quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

Silvana da Rosa (A mulher escritora e personagem nos contos de fadas) Parte XV

3.3 A evolução da figura feminina também ressaltada pela ótica masculina:

[...] Raro é o conto que menciona armas de fogo. Falam sempre de carruagem, espada, transportes a cavalo, reclusão feminina, autoridade paterna, absolutismo real. CASCUDO, 2004, p.13.                                           
No século XIX, e até meados do século XX, o mundo literário inglês, norte-americano e brasileiro sofreu radicais transformações, principalmente com o surgimento destas obras marcantes, entre outras: As aventuras de Alice no país das maravilhas, O mágico de Oz e Narizinho arrebitado.

Poderia se pensar até então que só as mulheres contribuíram para a sua própria causa, mas isso não é verdadeiro, uma vez que o apoio à evolução feminina se deu também por homens escritores, como Charles Lutwidge Dodgson, Lyman Frank Baum e Monteiro Lobato, que abraçaram essa causa, em virtude da real importância conferida às mulheres em suas obras.

Em relação à personagem Alice, criada por Carroll, parece que essa veio compor os traços, as características psicológicas de outras, elaboradas por Baum e Lobato. No entanto, apesar de existir uma distância temporal considerável em relação às obras de Carrol e Baum e às obras de Lobato, o que corresponde, aproximadamente, a cinquenta anos, as suas personagens Alice, Dorothy e Lúcia assemelham-se. As três são personagens protagonistas que não temem o desconhecido e, nem mesmo, os adultos. Alice, Dorothy e Lúcia dialogam com estes numa interlocução de igual para igual e os auxiliam a encontrar soluções para problemas cotidianos. Além disso, são movidas pela curiosidade e, para satisfazê-la, embrenham-se em aventuras inusitadas.
                                                                                   
Charles Lutwidge Dodgson (Lewis Carrol) nasceu em Daresbury, Cheshire, na Inglaterra, em 1832 e faleceu em Guildford, em 1898. Ele foi um matemático britânico e criador de obras que são consideradas clássicas da literatura universal, tais como, As aventuras de Alice no país das maravilhas (1865) e Alice através dos espelhos e o que Alice encontrou lá (1872).

Em um comentário de apresentação da obra As aventuras de Alice no país das maravilhas para os pequenos leitores, Elias José afirma que a personagem Alice pode ser comparada a uma atriz circense que realmente sabe como entreter seu público, conduzindo-o ao mundo encantado:

[...] Alice é a personagem mais indicada para levar alguém ao país do sonho, do faz-de-conta, do fantástico, do maravilhoso, do mágico – mágico mesmo, com doiduras [sic] como aquelas que você gosta de ver no circo. (JOSÉ, 2002, p. 7)                     
Segundo Elias José, Lewis Carrol criou sua obra observando uma menina de dez anos de idade, muito vivaz e criativa, filha de amigos seus. Inicialmente, Carrol jogava    com    as     palavras    e    seus    significados,    visando    entreter    a    garota. Posteriormente, o jogo de palavras e seus estranhos significados vieram a compor sua obra.

Ao escrever sua história, Lewis Carrol partiu do mundo real. Alice, uma menina de 10 anos que ele conheceu, chamou sua atenção pela inquietação, pela alegria e pela facilidade de inventar moda. O autor, então, começou a brincar com as palavras para diverti-la. Dessa brincadeira ele logo passou à construção do livro. Criou fantasiando, com a imaginação toda solta e livre. Ele queria fazer arte com as palavras [...] (JOSÉ, 2002, p.7)                     
Dessa forma, a menina até então só observada transformou-se na personagem Alice (*), que era extremamente curiosa, capaz de “enfiar o nariz” em qualquer lugar, tanto que acabou entrando na toca de um coelho, a fim de descobrir o que havia em seu interior.
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(*) Davi Arrigucci (1999) questiona e compara a atitude de Alice, quando essa cede à curiosidade “[...] E ao ceder à curiosidade, seguindo o passo de Alice entre nós, como não ver espelhada na resenha bisbilhoteira a impressionante capacidade da menina para meter o nariz em toda toca disponível?” (p.141)
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Alice cede ao seu instinto de curiosidade, seguindo um coelho falante e, inusitadamente, chega no País das Maravilhas. A menina, bastante inventiva, é capaz de imaginar de um modo bastante singular o que estava por vir:

Quantos quilômetros será que eu já caí até agora? - disse em voz alta. – Devo estar chegando perto do centro da Terra. Gostaria de saber se vou passar direto através da Terra! Como seria engraçado se eu fosse sair bem no meio daquelas pessoas que andam de cabeça para baixo! Teria de perguntar a eles: “Por favor, aqui é a Nova Zelândia ou a Austrália?” (CARROL, 2002, p.12)                     
O autor instiga o imaginário infantil, uma vez que a menina Alice aumenta ou diminui de tamanho comendo pedaços de cogumelo ou ingerindo líquidos. Essa mudança de estatura permite à menina não só ultrapassar portas, como também vencer obstáculos.

A menina supre não somente as suas necessidades básicas em “BEBA-ME” (p.15) e “COMA-ME” (p.16) (comendo e bebendo), mas também as pertinentes a uma criança perfeitamente saudável que vive em um mundo de faz-de-conta.

Além disso, neste mundo criado por Carrol, à menina Alice é permitido pensar, tomar atitudes, agir naturalmente. Comportamento esse destoante dos moldes da época, mas que prenuncia novos tempos para a personagem feminina, para a mulher escritora, para a estrutura patriarcal vigente.

De acordo com isso, Alice, sendo uma menina altiva e espontânea, fala seus pensamentos, sem antes analisá-los. A situação em que a garota conversa com um rato, querendo que ele conheça sua gata Dinah, é um exemplo disso:

- Mesmo assim, eu gostaria de poder mostrar a você nossa gata, Dinah. Ela é tão queridinha. E fica ronronando tão bonitinho perto da lareira, e é tão caçadora de ratos... Oh, me perdoe! - O Rato ficara com o pêlo todo arrepiado. - Nós não vamos mais falar sobre ela. (CARROL, 2002, p. 22)                     
É interessante ressaltar a localização do País das Maravilhas nessa obra. Ele fica muito além do fundo da toca do coelho e abriga animais e objetos que possuem características humanas, porém fora de seus juízos normais. Os animais conversam, o coelho é atrapalhado, o bicho-da-seda é fumante, enfim, eles contam histórias e divertem os leitores, enquanto as pessoas adultas falam palavras desconexas e apresentam atitudes insanas. Já a menina Alice mostra mais bom senso em relação aos demais, apesar de ser apenas uma menina de dez anos de idade.

Posteriormente, surge O mágico de Oz, de autoria de Lyman Frank Baum. O escritor era norte-americano, nascido em Chittenango, Nova York, em 1856. Pertencente a uma rica família alemã,    além de escritor, Baum também era teatrólogo e teosofista.

Frank Baum começou a escrever muito cedo, uma vez que era amante dos livros. Tendo escrito sessenta obras, O mágico de Oz (Escrita em 1900, denominando-se, inicialmente, O maravilhoso feiticeiro de Oz) é considerada como uma obra singular, que se tornou um clássico mundial. Tanto que o autor escreveu sucessivas continuações desta, alcançando também o sucesso.    Contudo, o que realmente o imortalizou foi a versão O mágico de Oz para o cinema.

O interessante em O mágico de Oz é que o próprio escritor esclarece o objetivo do livro e que pretensão ele teve ao escrevê-lo: “O Mágico de Oz foi escrito para agradar a criança de hoje. Ele pretende ser um moderno conto de fadas, que narra apenas coisas maravilhosas e alegres, excluindo a angústia e o pesadelo”.

Provavelmente, quando o escritor menciona ter escrito um moderno conto de fadas, ele esteja se referindo à nova postura da personagem feminina nesse contexto. Dorothy, a personagem-protagonista, é uma menina órfã, criada pelos tios Henry e Ema, no interior do Kansas.

Apesar de seus pais não estarem vivos e presentes, ela não é uma menina triste ou chorosa. Pelo contrário, é uma garota determinada, falante, inteligente e feliz. Características até então distantes das princesas dos contos. Ao mesmo tempo, Dorothy é humilde e bondosa, traços esses já bastante conhecidos e cultuados durante séculos nas histórias de fadas. Dessa forma, Baum utilizou-se de características que estavam arraigadas, pertencentes à mulher-personagem e, além  disso, ousou, mostrando outra face dessa mesma personagem que ainda estava encoberta.

Quanto ao enredo da história, sabe-se que a menina é levada por um ciclone a uma terra desconhecida, onde, assim como em As aventuras de Alice no país das maravilhas, os animais falam e os seres inanimados possuem vida e voz.

O interessante é que a menina, sendo levada pelos fortes ventos, mostrou-se corajosa, não temendo o desconhecido. Pelo contrário, Dorothy, que é inventiva por excelência, imaginou-se em um barco sacolejando e, quando os ventos tornaram-se mais amenos, em um berço sendo embalada.

Além dessa situação há inúmeras outras que demonstram a coragem de Dorothy,    porém    uma    merece    destaque,    ou    seja,    quando    ela    encontra, inusitadamente, pelo caminho, o leão Covarde.

O pequeno Totó, encontrando afinal um inimigo para enfrentar, correu  latindo na direção da fera, que abriu a bocarra para morder o cachorrinho; Dorothy, sem ter consciência do perigo a que se expunha, avançou para o leão e deu-lhe um tapa sonoro no focinho, gritando: - Atrevido! Atrevido! Um leãozão do seu tamanho mordendo um cachorrinho pequenininho! (BAUM, 1969, p.42)                     
A protagonista, destemidamente, avança em território desconhecido, tal qual príncipes do passado, só que não para conquistar princesas, mas virtudes, pelas quais seus estranhos amigos tanto ansiavam. Evidentemente que ela também queria encontrar o caminho de casa, pois demonstrava estar bastante determinada em seus ideais. Contudo, isso não a impedia de auxiliar os que dela necessitassem. O curioso é que representantes do sexo masculino é que precisavam descobrir o que neles já existia. O espantalho, o homem de lata, e o leão recuperam cérebro, coração e coragem, aventurando-se com Dorothy e, como ela, encarando e resolvendo com sabedoria as dificuldades que encontravam pelo caminho. Outrora, personagens há muito conhecidos, como a Bela adormecida, jamais sairiam do seu ambiente familiar e, acompanhados de homens estranhos, jamais iriam a lugares desconhecidos.

continua…

Fonte:
Silvana da Rosa. Do tempo medieval ao contemporâneo: o caminho percorrido pela figura feminina, enquanto escritora e personagem, nos contos de fadas. Dissertação de Mestrado em Letras. Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), 2009

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