sábado, 12 de dezembro de 2015

Silvana da Rosa (A mulher escritora e personagem nos contos de fadas) Parte VII

Em 1865, surge o clássico Alice no País das Maravilhas, criado pelo inglês Charles Lutwidge Dodgson, tendo como pseudônimo Lewis Carrol. Além dessa obra, em 1872, o autor publica Alice através do espelho e o que Alice encontrou lá.

Realmente, Carrol apresenta a personagem feminina mais próxima do espelho, mais condizente com a sua realidade. A menina Alice sobrepõe-se ao mundo real, ao universo masculino, uma vez que a protagonista assume atitudes até então pertinentes somente aos homens, bem como vive aventuras fora do âmbito familiar.

Nota: Leoni, referindo-se a Andersen, sustenta em sua obra que “no período romântico Hans Christian Andersen conquistou renome mundial com seus deliciosos contos que unem a ingenuidade pictórica com a delicada moral humana” (1966, p. 161-162).

Em 1900, o americano Lyman Frank Baum lança O maravilhoso feiticeiro de Oz, assim primeiramente intitulado, posteriormente foi denominado O mágico de Oz. Em O mágico de Oz, de Baum, o autor salienta as reais potencialidades da figura feminina, através da personagem - protagonista, que está longe da sociedade patriarcal que a comprime e asfixia.

De acordo com Novaes Coelho, “nessa época são criadas inúmeras coleções de livros infantis, que durarão até o início do século XX” (1991, p. 195), sendo que os escritores responsáveis por essas obras foram: Adolfo Coelho; Henrique Marques Júnior; João da Motta Prego; Manoel Pinheiro Chagas, entre outros. Percebe-se que, apesar da abundante literatura da época devido ao predomínio de escritores, a mulher ainda não tinha espaço, enquanto personagem, leitora e escritora, nem as obras escritas por homens privilegiavam o público feminino, além disso, os livros que eram destinadas às crianças, em especial às meninas, apresentavam expressivo cunho moralista.

Aliás, o ponto comum entre essas obras é a instrução didática que se inseriu na Literatura Infantil e esse elo continuou por muito tempo, até incentivar a rejeição dos brasileiros por modelos estrangeiros. No entanto, apesar de a mulher estar inserida nessa instrução “didático - literária”, evidentemente com a finalidade de ser boa filha, boa esposa, boa mãe, ainda se tinha o mundo bem diferenciado dos homens e das mulheres.

Conforme a reação negativa do povo em relação a modelos didáticos estrangeiros, principalmente vindos de Portugal, surge, assim, uma literatura mais próxima da realidade brasileira.

Desse modo, em meados do século XIX, surgiram inúmeras livros infantis voltados ao contexto brasileiro, mas, na verdade, o enfoque atribuído à mulher permanece o mesmo disseminado nas obras anteriores, ou seja, mulheres cruéis ou inexpressivas que necessitam de severa doutrinação. Sendo assim, foram publicadas as obras: O livro do povo (1861), de Antônio Marques Rodrigues; O método Abílio (1868), de Abílio César Borges; O amiguinho Nhonhô (1882), de Meneses Vieira; Série instrutiva (1882), de Hilário Ribeiro; Livros de leitura e série didática (1890), de Felisberto de Carvalho; Coisas brasileiras (1893), de Romão Puiggari; Série Puiggari/Barreto (1895), de Romão Puiggari e Arnaldo de Oliveira Barreto; Cartilha das mães (1895), de Arnaldo de Oliveira Barreto; Livros de leitura (1895), de João Kopke; Antologia nacional (1895), de Fausto Barreto e Carlos de Laet; Contos da carochinha (1896), de Figueiredo Pimentel e leituras infantis (1900), de Francisco Vianna.

Posteriormente e também seguindo a ideia nacionalista, Viriato Correia publica Era uma vez, em 1908; Olavo Bilac e Manuel Bonfim, com Através do Brasil, em 1910; Arnaldo de Oliveira Barreto, com Biblioteca infantil, em 1915 e Tales de Andrade, com Saudade, em 1919.

Segundo Novaes    Coelho, nos     anos 40, dissemina-se a literatura quadrinizada, juntamente com as coleções estrangeiras de “novelas de aventuras da literatura europeia ou norte-americana. Surgem traduções de romances românticos franceses, para o público feminino” (1991, p. 245). Nessa época, para as meninas– moças propagaram-se as coleções: Biblioteca das moças; Coleção menina e moça, Coleção rosa, Biblioteca das senhorinhas, de autores diversos. Visto que, a partir do momento em que novelas e romances são destinados à clientela feminina, percebe-se que novo enfoque é dado à mulher, o de leitora. Da mesma forma, é acessível às meninas-moças leitura selecionada. Evidentemente que, apesar de a mulher enfrentar restrições quanto ao tipo de leitura apropriada ao sexo feminino, por outro lado, ela já se inseriu no mundo intelectual como leitora.

Ainda    nessa    época, a literatura volta-se à    área da informação, consequentemente, os contos de fadas passaram a ser classificados como falsidades que distanciavam os leitores da realidade, incentivando a floração de sentimentos ilusórios nos mesmos. Aliás, de certo modo, as ideias de Rousseau, divulgadas no século XVIII, estavam sendo revigoradas dois séculos mais tarde.

Já Marly Amarilha (1997), referindo-se à Literatura Infantil, salienta que essa foi criada nas últimas décadas do século XVIII, visando aculturar a novos padrões civilizatórios os pequenos leitores. Padrões esses advindos a partir da Revolução Francesa e da crescente industrialização mundial, por isso obras instrucionais e pouco ou nada lúdicas surgiram.

Contudo, somente após o século XIX é que as crianças brasileiras tiveram acesso a textos dessa natureza:

E somente em fins do século XVIII que se consolida um conceito mais específico do que seja infância. A necessidade de se educar essa nova geração e introduzi-la nos moldes civilizatórios que se impunham, com a Revolução Francesa e o processo de industrialização, em toda a Europa, criavam também espaço para a produção cultural ao público emergente.
 
Nasce, assim, uma literatura de cunho didático, em que o lúdico é apenas um recurso para a instrução. A partir de critérios pedagógicos, os livros que compunham as bibliotecas dos adultos foram adaptados para as crianças. As fontes foram diversas: os contos populares, lendas e fábulas se constituíram no primeiro repertório de literatura para as crianças. Essa literatura não tinha um objetivo puramente estético, mas nela predominava o tom instrucional e pedagógico, o que contribuiu para diminuir-lhe o status frente a outras manifestações artísticas. No Brasil, a Literatura Infantil demora a se manifestar. E em torno de 1900 que podemos traçar os primeiros textos dessa natureza, mas aqui também ela se apresenta com as características encontradas na Europa. (AMARILHA, 1997, p. 46)
                     
A partir dos anos 50, a literatura redescobre a fantasia, visto que se percebeu que o lúdico e a magia são itens indispensáveis para se compor a Literatura Infantil. Assim, as histórias em quadrinhos também se disseminaram mundialmente e, no Brasil, a tradução de Beyond (Terror negro) é realizada, e outras histórias surgem, como Histórias macabras (Thomas Morgan); O homem invisível (Tiradez); A garra cinzenta (Bremond/Renato Silva). Além disso, surge Monteiro Lobato, com Narizinho arrebitado, uma espécie de re - escritura das antigas fábulas.

Lajolo e Zilberman teceram comentários a respeito da preocupação de Monteiro Lobato em criar uma Literatura Infantil e Infanto-juvenil especialmente para esse público, pois, antes dele, tinha-se a coletânea de contos de origem europeia, a qual foi, inicialmente, criada para os adultos e, após, adaptada ao público infantil.

Em 1921, Monteiro Lobato publica Narizinho Arrebitado, após ter se preocupado com a literatura infantil, conforme sugere a correspondência trocada com Godofredo Rangel, com quem comenta a necessidade de se escreverem histórias para crianças numa linguagem que as interessasse. (LAJOLO e ZILBERMAN, 1984, p. 45)
                     
Anteriormente a Lobato, já era motivo de preocupação de Romão Puiggari a carência de obras que valorizassem os temas brasileiros, tanto que, em Coisas Brasileiras (1893), ele apresenta, no prefácio de seu livro, o apelo de José Veríssimo a favor da valorização do nacionalismo. Novaes cita o que José Veríssimo afirma:

neste levantamento geral que é preciso promover a favor da educação nacional, uma das mais necessárias reformas é a do livro de leitura. Cumpre que ele seja brasileiro, não só feito por brasileiros, que não é o mais importante, mas brasileiro pelos assuntos, pelo espírito, pelos autores trasladados, pelos poetas reproduzidos e pelo sentimento nacional que o anime. (VERÍSSIMO apud NOVAES, 1991, p. 213)                     
Verifica-se que o interesse pela criação de uma literatura nacionalista era crescente, mas, quanto à figura feminina, esta mostrava-se ainda marginalizada, vista como leitora de obras escritas e selecionadas por homens.

Nos anos 50, alguns contos já haviam sido produzidos pela mídia, através de filmes e desenhos animados cinematográficos, consolidados posteriormente até os nossos dias. Evidentemente que, com essa mudança de suportes (do livro à televisão), alguns personagens perderam ou acentuaram expressivamente as suas características originais. Consequentemente, a publicação e a difusão dessas obras alcançaram o sucesso e o território mundial. Contudo, na maior parte das vezes, os valores patriarcais cultuados tanto nas linhas como nas entrelinhas desses livros, mesmo no discurso televisivo, ainda vigoraram pelas décadas seguintes.

A década de sessenta marcou-se como o período em que inúmeras traduções e adaptações de livros juvenis foram realizadas a partir de obras conhecidas no âmbito literário. Nos anos 70-80, o universo de homens escritores ainda predominava, porém o número de escritoras começava a se mostrar mais animador, tendo em vista as décadas anteriores em que a participação feminina na escritura e publicação de obras era pouco expressiva.

De acordo com isso, os escritores de diversos gêneros literários – e não somente de contos de fadas - dos anos 80, foram, entre outros: Amaury Braga da Silva, Assis Brasil, Antônio Hohlfeldt, Carlos Moraes, Josué Guimarães, Jorge Miguel Marinho, Libério Neves, Lourenço Diaféria, Lino Albergaria, Luiz Galdino, Luís Puntel, Luís Camargo, Pedro Bandeira, Ricardo Azevedo, Ricardo da Cunha Lima, Roniwalter Jatobá. E, nesse contexto de homens escritores, nota-se que a presença masculina realmente era abundante e dominante, enquanto isso, a mulher tentava firmar-se como escritora em território hostil.

Percebe-se que, através das obras dos escritores vistos, houve muitos retrocessos que impossibilitaram a inclusão feminina efetiva no contexto literário. É bem verdade que escritores como Comenius, Andersen, Carrol, Baum e Lobato possibilitaram que a sociedade observasse a personagem feminina sob prisma diferenciado, mas ainda muito faltava para que o sistema vigente, condicionado por obras e discursos que repetiam e disseminavam falsos moralismos, valorizasse a mulher em semelhante posição à do homem.

continua…

Fonte:
Silvana da Rosa. Do tempo medieval ao contemporâneo: o caminho percorrido pela figura feminina, enquanto escritora e personagem, nos contos de fadas. Dissertação de Mestrado em Letras. Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), 2009

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