majestoso, em cuja nave
Suspira ainda a nota maviosa,
O derradeiro arfar d’órgão solene.

Em puro céu a lua resplandece,
Melancólica e pura, semelhando
Gentil viúva que pranteia o extinto,
O belo esposo amado, e vem de noite,
Vivendo pelo amor, mau grado a morte,
Ferventes orações chorar sobre ele.

Eu amo o céu assim, sem uma estrela,
Azul sem mancha, - a lua equilibrada
Num céu de nuvens, e o frescor da tarde,
E o silêncio da noite adormecida,
Que imagens vagas de prazer desenha.

Amo tudo o que dá no peito e n’alma
Tréguas ao recordar, tréguas ao pranto,
À v’emência da dor, à pertinácia
Tenaz e acerba de cruéis lembranças;
Amo estar só com Deus, porque nos homens
Achar não pude amor, nem pude ao menos
Sinal de compaixão achar entre eles.

Menti - um inda achei; mas este em ócio
Feliz descansa agora, enquanto aos ventos
E ao cru furor das verde-negras ondas
Da minha vida a barca aventureira
Insano confiei; em céu diverso
Luzem com luz diversa estrelas d’ambos.

Ai! triste, que houve tempo em que eu julgava
As duas uma só, - c’o mesmo brilho
Uma e outra nos céus meigas brilhavam!
Hoje cintila a dele, enquanto a minha
Entre nuvens, sem luz, se perde agora.

Meu Deus, foi bom assim! No imenso pego
Mais uma gota d’amargor que importa?
Que importa o fel na taça do absinto,
Ou uma dor de mais onde outras reinam?

O Trovador

Ele cantava tudo o que merece de ser cantado;
o que há na terra de grande e de santo - o amor e a virtude.

Numa terra antigamente
Existia um Trovador;
Na Lira sua inocente
Só cantava o seu amor.

Nenhum sarau se acabava
Sem a Lira de marfim,
Pois cantar tão alto e doce
Nunca alguém ouvira assim.

E quer donzela, quer dona,
Que sentira comoção
Pular-lhe n’alma, escutando
Do Trovador a canção;
De jasmins e de açucenas
A fronte sua adornou;
Mas só a rosa da amada
Na Lira amante pousou.

E o Trovador conheceu
Que era traído - por fim;
Pôs-se a andar, e só se ouvia
Nos seus lábios: ai de mim!

Enlutou de negro fumo
A rosa de seu amor,
Que meia oculta se via
No gorro do Trovador;
Como virgem bela, morta
Da idade na linda flor,
Que parece, o dó trajando,
Inda sorrir-se de amor.

No meio do seu caminho
Gentil donzela encontrou:
Canta - disse; e as cordas d’ouro
Vibrando, o triste cantou.

“Teu rosto engraçado e belo
“Tem a lindeza da flor;
“Mas é risonho o teu rosto:.
“Não tens de sentir amor!

“Mas tão bem por esse dia
“Que viverás, como a flor,
“Mimosa, engraçada e bela,
“Não tens de sentir amor!

“Oh! não queiras, por Deus, homem que tenha
“Tingida a larga testa de palor;
“Sente fundo a paixão, - e tu no mundo
“Não tens de sentir amor!

“Sorriso jovial te enfeita os lábios,
“Nas faces de jasmim tens rósea cor;
“Fundo amor não se ri, não é corado...
“Não tens de sentir amor;
“Mas se queres amar, eu te aconselho,
“Que não guerreiro, escolhe um trovador,
“Que não tem um punhal, quando é traído,
“Que vingue o seu amor.”

Do Trovador pelo rosto
Torva raiva se espalhou,
E a Lira sua, tremendo,
Sem cordas d’ouro ficou.

Mais além no seu caminho
Donzela garbosa encontrou:
Canta - disse: e argênteas cordas
Pulsando, o triste cantou.

“Aos homens da mulher enganam sempre
“O sorriso, o amor;
“É este breve, como é breve aquele
“Sorriso enganador.

“Teu peito por amor, Donzela, suspira,
“Que é de jovens amar a formosura;
“Mas sabe que a mulher, que amor te jura,
“Dos lindos lábios seus cospe a mentira!

“Já frenético amor cantei na lira,
“Delícias já sorvi num seu sorriso,
“Já venturas fruí do paraíso,
“Em terna voz de amor, que era mentira!

“O amor é como a aragem que murmura
“Da tarde no cair - pela folhagem;
“Não volta o mesmo amor à formosura
“Bem como nunca volta a mesma - aragem.

“Não queiras amar, não; pois que a’sperança
“Se arroja além do amor por largo espaço.
“Tens, brilhando ao sol, a forte lança,
“Tens longa espada cintilante d’aço.

“Tens a fina armadura de Milão,
“Tens luzente e brilhante capacete,
“Tens adaga e punhal e bracelete
“E, qual lúcido espelho, o morrião.

“Tens fogoso corcel todo arreado,
“Que mais veloz que os ventos sorve a terra;
“Tens duelos, tens justas, tens torneios,
“Que os fracos corações de medo cerro;
“‘tens pajens, tens valetes e escudeiros
“E a marcha afoita, apercebida em guerra
“Do luzido esquadrão de mil guerreiros.

“Oh! não queiras amar! - Como entre a neve
“O gigante vulcão borbulha e ferve
“E sulfúrea chama pelos ares lança,
“Que após o seu cair torna-se fria;
“Assim tu acharás petrificada,
“Bem como a lava ardente do vulcão,
“A lava que teu peito consumia
“No peito da mulher - ou cinza ou nada -
“Não frio, mas gelado o coração!”

E o Trovador despeitoso
De prata as cordas quebrou,
E nas de chumbo seu fado
A lastimar começou.

“Que triste que é neste mundo
“O fado dum Trovador! ,
“Que triste que é! - bem que tenha ,
“Sua Lira e seu amor,
“Quando em festejos descanta,
“Rasgado o peito com dor,
“Mimoso tem de cantar
“Na sua Lira - o amor!

“Como a um servo vil ordena
“Um orgulhoso Senhor,
“Canta, diz-lhe; quero ouvir-te:
“Quero descantes de amor!

“Diz-lhe o guerreiro, que apenas
“Lidou em justas de amor:
“- Minha dama quer ouvir-te,
“Canta, truão trovador! -

“Manda a mulher que nos deixa
“De beijos murchada flor:
“- Canta, truão, quero ouvir-te,
“Um terno canto de amor!

“Mas se a mulher, que ele adora
“Atraiçoa o seu amor;
“Embalde busca a seu lado
“Um punhal - o Trovador!

Se escuta palavras dela, -
“Que a outros juram amor;
“Embalde busca a seu lado
“Um punhal - o Trovador!

“Se vê luzir de alguns lábios
“Um sorriso mofador;
“Embalde busca a seu lado
“Um punhal - o Trovador!

“Que triste que é neste mundo
“O fado dum Trovador!
“Pesar lhe dá sua Lira,
“Dá-lhe pesar seu amor!”

E o Trovador neste ponto
A corda extrema arrancou;
E num marco do caminho
A Lira sua quebrou:
Ninguém mais a voz sentida
Do Trovador escutou!

Machado de Assis (Almas Agradecidas) Capítulo I

Conto em 7 capítulos

I

Havia representação no Ginásio. A peça da moda era então a célebre Dama das camélias. A casa estava cheia. No fim do quarto ato começou a chover um pouco; do meio do quinto ato em diante, a chuva redobrou de violência.

Quando acabou o espetáculo, cada família entrou no seu carro; as poucas que não tinham esperavam uma estiada, e, mediante os guarda-chuvas, lá saíram com as saias arregaçadas.

.............. aos olhos dando,
O que às mãos cobiçosas vão negando.


Os homens abriam os seus guarda-chuvas; outros chamavam tílburis; e pouco a pouco se foi despejando o saguão, até que só ficaram dois rapazes, um dos quais abotoara até o pescoço o paletó, e esperava maior estiada para sair, porque além de não ter guarda-chuva, não via nenhum tílburi no horizonte.

O outro também abotoara o paletó, mas tinha guarda-chuva; não parecia, entretanto, disposto a abri-lo. Olhava de esguelha para o primeiro, que fumava tranquilamente um charuto.

Já o porteiro havia fechado as duas portas laterais e ia fazer o mesmo à porta central, quando o rapaz do guarda-chuva dirigiu ao outro estas palavras: — Para que lado vai? O interpelado compreendeu que o companheiro lhe ia oferecer abrigo e respondeu, com palavras de agradecimento, que morava na Glória.

— É muito longe, disse ele, para aceitar o abrigo que naturalmente me quer oferecer. Eu esperarei aqui um tílburi.

— Mas a porta vai fechar-se, observou o outro.

— Não importa, esperarei do lado de fora.

— Não é possível, insistiu o primeiro; a chuva ainda está forte e pode aumentar mais. Não lhe ofereço abrigo até casa porque moro na Prainha, que é justamente do lado oposto; mas posso cobri-lo até ao Rocio, onde encontraremos um tílburi.

— É verdade, respondeu o rapaz que não tinha guarda-chuva; não me havia ocorrido isto, aceito com prazer.

Saíram os dois rapazes e foram até ao Rocio. Nem sombra de tílburi ou caleça.

— Não admira, disse o rapaz do guarda-chuva; foram todos com gente do teatro. Daqui a pouco haverá algum de volta...

— Mas eu não quisera dar-lhe o incômodo de o reter mais tempo aqui à chuva.

— Cinco ou dez minutos, talvez; esperaremos.

A chuva veio contrariar estes bons desejos do rapaz, caindo com furor. Mas o desejo de servir tem mil maneiras de se manifestar. O rapaz do guarda-chuva propôs um meio excelente de escapar à chuva e esperar condução: era ir tomar chá ao hotel que mais à mão lhes ficasse. O convite não era mau; tinha só o inconveniente de vir de um desconhecido. Antes de lhe responder, o rapaz sem guarda-chuva deitou um rápido olhar ao seu companheiro, espécie de exame prévio da condição social da pessoa. Parece que a achou boa, porque aceitou o convite.

— É levar muito longe a sua bondade, disse ele, mas eu não posso deixar de abusar dela; a noite está inclemente.

— Eu também costumo esquecer o guarda-chuva, e amanhã estarei nas suas mesmas circunstâncias.

Foram para o hotel e daí a pouco tinham diante de si um excelente pedaço de rosbife frio, acompanhado de não menos excelente chá.

— Há de desculpar a minha curiosidade, disse o rapaz sem guarda-chuva; mas eu desejaria saber a quem devo a obsequiosidade com que sou tratado há vinte minutos.

— Não somos inteiramente desconhecidos, respondeu o outro; a sua memória é que é menos conservadora do que a minha.

— De onde me conhece? — Do colégio. Andamos juntos no colégio Rosa...

— Andei lá, é verdade, mas...

— Não se lembra do Oliveira? Aquele que trocava as réguas por laranjas? Aquele que desenhava com giz o retrato do mestre nas costas dos outros meninos? — Que me diz? É o senhor? — De carne e osso; eu mesmo. Acha-me mudado, não? — Oh! muito! — Não admira; eu era naquele tempo uma criança rechonchuda e vermelha; hoje como vê, estou quase tão magro como D. Quixote; e não foram trabalhos, porque eu não os tenho tido; nem desgostos, que eu ainda não os experimentei. O senhor, porém, é que não mudou; se não fosse esse pequeno bigode, pareceria o mesmo daquele tempo.

— E todavia não me hão faltado desgostos, acudiu o outro; minha vida tem sido atribulada. A natureza tem destas coisas.

— Casou? — Não; e o senhor? — Também não.

A pouco e pouco começaram as confidências pessoais; cada um narrou aquilo que podia narrar, por maneira que, ao fim da ceia, pareciam tão íntimos como no tempo do colégio.

Sabemos destas revelações mútuas, que Oliveira era bacharel em direito, e começava a advogar com pouco êxito. Herdara alguma coisa da avó, última parenta que conservara até então, tendo-lhe morrido os pais antes de entrar na adolescência. Estava com certo desejo de entrar na vida política e contava com a proteção de alguns amigos de seu pai, para ser eleito deputado à Assembléia Provincial fluminense.

Magalhães era o nome do outro; não herdara de seus pais dinheiro, nem amigos políticos.

Aos 16 anos, achou-se só no mundo; exercera vários empregos de caráter particular, até que conseguira obter uma nomeação para o Arsenal de Guerra, onde estava atualmente.

Confessou que esteve a ponto de enriquecer, casando com uma viúva rica; mas não revelou as causas que lhe impediram essa mudança de fortuna.

A chuva cessara de todo. Já uma parte do céu se havia descoberto deixando aparecer o rosto da lua cheia, cujos raios pálidos e frios brincavam nas pedras e nos telhados úmidos.

Saíram os nossos dois amigos.

Magalhães declarou que iria a pé.

— Não chove mais, disse ele; ou, pelo menos, nesta meia hora; vou a pé até à Glória.

— Pois bem, respondeu Oliveira; já lhe disse o número da minha casa e do meu escritório; apareça lá algumas vezes; folgarei de reatar as nossas relações da meninice.

— Também eu; até breve.

Despediram-se na esquina da Rua do Lavradio, e Oliveira enfiou pela de S. Jorge. Ambos foram pensando um no outro.

— Parece ser um excelente rapaz este Magalhães, dizia o jovem advogado consigo; no colégio, foi sempre um menino sério. Ainda o é agora, e até parece um pouco reservado, mas é natural porque sofreu.

Fonte:
www.dominiopublico.gov.br

XI Encontro de Escritores e Artistas Indígenas

16 º Seminário FNLIJ Bartolomeu Campos de Queirós

Dia 3 de junho/2014 – Terça-feira: 
XI Encontro de Escritores e Artistas Indígenas
Literatura Indígena: A Bola da Vez

A cultura é a alma de um povo. Essa essência pode ser conhecida e reconhecida por diversos meios e manifestações. Para as tradições dos povos indígenas, todo movimento é circular, mas para que se movimente, assim como a bola em um jogo de futebol, precisa de agentes que embora estejam em posições diferentes, são responsáveis uns pelos outros. A literatura escrita pelos indígenas se movimenta no campo literário mostrando a diversidade cultural e a sabedoria dos povos indígenas, falando de uma ancestralidade atualizada, chamando a atenção do mundo para a preservação da diversidade biológica e da educação. A bola da vez é a necessidade de conhecimento que trará mudanças significativas para a qualidade de vida dos brasileiros. No jogo da vida todos são igualmente importantes: a bola precisa ser tocada.

09h – Ritual de abertura

10h – A magia Feminina na Literatura Indígena


Aurilene Tabajara – Escritora – O sabor do saber traduzido em palavras

Eliane Potiguara – Escritora – Mulheres que correm com suas guerreiras

Naná Martins – Escritora – Outros olhares femininos na literatura infantil
 
Mediação: Ninfa Parreiras – Escritora, Tradutora e Especialista em Literatura Infantil e Juvenil

14h – Literatura e leitura: Pontos e contrapontos

Marcelo Munduruku – Escritor – Literatura Indígena, Identidade dos Povos.

Olívio Jekupé – Escritor – O crescimento da literatura escrita pelos indígenas

Tiago Hakiy – Escritor – Poética da floresta para crianças

Mediação: Roni Wasiry Guara – Escritor e ilustrador

15h -– Literatura Indígena: a bola da vez

Ailton Krenak – Escritor – Uma farra da terra: literatura de invenções

Anna Claudia Ramos – Escritora – Jornadas literárias indígenas

Kaká Verá – Escritor – Literatura indígena e infância: o poder das fábulas ancestrais

Mediação: Cristino Wapichana – Escritor

16h30 – Encerramento – Lançamento coletivo de livros de autores indígenas.

LOCAL:Centro de Convenções Sul América
Av. Paulo de Frontin, 1 – Cidade Nova
Centro – Rio de Janeiro

Fonte:
Colaboração de Eliane Potiguara

domingo, 18 de maio de 2014

Dorothy Jansson Moretti (Baú de Trovas) 11


Folclore Brasileiro (Mitos Indígenas) Kuat e Iaê - A Conquista do dia

No princípio só havia a noite.

Os irmãos Kuát e Iaê - o Sol e a Lua - já haviam nascido, mas não sabiam como conquistar o dia. Este pertencia a Urubutsim (Urubu - rei), o chefe dos pássaros.

Certo dia os irmãos elaboraram um plano para capturá-lo. Construíram um boneco de palha em forma de uma anta, onde depositaram detritos para a criação de algumas larvas. Conforme seu pedido, as moscas voaram até as aves, anunciando o grande banquete que havia por lá, levando também a elas um pouco daquelas larvas, seu alimento preferido, para convencê-las. E tudo ocorreu conforme Kuát e Iaê haviam previsto.

Ao notarem a chegada de Urubutsim, os irmãos agarraram-no pelos pés e o prenderam, exigindo que este lhes entregasse o dia em troca de sua liberdade.

O prisioneiro resistiu por muito tempo, mas acabou cedendo.

Solicitou então ao amigo Jacu que este se enfeitasse com penas de araras vermelhas, canitar e brincos, voasse à aldeia dos pássaros e trouxesse o que os irmãos queriam.

Pouco tempo depois, descia o Jacu com o dia, deixando atrás de si um magnífico rastro de luz, que aos poucos tudo iluminou.

O chefe dos pássaros foi libertado e desde então, pela manhã, surge radiante o dia e à tarde vai se esvaindo, até o anoitecer.

Fonte:
http://www.caminhodewicca.com.br

Marcelo Spalding (O escritor e as cenas: mostrar e não dizer)

   
Abordaremos hoje o grande segredo da criação literária: narrar. O leitor quer ler boas narrativas, boas histórias. Cuide, porém, a diferença entre narrar e contar. É a diferença entre a narrativa e o resumo.

    Fazer literatura não é amontoar fatos, resumos de acontecimentos. É preciso narrar cada fato, individualizando-os e envolvendo o leitor. É importante, também, que o escritor mostre ao leitor o que está acontecendo em vez de dizer, contar.

    David Lodge, em A arte da ficção, tem uma distinção primorosa entre cena e sumário:

    “O Discurso ficcional alterna o tempo inteiro entre mostrar e dizer o que aconteceu. A forma mais pura de sem mostrar são as falas dos personagens, em que a linguagem espelha com precisão o acontecimento (uma vez que o acontecimento é linguístico)." Isso seria a cena.

    “A forma mais pura de se dizer é o resumo autoral [chamado aqui de sumário], em que a concisão e a abstração da linguagem do narrador apagam o caráter particular e individual dos personagens e suas ações. Um romance escrito do início ao fim na forma de sumário seria, portanto, quase ilegível. Mas o recurso tem seus usos: é capaz, por exemplo, de acelerar o ritmo de uma narrativa, fazendo-nos passar mais depressa por acontecimentos desinteressantes.”
 

    Imagina que você queira contar a história de um homem extremamente metódico que, por isso, perdeu sua mulher e seu filho. Você primeiro cria toda a história na sua cabeça ou num papel de rascunho, anota episódios e elementos de sua personalidade, de sua infância, faz uma lista das personagens com quem ele convive ou conviveu, pensa em seus atributos físicos, suas manias, etc. Você sem dúvidas tem elementos para um romance, mas irá escrever um conto de no máximo cinco páginas.

    A solução de um escritor iniciante seria simplesmente ir listando os fatos principais, um em cada parágrafo, e rapidamente pulando no tempo e nos informando que ele teve uma infância difícil, pois perdera a mãe muito cedo e foi criado em escola de padres, depois custou a casar, em dúvida entre o casamento ou a vida religiosa, adiante teve uma filha, embora quisesse muito ter tido um filho, depois a filha acabou morrendo, o que o causou muito sofrimento, mas logo a mulher engravidou de um menino que, apesar de ser muito diferente dele, cativou-o desde o primeiro choro. Bem, por aí vai. A essa sucessão de acontecimentos chamamos de sumários.

    Um escritor mais experiente, que sabe da importância de conquistar o leitor através de cenas, escolherá dois ou três episódios da vida desse homem para descrever com mais detalhes estes episódios, individualizando-os.

    Por exemplo, o escritor pode escolher o dia em que o menino chega na escola de padres e retira uma foto da falecida mãe; o dia do nascimento da filha e de como ele olha para o crucifixo na parede, lembrando do quão difícil foi escolher entre isso ou a vida religiosa e de quantas dúvidas tem se fez ou não a escolha certa; um diálogo entre o homem e um conhecido numa pracinha em que os filhos de ambos brincam, diálogo em que o outro brinca com o fato de o menino ser tão diferente do homem, trazendo à tona todas as dúvidas de nosso protagonista e todo o medo que ele tem de perder a criança, a quem tem tanto amor.

Fonte:
Marcelo Spalding in http://www.cursosdeescrita.com.br/4053/o-escritor-e-as-cenas-mostrar-e-nao-dizer

Gonçalves Dias (Primeiros Cantos) 3

Inocência

Ó meu anjo, vem correndo,
Vem tremendo
Lançar-te nos braços meus;
Vem depressa, que a lembrança
Da tardança
Me aviva os rigores teus.
Do teu rosto, qual marfim,
De carmim
Tinge um nada a cor mimosa;
É belo o pudor, mas choro,
E deploro
Que assim sejas medrosa.
Por inocente tens medo
De tão cedo,
De tão cedo ter amor;
Mas sabe que a formosura
Pouco dura,
Pouco dura, como a flor.
Corre a vida pressurosa,
como a rosa,
Como a rosa na corrente.
Amanhã terás amor?
Como a flor,
Como a flor fenece a gente.
Hoje ainda és tu donzela
Pura e bela,
Cheia de meigo pudor;
Amanhã menos ardente
De repente
Talvez sintas meu amor.

Pedido

Ontem no baile
Não me atendias!
Não me atendias,
Quando eu falava.
De mim bem longe
Teu pensamento!!
Teu pensamento,
Bem longe errava.
Eu vi teus olhos
Sobre outros olhos!
Sobre outros olhos,
Que eu odiava.
Tu lhe sorriste
Com tal sorriso!
Com tal sorriso,
Que apunhalava.
Tu lhe falaste
Com voz tão doce!
Com voz tão doce,
Que me matava.
Oh! não lhe fales,
Não lhe sorrias,
Se então só qu’rias
Exp’rimentar-me.
Oh! não lhe fales,
Não lhe sorrias,
Não lhe sorrias,
Que era matar-me.

O Desengano

JÁ VIGÍLIAS passei namorado,
Doces horas d’insônia passei,
Já meus olhos, d’amor fascinado,
Em ver só meu amor empreguei.
Meu amor era puro, extremoso,
Era amor que meu peito sentia,
Eram lavas de um fogo teimoso,
Eram notas de meiga harmonia.
Harmonia era ouvir sua voz,
Era ver seu sorriso harmonia;
E os seus modos e gestos e ditos
Eram graças, perfume e magia.
E o que era o teu amor, que me embalava
Mais do que meigos sons de meiga lira?
Um dia o decifrou - não mais que um dia
Fingimento e mentira!
Tão belo o nosso amor! - foi só de um dia,
Como uma flor!.
Por que tão cedo o talismã quebraste
Do nosso amor?
Por que num só instante assim partiste
Essa anosa cadeia?
De bom grado a sofreste! essa lembrança
Inda hoje me recreia.
Quão insensato fui! - busquei firmeza.
Qual em ondas de areia movediça,
Na mulher, - não achei!
E da esp’rança, que eu via tão donosa
Sorrir dentro em minha alma, as longas asas
Doido e néscio cortei!
E tu vás caprichosa prosseguindo
Essa esteira de amor, que julgas cheia
De flores bem gentis;
Podes ir, que os meus olhos te não vejam;
Longe, longe de mim, mas que em minha alma
Eu sinta qu’és feliz.
Podes ir, que é desfeito o nosso laço,
Podes ir, que o teu nome nos meus lábios
Nunca mais soará!
Sim, vai; - mas este amor que me atormenta,
Que tão grato me foi, que me é tão duro,
Comigo morrerá!
Tão belo o nosso amor! - foi só de um dia
Como uma flor!
Oh! que bem cedo o talismã quebraste
Do nosso amor!

Minha Vida e meus Amores

QUANDO, no albor da vida, fascinado
Com tanta luz e brilho e pompa e galas,
Vi o mundo sorrir-me esperançoso:
- Meu Deus, disse entre mim, oh! quanto é doce.
Quanto é bela esta vida assim vivida! -
Agora, logo, aqui, além, notando
Uma pedra, uma flor, uma lindeza,
Um seixo da corrente, uma conchinha
A beira-mar colhida!
Foi esta a infância minha; a juventude
Falou-me ao coração: - amemos, disse,
Porque amar é viver.
E esta era linda, como é linda a aurora
No fresco da manhã tingindo as nuvens
De rósea cor fagueira;
Aquela tinha um quê de anelos meigos
Artífice sublime;
Feiticeiro sorrir dos lábios dela
Prendeu-me o coração; - julguei-o ao menos.
Aquela outra sorria tristemente,
Como um anjo no exílio, ou como o cálix
De flor pendida e murcha e já sem brilho.
Humilde flor tão bela e tão cheirosa,
No seu deserto perfumando os ventos.
- Eu morrera feliz, dizia eu d’alma,
Se pudesse enxertar uma esperança
Naquela alma tão pura e tão formosa,
E um alegre sorrir nos lábios dela.
A fugaz borboleta as flores todas
Elege, e liba e uma e outra, e foge
Sempre em novos amores enlevada:
Neste meu paraíso fui como ela,
Inconstante vagando em mar de amores.
O amor sincero e fundo e firme e eterno,
Como o mar em bonança meigo e doce,
Do templo como a luz perene e santo,
Não, nunca o senti; - somente o viço
Tão forte dos meus anos, por amores
Tão fáceis quanto indi’nos fui trocando.
Quanto fui louco, ó Deus! - Em vez do fruto
Sazonado e maduro, que eu podia
Como em jardim colher, mordi no fruto
Pútrido e amargo e rebuçado em cinzas,
Como infante glutão, que se não senta
À mesa de seus pais.
Dá, meu Deus, que eu possa amar,
Dá que eu sinta uma paixão,
Torna-me virgem minha alma,
E virgem meu coração.
Um dia, em qu’eu sentei-me junto dela,
Sua voz murmurou nos meus ouvidos,
- Eu te amo? - Ó anjo, que não possa eu crer-te!
Ela, certo, não é mulher que vive
Nas fezes da desonra, em cujos lábios
Só mentira e traição eterno habitam.
Tem uma alma inocente, um rosto belo,
E amor nos olhos. . . - mas não posso crê-la.
Dá, meu Deus, que eu possa amar,
Dá que eu sinta uma paixão;
Torna-me virgem minha alma,
E virgem meu coração.
Outra vez que lá fui, que a vi, que a medo
Terna voz lhe escutei: - Sonhei contigo! -
Inefável prazer banhou meu peito,
Senti delícias; mas a sós comigo
Pensei - talvez! - e já não pude crê-la.
Ela tão meiga e tão cheia de encantos,
Ela tão nova, tão pura e tão bela. ..
Amar-me! - Eu que sou?
Meus olhos enxergam, em quanto duvida
Minha alma sem crença, de força exaurida,
Já farta da vida,
Que amor não doirou.
Mau grado meu, crer não posso, .
Mau grado meu que assim é;
Queres ligar-te comigo
Sem no amor ter crença e fé?
Antes vai colar teu rosto,
Colar teu seio nevado
Contra o rosto mudo e frio,
Contra o seio dum finado.
Ou suplica a Deus comigo
Que me dê uma paixão;
Que me dê crença à minha alma,
E vida ao meu coração.

Recordação

Nessun maggior dolore...
- Dante

 
Quando em meu peito as aflições rebentam
Eivadas de sofrer acerbo e duro;
Quando a desgraça o coração me arrocha
Em círculos de ferro, com tal força,
Que dele o sangue em borbotões golfeja;
Quando minha alma de sofrer cansada, .
Bem que afeita a sofrer, sequer não pode
Clamar: Senhor piedade; - e que os meus olhos
Rebeldes, uma lágrima não vertem
Do mar d’angústias que meu peito oprime:
Volvo aos instantes de ventura, e penso
Que a sós contigo, em prática serena,
Melhor futuro me augurava, as doces
Palavras tuas, sôfregos, atentos
Sorvendo meus ouvidos, - nos teus olhos
Lendo os meus olhos tanto amor, que a vida
Longa, bem longa, não bastara ainda
Porque de os ver me saciasse!... O pranto
Então dos olhos meus corre espontâneo,
Que não mais te verei. - Em tal pensando
De martírios calar sinto em meu peito
Tão grande plenitude, que a minha alma
Sente amargo prazer de quanto sofre.

Machado de Assis (Ernesto de Tal)

Que duas pessoas se amem e se separem é, na verdade, coisa triste, desde que não há entre elas nenhum impedimento moral ou social. Mas o destino ou o acaso, ou o complexo das circunstâncias da vida determina muita vez o contrário. Uma viagem de negócio ou de recreio, uma convalescença, qualquer coisa basta para cavar um abismo entre duas pessoas.

Era isto, resumidamente, o que pensava uma noite o bacharel Duarte, à mesa de um café, tendo vindo do Teatro Ginásio. Tinha visto no teatro uma moça muito parecida com outra que ele outrora namorara. Há quanto tempo ia isso! Há sete anos, foi em 1855. Ao ver a moça no camarote, chegou a pensar que era ela, mas advertiu que não podia ser; a outra tinha dezoito anos, devia estar com vinte e cinco, e esta não representava mais de dezoito, quando muito, dezenove.

Não era ela; mas tão parecida, que trouxe à memória do bacharel todo o passado, com as suas reminiscências vivas no espírito, e Deus sabe se no coração. Enquanto lhe preparavam o chá, Duarte divertiu-se em recompor a vida, se acaso tivesse casado com a primeira namorada — a primeira! Tinha então vinte e três anos. Vira-a na casa de um amigo, no Engenho Velho, e ficaram gostando um do outro. Ela era meiga e acanhada, linda a mais não ser, às vezes com ares de criança, que lhe davam ainda maior relevo.

Era filha de um coronel.

Nada impedia que os dois se casassem, uma vez que se amavam e se mereciam. Mas aqui entrou justamente o destino ou o acaso, o que ele chamava há pouco “, definição realmente comprida e enfadonha. O coronel teve ordem de seguir para o Sul; ia demorar-se dois a três anos. Ainda assim podia a filha casar com o bacharel; mas não era este o sonho do pai da moça, que percebera o namoro e estimava poder matá-lo. O sonho do coronel era um general; em falta dele, um comendador rico. Pode ser que o bacharel viesse a ser um dia rico, comendador e até general — como no tempo da guerra do Paraguai. Pode ser, mas não era nada, por ora, e o pai de Malvina não queria arriscar todo o dinheiro que tinha nesse bilhete que podia sair-lhe branco.

Duarte não a deixou ir sem tentar alguma coisa. Meteu empenhos. Uma prima dele, casada com um militar, pediu ao marido que interviesse, e este fez tudo o que podia para ver se o coronel consentia no casamento da filha. Não alcançou nada. Afinal, o bacharel estava disposto a ir ter com eles no Sul; mas o pai de Malvina dissuadiu-o de um tal projeto, dizendo-lhe primeiro que ela era ainda muito criança, e depois que, se ele lá aparecesse, então é que nunca lha daria.

Tudo isso foi pelos fins de 1855. Malvina seguiu com o pai, chorosa, jurando ao namorado que se atiraria ao mar, logo que saísse a barra do Rio de Janeiro. Jurou com sinceridade; mas a vida tem uma parte inferior que destrói, ou pelo menos, altera e atenua as resoluções morais. Malvina enjoou. Nesse estado, que toda a gente afirma ser intolerável, a moça não teve a necessária resolução para um ato de desespero. Chegou viva e sã ao Rio Grande.

Que houve depois? Duarte teve algumas notícias, a princípio, por parte da prima, a quem Malvina escrevia, todos os meses, cartas cheias de protestos e saudades. No fim de oito meses, Malvina adoeceu, depois escassearam as cartas. Afinal, indo ele à Europa, cessaram elas de todo. Quando ele voltou, soube que a antiga namorada tinha casado em Jaguarão; e (vede a ironia do destino) não casou com general nem comendador rico, mas justamente com um bacharel sem dinheiro.

Está claro que ele não deu um tiro na cabeça nem murros na parede; ouviu a notícia e conformou-se com ela. Tinham então passado cinco anos; era em 1860. A paixão estava acabada; havia somente um fiozinho de lembrança teimosa. Foi cuidar da vida, à espera de casar também.

E é agora, em 1862, estando ele tranqüilamente no Ginásio, que uma moça lhe apareceu com a cara, os modos e a figura de Malvina em 1855. Já não ouviu bem o resto do espetáculo; viu mal, muito mal, e, no café, encostado a uma mesa do canto, ao fundo, rememorava tudo, e perguntava a si mesmo qual não teria sido a sua vida, se tivessem realizado o casamento.

Poupo às pessoas que me lêem a narração do que ele construiu, antes, durante e depois do chá. De quando em quando, queria sacudir a imagem do espírito; ela, porém, tornava e perseguia-o, assemelhando-se (perdoem-me as moças amadas) a uma mosca importuna. Não vou buscar à mosca senão a tenacidade de presença, que é uma virtude nas recordações amorosas; fica a parte odiosa da comparação para os conversadores enfadonhos. Demais, ele próprio, o próprio Duarte é que empregou a comparação, no dia seguinte, contando o caso ao colega de escritório. Contou-lhe então todo o passado.

— Nunca mais a viste? — Nunca.

— Sabes se ela está aqui ou no Rio Grande? — Não sei nada. Logo depois do casamento, disse-me a prima que ela vinha para cá; mas soube depois que não, e afinal não ouvi dizer mais nada. E que tem que esteja? Isto é negócio acabado. Ou supões que seria ela mesma que vi? Afirmo-te que não.

— Não, não suponho nada; fiz a pergunta à toa.

— À toa? repetiu Duarte rindo.

— Ou de propósito, se queres. Na verdade, eu creio que tu... Digo? Creio que ainda estás embeiçado...

— Por quê? — A turvação de ontem...

— Que turvação? — Tu mesmo o disseste; ouviste mal o resto do espetáculo, pensaste nela depois, e agora mesmo contas-me tudo com um tal ardor...

— Deixa-te disso. Contei o que senti, e o que senti foram saudades do passado.

Presentemente...

Daí a dias, estando com a prima — a intermediária antiga das notícias —, contou-lhe o caso do Ginásio.

— Você ainda se lembra disso? disse ela.

— Não me lembro, mas naquela ocasião deu-me um choque... Não imagina como era parecida. Até aquele jeitinho que Malvina dava à boca, quando ficava aborrecida, até isso...

— Em todo caso, não é a mesma.

— Por quê? Está muito diferente? — Não sei; mas sei que Malvina ainda está no Rio Grande.

— Em Jaguarão? — Não; depois da morte do marido...

— Enviuvou? — Pois então? há um ano. Depois da morte do marido, mudou-se para a capital.

Duarte não pensou mais nisto. Parece mesmo que alguns dias depois encetou um namoro, que durou muitos meses. Casaria, talvez, se a moça, que já era doente, não viesse a morrer, e deixá-lo como dantes. Segunda noiva perdida.

Acabava o ano de 1863. No princípio de 1864, indo ele jantar com a prima, antes de seguir para Cantagalo, onde tinha de defender um processo, anunciou-lhe ela que um ou dois meses depois chegaria Malvina do Rio Grande. Trocaram alguns gracejos, alusões ao passado e ao futuro; e, tanto quanto se pode dizer, parece que ele saiu de lá pensando na recente viúva. Tudo por causa do encontro no Ginásio em 1862. Entretanto, seguiu para Cantagalo.

Não dois meses, nem um, mas vinte dias depois, Malvina chegou do Rio Grande. Não a conhecemos antes, mas pelo que diz a amiga ao marido, voltando de visitá-la, parece que está bonita, embora mudada. Realmente, são passados nove anos. A beleza está mais acentuada, tomou outra expressão, deixou de ser o alfenim de 1855, para ser mulher verdadeira. Os olhos é que perderam a candura de outro tempo, e um certo aveludado, que acariciava as pessoas que os recebiam. Ao mesmo tempo, havia nela, outrora, um acanhamento próprio da idade, que o tempo levou: é o que acontece a todas as pessoas.

Malvina é expansiva, ri muito, mofa um pouco, e ocupa-se de que a vejam e admirem.

Também outras senhoras fazem a mesma coisa em tal idade, e até depois, não sei se muito depois; não a incriminemos por um pecado tão comum.

Passados alguns dias, a prima do bacharel falou deste à amiga, contou-lhe a conversa que tiveram juntos, o encontro do Ginásio, e tudo isso pareceu interessar grandemente à outra. Não foram adiante; mas a viúva tornou a falar do assunto, não uma, nem duas, mas muitas vezes.

— Querem ver que você está querendo recordar-se... Malvina fez um gesto de ombros para fingir indiferença; mas fingiu mal. Contou-lhe depois a história do casamento.

Afirmou que não tivera paixão pelo marido, mas que o estimara bastante. Confessou que muita vez se lembrara do Duarte. E como estava ele? tinha ainda o mesmo bigode? ria como dantes? dizia as mesmas graças? — As mesmas.

— Não mudou nada? — Tem o mesmo bigode, e ri como antigamente; tem mais alguma coisa: um par de suíças.

— Usa suíças? — Usa, e por sinal que bonitas, grandes, castanhas...

Malvina recompôs na cabeça a figura de 1855, pondo-lhe as suíças, e achou que deviam ir-lhe bem, conquanto o bigode somente fosse mais adequado ao tipo anterior. Até aqui era brincar; mas a viúva começou a pensar nele com insistência; interrogava muito a outra, perguntava-lhe quando é que ele vinha.

— Creio que Malvina e Duarte acabam casando, disse a outra ao marido.

Duarte veio finalmente de Cantagalo. Um e outro souberam que iam aproximar-se; e a prima, que jurara aos seus deuses casá-los, tornou o encontro de ambos ainda mais apetecível. Falou muito dele à amiga; depois quando ele chegou, falou-lhe muito dela, entusiasmada. Em seguida arranjou-lhes um encontro, em terreno neutro. Convidou-os para um jantar.

Podem crer que o jantar foi esperado com ânsia por ambas as partes. Duarte, ao aproximar-se da casa da prima, sentiu mesmo uns palpites de outro tempo; mas dominouse e subiu. Os palpites aumentaram; e o primeiro encontro de ambos foi de alvoroço e perturbação. Não disseram nada; não podiam dizer coisa nenhuma. Parece até que o bacharel tinha planeado um certo ar de desgosto e repreensão. Realmente, nenhum deles fora fiel ao outro, mas as aparências eram a favor dele, que não casara, e contra ela, que casara e enterrara o marido. Daí a frieza calculada da parte do bacharel, uma impassibilidade de fingido desdém. Malvina não afetara nem podia afetar a mesma atitude; mas estava naturalmente acanhada — ou digamos a palavra toda, que é mais curta, vexada. Vexada é o que era.

A amiga dos dois tomou a si desacanhá-los, reuni-los, preencher o enorme claro que havia entre as duas datas, e, com o marido, tratou de fazer um jantar alegre. Não foi tão alegre como devia ser; ambos espiavam-se, observavam-se, tratavam de reconhecer o passado, de compará-lo ao presente, de ajuntar a realidade às reminiscências. Eis algumas palavras trocadas à mesa entre eles: — O Rio Grande é bonito? — Muito: gosto muito de Porto Alegre.

— Parece que há muito frio? — Muito.

E depois, ela: — Tem tido bons cantores por cá? — Temos tido.

— Há muito tempo não ouço uma ópera.

Óperas, frio, ruas, coisas de nada, indiferentes, e isso mesmo a largos intervalos. Dir-seia que cada um deles só possuía a sua língua, e exprimia-se numa terceira, de que mal sabiam quatro palavras. Em suma, um primeiro encontro cheio de esperanças. A dona da casa achou-os excessivamente acanhados, mas o marido corrigiu-lhe a impressão, ponderando que isso mesmo era prova de lembrança viva a despeito dos tempos.

Os encontros naturalmente amiudaram-se. A amiga de ambos entrou a favorecê-los.

Eram convites para jantares, para espetáculos, passeios, saraus — eram até convites para missas. Custa dizer, mas é certo que ela até recorreu à igreja para ver se os prendia de uma vez.

Não menos certo é que não lhes falou de mais nada. A mais vulgar discrição pedia o silêncio, ou pelo menos, a alusão galhofeira e sem calor; ela preferiu não dizer nada. Em compensação observava-os, e vivia numas alternativas de esperança e desalento. Com efeito, eles pareciam andar pouco.

Durante os primeiros dias, nada mais houve entre ambos, além de observação e cautela.

Duas pessoas que se vêem pela primeira vez, ou que se tornam a ver naquelas circunstâncias, naturalmente dissimulam. É o que lhes acontecia. Nem um nem outro deixava correr a natureza, pareciam andar às apalpadelas, cheios de circunspecção e atentos ao menor escorregão. Do passado, coisa nenhuma. Viviam como se tivessem nascido uma semana antes, e devessem morrer na seguinte; nem passado nem futuro.

Malvina sofreou a expansão que os anos lhe trouxeram, Duarte o tom de homem solteiro e alegre, com preocupações políticas, e uma ponta de ceticismo e de gastronomia. Cada um punha a máscara, desde que tinham de encontrar-se.

Mas isto mesmo não podia durar muito; no fim de cinco ou seis semanas, as máscaras foram caindo. Uma noite, achando-se no teatro, Duarte viu-a no camarote, e, não pôde esquivar-se de a comparar com a que vira antes, e tanto se parecia com a Malvina de 1855. Era outra coisa, assim de longe, e às luzes, sobressaindo no fundo escuro do camarote. Além disso, pareceu-lhe que ela voltava a cabeça para todos os lados com muita preocupação do efeito que estivesse causando.

“ pensou ele.

E, para sacudir este pensamento, olhou para outro lado; pegou do binóculo e percorreu alguns camarotes. Um deles tinha uma dama, assaz galante, que ele namorara um ano antes, pessoa que era livre, e a quem ele proclamara a mais bela das cariocas. Não deixou de a ver, sem algum prazer; o binóculo demorou-se ali, e tornou ali, uma, duas, três, muitas vezes. Ela, pela sua parte, viu a insistência e não se zangou. Malvina, que notou isso de longe, não se sentiu despeitada; achou natural que ele, perdidas as esperanças, tivesse outros amores.

Um e outro eram sinceros aproximando-se. Um e outro reconstruíam o sonho anterior para repeti-lo. E por mais que as reminiscências posteriores viessem salteá-lo, ele pensava nela; e por mais que a imagem do marido surgisse do passado e do túmulo, ela pensava no outro. Eram como duas pessoas que se olham, separadas por um abismo, e estendem os braços para se apertarem.

O melhor e mais pronto era que ele a visitasse; foi o que começou a fazer — dali a pouco.

Malvina reunia todas as semanas as pessoas de amizade. Duarte foi dos primeiros convidados, e não faltou nunca. As noites eram agradáveis, animadas, posto que ela devesse repartir-se com os outros. Duarte notava-lhe o que já ficou dito: gostava de ser admirada; mas desculpou-a dizendo que era um desejo natural às mulheres bonitas.

Verdade é que, na terceira noite, pareceu-lhe que o desejo era excessivo, e chegava ao ponto de a distrair totalmente. Malvina falava para ter o pretexto de olhar, voltava a cabeça, quando ouvia alguém, para circular os olhos pelos rapazes e homens feitos, que aqui e ali a namoravam. Esta impressão foi confirmada na quarta noite e na quinta, desconsolou-o bastante.

— Que tolice! disse-lhe a prima, quando ele lhe falou nisso, afetando indiferença. Malvina olha para mostrar que não desdenha os seus convidados.

— Vejo que fiz mal em falar a você, redarguiu ele rindo.

— Por quê? — Todos os diabos, naturalmente, defendem-se, continuou Duarte; todas vocês gostam de ser olhadas; — e, quando não gostam, defendem-se sempre.

— Então, se é um querer geral, não há onde escolher, e nesse caso...

Duarte achou a resposta feliz, e falou de outra coisa. Mas, na outra noite, não achou somente que a viúva tinha esse vício em grande escala; achou mais. A alegria e expansão das maneiras trazia uma gota amarga de maledicência. Malvina mordia, pelo gosto de morder, sem ódio nem interesse. Começando a frequentá-la, nos outros dias, achou-lhe um riso mal composto, e, principalmente, uma grande dose de ceticismo. A zombaria nos lábios dela orçava pela troça elegante.

“Nem parece a mesma,” disse ele consigo.

Outra coisa que ele lhe notou — e não lhe notaria se não fossem as descobertas anteriores — foi o tom cansado dos olhos, o que acentuava mais o tom velhaco do olhar.

Não a queria inocente, como em 1855; mas parecia-lhe que era mais que sabida, e essa nova descoberta trouxe ao espírito dele uma feição de aventura, não de obra conjugal.

Daí em diante, tudo era achar defeitos; tudo era reparo, lacuna, excesso, mudança.

E, contudo, é certo que ela trabalhava em reatar sinceramente o vínculo partido. Tinha-o confiado à amiga, perguntando-lhe esta por que não casava outra vez.

— Para mim há muitos noivos possíveis, respondeu Malvina; mas só chegarei a aceitar um.

— É meu conhecido? perguntou a outra sorrindo.

Malvina levantou os ombros, como dizendo que não sabia; mas os olhos não acompanhavam os ombros, e a outra leu neles o que já desconfiava.

— Seja quem for, disse-lhe, o que é que lhe impede de casar? — Nada.

— Então...

Malvina esteve calada alguns instantes; depois confessou que a pessoa lhe parecia mudada ou esquecida.

— Esquecida, não, acudiu vivamente a outra.

— Pois só mudada; mas está mudada.

— Mudada...

Na verdade, também ela achava transformação no antigo namorado. Não era o mesmo, nem fisicamente nem moralmente. A tez era agora mais áspera; e o bigode da primeira hora estava trocado por umas barbas sem graça; é o que ela dizia, e não era exato. Não é porque Malvina tivesse na alma uma corda poética ou romântica; ao contrário, as cordas eram comuns. Mas tratava-se de um tipo que lhe ficara na cabeça, e na vida dos primeiros anos. Desde que não respondia às feições exatas do primeiro, era outro homem. Moralmente, achava-o frio, sem arrojo, nem entusiasmo, muito amigo da política, desdenhoso e um pouco aborrecido. Não disse nada disto à amiga; mas era a verdade das suas impressões. Tinham-lhe trocado o primeiro amor.

Ainda assim, não desistiu de ir para ele, nem ele para ela; um buscava no outro o esqueleto, ao menos, do primeiro tipo. Não acharam nada. Nem ele era ele, nem ela era ela. Separados, criavam forças, porque recordavam o quadro anterior, e recompunham a figura esvaída; mas tão depressa tornavam a unir-se como reconheciam que o original não se parecia com o retrato — tinham-lhes mudado as pessoas.

E assim foram passando as semanas e os meses. A mesma frieza do desencanto tendia a acentuar as lacunas que um apontava ao outro, e pouco a pouco, cheios de melhor vontade, foram-se separando. Não durou este segundo namoro, ou como melhor nome tenha, mais de dez meses. No fim deles, estavam ambos despersuadidos de reatar o que fora roto. Não se refazem os homens — e, nesta palavra, estão compreendidas as mulheres; nem eles nem elas se devolvem ao que foram... Dir-se-á que a terra volta a ser o que era, quando torna a estação melhor; a terra, sim, mas as plantas, não. Cada uma delas é um Duarte ou uma Malvina.

Ao cabo daquele tempo esfriaram; seis ou oito meses depois, casaram-se — ela, com um homem que não era mais bonito, nem mais entusiasta, que o Duarte — ele com outra viúva, que tinha os mesmos característicos da primeira. Parece que não ganharam nada; mas ganharam não casar uma desilusão com outra: eis tudo, e não é pouco.

Fonte:
www.dominiopublico.gov.br