quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

Silvana da Rosa (A mulher escritora e personagem nos contos de fadas) Parte IV

2. ESCRITURA DOS CONTOS DE FADAS: TERRITÓRIO MASCULINO

Este capítulo se propõe a realizar uma trajetória em território masculino, salientando que, especificamente, as obras de homens escritores ora facilitaram ora dificultaram para que a mulher conquistasse espaço em âmbito social e intelectual.

Desse modo,o primeiro subcapítulo aborda os homens escritores que redigiram fábulas e contos, a partir das células embrionárias Calila e Dimna e Sendebar.

Na seqüência, o estudo enfocará o escritor Charles Perrault, uma vez que o mesmo é caracterizado como inovador para a época, na elaboração de seus contos de fadas, e pioneiro para a Literatura Infantil. Na verdade, Perrault é considerado inovador pois inseriu no final de seus contos lições de moral, e pioneiro na escritura de contos para o público infantil.

Em seguida, verificar-se-ão as contribuições ou restrições que os homens escritores impuseram às mulheres, através de suas obras, em função da conquista de direitos comuns aos dois sexos e também quanto à inserção das mesmas no meio intelectual literário.

De acordo com isso, será visto em obras selecionadas o papel social desempenhado pelas mulheres de acordo com a visão masculina.

E, para finalizar esse capítulo, observar-se-á que, nesse universo de homens
literatos, à mulher era permitido unicamente contar e traduzir obras masculinas.
                                                                                    
2.1 Homens escritores de contos de fadas

Never may believe
These antic fables, nor these fairy toys.
Lovers and madmen have such seething brains,
Such shaping fantasies, that apprehend
More than cool reason ever comprehends...
And as imagination bodies forth
The forms of things unknown, the poet’s pen
Turns them to shapes, and gives to aery nothing
A local habitation and a name...

(Nunca poderei acreditar/Nessas fábulas antigas, nesses brinquedos de fadas./ As mentes febris dos amantes e  dos loucos,/ Suas fantasias moldadoras, percebem/ Mais do que a fria razão pode abarcar.../ E quando a imaginação concebe/ O contorno de coisas desconhecidas, a pena do poeta/ Transforma-as em formas, e concede ao etéreo nada/ Um endereço e um nome...(SHAKESPEARE, W. Sonho de uma noite de verão).

Em um tempo em que a TV ainda não existia, os contos folclóricos e infantis eram prestigiados como entretenimento para as famílias que, em ambiente doméstico, ouviam ou narravam histórias que se moldavam às angústias e às alegrias de quem as contava ou as ouvia. Desse modo, as histórias que representavam o momento lúdico para as famílias, difundiam-se rapidamente, resultando no surgimento de inúmeros livros escritos por homens que se apoiaram, em sua maioria, nas duas obras originárias: Calila e Dimna e Sendebar.

De acordo com Novaes Coelho, no século XII, o judeu Pedro Alfonso traduziu cerca de trinta fábulas ou contos retirados de Calila e Dimna, Sendebar e Barlaam e Josafá (1991, p. 35). Na seqüência, encontra-se a obra de Raimundo Lúlio, datada de 1286, denominada Libres de Maravelles. Essa é considerada bastante original, mas de clara descendência de Calila e Dimna e do Romance da Raposa (1991, p. 36). No século XV, escrita em letra gótica, Horto do esposo, é obra de um monge português anônimo.

Contudo, é mais um trabalho descendente da obra-origem, citada anteriormente, uma vez que apresenta a fábula do unicórnio e, entre contos exemplares, destacam-se ainda duas fábulas, onde o “exemplo” é dado por animais (1991, p. 40).

Com o Renascimento, o século XVI traz consigo consideráveis mudanças mundiais, ocasionadas pelas grandes navegações. Além disso, a invenção da imprensa e o acesso ao papel propiciaram o ambiente necessário para que o desenvolvimento cultural e literário proliferassem, associados ao ideal humanista que invadia o espírito humano ocidental.

No campo literário e em solo italiano, é publicada a obra Noites agradáveis por Gianfrancesco Straparola, em 1554. Straparola compõe seu trabalho resgatando e registrando a tradição oral de origem oriental e medieval. Processo caracterizado como “composições que nasceram da espontaneidade popular, lembradas a princípio pela tradição oral e mais tarde gravadas numa língua mais ou menos evoluída e idônea à arte [...]”, é o que afirma Leoni (1966, p.13).

Apesar de utilizar o mesmo método de Straparola, algo torna singular a obra de Gonçalo Fernandes Trancoso que, em 1575, publica Contos e histórias de proveito e exemplo. A sua obra é uma mistura do conhecido e o desconhecido, ou seja, o misto entre a tradição popular e o novo, representado pela novelística do Renascimento. O fruto dessa recente roupagem para a época só chegou ao Brasil em 1618.

No entanto, o que deve ser ressaltado no estilo literário de Trancoso é que ele inseriu a filosofia voltada ao moralismo e à postura edificante da mulher. Novaes Coelho tece comentários a respeito do objetivo dessa obra:

É considerada a primeira obra que introduziu o gênero novelesco bocaciano em Portugal. Entretanto, sua intenção principal era bem mais moralizante. Pertence claramente à linha da literatura “exemplar”, edificante (muito comum na Idade Média), mas consegue fundir esse lastro clerical com a tradição folclórica, cheia de humor (trocadilhos, provérbios, paradoxos, adivinhas, situações equívocas, etc.). (COELHO, 1991, p. 57)
                      
Por sua vez, a Itália é novamente berço de outro escritor, Giambattista Basile, que apresenta o Pentamerone, obra publicada após a morte do escritor, entre 1634 e 1636, com o pseudônimo de Gian Alessio Abbattutis. Nessa inclui-se Sole, Luna e Talia, um conto de fadas há muito presente na memória e na cultura oral dos napolitanos.

Sole, Luna e Tália ou Sol, Lua e Tália assemelha-se aos demais contos de A bela adormecida, que surgiram posteriormente a essa obra, porém o que caracteriza a história como única é a presença de opostos em sua narrativa, ou seja, “desde o rotineiro e o vulgar até o sublime”, bem como os pólos extremos que compõem a personalidade humana, dispostos em harmonia perfeita em um único texto.

Enquanto, o mundo preludiava a Era Clássica, em pleno século XVI, no Brasil vivia-se o medievalismo, uma vez que, historicamente, este país havia sido recentemente descoberto e, em conseqüência disso, os interesses voltavam-se para a educação doutrinária e à formação cultural do povo, sendo que as inovações chegaram tardiamente em solo brasileiro. Novaes Coelho apresenta claramente essa situação:

Manoel da Nóbrega e José de Anchieta são os dois primeiros nomes que, no Brasil, se ligariam às atividades embrionárias de educação, cultura e literatura que o século XVI conheceu. Assim, no momento em que, em Portugal, Camões dava voz à renovação renascentista, criando as formas da alta poesia, que iria se constituir em modelo durante toda a Era Clássica, no Brasil José de Anchieta, ainda segundo modelos medievais, escrevia os autos religiosos (destinados à representação para as populações indígenas) e compunha seus singelos poemas em louvor da Virgem. (COELHO, 1991, p. 66)
                      
José Horta Nunes (1994), também descreveu o cenário brasileiro, em âmbito educacional e literário, no período medieval, a partir da definição da palavra catequese, ou seja, a forma de ensino oferecida ao povo brasileiro nessa época:
“Catequese é um projeto educacional que introduz uma prática de linguagem no Brasil. Diante do propósito inicial de ensinar a religião aos índios, essa prática consiste em um trabalho sobre as línguas, ao lado do desenvolvimento de técnicas de ensino doutrinário” (NUNES, p. 96-97).

Assim, a literatura moralizante e os contos de fadas, difundidos no período medieval, estendem-se até o século seguinte, e é a partir daí que os contos passam a fazer parte da recém-criada Literatura Infantil. Novaes Coelho apresenta essa criação desta forma:

Cavaleiros andantes, reis, rainhas, princesas e príncipes bons e maus, fadas, bruxas, metamorfoses de criaturas humanas em animais (ou vice-versa), ogres e ogressas (sic) canibalescos, maldições, profecias, madrastas, crianças abandonadas, crianças que são entregues a alguém para serem mortas, fantasmas e magos, gênios benfazejos e malfazejos... é a fantástica legião de personagens que a partir do século XVII os escritores cultos vão descobrir na tradição oral dos povos europeus e criar a Literatura Infantil que hoje conhecemos como “tradicional”... (COELHO, 1991, p. 66)
                      
Conforme o exposto, surge na França do século XVII a literatura voltada para crianças e representada através de fábulas e contos, uma vez que os escritores buscaram entre a cultura do povo as narrativas orais passadas de geração a geração. Inicialmente, a Literatura Infantil era proposta como ação educativa e moralizante, voltada não somente à criança, mas também e, principalmente, à mulher. Novaes Coelho descreve esse acontecimento histórico e determinante para a Literatura Infantil:

É na França, na segunda metade do século XVII, durante a monarquia absoluta de Luís XIV, o “Rei Sol”, que se manifesta abertamente a preocupação com uma literatura para crianças ou jovens. As Fábulas (1668) de La Fontaine; os Contos da Mãe Gansa (1691/1697) de Charles Perrault; os Contos de Fadas (8 vols. – 1696/1699) de Mme. D’Aulnoy e Telêmaco (1699) de Fénelon são os livros pioneiros do mundo literário infantil, tal como hoje o [sic] conhecemos. (COELHO, 1991, p. 75, grifos da autora)
                      
      É sabido que dentre os séculos XII a XVII, o ensino doutrinário catequético sobrepujava o contexto literário, visando moralizar a postura da criança e da mulher. Consoante a isso, ainda no século XVII, os olhos se voltaram para os menores leitores e surge a Literatura Infantil, representada por fábulas e contos. 

Neste novo cenário criado para a Literatura Infantil, Perrault é um dos pioneiros a divulgar para o mundo dos infantes os seus contos de fadas com claro fundo moralizante, que serão vistos a seguir.

continua…

Fonte:
Silvana da Rosa. Do tempo medieval ao contemporâneo: o caminho percorrido pela figura feminina, enquanto escritora e personagem, nos contos de fadas. Dissertação de Mestrado em Letras. Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), 2009

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