quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Silvana da Rosa (A mulher escritora e personagem nos contos de fadas) Parte XIV

      Segundo Warner, referindo-se a Beaumont, é relevante a habilidade da escritora em atribuir aos contos de fadas a importância devida, tornando-o recurso necessário à educação, bem como transformar o rude, o homem selvagem em cortesão e, além disso, mostrar que o amor é possível, até mesmo em uniões nada convencionais, como entre uma mulher e um animal, pois esse sentimento é a essência da vida e está além de diferenças, preceitos e preconceitos.

Mas foi essa governanta sensível e bondosa, madame Leprince de Beaumont, em meados do século XVIII, a primeira a usar os contos de fadas para educar os jovens desse modo. Sua visão do amor e simpatia femininos redimindo o selvagem que há no homem tornou “A Bela e a Fera” um dos contos de fadas mais estimados do mundo, que nunca deixou de inspirar em meninas – e meninos – sonhos de experimentar o poder do amor. (WARNER, 1999, p. 333)
                     
      Além de Beaumont enfatizar a importância da leitura para a educação, em 1687, é lançado um livro específico para as meninas, ou seja, voltado à educação feminina, o Tratado da Educação das Meninas, escrito por Fénelon. Nessa obra o ensino doutrinário é característico, visto que as meninas são preparadas para serem esposas e mães.

      A seguir, Mlle. L’Héritier de Vilandom, defensora das fábulas contadas pelas velhas senhoras, adepta do Preciocismo e seguidora de Mme d’Aulnoy, publica Obras Misturadas em 1696.

Em 1774, Mme. Le Prince de Beaumont, em tradução de Joaquim Inácio de Freitas, publica a obra Thesouro de Meninas. Nesta, o próprio título da obra a identifica como sendo instruções educacionais específicas para o sexo feminino.

Já foi visto que o passo inicial para o ingresso e a difusão intelectual feminina deu-se com Mme. de Rambouillet, em 1608, na França, uma vez que a vida mundana dos salões tornou-se mais refinada, através de apresentações literárias que lá aconteciam. Entretanto, muito antes disso, tem-se a presença da participação feminina e também “feminista”, segundo Moacyr Scliar. Scliar cita uma data, bem remota. Segundo ele, em A primeira transgressora36, a primeira transgressora feminina e “feminista” foi Lilith, uma personagem bíblica que, adepta de hábitos e valores nada convencionais, escandalizou a sociedade da época. Essa mesma personagem figura no cenário folclórico da Suméria e da Babilônia, mas representando o caráter demoníaco das mulheres.

Por sua vez, de acordo com Scliar, as feministas a transformaram em um modelo representativo de suas aspirações: “Existe nos Estados Unidos uma revista chamada Lilith (independente, judaica e francamente feminista). Um livro sobre feminismo chama-se A Ascensão de Lilith. Um festival feminista tem como denominação Lilith Fair, a Feira de Lilith” (2008, p. 17).

As idéias de Scliar confirmam o que J.D. Eisenstein afirmara em O Livro de Lilith (1991), citado por Eduardo de Assis Duarte (1997). Desse modo, Eisenstein narra em sua obra a história da criação da primeira fêmea, Lilith, obra do Divino, concebida para acompanhar Adão na Terra. No entanto, a personagem não ficou subjugada às ordens de Adão e preferiu percorrer o mundo, criando asas que a levariam para bem longe de seu companheiro.

      Convém salientar que a personagem Lilith faz lembrar As meninas más, de Margaret Atwood e Lucía Etxebarría, que nada mais são do que mulheres que se fizeram fortes, devido aos muitos tormentos familiares e sentimentais que sofreram durante suas histórias de vida. Na verdade, através de seus anseios íntimos, seus conflitos, culpas, sonhos, as personagens refletem a vida difícil da mulher que decide se opor a uma sociedade machista. Consequentemente, elas se tornaram exigentes e determinadas, não aceitando a vida medíocre que, provavelmente, elas teriam se vivessem o papel de uma bela eternamente adormecida imposto pela sociedade. E, de acordo com Lélia Almeida:

O romance da espanhola Lucía Etxebarría, Amor, curiosidad, prozac y dudas, de 1996, não conta a história de uma vilã, como o de Atwood. Mas talvez conte, da mesma maneira, das vontades das mulheres de serem diferentes das princesas e boas meninas dos contos de fadas e das novelas sentimentais [...] (ALMEIDA, 2003, p.31)
                     
      Desse modo, nos contos escritos entre os séculos XVII e XVIII é perceptível o anseio primeiro da mulher escritora, que consiste em não mais reproduzir a mesma imagem “insossa” feminina de tempos distantes. A mulher escritora, recém chegada neste contexto literário masculino, está preocupada em descobrir, em determinar os reais valores e compor a identidade feminina em suas obras, distante do já tão conhecido, escrito por mãos e conceitos masculinos.

Nota:
Louise Mary Alcott e Eleanor Hodgman Porter não redigiram contos de fadas, mas fizeram diferença enquanto escritoras de Literatura Juvenil, por isso foram citadas.

No século XX, cabe ressaltar também a presença de Simone de Beauvoir que não escrevia contos de fadas e, pelo contrário, a eles mostrava-se avessa. Beauvoir escreveu sobre as mulheres, tornando-se um ícone feminista, o modelo da mulher liberal moderna, seguida fielmente por mulheres escritoras que se espelharam nela para embrenharam-se no mundo intelectual e literário sem preconceitos. Desde cedo, a referida escritora participou de grupos de filósofos que estudavam o Existencialismo, uma vez que as causas humanas, existenciais e sociais referentes à mulher interessavam-na muito.
Juliana Albuquerque, estudiosa da vida e obra de Beauvoir, salienta que a própria autora afirma:
“O certo é que até aqui as possibilidades da mulher foram sufocadas e perdidas para a humanidade: já é tempo, em seu interesse e no de todos, de deixá-la enfim correr todos os riscos, tentar a sorte.” (BEAUVOIR apud ALBUQUERQUE, 2009 p. 29)

3.2 Percalços que retardaram a efetiva inserção feminina no mundo intelectual

[..] se conhecemos as condições de vida da grande maioria das mulheres nos séculos passados, os obstáculos que enfrentaram - das teses médicas “provando” sua incapacidade    intelectual, ao esforço dos filósofos e governantes incentivando o recolhimento - não podemos nos admirar do reduzido número de escritoras hoje conhecido. LIMA DUARTE, 1997, p. 56-7.
                                        
      Além das escritoras já citadas no subcapítulo anterior, algumas outras se destacaram no final do século XIX e início do XX: a russa Sophie Rostopchine, Condessa de Ségur, com os Novos contos de fada (1856); a americana Louise Mary Alcott37, com Little women (1868), e a norte-americana Eleanor Hodgman Porter, com Pollyana (1915).

      Já no Brasil, em meados do século XIX, quando o povo sentiu repulsa por modelos estrangeiros, uma literatura brasileira surgiu e, com isso, inúmeras obras infantis, tais como: Contos infantis (1886), de Júlia Lopes de Almeida; Livro das crianças (1897), de Zalina Rolim, e O Livro da infância (1899), de Francisca Júlia da Silva Munster.

      A romancista Júlia Lopes de Almeida foi membro atuante do movimento nacionalista, buscando uma literatura essencialmente brasileira e, com esse espírito, lançou o livro Contos infantis, composto por sessenta narrativas em verso ou prosa.

      Entretanto, Zalina Rolim, apesar de escrever para crianças, foi quem se destacou efetivamente no incipiente movimento feminista iniciado em São Paulo. Novaes Coelho, caracterizando a escritora Zalina Rolim, afirma:
                       Figura que teve significativa participação no movimento feminista que mal se iniciava, em São Paulo, e também nos projetos de inovação do ensino básico, a paulista Zalina Rolim (1869/1961) escreveu principalmente poesia. O volume Livro das Crianças, coletânea de contos e estorietas em versos, foi publicado pelo Governo de São Paulo, tornando-se com essa divulgação um dos grandes sucessos na literatura escolar da época. (COELHO, 1991, p. 216)
                     
Já Francisca Júlia da Silva Munster sobressaiu-se pela luta em favor da disseminação da cultura e da literatura para as crianças, bem como pela renovação do ensino propiciado a elas.

Além das escritoras já mencionadas, as quais publicaram suas obras em meados do século XIX, destinadas ao público infantil, ainda soma-se a mineira Alexina de Magalhães Pinto, com As nossas histórias, em 1907. Ela irmanou-se a Francisca Júlia Munster, quanto à busca pela renovação do ensino primário e, acresceu, ainda, a renovação das leituras infantis.

A seguir, Presciliana Duarte de Almeida, com Páginas infantis, publicada em 1908, associa suas idéias às de Zalina Rolim, uma vez que divulgou em suas obras os novos anseios feministas38 e educacionais. Consoante a isso, Novaes Coelho cita que Presciliana Duarte foi uma figura de destaque em âmbito literário e educacional, enquanto mulher e feminista:

Figura feminina de destaque no movimento cultural, literário e educacional paulista, no entre-séculos, a mineira Presciliana Duarte de Almeida (1867/1944) teve ação importante na divulgação das novas idéias feministas e educacionais. Incentiva a criação da revista estudantil A Aurora (no Ginásio Sílvio de Almeida – SP), escreve peças de teatro que leva à encenação pelos escolares e, em 1908, publica Páginas Infantis, coletânea de estorietas referendadas por uma carta-prefácio de João Kopke. Em 1914, escreve o livro de leitura O Livro das Aves (crestomatia em prosa e verso), adotado em várias escolas paulistas. (NOVAES, 1991, p. 219)
                     
      Percebe-se que, timidamente, as mulheres se inserem no mundo intelectual, porém o número de homens escritores ainda é maior. No Brasil, Júlia Lopes de Almeida, Zalina Rolim, Francisca Júlia da Silva Munster, Alexina de Magalhães Pinto e Presciliana Duarte de Almeida eram, realmente, consideradas as pioneiras que, provavelmente, incentivaram muitas crianças, jovens e leitoras de várias idades a se tornarem escritoras no século seguinte.

Contudo, não é de se surpreender com o número inexpressivo de escritoras, devido à pressão em relação à mulher, em observância ao cultivo dos padrões tradicionais da época e isso se verificava de tal forma que, até mesmo o que ela devia ler era “sugerido”.    Mas essa realidade não era só vivida no Brasil, Laura Cavalcanti Padilha (1997) mostra um dado importante, porém quanto a escritoras de poesias, na década de 50, em Angola, Cabo Verde e Guiné Bissau.

[...] a poesia angolana feminina começa a surgir na década de 50, fato este confirmado também com respeito a Cabo Verde onde, em 36 (trinta e seis) poetas, só há uma mulher. No caso de Angola, há 6 (seis), para 53 (cinquenta e três), enquanto em São Tomé e Príncipe, para 7 (sete), há duas e nenhuma em Guiné Bissau, onde, aliás, só se registra o nome de um poeta [...] (PADILHA, 1997, p. 63)
                     
      No Brasil, mudanças lentas começaram a surgir a partir da semana da Arte Moderna, em 1922, quanto às novas formas de linguagem e expressão. Consequentemente, obras novas surgiram no mercado, mas a acessibilidade das mesmas às mulheres continuava a ser demasiadamente lenta e, além disso, o tipo de leitura era lhe sugerido, uma vez que alguns livros não poderiam faltar em sua biblioteca, como a Bíblia, de cunho religioso e de higiene pessoal (relacionada à criança e à purificação espiritual da mulher). Esses livros eram os indicados para a leitura feminina, entre outros.

      Conforme o exposto anteriormente, faz-se interessante ressaltar uma curiosidade que talvez invada a mente de todo pesquisador ou leitor, ou seja, por que as escritoras francesas são sempre postas em destaque quando se buscam as mulheres escritoras de contos de fadas? Várias respostas para este questionamento podem surgir, como, por exemplo: porque a França foi o berço de inúmeras descobertas e lá surgiu o Iluminismo o que pode ter propiciado o caminho para a mulher se inserir no campo literário. De outro modo, Sara Castro-Klarén, citada por Márcia Hoppe Navarro, menciona uma alternativa mais condizente. Segundo Márcia Navarro, a escritora Sara Castro-Klarén sugere que:

[...] a escritura de mulheres latino-americanas está historicamente marcada pelos sinais da marginalidade social, das hierarquias raciais e, como tal, “feminismo” no âmbito de tais segmentações sociais, historicamente determinadas. Essa autora compara a discriminação que a mulher sofre com outros tipos de opressão, apontando que a exclusão da mulher do discurso patriarcal não difere da exclusão resultante do racismo: “o eterno feminino” se assemelha ao eterno “bom selvagem” [...] (NAVARRO, 1997, p. 44-45, grifos da autora)
                     
      Como se não bastassem as questões preconceituosas a que a mulher era submetida, um outro fator também vem justificar o número reduzido de escritoras em relação aos homens, ou seja, algumas se esconderam à sombra de pseudônimos ou desistiram de escrever visando não serem repreendidas e punidas. Além disso, em épocas anteriores, as mulheres eram consideradas seres não inteligentes e, para tanto, as histórias que elas escreviam eram queimadas ou roubadas pelos maridos ou familiares (até mesmo para publicá-las como se fossem escritas por eles mesmos). Era comum a existência de escritoras anônimas ou a utilização de pseudônimos, frequentemente masculinos, como exemplo, as irmãs Brontë que, inicialmente, ficaram conhecidas como os irmãos Bell, para que elas pudessem se proteger da opinião pública ou porque foram desaconselhadas a desenvolver tal atividade, considerada estritamente masculina.

      Virgínia Woolf, citada por Constância Lima Duarte (1997, p. 58), sugere que muitos escritores anônimos que publicaram seus textos em diversos suportes em tempos passados, na verdade, seriam elas, as anônimas.

      Constância Lima Duarte menciona inúmeras histórias que comprovam as dificuldades enfrentadas pelas mulheres ao tentarem tornar-se escritoras. Um exemplo será citado somente como detalhe ilustrativo à questão, uma vez que a escritora mencionada não escrevera contos de fadas, mas poesia:

Para falar de literatura de autoria feminina e de cânone, lembro algumas histórias de mulheres, à guisa de ilustração. Começo com a última que tive notícia e que foi publicada recentemente no jornal Folha de São Paulo. Era uma pequena nota e trazia a informação de um artigo recém publicado em Londres afirmava que vários poemas incluídos em The Waste Land, de T. S. Eliot, não seriam de sua autoria e sim de sua primeira esposa, Vivien Haigh Eliot, também escritora. O autor do artigo afirma que Vivien havia publicado muitos dos poemas sob o pseudônimo de Fanny Marlowe, na revista Criterion, e que Eliot, “diante da instabilidade emocional da esposa”, a havia internado em um manicômio britânico, onde ela ficou até falecer [...] (LIMA DUARTE, 1997, p. 53)

Além do caso citado, há um característico no Brasil, envolvendo a escritora Auta de Souza, ou seja, em sua família, composta por homens escritores, não se permitia o surgimento de uma escritora. Provavelmente, não só o preconceito tumultuava a mente masculina, como também o medo da concorrência com o trabalho feminino. Sendo assim, os escritos dela foram reprovados, não agradando em nada seus familiares que, curiosamente, também eram poetas e intelectuais.


Inserido no rol dos homens escritores que, de certa forma, aceitavam o preconceito em relação à exclusão do pensamento feminino literário brasileiro e, consequentemente, a exclusão da mulher na literatura, estava o escritor Graciliano Ramos, citado por Constância Lima Duarte. Na verdade, quando o referido escritor se deparou com a obra O Quinze, de Rachel de Queiroz, duvidou ter sido escrito por uma mulher, pois a cultura patriarcal estava tão arraigada em seu ser, principalmente em seus conceitos e preceitos, que ele não acreditou que o estilo adotado pela escritora fosse um processo natural feminino.

O Quinze caiu de repente ali por meados de 30 e fez nos espíritos estragos maiores que o romance de José Américo, por ser livro de mulher e, o que na verdade causava assombro, de mulher nova. Seria realmente de mulher? Não acreditei. Lido o volume e visto o retrato no jornal, balancei a cabeça: – Não há ninguém com este nome. É pilhéria. Uma garota assim fazer romance! Deve ser pseudônimo de sujeito barbado. Depois conheci João Miguel e conheci Rachel de Queiroz, mas ficou-me durante muito tempo a ideia idiota de que ela era homem, tão forte estava em mim o preconceito que excluía as mulheres da literatura. Se a moça fizesse discursos e sonetos, muito bem. Mas escrever João Miguel e O Quinze não me parecia natural. (RAMOS apud LIMA DUARTE, 1997, p. 59, grifos da autora)
                     
      A história confirma que, também em âmbito mundial, havia poucas mulheres que puderam tornar-se escritoras, devido ao preconceito que envolvia a figura feminina e, nesse sentido, firmar-se como escritora não era uma tarefa nada fácil. Evidentemente que, ao conhecer as condições de vida, as dificuldades por elas enfrentadas, os atestados médicos comprovando a insanidade e a incapacidade intelectual feminina, é de se compreender a sua escassa participação antes da década de 40.

      No entanto, percebe-se que devido ao trabalho realizado por essas mulheres escritoras é que novos horizontes se abriram para elas e para tantas outras que estavam por vir. Tanto que    homens escritores engajaram-se em sua causa emancipatória, presenteando o meio literário com personagens femininos inovadores que inspiraram o mundo intelectual.

continua...

Fonte:
Silvana da Rosa. Do tempo medieval ao contemporâneo: o caminho percorrido pela figura feminina, enquanto escritora e personagem, nos contos de fadas. Dissertação de Mestrado em Letras. Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), 2009

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