sexta-feira, 14 de agosto de 2015

Aparício Fernandes (Trovas Circunstanciais) Parte 1




Existe um tipo de trovas de duração relativamente efêmera, às quais não se pode atribuir grande valor literário ou artístico, mas que nem por isso deixam de ser interessantes e dignas de menção. São as trovas de circunstância, que assim denominamos por se basearem em ocorrências ou costumes ocasionais. Neste aspecto estão incluídas as trovas de propaganda, as que utilizam gírias, as de brincadeira, visando determinado fato ou pessoa, as de exaltação a personalidades famosas (excetuamos desta categoria as trovas sobre Jesus Cristo), as que abordam temas como o petróleo, nomes de cidades, realizações governamentais, nomes de livros, etc. De um modo geral, não gostamos de trovas laudatórias, mas isso é apenas um ponto de vista pessoal, proveniente talvez do grande respeito que temos por todos os gêneros de Poesia, mormente pela Trova. Com o advento dos Jogos Florais e dos frequentes concursos de trovas, cujas festividades de encerramento reúnem um grande número de trovadores, esses encontros passaram a ser um campo fértil para as trovas de circunstância. Vejamos alguns exemplos.
     O poeta João Rangel Coelho (pai de Colbert Rangel Coelho, muito embora o velho Rangel faça questão de dizer que Colbert é que é filho dele) é um dos grandes campeões da trova no Brasil. Além disso, quando lhe dá na veneta, torna-se tão mordaz que, junto dele, a famosa "boca de inferno" de Gregório de Matos seria uma mísera boca de fogareiro. Não menos ágil de pensamento é o poeta e trovador Aristheu Bulhões, residente em Santos. Sendo excelente repentista, o Aristheu, mal acaba de declamar uma trova que vem de improvisar, e já está mentalmente compondo outra quadrinha para dizer em seguida.
     Certa vez, no ônibus que nos levava para um dos Jogos Florais de Nova Friburgo, João Rangel Coelho estava conversando com a queridíssima (de nós todos) trovadora Magdalena Léa, que, segundo o A. A. de Assis, é o único broto com mais de cinquenta aninhos. Na ocasião, Magdalena mostrava ao Rangel uma fotografia de suas filhas (dela). De repente, o Aristheu interrompe a conversa para dizer ao Rangel a centésima trova que havia improvisado. Este, que escutara pacientemente as outras     noventa e nove, não aguentou mais. Virando-se para Magdalena e apontando a fotografia, saiu-se com esta:
As tuas filhas são belas,
são uns primores de Deus.
Eu adoro os ares delas,
mas detesto os aris...teus!
     Ainda em Friburgo, nos I Jogos Florais daquela cidade, em 1960, calhou de ficarem no mesmo hotel as trovadoras Helena Ferraz, Cléa Marina e Augusta Campos. A expansividade era natural, contrastando com o silêncio reticencioso de uma velha reprodução da Mona Lisa de Leonardo da Vinci, ali pendurada à guisa de ornamentação. Augusta Campos, poetisa cearense residente no Rio, verdadeiro azougue em matéria de trovas de circunstância, lançou ao quadro um olhar desconfiado e no dia seguinte comentava:
Na parede, a Mona Lisa,
vendo a nossa animação,
fica assim meio indecisa,
sem saber se ri ou não.
     Anos depois, a mesma poetisa estava assistindo a uma reunião
da antiga seção da Guanabara do Grêmio Brasileiro de Trovadores, quando entra na sala, triunfalmente, uma trovadora cujo vestido causaria complexo de Inferioridade ao mais rutilante dos arco-íris. Na mesma hora, Augusta Campos sapecou esta quadrinha:
Margarida vai passando
no seu traje original.
Pensa que está abafando,
parece um pavão real...
Naturalmente, mudamos o nome da poetisa "homenageada", para evitar embaraçosas acareações.
     Vamos a mais um exemplo de trova de circunstância. Nosso querido amigo e confrade Adalberto Dutra de Rezende, mineiro de Cataguases, radicado no Paraná, trovador de alto nível e advogado ilustre, é, sem sombra de dúvida, um homem decidido. Imaginem que, alguns dias antes da semana santa do ano de 1962, deixou a paisagem plácida de Bandeirantes (onde reside)e veio ao Rio apenas para comunicar-me e também ao Colbert Rangel Coelho, Zálkind Piatigorsky e José Maria Machado de Araújo, que havia organizado em Bandeirantes, sob os auspícios do Lions e do Rotary Club, uma Noite de Autógrafos, na qual deveríamos autografar nossos livros, para o público local. A festa seria... no sábado de aleluia! Chantageados pela amizade, não houve como alegar a exiguidade do tempo. Fomos. Em lá chegando — como diriam os puristas — notamos que o Zé Maria estava meio preocupado e até mesmo arredio. É que sua esposa estava nos preparativos finais para a chegada do primeiro herdeiro da casal. Sabendo disto e aproveitando a deixa proporcionada por uma das melancólicas e solitárias caminhadas do trovador lusitano, compusemos esta quadrinha, de parceria com o nosso anfitrião e também com Zálkind Piatigorsky;
Lá se vai o Zé Maria,
cabisbaixo, andando a pé,
pensando: será Maria?
cismando: será José?
     Pouco tempo depois nascia Maria Lúcia, primogênita do casal Machado de Araújo.
     Censurando os três jotas (Juscelino, Jânio e João Goulart) e fazendo alusão às letras iniciais de seus respectivos sobrenomes surgiu certa vez, entre o povo, uma trova muito bem feita, embora bastante ferina. Além de ser de circunstância, é também anônima, pois não se sabe quem a compôs. Ei-la:
Em três anos — quase nada! —
os três jotas: K — Q — G,
fizeram da pátria amada
esta coisa que se vê.
     Em vez de coisa, a palavra era outra, que preferimos não publicar. Aliás, nosso interesse pela quadrinha é simplesmente trovadoresco, sem qualquer inclinação política.
     Certa vez, minha esposa (ainda éramos namorados), quando lecionava num Grupo Escolar, em Minas, viu-se às voltas com um singelo problema: devia  conseguir uma     trova que falasse em alimentação, para ser recitada por um dos seus alunos. Não conseguindo encontrar logo a tal trova, ela mesma fez esta oportuna quadrinha, que salvou a situação, e cuja autoria modestamente atribuiu a um "poeta desconhecido". Eis a trova, perfeitamente caracterizada como "de circunstância", que um de seus pequenos alunos recitou com a ênfase e os gestos de praxe:
Gosto muito de legumes,
verdura e frutas também.
Como tudo sem queixumes,
sou forte como ninguém!
     No dia 21 de novembro de 1965, como parte das festividades dos Primeiros Jogos Florais da Guanabara, foi oferecido aos trovadores um almoço no "Vale do Paraíso Campestre Clube", localizado em Jacarepaguá. Surgiu então a ideia de se fazer entre os presentes um concurso-relâmpago, tendo como tema o nome do clube. Cada um improvisou a sua trova e a poetisa Lourdes Povoa Bley alcançou o 1.° lugar com esta trova de circunstância:
Esta soberba mansão
tem tudo de que preciso.
Deixo, pois, meu coração
no "Vale do Paraíso".
     Quando, no Ceará, desmoronou a barragem do açude de Orós, fazendo inúmeras vítimas,  as circunstâncias me inspiraram esta quadrinha, que dediquei ao bravo povo cearense;
Se a Desgraça conhecesse
a fibra que existe lá,
já teria desistido
de vencer o Ceará!
     Certa vez, conversavam alguns trovadores quando notaram que um pouco adiante, dois padres trocavam ideias sobre o controvertido assunto do celibato sacerdotal. Imediatamente, o trovador A. A. de Assis aproveitou a circunstância para ironizar;
Parece incrível, de fato:
– os padres, neste momento,
lutam contra o celibato,
e nós — contra o casamento!
     Não há poeta ou trovador que alguma vez não tenha sido perseguido por um pai ou mãe, pedindo versos para os seus rebentos. Certa vez tive que improvisar, para um cartão de aniversário, esta quadrinha de circunstância, horrivelzinha como ela só, mas que o orgulhoso papai achou uma beleza:
Hoje eu completo um aninho
e estou contente, porque
vou repartir meu bolinho,
dando um pedaço a você.
     Em outra ocasião, Colbert Rangel Coelho, integrando um grupo de trovadores que viajavam para participar de uns Jogos Florais, teve a sorte de, no ônibus, sentar-se ao lado de uma moça muito bonita, mas calada e compenetrada. Colbert ficou quietinho mas, na primeira parada, ao descer para um cafezinho, piscou o olho e nos segredou:
Eu sentado na beirada,
ela junto da janela.
— Graças às curvas da estrada,
vou sentindo as curvas dela...
     Em Pouso Alegre,MG, fiz uma trova de circunstância que passou a figurar no cardápio da Cantina Uirapuru, e que me valeu uma refeição de graça:
Se você está com fome,
não faça como um zulu!
— Civilizado só come
na Cantina Uirapuru!...
     Em 1969, na cidade mineira de Juiz de Fora, quando do encerramento de um concurso de trovas promovido pelo Lions Clube local, estiveram presentes duas     grandes   poetisas  portuguesas; Maria Helena e Maria Amélia Novais. No banquete oferecido aos trovadores, Elton Carvalho, que é um excepcional "fazedor" de trovas de circunstância, sentou-se entre as duas referidas poetisas. Lá pelas tantas, dirigindo-se aos demais trovadores, que se haviam localizado na outra extremidade da mesa, saiu-se com esta belíssima trova, onde há uma oportuna alusão ao rio Tejo, que banha a capital portuguesa:
Amigos, não os invejo,
tão distantes, isolados:
– estou feliz como o Tejo,
com Portugal dos dois lados.
     O    Desembargador   Dr.  Luís Antônio    de Andrade,     uma  das maiores culturas jurídicas de nosso país, certa vez ofertou ao poeta Manuel José Lamas um exemplar de nossa coletânea 'Trovadores do Brasil", dedicando-o com esta trova de circunstância, cujo último verso é o seu próprio nome, um setissílabo perfeito:
Ai vão, meu caro Lamas,
como prova de amizade,
as trovas que tanto amas!
Luis Antônio de Andrade,
     Eis uma trova de circunstância laudatória, feita por Inês Gaspar Palácio, homenageando a cidade de Maringá {PR):
Maringá! Quanta esperança
se contempla em teu caminho,
pois teu lema é segurança,
trabalho, fé e carinho!
     O poeta Ary de Andrade refere-se a um esperto motorista de caminhão que, ao longo das estradas, "aplicava" sempre esta trova, a qual servia tanto para comover os credores como para as suas conquistas amorosas de Romeu perambulante:
Você não tem coração!
Se tivesse, não faria
que um chofer sem um tostão
vivesse nesta agonia!
continua…
Fonte: Aparício Fernandes. A Trova no Brasil: história & antologia. Rio de Janeiro/GB: Artenova, 1972

Nenhum comentário: