segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Silvana da Rosa (A mulher escritora e personagem nos contos de fadas) Parte II

1.2 Origens: obras primeiras e seus enfoques

E como encontraram,
Tal qual encontrei;
Assim me contaram,
Assim vos contei!...
CASCUDO, 2004, p. 23.

                                                                 
      Observa-se que a data exata em relação às origens dos contos não se sabe bem ao certo precisar, uma vez que, a partir do momento em que o homem descobriu e aprendeu as diferentes formas de comunicação, o seu universo interno e externo adquiriu forma, cor, simbologia e, assim, migrou como em ondas sonoras, acentuando o imaginário dos povos que no mundo habitavam. Consoante a isso, os registros escritos remontam a séculos antes de Cristo, tendo-se, como exemplo, o século II a.C, em Amor e Psiquê, do escritor latino Apuleio, uma vez que nesse já havia indícios que, posteriormente, poderiam constituir os contos de fadas e, dentre eles, A bela adormecida, A Bela e a Fera, entre outros. No entanto, o que realmente se comprova é que as origens dos contos de fadas provêm de fontes célticas.

      Novaes Coelho cita que Calila e Dimna, obra difundida em inúmeras versões pelo mundo, teve, posteriormente, Abn Al-Mukafa como responsável pela versão e registro árabe fiel da coletânea, no século XVIII, uma vez que “resulta de narrativas pertencentes originalmente ao Pantshatantra (apólogos usados pelos pregadores budistas, a partir do século V) e à primitiva    epopeia indiana Mahabarata, escrita entre os séculos IV a.C. e IV d.C.)” (COELHO, 1987, p.17).

Abdallah, Abn Al-Mukafa, significa o filho do homem de mão atrofiada, ou seja, seu pai recebeu esse castigo em torturas por não se portar de acordo com os preceitos muçulmanos. Abn Al-Mukafa nasceu em Firuzabad, na Pérsia, por volta do ano 724, porém viveu na cidade iraquense de Bassora, conforme Mansour Challita. (1967, p. 206)

      Mansour Challita acrescenta ainda qual o momento histórico vivido na escritura da obra Calila e Dimna, bem como a sua avaliação a respeito da mesma:

A lenda faz remontar a gênese desse livro, numa versão hindu, à época de Alexandre. Dessa data até Abn Al-Mukafa, estende-se um milênio de lutas e tormentas, durante o qual a obra evoluiu e aprimorou-se: o que explica, sem dúvida, a riquíssima experiência política e humana nela concentrada. Assim, Calila e Dimna se distingue por três superioridades: é uma das maiores obras da literatura árabe; é uma das grandes obras da ciência política; é uma das três maiores coletâneas de fábulas de todos os tempos: igual, em beleza, às fábulas de Esopo e La Fontaine, superior a elas em sabedoria e profundidade. (CHALLITA, 1967, p. 207)
                     
      Calila e Dimna pode ser percebido de duas formas, como um tratado de política ou como um receituário de boa conduta. A obra é composta por vinte e seis narrativas e, conforme Novaes Coelho:

O fio condutor de cada grupo de narrativas (= um livro) é “Dabshalim, rei da Índia,” que pede uma estória a “Báidaba, príncipe dos filósofos,” para ilustrar uma situação “exemplar”: os males da intriga, do ciúme ou da inveja; a ambição desmedida; a precipitação imprudente no agir; a irreflexão das palavras, etc. (COELHO, 1991, p.16)
                     
A referida obra traz como personagens principais dois animais, os chacais, que agem de acordo com as características humanas. Estes se denominam Calila e Dimna, atribuindo o nome à coletânea.

Os dois animais representam a personalidade humana, ora voltada para o bem-fazer e para as virtudes, ora voltada para as atitudes pecaminosas. Durante essas variações de temperamento, o conflito da narrativa se instala, quando o personagem chacal Dimna mata um boi. Ato considerado gravíssimo, pois esse animal é sagrado na Índia.

Contudo, Dimna só realiza esse ato grotesco por ser um mau-caráter, ambicionando o que não lhe é devido. Já Calila representa o equilíbrio, a sabedoria, o conhecimento, é o exemplo de integridade que a maioria dos seres humanos deseja alcançar. Em suma, a narrativa representa a complexidade da mente humana.

Conforme Novaes Coelho, Calila representa o homem prudente que se contenta com as circunstâncias em que vive; Dimna representa o ambicioso e astuto que está constantemente desejando ultrapassar-se e se igualar aos poderosos. Neles, estão simbolizadas as duas tendências polares que desde sempre diferenciaram os homens: a que os leva a se contentarem em satisfazer suas necessidades básicas, materiais... e a que os incita a almejarem planos mais altos de realização pessoal (seja através da astúcia e da ação nefasta; seja através da Sabedoria, Conhecimento, grandes ações, conquista de posições superiores aos demais, etc. (COELHO,1991, p.17, reticências da escritora)
                     
Já segundo Menendez Pelayo, em Orígenes de la novela, citado por Novaes Coelho, a moral da referida obra não tem nada a acrescentar aos que o leem, porém atribui às vicissitudes, como a astúcia e a manha, valor indevido.

A moral de Calila e Dimna não é, por certo, muito elevada nem muito severa. Na fábula tem predominado, desde sua mais remota origem, um certo sentido utilitário, um conceito de vida muito pouco desinteressado e que concede mais do que seria justo à astúcia e à manha. (PELAYO apud COELHO, 1991, p. 17)
                     
De acordo com a moral de Calila e Dimna, há uma fábula tunisiana que se assemelha à mesma. A raposa e a gazela, assim denominada, em As mais belas páginas da literatura árabe: amor, humorismo, sabedoria, espiritualidade, (p. 279– 280), a fábula aborda como eixo temático a busca por água, uma vez que a raposa tenta aproveitar-se da ingenuidade da gazela, objetivando sorver sozinha toda a água constante em um poço. Contudo, a raposa que se precipita à frente do dócil animal, é impedida de realizar seu plano, tendo em vista que os animais da floresta cortam-lhe o caminho, atrasando-a. Em consequência disso, a gazela chega primeiro e desfruta daquela água cristalina. Provavelmente, essas narrativas sejam reminiscência das fábulas do Esopo, muito anteriores à tunisiana, uma vez que em Esopo encontra-se a fábula do lobo e da ovelha, sendo que o lobo trata de culpar a ovelha por turvar a água que ele quer beber sozinho.

Constata-se então, assim como em Calila e Dimna, que a astúcia e a manha são valores negativos que jamais devem ser cultuados, vindo a trazer sofrimento a quem os pratica.

Novaes Coelho salienta ainda que dentre a coletânea de narrativas que compõem Calila e Dimna há, “pelo menos duas, que são consideradas precursoras dos contos de fadas: O anacoreta e a rata e Ilaz, Chadarm e Irakht” (1987, p.19). Além disso, faz-se necessário ressaltar que Calila e Dimna não é uma obra única, mas sim uma coleção, dividida em três livros: Pantschatantra, Mahabarata e Vischno Sarna. Coelho cita ainda as histórias que compõem cada um desses livros:

1. Pantschatantra – As Cinco Histórias, englobando as estórias: “O Leão e o Boi”; “Os Corvos e os Corujões”; “A Pomba-de-Colar”; “O Corvo, o Rato, o Cágado e o Veado”; “O Macaco e o Cágado” e “O Eremita e o Mangusto”[...]

2. Mahabarata, com três tábuas: “O Rato e o Gato”; “O Rei e a Ave Fanza” e “O Leão e o Chacal”. 3.Vischno Sarna, com a estória da “Cobra e o Rei dos Sapos”. (COELHO, 1991, p. 26)
                     
Sendebar ou O livro dos enganos das mulheres é também originário da Índia, de autoria do escritor hindu Sendabad, e é a segunda obra oriental citada por Coelho como gênese dos contos de fadas. Essa obra foi traduzida para muitas línguas entre os séculos IX e XIII e apresenta a mesma estrutura temática e elementos que se desenvolvem a partir da tríplice aliança paixão-ódio-sabedoria, características essas próprias de um conto de fadas, de acordo com a autora:

[...] embora não tenha fadas como personagens, pode ser incluído entre os precursores do conto de fadas, uma vez que o seu conflito básico é de natureza existencial: a Paixão amorosa e a Sabedoria da palavra são postos em jogo para a preservação ou a destruição de uma vida. (COELHO, 1987, p. 22, grifos da autora)

Convém salientar que a Índia foi o berço de duas preciosidades que delinearam o mundo literário, uma vez que, a partir dessas obras iniciais, inúmeras outras surgiram, as quais deram continuidade ao ciclo dos contos de fadas.

Quanto à segunda obra que serviu como semente aos contos de fadas, Novaes Coelho refere-se à origem escrita de Sendebar:

A menção mais remota da coletânea dessa obra é a de Almasudi, no século X, em sua famosa compilação Prados de Ouro, onde, ao tratar dos antigos reis da Índia, menciona o filósofo hindu, Sendabad, autor do livro Os Sete Visires, o Pedagogo, o Jovem Príncipe e a Mulher do Rei, - título que corresponde exatamente ao argumento do Sendebar atual. [...] Foi descoberto também um poema persa, traduzido para o árabe, Baktiar– Nameh (ou História dos dez vizieres), que é idêntico às narrativas de Sendebar, e entrou em algumas versões das Mil e Uma Noites. (COELHO, 1991, p. 26-27)
                     
      Sendebar possui vinte e seis narrativas que se entrelaçam ao mesmo tempo, sendo que cada história é uma novidade, surpreendendo e envolvendo a quem a lê. Esse livro alcançou a Península Ibérica juntamente com Calila e Dimna, porém, o que realmente deve ser ressaltado é que, a partir de Sendebar se passou a conceber a mulher como portadora de características pouco virtuosas, em consequência do enredo tratado pela referida obra. Nela já se observa de antemão a presença de uma madrasta, mentirosa e ambiciosa, esposa de um rei. O rei, por sua vez, tinha um filho já adulto, fruto de seu primeiro casamento. A rainha-madrasta, talvez apaixonada pelo seu enteado, ou objetivando somente prejudicá-lo, ou ainda, apaixonada e rejeitada pelo jovem, querendo vingar-se, arquitetou um astuto plano. Acusou-o de ter tentado violentá-la. Assim, o pai-rei, seguindo as leis vigentes da época e, além do mais, já que o fato havia se tornado público, condenou o filho à morte. A penalidade seria a execução do filho-príncipe, a qual foi adiada por sete dias. Durante esse tempo, a defesa, representada por sete sábios, e a acusação, pela madrasta-rainha, julgavam o caso. Enquanto isso, o príncipe-enteado a tudo assistia calado. Essa atitude foi-lhe ordenada, pois os sábios previram que um grande mal o cercaria se alguma palavra dissesse. No oitavo dia, o desfecho acontece. Como o prazo para o perigo acontecer já havia expirado, o príncipe, então, defende-se e a rainha-madrasta tem um final infeliz, tal como em A Bela dormindo no bosque de Perrault e Sol, Lua e Tália de Giambattista Basile, uma vez que os sentimentos e as atitudes das velhas-rainhas também se assemelham, bem como a omissão e fraqueza de caráter do rei.

      Posteriormente, a obra Sendebar fez-se semente em uma terra fértil, repleta de homens sedentos por contarem suas histórias. A partir dessa obra surgiu o conto As aventuras de Simbad, o marujo, inserido em As mil e uma noites. Na verdade, a obra As mil e uma noites é o somatório das duas obras origem Calila e Dimna e Sendebar, pois apresenta a mesma estrutura narrativa das anteriores ou “a idêntica estrutura-em-cadeia”, como afirma Novaes Coelho (1991, p. 20).

      Marina Warner, em um movimento de busca do passado, em Da fera à loira: sobre contos de fadas e seus narradores, também cita a origem dos contos e quais as obras que se constituíram a partir da obra embrionária.

A Índia, por exemplo, é citada como a fonte de uma coletânea seminal de setenta contos, o Panchatantra (os cinco livros), que foi compilado por volta do século VI a. C. e atribuída a Bidpai (ou Pilpay), um lendário sábio brâmane. Jean de La Fontaine, enquanto passeava pelas margens do Sena em Paris na década de 1660, encontrou um livro de autoria de Bidpai, comprou-o, e os contos que leu tornaram-se uma das fontes de inspiração fundamentais de suas próprias fábulas, que comumente são consideradas o apogeu da urbanidade gálica [...] (WARNER, 1999, p. 20)
                     
      De acordo com Warner, o Panchatantra foi compilado por um sábio brâmane por volta do século VI a. C. Novaes observa que as narrativas contidas no mesmo passaram a ser pregadas nos primeiros séculos d.C. Verificou-se ainda que os contos de fadas se originaram de povos indo-europeus, os quais eram oriundos do sudoeste da Alemanha, mas foram expulsos de seu território pelos romanos, entre os séculos II a. C e o I d. C, vindo esses povos a se espalharem pela Europa e Ásia e migrarem para diversos países. Além disso, constatou-se que as obras Calila e Dimna e Sendebar foram as primeiras que deram origem aos contos de fadas de que se tem registro na história.

      A partir dessas duas obras, consideradas mães dos contos de fadas, torna-se possível inferir que, através delas, um mundo primitivo está representado, onde a lei do mais forte é considerada fato comum. Sendo assim, escritores e estudiosos, embasados na análise dessas obras embrionárias e em suas ramificações, buscaram a significação dos contos procurando, dessa forma, adentrar na trama atemporal, fictícia e real humanas, registrada nos contos de fadas.

continua…

Fonte:
Silvana da Rosa. Do tempo medieval ao contemporâneo: o caminho percorrido pela figura feminina, enquanto escritora e personagem, nos contos de fadas. Dissertação de Mestrado em Letras. Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), 2009

Jorge Luis Borges (A Rosa de Paracelso)

Em sua oficina, que abarcava os dois cômodos do porão, Paracelso pediu a seu Deus, a seu indeterminado Deus, a qualquer Deus, que lhe enviasse um discípulo.

Entardecia. O escasso fogo da lareira arrojava sombras irregulares. Levantar-se para acender a lâmpada de ferro era demasiado trabalho. Paracelso, distraído pela fadiga, esqueceu-se de sua prece. A noite havia apagado os empoeirados alambiques e o atanor quando bateram à porta. O homem, sonolento, levantou-se, subiu a breve escada de caracol e abriu uma das portadas. Entrou um desconhecido. Também estava muito cansado. Paracelso lhe indicou um banco; o outro sentou-se e esperou. Durante um tempo não trocaram uma palavra.

O mestre foi o primeiro que falou:

— Lembro-me de caras do Ocidente e de caras do Oriente — falou, não sem certa pompa — Não me lembro da tua. Quem és e que desejas de mim?

— O meu nome não importa — replicou o outro — Três dias e três noites tenho caminhado para entrar em tua casa. Quero ser teu discípulo. Trago-te todos os meus bens — e tirou um taleigo que colocou sobre a mesa. As moedas eram muitas e de ouro.

Fê-lo com a mão direita. Paracelso lhe havia dado as costas para acender a lâmpada. Quando se voltou, viu que na mão esquerda ele segurava uma rosa, que o inquietou. Recostou-se, juntou as pontas dos dedos e falou:

— Acreditas que sou capaz de elaborar a pedra que transforma todos os elementos em ouro e ofereces-me ouro. Não é ouro o que procuro, e se o ouro te importa, não serás meu discípulo.

— O ouro não me importa — respondeu o outro. — Essas moedas não são mais do que uma parte da minha vontade de trabalho. Quero que me ensines a Arte; quero percorrer a teu lado o caminho que conduz à Pedra.

Paracelso falou devagar:

— O caminho é a Pedra. O ponto de partida é a Pedra. Se não entendes estas palavras, nada entendes ainda. Cada passo que deres é a meta.

O outro o olhou com receio. Falou com voz diferente:

— Mas, há uma meta?

Paracelso riu-se.

— Os meus difamadores, que não são menos numerosos que estúpidos, dizem que não, e me chamam de impostor. Não lhes dou razão, mas não é impossível que seja uma ilusão. Sei que há um Caminho.

— Estou pronto a percorrê-lo contigo, ainda que devamos caminhar muitos anos. Deixa-me cruzar o deserto. Deixa-me divisar, ao menos de longe, a terra prometida, ainda que os astros não me deixem pisá-la. Mas quero uma prova antes de empreender o caminho.

— Quando? — falou com inquietude Paracelso.

— Agora mesmo — respondeu com brusca decisão o discípulo.

Haviam começado a conversa em latim; agora falavam em alemão. O garoto elevou no ar a rosa.

— É verdade — falou — que podes queimar uma rosa e fazê-la ressurgir das cinzas, por obra da tua Arte. Deixa-me ser testemunha desse prodígio. Isso te peço, e te dedicarei, depois, a minha vida inteira.

— És muito crédulo — disse o mestre — Não és o menestrel da credulidade. Exijo a Fé!

O outro insistiu.

— Precisamente por não ser crédulo, quero ver com os meus olhos a aniquilação e a ressurreição da rosa.

Paracelso a havia tomado e ao falar, brincava com ela.

— És um crédulo — disse. — Perguntas-me se sou capaz de destruí-la?

— Ninguém é incapaz de destruí-la — falou o discípulo.

— Estás equivocado. Acreditas, porventura, que algo pode ser devolvido ao nada? Acreditas que o primeiro Adão no Paraíso pode haver destruído uma só flor ou uma só palha de erva?

— Não estamos no Paraíso — respondeu teimosamente o moço — Aqui, abaixo da lua, tudo é mortal.

Paracelso se havia posto em pé.

— Em que outro lugar estamos? Acreditas que a divindade pode criar um lugar que não seja o Paraíso? Acreditas que a Queda seja outra coisa que ignorar que estamos no Paraíso?

— Uma rosa pode queimar-se — falou, com insolência, o discípulo.

— Ainda fica o fogo na lareira — disse Paracelso — Se atiras esta rosa às brasas, acreditarías que tenha sido consumida e que a cinza é verdadeira. Digo-te que a rosa é eterna e que só a sua aparência pode mudar. Bastar-me-ia uma palavra para que a visse de novo.

— Uma palavra? — perguntou com estranheza o discípulo — O atanor está apagado e estão cheios de pó os alambiques. O que farías para que ressurgissem?

Paracelso olhou-o com tristeza.

— O atanor está apagado — reiterou — e estão cheios de pó os alambiques. Nesta etapa de minha longa jornada uso outros instrumentos.

— Não me atrevo a perguntar quais são — falou o moço, deixando Paracelso na dúvida se foi com astúcia ou com humildade. E continuou — Falastes do que usou a divindade para criar os céus e a terra. Falastes do invisível Paraíso em que estamos e que o pecado original nos oculta. Falastes da Palavra que nos ensina a ciência da Cabala. Peço-te, agora, a mercê de mostrar-me o desaparecimento e o aparecimento da rosa. Não me importa que operes com alambiques ou com o Verbo.

Paracelso refletiu. Depois disse:

— Se eu o fizesse, dirias que se trata de uma aparência imposta pela magia dos teus olhos. O prodígio não te daria a Fé que buscas: Deixa, pois, a Rosa.

O jovem o olhou, sempre receoso. O mestre elevou a voz e lhe disse:

— Além disso, quem és tu para entrar na casa de um mestre e exigir um prodígio? Que fizeste para merecer semelhante dom?

O outro replicou, temeroso:

— Já que nada tenho feito, peço-te, em nome dos muitos anos que estudarei à tua sombra, que me deixes ver a cinza, e depois a Rosa. Não te pedirei mais nada. Acreditarei no testemunho dos meus olhos.

Tomou com brusquidão a rosa encarnada que Paracelso havia deixado sobre a cadeira e a atirou às chamas. A cor se perdeu e só ficou um pouco de cinza. Durante um instante infinito, esperou as palavras e o milagre.

Paracelso não havia se alterado. Falou com curiosa clareza:

— Todos os médicos e todos os boticários de Basiléia afirmam que sou um farsante. Talvez eles estejam certos. Aí está a cinza que foi a rosa e que não o será.

O jovem sentiu vergonha. Paracelso era um charlatão ou um mero visionário e ele, um intruso que havia franqueado a sua porta e o obrigava agora a confessar que as suas famosas artes mágicas eram vãs.

Ajoelhou-se, e falou:

— Tenho agido de maneira imperdoável. Tem-me faltado a Fé que exiges dos crentes. Deixa-me continuar a ver as cinzas. Voltarei quando for mais forte e serei teu discípulo e no final do Caminho, verei a Rosa.

Falava com genuína paixão, mas essa paixão era a piedade que lhe inspirava o velho mestre, tão venerado, tão agredido, tão insigne e portanto tão oco. Quem era ele, Johannes Grisebach, para descobrir com mão sacrílega que detrás da máscara não havia ninguém? Deixar-lhe as moedas de ouro seria esmola. Retomou-as ao sair.

Paracelso acompanhou-o até ao pé da escada e disse-lhe que em sua casa seria sempre bem-vindo. Ambos sabiam que não voltariam a ver-se. Paracelso ficou só. Antes de apagar a lâmpada e de se recostar na velha cadeira de braços, derramou o tênue punhado de cinza na mão côncava e pronunciou uma palavra em voz baixa. A Rosa ressurgiu.

Fonte:
Pequena Antologia para se Ler Jorge Luis Borges. Digital Source.

domingo, 29 de novembro de 2015

A. A. de Assis (Revista Virtual de Trovas Trovia - n. 188 - dezembro de 2015)






Fiz trovas para vencer,
mas já me dei por vencido.
Ganhar... é saber perder,
sem merecer ter perdido!
Ademar Macedo – RN
-
Xepeiro de olhos tristonhos,
à noite, exausto e sozinho,
cato no chão dos meus sonhos
a xepa do teu carinho.
Antônio Roberto Fernandes
-
Neste mundo desumano,
em que brinquei de sonhar,
fui simples bola de pano
para o destino chutar!...
Célio Grünevald
-
Natal... repicam os sinos...
banha-se o mundo de luz...
Há nos lábios dos meninos
o sorriso de Jesus!
Colbert Rangel Coelho
-
Creio, pensando em Jesus
e em São Francisco também,
que existe um arco de luz
ligando Assis a Belém!
David de Araújo
-
Bendita a mãe que gerou
e traz seu tesouro ao seio.
– Mais sublime a que aceitou
ser mãe do tesouro alheio!
Iraci do Nascimento e Silva
-
Se te trato com rudeza,
com acrimônia, azedume,
é que Deus te deu beleza
e depois me deu ciúme!
João Felício dos Santos
-
Dirceu, no fim da existência,
no exílio pensa e tem dó:
– Que valeu a Inconfidência,
se Marília ficou só?...
José C. de Lery Guimarães
-
Bondade!... Bem pouca gente
quer imitar as raízes,
que lutam, secretamente,
fazendo as rosas felizes!
Luiz Otávio
-
Não tenho calma!... Não posso
esquecer tão de repente
o grande amor que foi nosso
e hoje em dia é meu somente...
Nydia Iaggi Martins
-
Passou... bonita de fato!
E o mar, ao vê-la tão bela,
sentiu não ser um regato
para correr atrás dela...
Orlando Brito

-
Fugindo pela janela,
o “dom juan” quis “dar no pé”.
– Um fantasma!, gritou ela.
E o marido: – Agora é!
Angélica Villela Santos
-
Foi fofoqueira a danada,
até que enfim se curou...
– Agora é muda, coitada,
a língua dela gastou!...
Clenir Neves Ribeiro – RJ
-
Foi um Tarzan bem dotado
e, hoje, velho, causa dó:
vive na rede deitado
e já nem usa o cipó!
Edmar Japiassú Maia – RJ
-
O terapeuta sugere:
– “Apimente” a relação!
Mas a mulher interfere:
– “Tô” fora!... Pimenta, não!
Lucília Decarli – PR
-
Quando, dengosa, tu piscas
os teus olhinhos assim,
não precisas de outras iscas,
esse anzol cuida de mim...
Nélio Bessant – SP
-
Vermelho igual ao tomate,
meu coração é um bife:
quanto mais alguém lhe bate,
mais amolece o patife.
Orlando Woczikosky – PR
-
Mostra o sábio o que destaca
do burro a paca, e sussurra:
– é que o burro sempre empaca,
e a paca jamais emburra...
Osvaldo Reis – PR
-
Com a bagunça rolando,
sem ter mais o que falar,
chilique, de vez em quando,
bota tudo no lugar!
Selma Patti Spinelli – SP
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 -
Benditas sejam as vidas
que, alegres, serenas, santas,
vivem a vida envolvidas
em levar vida a outras tantas!
A. A. de Assis – PR
-
Saudade volta, gritando,
quando tu, amor, te vais;
saudade fica morando,
e não se vai nunca mais.
Adélia Woellner – PR
-
Teu lascivo corpo é a pista
onde eu ganho, com ardor,
o prêmio de recordista
na maratona do amor!
Aílto Rodrigues – RJ
-
Eu vou plantar um jardim,
mas não em lugar qualquer;
vou plantar dentro de mim
e atrair minha mulher.
Amilton Monteiro – SP
-
Fez-se em verso o meu amor
e virou trova o meu verso,
que tem muito mais sabor
se em sua doçura é imerso.
André Ricardo Rogério – PR
-
Vejo uma luz lá no céu,
por certo é teu paraíso!...
– Minha vida foi-se ao léu,
foi-se também sorriso.
Ari Santos de Campos – SC
-
Ela é esplêndido presente,
eu já estou no fim do prazo...
Mas que bom quando o nascente
faz bilu-bilu no ocaso!...
Arnaldo Ari – RJ
-
Transformando em agasalho,
a ternura que te invade,
sou quase nada e não valho
do teu terço nem  metade.
Benedita Azevedo – RJ
-
Quando a saudade me embala,
o teu nome a repetir,
o silêncio tanto fala,
que não me deixa dormir!
Carolina Ramos – SP
-
Ter sempre a palavra certa
e a mão em paz estender;
ter a mente sempre aberta:
isso se chama viver!
Conceição Assis – MG
-
Frondosa árvore, bendita,
que antepassados plantaram.
Árvore alegre, bonita,
de ti saudades ficaram!
Cônego Benedito Telles – PR
-
Era un niño silencioso...
Con la mirada me amaba,
y con un beso amoroso
¡sin tocarme me besaba!
Cristina O. Chávez – USA
-
Passa o dia, morre a tarde
nos braços da solidão...
Finda o sonho sem alarde
nas cordas do violão!
Dáguima Verônica – MG
-
Olhei a foto atrevida
de uma cena de nós dois:
Era o retrato da vida,
tão diferente depois!
Delcy Canalles – RS
-
Não sou ave, nem sou peixe,
nunca aprendi a nadar,
mas peço a Deus que me deixe
um dia desses voar!
Diamantino Ferreira – RJ
-
Agora, que tu partiste,
sinto a força da verdade
do grito de dor que existe
no silêncio da saudade.
Domitilla Borges Beltrame – SP.
-
Sou livre, sem restrição,
mas, afinal, para quê?
Mil vezes a escravidão...
mas juntinho de você.
Dorothy Jansson Moretti – SP
-
Presença no firmamento
em noite clara, estrelada:
– É o amor de Deus que, atento,
nos guarda na madrugada.
Eliana Jimenez – SC
-
É no conflito da briga
que notamos como agem:
os falsos, com fel e intriga;
os bons, com brio e coragem.
Eliana Palma – PR
-
A bela flor de papel
que tu me deste outro dia
foi tão perfeita e fiel
que o cheiro dela... eu sentia!
Eva Yanni Garcia – RN
-
Deus, garimpeiro maior,
vai, no seu mister profundo,
salvando o bom e o melhor
que há nos garimpos do mundo.
Flávio Stefani
-
Revendo entulhos e tacos,
na tapera dos meus sonhos,
chorei por ver tantos cacos
dos meus dias mais risonhos!
Francisco Garcia – RN
-
Lágrimas, gotas perfeitas,
De orvalho por sobre a flor,
São saudades liquefeitas
Nos versos do trovador!
Francisco Pessoa – CE
-
Mesmo que a tantos iluda
com diversas abordagens,
história de amor não muda,
mudam só os personagens.
Gilvan Carneiro da Silva – RJ
-
Um mundo melhor... queria,
para deixar aos meus netos,
onde imperasse a alegria
numa transfusão de afetos!
Gislaine Canales – SC
-
Andei buscando a poesia
por este mundo sem fim,
sem saber que essa vadia
morava dentro de mim.
Humberto Del Maestro – ES
-
Acredito na vitória
de quem somente o bem faz.
O mal nunca leva à glória
e sempre destrói a paz.
Jaqueline Machado – RS
-
Quem sabe muito concebe
que o saber é uma armadilha
que seduz quem não percebe
que dele a vaidade é filha.
J. B. Xavier – SP
-

Feliz de quem vida afora
deixa marcas de bondade.
– O bem que se planta agora
dá frutos na eternidade!
Jorge Fregadolli – PR
-
Vou expor verdade franca,
peça a Deus para entendê-la:
quem da terra a flor arranca
no céu, ofende uma estrela.
Josafá Sobreira – RJ
-
Tanta gente em si perdida,
entre sombras se escondendo.
Cada dia é outra vida
que em disfarces vai morrendo...
José Feldman – PR
-
O mal que você me faz,
quando me torna infeliz,
sempre à lembrança me traz
algum bem que já lhe fiz.
José Fabiano – MG
-
Decerto não terás provas
de amor mais puro e maior:
o meu caderno de trovas
sabe teu nome de cor.
José Lira – PE
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A saudade é passarinho
que voa pela amplidão,
mas só sabe fazer ninho
na concha do coração.
José Lucas de Barros – RN
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No aeroporto, o adeus, o abraço... 
e no olhar... rastros de dor!
– Lá se foi, rasgando o espaço,
uma promessa de amor!...
José Messias Braz – MG
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Naquela roda-gigante
fingi medo e te abracei.
O parque ficou distante,
mas o abraço eu conservei...
José Ouverney – SP
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Discórdias, sonhos frustrados,
e as mágoas não resolvidas
são os nós não desatados
das cordas das nossas vidas...
José Valdez – SP
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O perdão que concedemos
a cada irmão ofensor,
é treva que revertemos
em luz... em paz... em amor!
Luiz Antonio Cardoso – SP
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Não foi perto, nem distante:
o nosso amor, ideal,
nasceu da luz de um instante
e se tornou imortal!
Luiz Carlos Abritta – MG
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Os peixes vão se tornando
artefatos de ficção,
uns até se transformando
em bichos de estimação.
Luiz Damo – RS
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Quisera que o mundo visse
meu ar de felicidade
assim que você me disse:
“Namoro” – e não: “Amizade”.
Luiz Hélio Friedrich – PR
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A cada passo imprudente,
mais um desejo se solta;
a estrada diz: - segue em frente;
o coração pede: - volta!
Luiz Poeta – RJ
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A vida se poetiza
e ganha realce e brilho
cada vez que se eterniza
no nascimento de um filho.
Luzia Brisolla Fuim – SP
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A Virgem Mãe embalou
o Jesus de Nazaré,
que à dor, na cruz, se entregou,
vestindo o mundo de fé!
Mª da Conceição Fagundes – PR
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Os teus olhos me conduzem
a uma alegria sem fim,
e neste mundo traduzem
o amor que trazes a mim!
Mª Luiza Walendowsky – SC
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Quem não faz, risco não corre.
Erro... engano... quem não falha?
Só pode errar quem socorre,
age, executa, trabalha!
Mª Thereza Cavalheiro – SP
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Ressequidas e revoltas,
rolando sem direção,
lembranças são folhas soltas
no outono do coração.
Marina Valente – SP
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Na imensidão do meu sonho,
canto, rio, sou feliz...
E estes versos que componho
são o que minha alma diz.
Maurício Friedrich – PR
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Para viver sigo rastro
dos que acreditam e entendem
que a honestidade é o lastro
dos homens que não se vendem...
Messias da Rocha – MG
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Xeroquei a sua imagem
e guardei na minha mente;
sempre na minha abordagem
é você que está presente.
Neiva Fernandes – RJ
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Renúncia maior não há
que a da mãe que empunha a enxada,
e o que pode... aos filhos dá:
seus sonhos, seu chão, seu nada!
Olga Agulhon – PR
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Prefiro ficar no sonho
a embarcar na realidade;
lá, meu mundo é mais risonho,
mais seguro e sem maldade!
Renato Alves – RJ
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Este amor que é só miragem
dos desertos da ilusão,
é um aceno da paisagem,
do oásis que busco em vão.
Rita Mourão – SP
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O vento, por peraltice,
leva folhas peço espaço.
Que bom se um dia o sentisse
levando as preces que faço!
Ruth Farah – RJ
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Neste Natal, Deus-menino,
te peço com devoção:
acalma o meu desatino
e alegra o meu coração!
Talita Batista – RJ
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Numa pétala orvalhada,
uma gota luminosa
é um beijo que a madrugada
deixou na face da rosa.
Thalma Tavares – SP
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O homem devasta o que resta,
em sua ambição suicida,
e ao destruir a floresta
mata o que resta da vida.
Therezinha Brisolla – SP
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O nosso amor em tormenta
nos pede tempo a pensar...
Mas nem mesmo em marcha lenta
ele consegue engrenar.
Vanda Alves – PR
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Revezam-se em nossas rotas
sombra e luz, contras e prós,
e as vitórias e derrotas
começam dentro de nós...
Vanda Fagundes Queiroz – PR
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No perfume da verbena
do entendimento e da paz,
o mundo se miscigena –
é um mundo-irmão que se faz.
Wagner Marques Lopes – MG
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Sou navegante do rio
que tem por fonte a paixão
e deságua, sem desvio,
na foz do teu coração!
Wanda Mourthé – MG