segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Titina Palmieri Brandão (Mistérios)

Fontes:
CÁPUA, Cláudio de (editor). Itinerário Poético II (coletânea). SP: EditorAção, 1996.
Formatação do poema com imagem obtida em http://lysminhalma.zip.net, por J.Feldman

Jangada de Versos do Ceará (3)

NATÉRCIA ROCHA
(Natercia Carmen de Sales Rocha)
Fortaleza, 1971
-
Carcará

-
 Um Pássaro Azul me visitou esta noite.

Displicente, em minha janela,
Cantou dos campos por onde tem voado:

Entoou a força das flores
O mel das marés
A larva das matas
A grandeza dos vulcões

E cantarolou mistérios de serenos e tempestades.
Voou para perto da cama, a certa altura da madrugada.
E, de sua cabeça perfumada,
Refletiam cores em arco-íris.
Entrei em seus olhinhos redondos, encantados
E fui embora por sua retina dourada
Passear pelo elo do tempo que nunca acaba.
====================

MAVIGNIER DE CASTRO
(Antonio Mavignier de Castro)
(1895 - 19721 )
-
Luar Amazônico

-
 Verão, Rio em deflúvio. A lua cheia
alonga  perspectivas pela mata;
só a fauna da noite ali vagueia
à sombra errante que o luar dilata...

Álgido, estreito igarapé serpeia,
Qual sinuosa lâmina de prata...
Que melopeia o urutauí flauteia
Na solidão lunar da terra grata!

Amanhece; mas imitando um rito
Sobre a mata flutua um véu de neve...
E o sol – pátena de ouro do infinito.

Espera que no altar da selva nua,
O Sacerdote imaterial eleve
A imagem eucarística da lua!
=======================

DIMAS MACEDO
Lavras de Mangabeira,1956
-
Mistério

-
 Não sei por que destino vago
ou se vegeto.
Minha vida é qual um livro aberto
que atravesso a nado.
Minha solidão tem bases de concreto
e as minhas ânsias claras intenções.
Com as lições da dor eu teço
uma canção ao vento
e reinvento a vida.
A morte é um vendaval e em tudo
o cosmos é uma interrogação.
Meu corpo a fuga. Meu prazer o medo.
E a minha dúvida uma alucinação.
Se vago ou se vegeto, escrevo:
Minha vida é qual um livro aberto.
==============================

DOM HELDER CÂMARA
(Helder Pessoa Câmara)
Fortaleza 1909 – 1999 Recife
-
Escuridão Total

-
 A noite estava tão escura,
tão sem um ponto de luz,
tão noite,
que cheguei a me angustiar,
apesar do amor profundo
que sempre tive à noite...

Foi quando ela me segredou:
quanto mais noite é a noite,
mais bela costuma ser
a aurora
que ela carrega no seio!

Fonte:
http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_brasis/ceara/ceara.html

Folclore do Rio Grande do Sul (Lenda Obirici)

Augusto Porto Alegre, na sua história da "Fundação de Porto Alegre", recolheu esta lenda da formação do Passo da Areia, IBICUIRETÃ, que significa "rio de areia", ou seja, um pequeno arroio que corria nos arredores da capital do Rio Grande.

Nos tempos em que os brancos não haviam ainda penetrado até o Rio Grande do Sul, habitavam a região, os índios Tupi-mirins, da nação de Tapes. Como o amor sempre constituiu uma singela tradição indígena, houve, ali, uma contenda amorosa que ficou na recordação dos silvícolas, chegando até nossos dias sob a forma de uma encantadora lenda:

Conta-se que um belo cacique chamado Abaetê, em pleno apogeu da mocidade, foi alvo de grande amor, por parte de duas irmãs índias: Paraí e Obiricí, ambas filhas do poderoso feiticeiro Guaporé.

Abaetê gostou mais de Paraí, mas não tinha coragem de contar a ninguém, pois não queria magoar Obiricí. Um dia, o guerreiro suplicou a Tupã que lhe desse muito entendimento, para que facilmente pudesse resolver o difícil caso.

Então, durante o sono, recebeu a visita da graciosa Sumá, uma deusa guerreira, que envolvida em leve manta tecida de cipó imbé, deu a Abaetê todos os conselhos necessários, por ordem de Tupã.

Na manhã seguinte, foi imediatamente falar com as jovens e disse:

-"Foi Tupã que me mandou, desejo avisar que todas as duas serão submetidas a uma prova com arco e flechas. Quem acertar o alvo, será minha esposa."

As índias apaixonadas recebendo o aviso de sua resolução, imediatamente se prontificaram a iniciar a disputa. O cacique desejado muito belo e forte, era o grande incentivo.

Obirici, a mais ardente das duas índias, ficou muito nervosa, com medo de perder a competição e ficar sem o amor da sua vida, não teve a mesma destreza da outra. Errou o alvo. Foi portanto, vencida e viu-se obrigada a deixar que a vitoriosa levasse para as terras de Jatobá o jovem príncipe cacique. Ficou só no local onde ocorreu a contenda, a olhar o par abraçado e feliz que se distanciava.

Sufocando soluços, amargurando-se, não teve ânimo de abandonar aquele pedaço de terra, onde ocorrera sua desventura. Em vão desceram as Parajás, deusas da piedade, do alto do Ibiapaba, para consolar a bela guerreira. A divina Paré, deusa da fé veio na forma humana para dar-lhe alegres conselhos e suave esperança.

-"Pobre de mim abandonada"", dizia ela, e nenhuma palavra mais lhe saiu do peito em profundos soluços.

O próprio Tolori, deus da coragem, mas inimigo das mulheres, tão compadecido ficou, que veio dizer algumas palavras de consolo para a índia.

Abatida e tristonha, coração sangrando, alma voltada para o infortúnio e para a morte, hora a hora, pedia que Tupã lhe cortasse os dias de sua vida tão amargurada. E a formosa indígena, com a desventura a povoar-lhe a mente, só implorava o fim, como repouso que lhe era necessário, estendia seus braços de cintilações de bronze, para o céu, mudo ante suas súplicas sinceras e ardentes...

No desespero da dor, as lágrimas brotaram dos olhos de Obirici em uma abundância desoladora. O choro abriu-lhe fundos sulcos no rosto e as lágrimas de suas pálpebras continuaram dia e noite a cair cristalinas e luminosas e, correndo por terra, deixaram nela, para sempre cravado o regato chamado Passo da Areia ou Ibicuiretã...

Decorridos alguns dias, Deus Tupã, apiedando-se da pobre índia, veio buscá-la. As águas de suas lágrimas, porém continuaram a rolar, marcando para sempre na terra dos pampas, a angústia infinita de sua dor.

O Ibicuiretã, esse córrego de lágrimas, não existe mais, pois o Passo da Areia, hoje é um bairro urbanizado da cidade de Porto Alegre. As obras de urbanização canalizaram o riachinho que a princípio, tornou-se um valão. Depois, foi soterrado para construção do Shopping Center da zona norte.

Mas, a bela Obirici não foi apagada do coração dos gaúchos e em sua homenagem, próximo a um viaduto que leva seu nome, foi imortalizada em uma escultura, que a representa com os braços estendidos aos céus, pedindo em imprecações que Tupã acabe com seus dias de tão intensa dor...

Bibliografia:
LESSA, Barbosa. Estórias e Lendas do Rio Grande do Sul. SP: EDIGRAF. 

Fonte:
http://clerioborges.com.br/sirleikaszuba.html

Hernando Feitosa Bezerra Chagall (Cantares) IX

COVARDIA

Cada vez que troco
A timidez pela arrogância
Mato em mim a criança.

MANHÃ

Teus cabelos dourados
Raios de sol
Encaracolados.

SABER

Livro fechado
Pássaro morto
Aberto, vôo certo.

ADÃO

Sou terra, barro
Lama e argila
Com sopro de sonho nas narinas.

SURDA MUSA

Não sei porque
Ainda sussurro Chopin
Aos teus ouvidos Bethoveen!

SCORPIONS

O mundo é uma roda de fogo
Onde provamos
Do nosso próprio veneno.

SAUDADE

A noite ladra pelas ruas
Tua lembrança espanta o sono
Escrevo.

PLUG & PLAY

À noite
Conectados
Ascendemos estrelas.

FESTA

Quando corpos
Nus convida
É hora de celebrá-la, Viva!

BRAZIL S/A

Nesta sociedade anônima
Vive-se melhor
Em companhia limitada.

CIDADANIA

Criança brinquei absorto
Adulto rejeito
Ser tratado como aborto.

ETERNIDADE

Eterna...
Inspiração-vida-expiração
...Idade.

SORTE

Escrevo
Como quem acha
Um trevo.

DELEITE

Indo ou vindo
Teu corpo
É um delicioso sorriso.

MAKTUB

Olhando alguém que morreu
Não gosto do que vejo nele
Eu!

DEUSAS

Deus rascunhou o homem até
Chegar à perfeição
Num corpo de mulher.

CHORINHO

Lamento de cordas
Em harmonia com as batidas de um coração
Que choraminga feliz.

PLEBEU

Que nobre que nada!
Felicidade é caminhar anônimo
E livre pelas calçadas.

FRAQUEZA

Solidão é coisa imposta
Para quem acredita
Que a vida é uma bosta.

NIETZSCHE

Nada além da arte
Nada aquém
Nada à parte.

CONSTRUÇÃO

Palavra a palavra
Vou erguendo
Meu edifício invisível.

PINGENTE

Na tua orelha
Falo língua
Diamante.

AMAZÔNIA

Sobre árvores mortas inútil espera
Das borboletas
Pela primavera.

PRAZER

Teus olhos brilhantes
Dois simultâneos instantes
De cumplicidade.

RISO POLUÍDO

Sempre rio triste
Apesar da alegria
Da nascente.

CANETA

Não sou o príncipe de Gales
Mas trago sempre comigo
O sangue azul dos poetas.

MONGE

Meu rumo é o passo
Na direção que estou
Sou tempo espaço e não sou.

MAESTRO

Nosso som
Só é bom
Se o Tom for Jobim.

OLHAR NUBLADO

Janelas abertas
Tempo nublado
Chuva dentro de mim.

QUEBRA-CABEÇA

Palavra difícil esquema
Monto me desmonto
A cada poema.

ZEN

Passo ponte incerta
Indefeso caminho
A meta.

ESPELHO

Em ti mulher a beleza
Torna-se consciente
De si mesma.

SINA

Abunda em mim
Todo mal comum aos homens...
Sou mais um canalha útil.

MERCADÃO

Aqui vejo, ouço, cheiro
Toco, provo exercíto
Todos os meus sentidos.

FEELING
 

Só o amor faz assim
A estrada dessa vida
Não ter fim.

VOAR

Os pássaros
planam
nossos sonhos.

Fonte:
Hernando Feitosa Bezerra. Cantares.  Universidade da Amazônia – NEAD.

Aparecido Raimundo de Souza (Caminho sem volta)

ANA ANGÉLICA SENTIA SUA ALMA RÉS AO CHÃO.

A cabeça rodopiava por fronteiras indistintas numa bagunça incontrolável. Parecia cindida em mil pedaços. As vistas estavam enfermas embaixo dos óculos de grau vencido. No peito, o coração teimava acelerar descompassado como se alguma coisa anormal o agitasse. As pernas bambeavam, os dedos dos pés doíam apertados dentro dos sapatos de coriáceo vagabundo. Até as roupas que lhe cobriam a nudez pesavam sobre o corpo magro. Atrelado a isso, estranho mal súbito insistia dominar o ambiente como se o universo conspirasse contra e fosse acabar no próximo minuto.

Perguntas sem respostas objetivas afloravam em sua mente como água jorrando em nascente. Por que a modorra apática, o medo, a insegurança e a desagradável sensação de fadiga lhe transformando a carcaça em estrupício? Se fosse alguém de idade bastante avançada, até  se entenderia... Mas ela, só contava poucos anos de idade...

Desde a manhã o dia transcorrera pesado e frio, com a mesma miscelânea circense de sempre. As horas lhe enterraram num sepulcro hostil e inviolável, tal como se a vida lhe tivesse tamponado num buraco fundo e sem retorno. E aquele maldito quarto de pensão desgraçadamente iluminado completava o quadro dantesco da triste e malfadada sina. Tentara, por diversas vezes, dominar o astral e escapar da turbulência repulsiva que pesava sobre seus costados. Pensara fugir da alienação inconcebível e poderosa, mas o espírito perturbado a colocava em inferioridade estrema, deixando-a totalmente sem forças e carente de carinho e aconchego. Queria colo, atenção e amor. Uma gota de ternura seria o bastante para lhe devolver a felicidade entristecida. As outras ninfetas, nesse meio tempo, zombavam da sua cara, escarneavam pontos frágeis, motejavam de sua posição ridícula. Na verdade, todas elas aguardavam pacientemente a sua entrada nos labirintos obscuros da neurastenia.

Com os pensamentos embaralhados e em tumulto desordenado, se questionava aflita, como caíra tão rapidamente naquela incúria, se deixando levar pelo injustificado das incertezas e das horas tediosas da solidão? Onde ficara a vontade de vencer os obstáculos, transpor barreiras e saltar infortúnios inesperados?

Sem réplica à altura dessas indagações, Ana Angélica lamentava ter deixado uma nuvem negra pairar sobre sua cabeça, a ponto de dominar sua existência e vegetar ao deus-dará. Afinal de contas, qual o motivo, ou melhor, o que ensejou toda aquela transformação meteórica em sua tão curta jornada?

Pôs-se, de repente, a lembrar o passado. Fazia pouco tempo, seu pai lhe colocara no olho da rua. Motivo? Uma indesejável gravidez. Até então, Ana Angélica era a melhor filha do mundo. Com a revelação do exame laboratorial feito às pressas, perdeu a posição de “princesa” para aquele cidadão que gozava de elevada reputação na cidade. Na verdade, a autoridade máxima do judiciário local: o juiz!

Como representante da lei, o cidadão precisava dar exemplo. Assim, ao tomar conhecimento da prenhez, o velho genitor virou-lhe as costas mostrando a porta da rua e escancarando a crueldade que começava do portão que se abria para os infortúnios e contratempos da sorte. A decadência se tornou maior, se agigantou no exato momento em que decidiu procurar abrigo na casa do namoradinho que lhe jurara amor eterno. Contudo, Leandro, descendente de tradicional família na cidade, ao saber da novidade (para ele cruel novidade), jogou para o alto a medicina, o consultório, a clínica cardiológica e o comodismo de viver às expensas paternas. Na calada da noite o doutorzinho deixou o lugarejo a horizontes ignorados.

Em povoados de extensão limitada não é preciso muito esforço para cair na boca do povo. Envergonhada, sem comida e teto, e, ainda, com a agravante da fuga inesperada do pai da criança, a solução plausível foi embarcar no primeiro trem. Aportou, então, em São Paulo, ou mais precisamente na Estação da Luz. Sem condições de sobrevivência, não demorou a encontrar os guetos do submundo da prostituição. E neles, Ana mergulhou de cabeça, num voo cego.

Bonita, formosa e gentil, não lhe faltavam noitadas regadas a cervejas e bebidas baratas. Os fregueses variavam: ora saia com um marginal, outra carregava para a cama um gringo desses bem nojentos. Às vezes dormia com almofadinhas elegantes, casquilhos vestidos a rigor ou efeminados. A maioria deles drogados e viciados em crack, maconha e cola de sapateiro. O espaço que mediava entre a concepção e o nascimento não interrompia a hora derradeira, ao contrário, diminuía, diminuía, diminuía...

Nessa pressa de vida fácil o tempo sempre corre com rapidez impossível. Voava, para Ana Angélica como um Pégaso desgovernado, trotando atabalhoadamente na direção do precipício fatal. Atiçada pela elevada valorização do corpinho esbelto e garboso, a matrona, dona do bordel, não perdia clientes. Longe disso, multiplicava o conjunto de paroquianos como fieis num culto religioso.

Os que frequentavam a casa só queriam desfrutar daquela elegante bem proporcionada e sensual, caída dos céus, como um anjo em forma de gente. Por essa razão, a cafetina, conhecida pela alcunha de “Maria Padilha”, em menos de três semanas adquiriu dois bons apartamentos quitinetes num edifício do tipo “balança mas não cai”, quase ao lado da antiga rodoviária e, de lambuja, comprou  um carro novo para desfilar com uma dezena de pupilos que bancava em busca de prazeres carnais.

Com a mente ainda em desalinho, e sem um policiamento ostensivo para conter a avalanche de desgraças que atormentava, Ana Angélica continuava a se questionar dessas mudanças bruscas, quando, entrementes, lembrou da arma que a colega de quarto guardava numa cômoda do tempo do ronca. Resoluta, caminhou até ela. Precisava agir rapidamente. Logo a parceira chegaria do programa que saíra para fazer.

Abriu a gaveta. Um trinta e oito cano curto, cabo em madre pérola, municiado, descansava entre as calcinhas, sutiãs e uma caixa de sapatos cheia de preservativos. Apanhou o revolver, decidida, firme, resoluta, feições contraídas, o coração quase a saltar peito a fora. Lentamente se acomodou na banqueta diante do espelho com um pedaço de vidro faltando numa das extremidades:

— Adeus, mundo — disse entre palavras entrecortadas de solidão e agonia. — Adeus, vida. Pai, mãe, me desculpem!..

Num envolvente ímpeto materno alisou a barriga de modo carinhoso. Cinco meses. Cinco longos meses...

Seria um menino ou uma menina? Sem assistência médica e condições de visitar um ginecologista, o feto sobrevivia a trancos e barrancos. Que nome lhe daria? Como seria o rostinho? Com quem pareceria? Talvez, quem sabe, com ela, ou...

Nesse instante amargo, dos seus olhos de menina mulher, rolaram rosto abaixo, lágrimas ligeiras. Lembrou-se do pai, e da ultima conversa que tiveram antes de acontecer toda essa bagunça em sua vida: — Filha, — disse ele a certa altura — “aequam memento rebus in arrudas servare   mentem”(*).    E,  em  seguida,  concluiu:  — Aconteça o que acontecer jamais entregue os pontos. Seja forte, lute pela vida, brigue, esperneie, mesmo que todo seu eu interior transpire solidão e agonia...

Todavia, agora, era tarde demais. Das palavras sábias do velho pai, só recordações distantes agonizando no peito despedaçado.

— Perdoe a mamãe, meu neném querido, seja você quem for. Não é certo o que pretendo fazer. Sei que não tenho o direito de decidir pela sua vida. Sei que você não vai entender esse gesto, mas... Será melhor... Será melhor que você não conheça esse lado mau e negro. Saiba que mamãe ama você... Mamãe ama você... Mamãe aaa...

O tiro ecoou forte. A bala viajou certeira em busca do alvo fácil. Num instante dolorido, o estampido se assemelhou a uma espécie de míssil teleguiado, ao explodir tremendamente perverso dentro do aposento parcamente iluminado. Pessoas danaram a gritar. “Maria Padilha” esmurrou a porta com vigor. Um cliente que chegava na hora berrou para que alguém acionasse a polícia.

Lá  dentro, dobrada sobre si mesma, deixando escapar desejos mal resolvidos e envolta numa enorme possa de sangue, Ana Angélica, a querida e desejada dama da noite, metida, agora, numa via de mão única e sem retorno, soltava o derradeiro e lancinante grito de estertor.
––––––––––––-
(*) “Lembra-te de manter o ânimo justo nos momentos difíceis”.
Nota do autor


Fonte:
SOUZA, Aparecido Raimundo de. Havia uma ponte lá na fronteira. São Paulo: Ed. Sucesso, 2012.

Machado de Assis (Gazeta de Holanda) N.º 17 – 6 de abril de 1887

Temos nova passarola,
De grandes asas escuras,
Mexidas por certa mola
Que dá sono às criaturas.

Chama-se — não sei maneira
De pôr este nome em verso...
Palavra, é grande canseira,
Tão duro é ele e reverso.

Deito sílabas de lado,
De outro sílabas arranco,
Trabalho desesperado
E fica o papel em branco.

Vá lá: medicina hipnótica,
Custou, mas saiu... Parece
A cousa um tanto estrambótica,
E mais se a gente adoece.

Notem bem — é medicina,
Posto a sugestão opere;
Cá o meu bestunto opina
Que um nome de outro difere.

Há em sugestão um jeito
Teórico feio, enigmático;
Mas medicina é perfeito,
Perfeito, rápido e prático.

Quando aqui há poucos anos,
Já me não lembra em que dia,
Deu entrada entre os humanos
A exata dosimetria,

Disse eu: “Invenção potente!
Perfeição do formulário!
Consolação do doente!
Fortuna do boticário!”

Mas daí a pouco ouvia
(Outro inimigo da métrica)
Em vez de dosimetria,
Medicina dosimétrica.

E isso que cuidava que era
Farmácia, era uma doutrina.
Uma escola em primavera
Contra a velha medicina.

Não digo que o sugestivo
Hipnotismo também seja
Ária sobre outro motivo,
Nem igreja contra igreja.

Digo... Não sei como diga...
Não sei como diga... Ai, musa
Do diabo e de uma figa!
Você ri! você abusa!

Digo (vá) digo que, quando
Cuidava que esta matéria,
Da qual não estou mofando,
Que é séria, três vezes séria,

Não pelas razões do grave
Apóstolo, que cogita
Não fazer dela uma chave
P'ra prender moça bonita;

Como se amor não tivesse
Outra sugestão nativa,
Que, quando menos parece,
Faz arder o esquivo e a esquiva.

Quando (como ia dizendo)
Supunha que a academia,
Por sua vez, lendo e vendo,
Ia explicar a teoria;

Que visse os graves problemas
Envoltos na descoberta,
E como antigos sistemas
Passam a questão aberta;

Que, como órgão da ciência,
Examinasse, estudasse
A vontade e a consciência
Pela novíssima face;

Que visse como a pessoa
Humana se multiplica,
Vai a Túnis e a Lisboa,
E cá reside, e cá fica;

Em vez disso,a academia
Dá-lhe duas passadelas
De escova, e manda a teoria
Curar as nossas mazelas.

Isto é que me põe os braços
Caídos, e a boca aberta...
E já daqui vejo os passos
Desta nova descoberta.

Atrás dos homens sabidos
Virão os que nada sabem,
E gritarão desabridos
Até que os astros desabem.

Chegaremos aos cartazes
E aos anúncios de vinhetas,
Pílulas Holloway capazes
De dar beleza às caretas.

Ora, há trinta anos havia
Xarope que se chamava
Do Bosque, e tanto valia,
Que tudo e algo mais curava.

Hoje, esse licor exótico
Não tem uso, interno ou externo ...
Receio que o sono hipnótico
Chegue a tudo... e ao sono eterno.

Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.

Irmãos Grimm (A Noiva do Ladrão)

Era uma vez um moleiro que tinha uma filha muito linda, e quando ela cresceu, ele queria que nada lhe faltasse e que fosse bem casada. Ele pensava: — “Se algum pretendente aparecesse e pedisse a sua mão, eu ficaria muito feliz.”

Não muito tempo depois, um pretendente apareceu, e que parecia ser muito rico, e como o moleiro nada encontrou que o desabonasse, então ele prometeu sua filha ao pretendente.

A jovem, contudo, não tinha a menor inclinação por ele, assim como uma garota deve gostar de um homem a quem ela foi prometida, e nem confiança lhe inspirava o rapaz. Quando ela o via, ou pensava nele, ela sentia uma aversão profunda.

Uma vez ele disse a ela: — “Tu és a minha prometida, — “no entanto, jamais me fizeste uma visita.”

A jovem respondeu: — “Não sei onde fica a tua casa.”

Então, o noivo respondeu — “Minha casa fica lá longe na floresta escura.”

Ela tentou se desculpar, e disse que não sabia o caminho até lá. O noivo respondeu: — “Domingo que vem, tu deves ir lá me fazer uma visita — “já chamei os convidados, e eu jogarei cinzas para que possas encontrar o caminho pela floresta.”

Quando chegou o domingo, e a donzela se pôs a caminho, ela ficou apreensiva, mas não sabia exatamente porque, e para garantir de que não se perderia na volta, ela encheu seus dois bolsos com ervilhas e lentilhas. Cinzas foram espalhadas na entrada da floresta, servindo de caminho para ela, porém, a cada passo, ela espalhava algumas ervilhas no chão.

Ela caminhou quase o dia todo até que ela chegou no meio da floresta, onde era mais escura, e lá ficava uma casa solitária, que ela não gostou a princípio, porque ela parecia tão escura e sombria. Ela entrou na casa, mas não havia ninguém dentro dela, e o mais absoluto silêncio reinava ali. Subitamente uma voz gritou:

— “Volte, volte, minha querida donzela,”

— “É na casa de um matador que você está entrando agora.”

A jovem olhou e viu que a voz vinha de um passarinho, que estava pendurado numa gaiola na parede. E o passarinho gritou novamente:

— “Volte, volte, minha querida donzela,”

— “É na casa de um matador que você está entrando agora.”

Então a jovem continuou andando de um cômodo da casa para outro, e caminhou por toda a casa, mas ela estava totalmente vazia e não havia sequer um ser humano ali. Finalmente ela chegou num lugar, onde uma velhinha de idade avançada estava sentada, que não parava de chacoalhar a cabeça. — “Será que a senhora poderia me dizer,” disse a donzela, — “ se o meu pretendente mora aqui?”

— “Ai, pobre criança! Respondeu a velhinha, — “onde você está se metendo? Tu estás no esconderijo de um matador. — “Pensas que és uma noiva que logo vai se casar, mas será com a morte que irás se casar. Veja, eu fui obrigada a colocar uma grande chaleira aqui, com água dentro dela, e quando estiveres em poder dele, você será cortada em pedacinhos sem misericórdia, serás cozida e te comerão, porque aqui se come carne humana. Se eu não tiver compaixão por você e te salvar, estarás perdida.”

Diante disso, a velhinha a levou para trás de um grande tonel onde ela não poderia ser vista. — “Fique quietinha como um rato,” disse ela, — “não faça nenhum barulho, nem se mova, do contrário não haverá salvação para ti. A noite, quando os ladrões estiverem dormindo, nós fugiremos; há muito tempo que estou esperando por uma oportunidade.”

Mal haviam feito isto, quando o bando de desalmados chegou em casa. Eles tinham arrastado com eles uma outra garota. Estavam bêbados, e não ligavam para os gritos e lamentos que ela dava. Eles deram a ela vinho para beber, três copos bem cheios, um copo de vinho branco, um de vinho tinto e um copo de vinho amarelo, e diante disso o coração dela explodiu.

Em seguida, eles arrancaram o delicado vestido dela, colocaram-na sobre a mesa, cortaram seu lindo corpo em pedaços, e espalharam sal sobre ele. A pobre noiva, que estava atrás do barril tremia e se sacudia toda, pois ela via muito bem que destino que os malvados reservavam para ela. Um deles notou um anel de ouro no dedo mínimo da garota que fora assassinada, e como o anel não queria sair de imediato, ele pegou um machado e arrancou o dedo fora, mas o dedo pulou no ar, por cima do barril, e caiu direto no peito da noiva.

O bandido pegou uma vela e foi procurar o anel, mas não conseguiu encontrá-lo. Então, um outro do bando disse: — “Você já procurou atrás do tonel grande?

Mas a velhinha gritou: — “Venham comer alguma coisa, e deixem para procurar amanhã de manhã, o dedo não vai fugir de vocês.”

Então os ladrões disseram: — “A velha tem razão,” e desistiram da busca, e se sentaram para comer, e a velhinha colocou uma pílula de dormir no vinho deles, de modo que logo eles se deitaram na cela, e dormiram e roncavam.

Quando a noiva ouviu isso, ela saiu de trás do tonel, e teve de passar por cima dos ladrões, porque eles estavam deitados em fileiras no chão, e ela ficou com muito medo porque ela poderia acordar um deles.

Mas Deus a ajudou, e ela conseguiu sair sã e salva. A velhinha saiu com ela, abriu as portas, e elas correram do covil dos bandidos com toda a velocidade que podiam. O vento havia dispersado as cinzas, mas as ervilhas e as lentilhas haviam brotado e crescido, e mostrava a elas o caminho sob a luz do luar. Elas caminharam a noite toda, até que de manhã elas chegaram ao moinho, e então a jovem contou ao seu pai tudo
exatamente como tinha acontecido.

Quando chegou o dia quando o casamento havia de ser celebrado, o noivo apareceu, e o moleiro havia convidado todos os seus parentes e amigos. Quando eles se sentaram à minha, cada um tinha que contar uma história. A noiva sentou em silêncio e não disse nada.

Então o noivo disse para a noiva: — “Venha, querida, não tens nada para contar? Conte-nos uma história assim como eles fizeram.”

Ela respondeu: — “Então, eu vou contar um sonho. Eu estava caminhado sozinha pela floresta, quando finalmente cheguei a uma casa, onde não havia nenhuma alma viva, mas na parede havia um pássaro dentro de uma gaiola que gritava:”

— “Volte, volte, minha querida donzela,” — “É na casa de um matador que você está entrando agora.”

E o passarinho gritou isso mais de uma vez.

— “Querido, é só um sonho que eu tive. Então, eu caminhei por todos os cômodos da casa, e todos estavam vazios, e alguma coisa horrível havia naquele lugar!

Finalmente, cheguei até um lugar, onde uma mulher, muito muito velha, estava sentada, e ela sacudia a cabeça, quando lhe perguntei:

— “O meu noivo mora nesta casa?” Ela respondeu: — “Oh, pobre menina, entraste no covil de um matador, teu noivo mora aqui, e ele te cortará em pedaços, e te matará, depois ele irá cozinhá-la e irá comê-la.”

— “Querido, é só um sonho que eu tive. Mas a velhinha me escondeu de trás de um tonel grande, e mal havia me escondido, quando os ladrões chegaram em casa, e arrastavam uma donzela com eles, para a qual eles ofereceram três tipos de vinhos para beber, branco, tinto e amarelo, e depois o coração dela estourou.”

— “Querido, é só um sonho que eu tive. Tiraram-lhe então, o seu lindo vestido, e cortaram o belo corpo da garota em pedaços em cima da mesa, e derramaram sal nele.”

— “Querido, é só um sonho que eu tive. E um dos ladrões viu que havia um anel no dedo mínimo da garota, e como era muito difícil removê-lo, ele pegou um machado e cortou fora o dedo dela, mas o dedo pulou no ar, e saltou por cima do tonel grande, e caiu dentro do meu peito! E lá estava o dedo com o anel!” E depois que disse estas palavras, tirou o dedo para fora, e mostrou para os que estavam presentes.

O ladrão, que durante esta história ficou branco que nem cera, levantou-se e quis fugir, mas os convidados o dominaram, e o entregaram para a justiça. Então, ele e todo o seu bando foram executados por seus crimes infames.

Fonte:
http://pt.wikisource.org/w/index.php?oldid=245618

Vladimir Queiroz (Poemas Avulsos)

Canto da terra
-
A terra do rouxinol
é roxa,
rocha exposta emergida
ferida - roncha.

A terra do curió
é branca,
sanca de amor brando
soando manca.

A terra da saracura
é muito escura,
faz cócegas num córrego
e dura.

A terra no canto,
canta
em pranto.

Chuva na serra
-
Após a chuva na serra
sopra aquele vento,
penetra no osso e gela a alma.

Mas a paz e a calma são sublimes
e transcendem.
Invade-me um vazio,
uma sensação de flutuar,
e por mais que te pegue,
sinta a pele e o braço,
é como se estivesse no ar
pétala por pétala.

A neblina deixa-me ver unicamente
um contorno de serra,
uma indefinição curvilínea...
Defronte a mim só uma imagem,
uma moldura impressionista,
e nada mais.

Emoção
-
Solta e rebelde vai a emoção
voa
visita estes recônditos mundos
inesperados e fascinantes
desperta a vontade
cria insanidades
e se desmancha pela cria
(que chora e esperneia);
mancha o papel de cores
combina amores
curte dissabores
e ronda a madrugada.
Solta e rebelde vai a emoção
não impõe limites
nada teme
sofre de tensão
sorri
sente calor
e calafrios.

Formas
-
A inércia que constrói o tédio
precisa ser vencida
e do atrito louco se desvencilha
entrando em erupção o vulcão
de formas e cores.

Formas ainda não concebidas
do objeto retraído
nas reentrâncias vastas,
do vasto mundo cerebral, incongruente;
que indolente, o Homem, ignora.

Misticizada e lírica
do prazer contrito
a magia oculta
se solta.

E a forma estranha, para o ser
despercebida, algures repousa
e surge mais tarde
no fim da tarde, talvez!

Global
-
Tem um apelo global junto a mim,
mas a minha pele ainda é local,
aninha-se numa árvore conhecida
onde crescem musgos após a chuva.

Quer suar no Saara e sonhar por miragens;
desfrutar os Fiordes, ser um lorde britânico,
mas não dispensa o balançar de rede
o vento soprando frio em noite de lua cheia.

Tem um mundo global que me faz chorar na Namíbia,
deixa-me distante, ouvindo circunspecto um som mongol,
sou oriental por um instante,
sinto-me repleto de Mahatmas:
transcendo,
mas tem um mundo local que a mim traz bem cedo
o cantar de um pintassilgo,
e a minha cama enche-se de êxtase.

Tem um mundo global que imanta os pólos
e desmancha os sonhos,
mas tem um mundo local que me toca de repente
deixa-me carente de você, cheio de amor.

Hábito
-
Se acordo cedo nas manhãs de domingo
não é porque vá viajar
nem tampouco tenha compromisso;
ninguém me chamou,
não tocou o telefone.
Se acordo cedo nas manhãs de domingo
é porque adoro ver o sol nascer
sentir aquela calma matinal
ouvir o curió que canta na casa ao lado;
ver as primeiras pessoas que passam:
o vendedor
o jornaleiro.
Se acordo cedo nas manhãs de domingo
é por força do hábito.

Lamparina
-
A lamparina acesa
clarão de choupana
brasa
incendiando o silêncio.

Filete de luar balançando ao vento
mil marionetes negras:
fantasmas das trevas.

O nada reintegrado ao pensamento:
carícia de tempo, carência de voz
dissolvendo a escuridão
sob o relento lento.

Mestre
-
O ancinho na mão do mestre
recolhe as folhas caídas
ao chão agreste.
Consumidas pelo tempo,
vencidas por um ciclo de vida
que as fez nascer.
O mestre olha cada folha e
reconhece o broto tenro de outrora,
que viçoso e verde despontara.

E segue o mestre na sua faina diária,
centenária!

Zunido
-
O guarda apitou no sinal;
os paralelepípedos sentiram o zunido
e trepidaram:

passaram homens correndo de tênis
velocípedes
quadrúpedes;
passaram cigarros, chapéus e menestréis
poetas e guerrilheiros
aves de arribação;
passaram peruas (quase nuas)
vozes
beijos;
passaram aos solavancos
saltimbancos
avós de quarentena
tamancos das mil e uma noites;
passaram carroças e troças
tigres de dente de sabre
(tigres de “bengala”)
jacas maduras;
passaram gatunos
diversos e unos;
passaram...

Fonte:
Goulart Gomes (organizador). Antologia do Pórtico.

Nilto Maciel (Contistas do Ceará) Mário Pontes

Mário Pontes (Nova Russas, 1932), autodidata, fez-se tipógrafo e depois jornalista, em Fortaleza. Mudou-se para o Rio de Janeiro, onde foi, por décadas, editor de cadernos de cultura do Jornal do Brasil. Além de centenas de artigos sobre livros e autores, publicou Milagre na Salina, 1977 (traduzido para o russo); Ninguém ama os náufragos; Andante com morte, 1999, Canta, violão, novela para leitores jovens; Doce como diabo, ensaios sobre poesia popular, e, em 2003, Um Homem Chamado Noel. Sua peça para adolescentes, As minas do Rei Aurino, permaneceu seis meses em cartaz no Teatro Cacilda Becker, Rio. Mario Pontes já traduziu 25 livros de ficção de autores como Camilo José Cela (Prêmio Nobel); Júlio Cortázar e Isabel Allende; e obras filosóficas, como O saber grego (66 autores europeus); Voltaire e os intelectuais, de Pierre le Pape e A razão no século XX, de Bertrand Saint-Sernin, professor da Sorbonne.

            Seus contos estão publicados em dois volumes: Milagre na Salina e Um Homem Chamado Noel. O primeiro lembra a estrutura de Vidas Secas, de Graciliano Ramos, e de Jorge Medauar Conta Estórias de Água Preta. Os capítulos do romance podem ser lidos como pequenas histórias. Já as “estórias” de Medauar constituiriam romance, na opinião de Fernando Góes, porque os episódios narrados estão centrados na cidade de Água Preta. Também as composições de Mario se localizam em um só ambiente, Salina. No entanto, ambos são mesmo coleções de contos. Na segunda obra Salina é deixada para trás ou, pelo menos, não é mencionada. Aliás, em nenhuma narrativa a ação se desenvolve na mesma localidade, à exceção das duas primeiras, quando Lucas ainda é criança. O protagonista está sempre em viagem pelo Brasil afora. As únicas cidades mencionadas são Leonardópolis e Brasília.

Em Milagre na Salina é perfeita a pintura do ambiente, dos personagens e das ações. Salina é a parte mais pobre de qualquer cidadezinha do Nordeste brasileiro. Teofânio, Antonio Profeta, Chico Pé-de-Valsa, Francalino, Situba, delegado Ermírio, dona Toinha, Manoel de Rosa, Zacarias, Cardoso, Campeão, Xandu, Mino e outros são nordestinos sob todos os aspectos. Os crimes, as safadezas, as intrigas praticadas pelos seres fictícios parecem relatadas por cantadores de feiras. Tudo é como se estivesse o leitor vivendo aquela bruta vidinha da cidade miúda da terra de secas e enchentes.

O espaço geográfico em que se movimentam os seres fictícios é o mesmo. Vez por outra, protagonistas de um capítulo surgem às escondidas em outros. É o caso de Teofânio, o dono da bodega aonde quotidianamente os bêbados da Salina vão se embriagar e contar as novidades. E nem mesmo ele consegue sobrelevar-se à categoria de primeiro personagem, apesar de quase todos os contos serem narrados em sua bodega.

Em Um Homem Chamado Noel a armação da estrutura do livro é semelhante à de Milagre na Salina: um personagem, Lucas (nas três primeiras narrativas aparece com o nome de Mino, apelido de infância), amarra uma peça a outra, ora como narrador, ora protagonista e, às vezes, testemunha ou deuteragonista. O drama se desenrola em diversas localidades ou cidades ou por onde anda Lucas. Os demais seres fictícios atuam uma só vez, isto é, não reaparecem em outras células dramáticas. Assim, Noel, personagem principal da obra que dá título ao livro, não é encontrado nas demais. Por isto, o melhor título para a coleção talvez fosse outro, como Ícaro. Pois o herói grego é o próprio Mino ou Lucas em sua luta pela sobrevivência, em seus voos ao longo da vida, em suas buscas de liberdade. Ou A Morte Vermelha, pela presença constante da “indesejada das gentes” em todos os episódios.

                O grande ser fictício do livro é Mino ou Lucas. Se se tratasse de novela ou romance, seria o protagonista. As histórias se sucedem ao longo de sua vida. Em “Ícaro”, “mal acabava de completar nove anos”. Em “A Morte Vermelha”, mestre Aldo, seu pai, recrimina mulher que não parava de falar de tragédias: “Olhe meu filho, é quase uma criança!”. Nos demais contos Lucas é adulto: em “Não olhe para trás” realiza o sonho de sair de casa, fugir para longe, aventurar-se pelo mundo, viver a própria vida (e a dos outros).

O tempo vivido pelo protagonista pode ser apreendido aos poucos: no início o pai fumava cigarro Colomy e vestia paletó de caroá; o padre misturava latim (Dominus vobiscum) ao português, nos sermões. Num segundo momento, havia estrada de ferro, trens de passageiros, e ainda não se falava em rodoviária e ônibus. Na terceira peça, há uma estação ferroviária e uma tipografia onde se imprimia um jornalzinho. Em “O Dia de Tudo” há um velho major da antiga e extinta Guarda Nacional, a dar vivas ao Estado Novo. Em “O Rapto de Sabina” Lucas diz haver nascido pela mão de uma parteira. Em “Um Homem Chamado Noel” a ação decorre em 1949, como se pode ver em trecho da narração em que Noel aciona “isqueiro em casca de bala de metralhadora: uma das modas criadas pela guerra já velha de quatro anos”. O episódio derradeiro da última narrativa do volume se desenvolve depois de 1964, numa Brasília ainda calma, “calma demais, rígida como se a houvessem nocauteado”.

As dez histórias da obra são todas longas para os padrões de hoje, ocupando a mais curta oito páginas, e a mais longa, vinte. Sete delas têm narrador em terceira pessoa e as demais em primeira pessoa, Mino ou Lucas. Na última, o leitor não encontrará referência ao nome do narrador, mas logo no início lerá: “Ia encontrar meu pai carpinteiro” (...). Na primeira peça o pai de Mino é mestre Aldo, marceneiro, e contracena com o protagonista. No segundo também tem papel fundamental e a sua profissão é mostrada com orgulho pelo garoto, embora os ricos da cidade não admitissem que um carpinteiro residisse na Praça da Matriz, “quadrilátero” nobre, onde moravam “o prefeito, o juiz, o delegado de polícia, o primeiro tabelião e alguns dos mais abastados comerciantes da cidade”. Nos demais contos Aldo desaparece.

O ponto de vista às vezes passa da terceira pessoa para a primeira, mas de maneira sensata, premeditada, como em “Os Loucos de Jamal”. Os personagens são de duas categorias: uma narradora e um interlocutor, de um lado ou no presente, e o sírio Jamal, seus amigos espíritas, os loucos, o oficial de justiça Adel e outros de menor importância, no passado ou como personagens de Helu. Ou seja, há dois narradores: um onisciente, não-personagem, e outro também onisciente, mas personagem. O segundo inicia a narrativa: “Naquele tempo a cidade era uma rua e uma praça”. É interrompido pelo primeiro (por travessões): “– Helu contou a Lucas, exagerando a beleza de sua voz, não menor que a de seu rosto –”. Este, na verdade, só se manifesta para passar a voz da narradora para o interlocutor e fazer comentários à beleza da jovem, a quem chama de “fada narradora”.

As histórias de Mario Pontes são realistas, embora de um realismo mais próximo do exotismo. Uma das mais belas, “A morte vermelha”, é envolta pela atmosfera da narrativa macabra, como num desfile funéreo, numa dança da morte, a arrastar os vivos. Também “Os loucos de Jamal”, uma das mais estranhas do volume, na qual se mesclam espiritismo, loucura, intolerância, violência. O desfecho é de uma crueza digna dos mestres do conto de horror, a lembrar Edgar Poe. Estranha é ainda “Felismende, ourives”, de enredo intocável. “O dia de tudo” chega a ser burlesca ou bufa. O burlesco também se apresenta em “Revelações noturnas”. Já “O Rapto de Sabina” é outra história exótica, numa mistura de aventura com crime. A composição que dá título ao livro pode também ser posta nesse rol, pela singularidade do protagonista, misterioso em seus atos e sua fala. “Sancho e a Rainha” segue a mesma linha de mistério, aventura, crime, como nas boas obras do gênero policial.

As peças de Mario Pontes têm a estrutura do conto dito tradicional, com começo, meio e fim, embora aqui e ali utilize o flashback, como em “Felismende, ourives”, “O rapto de Sabina” e, sobretudo, em “Sancho e a Rainha”. A narrações minuciosas se sucedem diálogos alongados. As descrições não chegam a enfadar o leitor e até engalanam a prosa: “um poste de ferro, fundido e floreado”; “um sujeito muito magro, levemente recurvo”; “rosto estreito como um machado, terminando em um nariz fino, uma lâmina” (“Não olhe para trás”).

São raros os contos de flagrante; quase todos têm suas tramas desdobradas ao longo de meses e anos, com o surgimento e o desaparecimento de personagens. Num deles, Lucas caminha por longas horas, para se afastar da cidade onde vive; à noite chega “a um pequeno povoado”; no dia seguinte alcança uma cidade maior; passa-se uma semana; “ao cabo de seis meses” decide retomar a estrada...

Mario Pontes é escritor vocacionado para a novela e o romance. Entretanto, isto não menospreza as suas composições, que não podem ser vistas como rascunhos de obras de maior envergadura. A sua vocação é a de criador de personagens ricos e enredos substanciosos, de manipulador de tempos e espaços amplificados e de apóstolo de um realismo exótico.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

domingo, 5 de janeiro de 2014

Ialmar Pio Schneider (Versos Diversos)


SONETO à FLORBELA ESPANCA
*8.12.1894  - +8.12.1930
-
Foi amando teus versos que aprendi
a soluçar também o mal do amor,
nos desencontros e no frenesi
que envolveram meu estro sonhador...

 Soubeste extravasar todo o calor
que sentias, assim como senti,
das paixões que me fazem ser cantor
dos mesmos temas que provêm de ti.

 Ó divina poetisa, os teus tormentos
expressos na poesia e nos lamentos,
que soluçaste, fazem-te imortal...

 Ninguém foi tão sincera e tão brilhante,
fazendo versos de mulher e amante,
enaltecendo sempre Portugal !

SONETO A RAINER MARIA RILKE
Nascimento do poeta em 4.12.1875

Sonetos geniais vou lendo agora
de um primoroso vate que escreveu:
´´Cartas a um Jovem Poeta´´ e lhe deu
conselhos pra seguir a qualquer hora...

´´A obra de arte é boa quando nasceu
por necessidade...(...),´´; nada descora
a beleza natural de uma aurora
e o que criares sempre vai ser teu !

Rainer Maria Rilke, também busco
em teus escritos muito que preciso
pra poetizar meus versos de sozinho;

e te aprendendo sei que não ofusco
minha tarefa, às vezes, de indeciso,
sempre à procura de um melhor caminho !

SONETO PARA O ANO-NOVO

Há quanto tempo não escrevo um verso,
De amor ardente ou de filosofia...
Quem me dera, fazê-lo neste dia
De Ano-Novo no esplêndido Universo !

Vede a luz que dos céus tanto irradia
Raios difusos quando me disperso
Em pensamentos e me vejo imerso
No mar azul da linda fantasia !...

E quem sinto povoar-me a solidão,
nessas horas em que o sol vai se pôr ?!
- Posso dizer que é uma grande paixão !

E aquela que a causou não vou falar,
Talvez nem saiba compreender o ardor
De minh´alma... Terá que adivinhar !

A PORTA QUE SE ABRIR...

Ouvindo a música suave e mansa
eu passo as minhas horas solitárias...
Que difícil manter uma esperança
quando as próprias ideias são contrárias !

Como desejo ter uma mudança,
nestas ocasiões, tão necessárias;
penso na estrela que jamais se alcança
e na desgraça que recai nos párias...

Entretanto, procuro não cair,
porque os espíritos, enfim, reagem
mesmo perante a mais feroz tristeza...

Espero pela porta que se abrir
em meu destino e assim me dê passagem
p’ra conviver com a tua beleza…

SONETO A GONÇALVES DIAS
Falecimento do poeta em 3.11.1864- In Memoriam -

Poeta das palmeiras e também
dos indígenas, com força genial,
cantou grandes amores que ninguém
houvera feito assim sentimental…

Lendo seus versos a saudade vem
me visitar de modo especial,
da minha terra que palmeiras tem
onde o sabiá modula sem igual.

Gonçalves Dias, vate da natura,
és um astro que em nosso céu fulgura,
com tuas mais românticas poesias…

Soubeste transmitir a inspiração
que as Musas te trouxeram na solidão
do mundo ideal das alegorias !

SONETO A CARLOS MAGALHÃES DE AZEREDO
- Falecimento do poeta em 4.11.1963 aos 91 anos. – In Memoriam -.

Quando leio sonetos dos poetas,
velhos românticos de antigamente,
sinto quão suas musas são diletas
nos versos que escreveram docemente…

Poesias inspiradas e discretas,
mas também outras, de romance ardente,
que tudo dizem, atingindo as metas
que se propunham, na paixão ingente.

Leio Carlos Magalhães de Azeredo,
o seu ´´Verão e Outono´´, em que demoro,
curtindo um verso no final do enredo

em que ele escreve: ´´Doce e amargo encanto !
São tuas próprias lágrimas que choro !´´
E aprendo, então, como é tão forte o pranto…

SONETO A RUI BARBOSA
Nascimento do escritor Rui Barbosa em 5.11.1849 – In Memoriam -

Rui Barbosa
Literato
Foi de fato
Rei da Prosa.

Escritor
Mui correto
Tão dileto
Prosador.

Assombrou
C´o saber
Tão profundo…

Pois honrou
Seu dever
Neste mundo.

SONETO ALEXANDRINO A AMADEU AMARAL
Nascimento do poeta Amadeu Amaral em 6.11.1875 – In Memoriam -

“Rios”, “Sonhos de Amor”, e “A um Adolescente”,
são sonetos de escol que leio comovido,
porque me fazem bem neste dia envolvente
pela nublada luz do céu escurecido…

E fico a meditar, trazendo para a mente,
os poemas “A Estátua e a Rosa”, em sublime sentido;
“Prece da Tarde”, quando exsurge a voz do crente
como um sopro de amor no caminho escolhido…

Estou perante o mestre Amadeu Amaral,
cujos versos serão sempre muito admirados,
como régio cultor da nobre poesia…

Além do mais, ficou sendo vate Imortal,
pois eleito ele foi por membros consagrados
de nossa Brasileira Excelsa Academia !

SONETO PARA CECÍLIA MEIRELES
Nascimento da poeta em 7.11.1901 – In Memoriam -

Procuro viajar nestes poemas
que me emocionam tanto e permaneço
conhecendo em mais variados temas,
a vida alegre ou triste em que padeço…

Procurei fazer versos, de tropeço
em tropeço, p´ra resolver problemas
que enfrentei no viver, desde o começo,
quando me apareciam os dilemas.

Um dia encontrei doce poesia
melancólica, plena de ternura,
mas também sempre límpida e correta.

São horas de tristeza e nostalgia
que me suscitam a feliz candura,
de Cecília Meireles, a poeta !

SONETO A ARTHUR RIMBAUD
Falecimento do poeta francês em 10.11.1891 – In Memoriam -

Jovem poeta que parou bem cedo
de fazer versos plenos de emoção…
Soneto de “Vogais” em cujo enredo
cada uma tem a significação.

Sua obra não foi simples arremedo
de alguém que pensa apenas na ilusão;
não se sabe do enigma nem do medo
de a poesia dar continuação…

O certo é que depois, quando indagado
se era parente de Rimbaud, dizia:
“Eu nunca ouvi falar !” E assim calado

continuou pelo resta da vida, só,
com sua nova e vã filosofia
em que se sabe que seremos pó !

SONETO A AUGUSTO DOS ANJOS
Falecimento do poeta em 12.11.1914 – In Memoriam -

Leio seus versos de poeta ousado,
e me comovo com a verve forte,
que se deprime qual um condenado,
a cada instante lamentando a sorte.

Mas foi um grande, embora desgraçado,
sem ter um lenitivo que o conforte,
em cada verso um passo encaminhado
rumo ao destino que o esperava: a morte !

E sendo um vândalo destruidor,
andou por ´´templos claros e risonhos´´,
como num pesadelo com pavor…

Então, num ímpeto de iconoclastas,
´´quebrou a imagem dos seus próprios sonhos´´,
´´erguendo os gládios e brandindo as hastas´´!

SONETO A CRUZ E SOUSA
Nascimento do poeta em 24.11.1861 – In Memoriam -

Poeta das Visões e dos Mistérios,
Evocando outros mundos de Quimera
Onde devem viver seres etéreos
Que por aqui passaram n´outra Era…

São espíritos cuja Vida austera
Atravessaram cá momentos sérios,
Sem conhecer a eterna Primavera,
Hoje ouvindo dos Anjos os saltérios…

São as almas que o Vate Cruz e Sousa
Evocava em seus versos: “ais perdidos
Das primitivas legiões humanas?!”

Lembramos que sua alma ora repousa
Por Mundos para nós desconhecidos,
Mas plenos de canções… louvor… hosanas…

APÓS LER CRIME DO PADRE AMARO DE EÇA DE QUEIROZ
Nascimento do escritor em 25.11.1845 – In Memoriam -

Uma história de amor que nos surpreende,
libélulo ao celibato imposto,
lança no espírito feroz desgosto
que por maior esforço não se entende.

São os mistérios que jamais se aprende:
uma existência trágica ao sol-posto
penetra o cérebro e no próprio rosto
dá contrações de nervos e se estende.

O mundo estupefato ao Padre Amaro
lançará seu desprezo inconformado,
pois mesmo que procure achar amparo

na vã filosofia de um idílio,
surgirão tão fatal como o pecado
a pobre Amélia morta e morto o filho…

SONETO  A GREGÓRIO DE MATOS
Falecimento do poeta em 26-11-1696 – In Memoriam -

Gregório de Matos – Boca do Inferno,
assim o apelidou o poviléu,
apesar de às vezes ser mui terno
e descantar também bênçãos do céu…

Na Bahia causavam escarcéu,
suas notas satíricas e hodierno,
se despertou talvez algum labéu,
há de ficar seu estro sempiterno…

Vejo que a data do seu nascimento,
será sete de abril?! ou vinte e três,
ou vinte de dezembro?! Não é certa…

Mas sei que foi poeta de talento,
e tudo o que escreveu, e disse, e fez,
mostra a coragem de sua alma aberta…

VENTO DO MAR

 Vento que sopras furibundo
 e vens meus sonhos despertar,
 as tristezas de todo o mundo
 parece que trazes do mar…

 Ouvindo o lamento profundo
 sempre constante a marulhar,
 quedo-me triste, me confundo
 co’a voz misteriosa do mar…

 Altas horas, cada segundo
 teimas o meu corpo abraçar,
 quando em reflexões me aprofundo
 para obter segredos do mar…

SONETO
Comemora-se no Brasil, o Dia Nacional da Leitura (a partir de 2009 – Lei nº 11.899).

A distração do espírito é a leitura
e os grandes mestres nos ensinam tal;
nas obras-primas, vasto cabedal
a mente encanta e o pensamento apura…

A existência tem fases de amargura,
pois há um confronto assaz fenomenal:
de um lado luta o bem e de outro o mal
e o que vence por fim é o que perdura.

Escrevam, romancistas, seus romances !
Cantem, poetas, salutar poesia !
Porquanto houver na vida tantos transes,

não vão morrer as páginas aflitas
e nem há de ficar a imagem fria
das criações pra todo sempre escritas.

DIA DA CRIANÇA

Julgavas que este amor não encontrasse
pedras e espinhos pela estrada afora,
mas são os sofrimentos e a demora
o que fazem eterno o que é fugace.

Repara-me nos olhos e na face
para ver quanta mágoa me devora,
por não ter alma cândida e sonora
a fim de ser o que teu sonho amasse.

Deixemos de torturas e cansaços,
reclina-te serena nos meus braços,
confia em mim na maior esperança…

Faz de conta que nada mais existe,
então verás alguém que foi tão triste
convertido na mais alegre criança…

SONETO   ÍNTIMO

 Enfrenta teu destino sem alarde;
 que ninguém saiba o que te vai na mente…
 Não te lastimes, murmurando: “É tarde !”
 Esquece o teu passado, indiferente…

 Também não fujas, como vil covarde,
 à luta que te espera, e simplesmente
 pede ao Senhor que te proteja e guarde
 em Sua bondade infinda, onipotente.

 Encontrarás, enfim, sabedoria
 para atingir a meta projetada,
 sem falso orgulho, mágoa ou rebeldia;

 porque tua fé com força redobrada
 renascerá com flores de alegria,
 enfeitando pra sempre tua estrada.

CATULLO DA PAIXÃO CEARENSE
Soneto em homenagem póstuma – In Memoriam

Faz-me lembrar o tempo de menino,
no lar paterno, lá na velha aldeia,
com minha mãe, irmãos e irmãs, na ceia,
de noitezinha, ao bimbalhar do sino…

Depois, eu contemplava a lua cheia
e perguntava aos céus: qual meu destino,
neste mundo que roda e cambaleia,
com momentos de luz e desatino?!…

E ouvia a minha voz na voz do vento,
dizendo que eu tivesse paciência,
estudasse, aprendesse e na paixão

de adquirir maior conhecimento,
ingressasse no reino da sapiência…
Que lindo era o Luar do meu Sertão !…

SONETO DE UM CAVALEIRO TRISTE

O sol descai… Montado no alazão
eu sigo pensativo pela estrada,
ouvindo o triste mugir da manada
que procura abrigar-se no capão.

Horas de amor… horas que o coração
modula calmamente uma toada;
que a tarde vai descendo para o nada
e cheio de poesia fica o rincão.

Morre a tardinha e nasce então o sonho
que anima, que cativa, que reluz,
embora seja às vezes tão tristonho.

A noite vai descendo, foge a luz,
por toda parte um reluzir tardonho
e eu prossigo levando a minha cruz !

SONETO DE UM ANDARILHO

Eu vivo solitário e maltrapilho,
a caminhar por este mundo afora,
e levo a vida por um triste trilho,
boêmio sem amor e sem aurora.

Da solidão sou sempre um pobre filho,
e com imensa dor minh´alma chora,
quando lembro sozinho o nosso idílio,
aquele louco amor que tive outrora.

Hoje, tristonho e maltrapilho vivo,
da sociedade sempre longe, esquivo…
Apenas nas tabernas acho paz.

E lá, quando me afogo na bebida,
olvido a desventura desta vida
e penso, doido, que me amando estás.

SONETO ARDENTE
Aos poucos vou contando minha história
nos poemas, nas crônicas, nos versos
dos sonetos, das trovas… – merencória
poesia – todos por aí dispersos…

Relembrando os amores mais diversos
que passaram, bem sei, longe da glória
de se concretizarem ou perversos,
magoando a minha triste trajetória…

Lendo as páginas de outros sonhadores
que enfrentaram fracassos, dissabores,
eu me ponho a pensar no céu da vida

que me pudesse dar felicidade
e chego a bendizer esta saudade
como se aos beijos da mulher querida…

SONETO TRISTONHO

Que lindo é o modular do passaredo
que canta desde a aurora vir chegando
até que a tarde triste vá tombando
e a noite desça cheia de segredo.

Ai! quem me dera que eu cantasse ledo
sem estes prantos que me vão cegando
e quando a noite vier se aproximando,
cantar contente sem nenhum degredo !

Como meu peito já não quer cantar
e minha vida sem amor definha,
no verso derradeiro a chorar

te peço encantadora moreninha,
que quando a morte me vier buscar,
reza uma prece pela alma minha !

MATE NO GALPÃO

O mate amargo passa de mão em
mão e a gente se lembra de tropeadas
do destino que leva por estradas
desconhecidas, tristes, sem ninguém.

A cuia prateada me entretém,
escutando os causos dos camaradas
que fizeram de suas gauchadas
por terras que se somem pelo além.

Ruivo fogo crepita no galpão,
nobre abrigo dos tauras soberanos
que saudosos se ajuntam no rincão

a fim de recordar passados anos.
E a cuia do gostoso chimarrão
me é tristezas, saudades, desenganos…

SONETO DO FIM DO DIA

A noite vem descendo vagamente,
as estrelas no céu vão apontando,
a lua começa sua jornada urgente,
de um lado para outro vai passeando…

Quem nestas horas, de um amor ausente,
não fica triste a imensidão mirando,
e embora tantas vezes queira e tente
modular, de tristor fica chorando?!

Nesses momentos sempre é que a saudade
me desanima, me tortura, ingrata…
E eu me recordo, olhando a imensidade,

dos felizes passeios pela mata;
e a feroz aflição que então me invade
irrompe dentro em mim como cascata !

SONETO À MULHER MORENA

Linda manhã radiosa me convida
a prosseguir nos passos rumo ao mundo,
porque sonhar amando é tão profundo,
que mais e mais, também prolonga a vida !

Mas se eu pudesse ser um vagabundo,
sem conhecer a estrada percorrida,
com certeza, conceberia a lida
de procurá-la até em um submundo…

Eu sei que vou lhe amar a todo o instante,
com seu sorriso límpido e brilhante,
qual se fosse de Alencar – ´´A Iracema´´!…

E para consagrar meu preito à bela
morena, que não sai da minha tela,
eis o soneto que ainda é o poema !

FARRAPO

Levantou-se o gaúcho sobranceiro
no alto da coxilha verdejante,
carregava uma carga no semblante
dum tristor que seria o derradeiro.

A glória de lutar e ser galante:
o sonho que conduz o aventureiro.
A glória de ser livre e ser gigante:
o lema que conduz o pegureiro.

Este lema e este sonho se fundiram
e assim surgiu o nobre Farroupilha
que lutou com ousada galhardia,

porque a honra e a justiça escapuliram
da canhada e do topo da coxilha,
do pago em que ele viu a luz do dia !

QUANDO MURCHAR A PRIMAVERA

Quando murcharem as flores dos caminhos
e o peito calar-me indiferente
como a serena mudez dos passarinhos
em noite senil e permanente…

Órfão de afetos, insaciado de carinhos
caminharei tristonho de dolente,
buscando outras sensações em novos ninhos
como a cura ao meu amor fervente.

E nada há de curar a viva chaga
que deixaste a sangrar em meu desejo
ao provar a doçura do teu beijo

naquela tardinha rubra e vaga
e onde estiveres chorarás baixinho
a mágoa de deixar-me tão sozinho.

CANSAÇO

No corpo sentírás a lassidão
de uma canseira incrível, de um torpor
que te virá só para em ti depor
as esperanças que te morrerão…

E numa palidez verás, então,
teus olhos magoados pela dor,
vidrados sem o brilho sonhador
que te deixava tão alegre são…

Desejarás dormir nestes instantes.
O sono não virá dar-te um abraço.
Irás cantar, mas inda que tu cantes

passarás amarguras como passo
e enxergarás que em risos deslumbrantes
te sorrirá flamívolo cansaço…