terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Silvana da Rosa (A mulher escritora e personagem nos contos de fadas) Parte XI

2.5 No universo literário masculino, a figura da mulher contadora e tradutora de histórias

O fellow, come, the song we had last night,
Mark it, Cesario, it is old and plain;
The spinsters and the knitters in the sun,
And the free maids that weave their thread with bones,
Do use to chaunt it : it is silly sooth,
And dallies with the innocence of love,
Like the old age.


Amigo, a canção que ouvimos ontem,/ Note bem, Cesário, é antiga e simples;/ As fiandeiras e tecelãs ao sol,/ E as donzelas livres que fiam com ossos,/ Costumam cantá-la: é tolo alívio,/ E brinca com a inocência do amor,/ Como a velhice. (Noite de Reis, II, iv).
                                                                                    
Muitas mulheres participaram indireta ou diretamente do mundo literário, quer seja como contadoras de histórias para os próprios escritores ou através da participação feminina no conto das mesmas. Franz sustenta que “pelos escritos de Platão sabemos que as mulheres mais velhas contavam às suas crianças histórias simbólicas “mythoi”. Desde então, os contos de fadas estão vinculados à educação de crianças” (1981, p. 17).

No universo de homens-escritores-medievais surge Marie de France que, em 1180 divulga o mais famoso Isopet (estória de animais, narrada em versos e em língua “romance”), pertencente também à célula-mater, Calila e Dimna.

Marie de France seguiu o exemplo de sua mãe e de seu bisavô, pois era filha de Alienor D’Aquitânia, conhecida como protetora de poetas e artistas. Por sua vez, o bisavô era o mais antigo dos trovadores provençais. Dessa forma, Marie de France, com o sangue literário fluindo em suas veias, tornou-se a primeira poetisa francesa da história, sendo de sua autoria os Lais de Marie de France.

Segundo Novaes Coelho, a poetisa estava “encantada com os primitivos e líricos lais bretões, impregnados desse novo ideal, entrega-se aos trabalhos de traduzi-los para o francês: narrativas maravilhosas, conhecidas como os Lais de Marie France” (1987, p. 49, grifos da autora). Evidentemente, foram apenas traduções, mas, a partir destas, homens e, principalmente, mulheres francesas tiveram acesso às obras, possibilitando que o público feminino se inserisse no cenário intelectual e, posteriormente, passasse a escrever seus próprios livros.

Os Lais traduzidos por France somam dez: Lai d’Yonec; Lai de Bisclavaret; Lai de Lanval; Lai de Iwenec; Lai de Fresno; Lai de Tidorel; Lai de Eliduc; Lai de Guingamor; Lai de Tiolet e Lai de Madressilva.

Faz-se pertinente ressaltar que o novo ideal citado anteriormente, que encantou France, prenuncia o período vindouro, o surgimento do período medieval que, para ela, corresponderia a novas perspectivas, principalmente no campo literário.

Assim, no período medieval correspondente ao período que vai do século V ao século XV, mais especificamente em seu final, a crueldade, a brutalidade primitiva da sociedade, retratada nas narrativas, vai se apagando nas linhas e entrelinhas dos contos, à medida que os costumes burgueses proliferam, refinando os hábitos do povo. Um exemplo disso foi a transição de homens guerreiros para cortesãos. Essa pacificação interna da sociedade iniciou-se e prosseguiu com grande lentidão nos séculos XI e XII, chegando a completar-se entre os séculos XVII e XVIII, sendo que a nobreza cortesã da França ocupou uma posição específica nessa mudança de padrões de conduta, pois os costumes franceses refinados disseminaram-se além-fronteiras.

Essa modificação social, ou melhor, esse refinamento cultural, se fez propício para a entrada de mulheres na literatura e,    enquanto ainda não apareciam mulheres-escritoras, as contadoras de histórias iam surgindo. Novaes Coelho cita que “Katherina Wieckmann, camponesa de extraordinária memória, teria sido para os Irmãos Grimm a grande fonte transmissora” (1991, p.140) das histórias cultuadas e transmitidas oralmente pelos povos.

Câmara Cascudo também observa, em sua obra, que o conto O fiel Dom José foi contribuição de Luísa Freire, uma cearense contadora de histórias:

Luísa Freire, branca, analfabeta, residiu em nossa casa de 9 de junho de 1915 até 23 de julho de 1953, quando faleceu. Nascera em junho de 1870. Foi colaboradora preciosa em literatura oral. Com maiores anotações publiquei no Porto, Portugal, um volume inteiro contendo “Trinta Estórias de Bibi”. Bibi era seu apelido dado por mim quando menino e conservado a vida inteira. (CASCUDO, 2004, p.30)
                     
Referindo-se ainda a contadores de histórias, Cecília Meireles cita que os que contavam histórias no passado são os antepassados dos escritores atuais.

O gosto de contar é idêntico ao de escrever – e os primeiros narradores são os antepassados anônimos de todos os escritores. O gosto de ouvir é como o gosto de ler.

Assim, as bibliotecas, antes de serem estas infinitas estantes, com as vozes presas dentro dos livros, foram vivas e humanas, rumorosas, com gestos, canções, danças entremeadas às narrativas. (MEIRELES, 1979, p. 42)

Salienta-se que, no convívio social, é comum ouvir-se histórias narradas por avós que contam a respeito de seu tempo pretérito e também de outros tempos que não lhes pertenceram, mais longínquos ainda, e os fatos desses tempos foram ouvidos, vividos ou criados por seus ancestrais. Marina Warner observa que a mais antiga referência ao conto que senhoras idosas narravam aos seus familiares e, principalmente, a crianças, encontra-se no Górgias, de Platão:

Platão, no Górgias, referiu-se depreciativamente ao tipo de conto – mythos  graós, o conto das velhas – narrado pelas amas para divertir ou assustar as  crianças. Possivelmente, trata-se da mais remota referência ao gênero. Segundo relatos, quando os meninos e meninas de Atenas estavam prestes a embarcar para Creta, para serem sacrificados ao Minotauro, velhas senhoras desciam até o porto para lhes contar histórias e distraí-los de seu sofrimento. (WARNER, 1999, p.39)
                     
Realmente, milagres essas velhas senhoras faziam ao entreter crianças condenadas à morte, uma vez que a temática dessas narrativas abordava magicidade, fantasia, fadas e a vitória de sentimentos nobres, por mais que esses custassem as suas vidas.

É sabido que Giambattista Basile, Perrault, os Irmãos Grimm e Sílvio Romero, entre outros, registraram a cultura oral de seu povo, visando entretenimento, ou com fundo moralista ou, até mesmo, como oferecimento a parentes de um rei da época, porém o que deve ser ressaltado é que o contar histórias era uma característica comum às mulheres fiandeiras desses tempos.

Antigamente, era comum entre mulheres fiandeiras o ouvir, o contar e o recontar de histórias. De acordo com Novaes Coelho, “Perrault [...] conhecedor como era, da mitologia pagã, teria associado a tarefa das Parcas (tecer a vida dos homens) com o tecer estórias que formam a rede humana” (1987, p. 69).

Lílian de Lacerda (2003)33 descreve a dificuldade que as mulheres contadoras de histórias - que viveram antes do século XX - enfrentaram para, ao menos, serem alfabetizadas. E, quanto a serem escritoras, nesse período, considerava-se um sonho inatingível.

Entretanto, Lacerda enfatiza que, por mais que as mulheres estivessem inseridas em um meio de censuras quanto ao ingresso ao mundo letrado e literário, algo as faz lembrar, com prazer e saudades, as avós contadoras de histórias. Segundo Lacerda, referindo-se às avós do passado:

[...] Elas são portadoras da ancestralidade do grupo, carregam os segredos da família, guardam na memória os fatos, os acontecimentos e as histórias – imaginárias ou sabidas de cor – aprendidas oralmente ou por meio de diferentes impressos a que tiveram acesso. (LACERDA, 2003, p. 193)
                     
Conforme o exposto, Maria Helena Cardoso (1973) afirma a importância do ato de ouvir histórias para o desencadeamento do imaginário infantil e salienta que, quando ouvia histórias, narradas por sua avó, sentia que o processo interativo ampliava-se e adquiria formas inimagináveis:

Bem pequena ainda, adorava estórias: às noites, assentada nos degraus de tijolos da escada da cozinha da casa de vovó, ou deitada na caixa-frasqueira da sala de costura, à luz bruxuleante da lamparina de querosene, que deixava nos cantos um enorme espaço de sombra, ou à chama clara fixa do lampião, ouvia da cozinheira, ou de vovó, estórias maravilhosas, que me enchiam a cabeça, me fazendo arregalar os olhos de admiração ou estremecer de pavor. Quando o medo era muito, me achegava a um dos meus irmãos, assentados próximos a mim. [...] De tal modo gostava dos personagens das estórias que ouvia, que costumava conversar baixinho com eles, quando não cantava seus nomes em estribilho [...] (CARDOSO, Maria Helena. 1973, p.97) 34
                     
É bem verdade que a fama de as avós serem contadoras de histórias não surgiu neste século e muito menos por acaso. Na aurora dos tempos, de todos os tempos, as Sibilas eram mulheres que possuíam extremada sabedoria, tanto que a elas era atribuído o dom de inventar histórias; o presente informar e o futuro prever.

Cecília Meireles (1979) cita que Selma Lagerlöf, ao receber o prêmio Nobel em 1909, enfatizou o seu fascínio pelas senhoras que vivem isoladas em florestas ou lugares quase inacessíveis ao simples mortal (como se feiticeiras ou Sibilas fossem), pois a ensinaram a ver e entender naturalmente as histórias do mundo.

O interessante é que na história de vida do ser humano sempre havia ou há uma mulher contadora de histórias e também por trás de um homem escritor: com Perrault, a babá de seus filhos ou a sobrinha Mll. L’Héritier; com os Irmãos Grimm, Katherina Wieckmann e Jeannette Hassenpflug; com Câmara Cascudo, Luísa Freire, já vistos anteriormente.

Dessa forma, torna-se indiscutível que a transmissão oral dos contos seja quase que prevalentemente de autoria de mulheres. Situação essa já lembrada por Marina Warner:

[...] embora os escritores e colecionadores do sexo masculino tenham dominado a produção e a disseminação de contos maravilhosos populares, estes freqüentemente eram transmitidos por mulheres no ambiente íntimo ou doméstico. (1999, p. 43)
      
A esse respeito, Marina Warner cita Italo Calvino, uma vez que ele, analisando diversos suportes folclóricos do século XIX, verificou também que as fontes desses contos eram femininas, o que pode significar uma tradição cultural própria desse gênero: “Italo Calvino, em sua coleção de Fiabe ou Fábulas italianas de 1956 – a resposta italiana aos irmãos Grimm – chamou atenção para esse aspecto da tradição, observando que várias antologias de folclore do século XIX, que ele consultou e adaptou, citavam fontes femininas [...]” (WARNER, 1999, p. 41).

Embora os contos sejam compostos por personagens masculinos e femininos, é nas mulheres que este trabalho de pesquisa procura se ater, uma vez que, no processo evolutivo da mulher, enquanto personagem e escritora, a literatura é a comprovação fiel do que os tempos mais remotos da humanidade revelam a respeito de seu papel social. Entretanto, o que se percebeu é que em um universo de homens escritores, havia sempre mulheres contadoras e tradutoras de histórias e, muito depois, é que surgiram as escritoras. Evidentemente que foi bastante tardia a participação da mulher escritora comparada à dos homens, visto que é somente no século XVII, em 1608, com Mme. de Rambouillet, que os pensamentos, desejos e ideais femininos passaram a ser conhecidos em obras escritas, através do Preciosismo, movimento literário que recebeu adeptos da literatura, sendo que esses trabalhos eram expostos em salões para o entretenimento de variado público e, posteriormente, disseminaram intelectuais em todo o mundo.

continua…

Fontes:
Silvana da Rosa. Do tempo medieval ao contemporâneo: o caminho percorrido pela figura feminina, enquanto escritora e personagem, nos contos de fadas. Dissertação de Mestrado em Letras. Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), 2009
Imagem = http://tulipa-cat.blogspot.com

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