quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Silvana da Rosa (A mulher escritora e personagem nos contos de fadas) Parte XXI

Em A corte do Sr. Lyon, de Angela Carter, o príncipe tinha a “cabeça de leão; juba e fortes patas de leão; erguia-se nas patas traseiras como um leão furioso, mas vestia um smoking de veludo vermelho-escuro e era dono dessa casa maravilhosa e das colunas que a rodeavam” (CARTER, 1999, p. 68). Percebe-se que a descrição de Carter em nada representa o estereótipo de homem perfeito e ideal. Aliás, nem sequer é homem, na verdade é um animal, aparentemente feroz, mas a aparência de nada importa se o mesmo veste-se elegantemente e possui muitos bens. Estes são os valores sociais cultuados pela humanidade.

Carter, em A corte do Sr. Lyon, aproveitou a descrição de Branca de neve para compor sua personagem que, na verdade, chamou-se Bela, uma vez que a escritora utilizou-se do enredo de A Bela e a Fera e, além disso, rememorou um trecho de As aventuras de Alice no país das maravilhas para estruturar a sua narrativa.

Esta linda moça, com uma pele que tinha a mesma luz interior, como se ela, também, fosse toda feita de neve [...] (CARTER, 1999, p. 63) Nem sequer dinheiro teve para comprar para a sua Bela, para a sua menina, para a sua querida, a rosa branca que ela tinha pedido; a única prenda que ela queria, sem se importar com o que pudesse vir a acontecer, sem se importar com ele poder vir a ser de novo muito rico [...] (CARTER, 1999, p. 64)

[...] Em cima da mesa, uma travessa de prata; no gargalo de uma garrafa de uísque, uma placa com a inscrição BEBA-ME, e a tampa da travessa de prata tinha gravado COMA-ME em letra cursiva [...] (CARTER, 1999, p. 66)
                     
A corte do Sr. Lyon também é “um conto de fadas”, desse modo havia sinais de encantamento nos portões e nas portas do castelo, que facilitaram a passagem do viajante, pai de Bela. Isso faz lembrar Rosinha dos espinhos, de Grimm e A Bela dormindo no bosque, de Perrault, uma vez que ambos os príncipes embrenharam-se em cercas-vivas para entrar no castelo e, como magia, elas se abriam, fechando-se após eles passarem.

Bela gostava muito de ler e era uma moça humilde. Na verdade, seu pai já tinha sido rico, mas perdeu tudo em jogos de cartas. A partir dessa atitude inconsequente do pai e de muitas outras mostradas no decorrer da história, percebe-se o seu espírito fraco e inexpressivo.

Bela não presenciou a riqueza e nem viveu nela, pois ainda não havia nascido. Sua mãe falecera ao dar à luz a menina. Assim como a personagem Bela de Beaumont, a Bela de Carter também era dotada de sentimentos nobres e, talvez por ser órfã de mãe, tinha real adoração pelo pai. Em consequência disso, faria qualquer coisa para ajudá-lo e vê-lo feliz: “Não que ela não tivesse vontade própria; mas tinha um invulgar senso de obrigação e, além disso, era capaz de ir até os confins do mundo pelo pai, a quem amava profundamente” (CARTER, 1999, p. 70).
Nesse conto, a história original (hipotexto) e a recriada (hipertexto), como é de se esperar, cruzam-se incessantemente, contudo, o surpreendente no conto recriado é a Fera tornar-se uma herbívora, pois perdeu a coragem de caçar animais para se alimentar.

- Estou morrendo, Bela - disse ele, num murmúrio fendido do antigo ronronar. - Tenho estado doente desde que você foi embora. Já não conseguia caçar, vi que já não tinha coragem de matar aqueles delicados animais, já não conseguia comer. Estou doente e vou morrer, mas morro feliz, porque você me veio dizer adeus. (CARTER, 1999, p. 78-79)                     
E, no final, como no conto original, a metamorfose acontece, o encanto que o havia tornado animal acaba. De outro modo, o encanto poderia ter se iniciado, uma vez que a Fera se tornou num belo homem e, a partir daí, poderia se sugerir um novo recomeço para a história.

Segundo Maria Tatar, em versões subsequentes à original nem sempre se encontra a explicação sobre o príncipe ter sofrido tal encantamento que o transformou em uma fera, mas no conto de Beaumont, menciona-se que uma fada má o havia enfeitiçado e o transformado em animal.

[...] Poucas versões da história explicam por que o príncipe sofreu encantamento. Em algumas delas, a razão é sua arrogância, ou sua falta de caridade para com uma mulher. (TATAR, 2004, p. 82)

Uma fada má condenou-me a viver sob essa forma até que uma bela moça consentisse em me desposar [...]. (BEAUMONT apud TATAR, 2004, p. 82)
                     
Já em A noiva do tigre, Carter situa o conflito do conto em sua frase inicial: “Meu pai perdeu-me num jogo de cartas para a Fera” (1999, p. 83). Na verdade, ambos os contos, A corte do Sr. Lyon e A noiva do tigre, abordam a história de A Bela e a Fera. Desse modo, o nome da personagem-protagonista é o mesmo, além de ambas serem órfãs de mãe.

Em A noiva do tigre, a razão da morte da mãe de Bela foi o vício do pai, sendo que ele perdeu tudo em jogo, até mesmo o dote recebido pela família da noiva, quando se uniram em casamento. Neste caso, a escritora revive um antigo costume, estipulado por preceitos patriarcais, em que o casamento se efetivava mediante pagamento.

Assim como Barba-Azul, a Fera de A noiva do tigre disfarçava-se de humano, usando máscara e peruca. Desse modo, Carter ironiza a representação dos papéis masculinos, mascarados em falsos príncipes, porém perceptíveis aos olhos femininos.

[...] Ah! Sim, uma linda cara; mas com demasiada simetria para ser inteiramente humana: o perfil da máscara é a imagem perfeita do outro lado, demasiado perfeita, misteriosa. Usa também uma peruca, de cabelos não verdadeiros, atada na nuca por um grampo, uma cabeleira como as que se vêem em retratos antigos. Um lenço de seda pura preso por uma pérola esconde-lhe o pescoço. E luvas de pelica castanha, tão grandes, todavia, que não parecem esconder mãos. (CARTER, 1999, p. 86-87)                     
Já a personagem Bela, em A noiva do tigre, desde a infância se mostrava diferente, ou melhor, não se portava como as demais meninas. Era bastante vivaz e rebelde, o que incomodava suas babás. Além disso, apreciava boas leituras. Segundo Maria Tatar, tratando-se de Bela, não era nada comum apresentar-se personagens de contos de fadas como leitores.

[...] É inusitado para personagens de contos de fadas aperfeiçoarem-se através da leitura. A maioria deles é relegada a trabalhos servis em casa, ou parte em viagens pelo mundo. (TATAR, 2004, p. 66)                     
No conto de Beaumont, Bela é desmedidamente nobre de coração, a ponto de se sentir feliz por trocar a sua vida pela de seu pai, acrescentando que nunca foi muito apegada à mesma e seria uma forma de provar a sua afeição por ele. Ainda, no conto de Beaumont, Bela tem duas irmãs. Já no conto contemporâneo de Carter a protagonista é filha única. No entanto, em Beaumont, a atitude de Bela em relação às irmãs que só a maltrataram é surpreendente, uma vez que ela as perdoa sem nenhum ressentimento. A respeito disso, Tatar menciona:

[...] Como algumas Cinderelas (a de Perrault, para citar um exemplo), Bela estava pronta a perdoar as irmãs, por mais perversas que tivessem sido. Nos contos populares orais, Belas e Cinderelas tendem a ser menos magnânimas. (TATAR, 2004, p. 74)                     
Em A noiva do tigre, com o passar do tempo, a menina Bela cresceu e as suas características percebidas na infância afloraram em uma personalidade forte, decidida, inviolável, virgem. Tanto que Bela não aceitava a situação de ter sido vendida, trocada em jogo para a Fera. Dessa forma, a escritora aborda os temas como prostituição, dinheiro, casamentos negociáveis e desprovidos de sentimentos.

Muitas passagens presentes no conto A noiva do tigre são reminiscências do conto original, o hipotexto, como a visão do pai de Bela pelo espelho; a eclosão do fogo dentro e fora da lareira; o oferecimento da roupa para cavalgar ou a roupa limpa, pronta para ser usada; o desejo de Bela ver seu pai, entre outras.

Em A garota da neve, Carter seguiu seu estilo próprio, recortando passagens de outros contos de fadas e inserido-as em sua recriação, tais como Branca de Neve (de Jacob e Wilhelm Grimm), de que a autora aproveitou o título também para compor sua obra, além de Sole, Luna e Talia (de Giambattista Basile).

Em Grimm, o conto se inicia com o desejo de a rainha ter um filho, seguindo características determinadas pela futura mãe. Em Carter, o conde deseja ter uma garota conforme caracterizações semelhantes às da rainha do conto de Grimm. No entanto, o conde não deseja uma filha, mas uma amante, pois ele se apresentava cavalgando com a esposa ao lado.

[...] ela estava sentada a costurar, junto de uma janela com uma moldura de ébano. Enquanto costurava, olhou para a neve e espetou o dedo com a agulha. Três gotas de sangue caíram sobre a neve. O vermelho pareceu tão bonito contra a neve branca que ela pensou: “Ah, se eu tivesse um filhinho branco como a neve, vermelho como o sangue e tão negro como a madeira da moldura da janela” [...] (BEAUMONT apud TATAR, 2004, p. 86)
- Gostaria de ter uma garota branca como a neve - diz o conde.
Continuam a cavalgar. Chegam a um buraco na neve, cheio de sangue. Ele diz:
- Gostaria de ter uma garota vermelha como o sangue.
Continuam a cavalgar; um corvo está pousado num galho nu.
- Gostaria de ter uma garota negra como as penas de corvo. (CARTER, 1999, p. 161)
                     
Ao final das falas, o conde obteve o objeto de seu desejo, a garota da neve. Assim como a rainha que, pouco tempo depois, deu à luz a uma menina. No entanto, a garota da neve, tal qual Cinderela, sofre provações advindas não da madrasta, mas da condessa, esposa do conde.

Em A garota da neve, a moça perece em uma das provas impostas pela condessa. Como em Sole, Luna e Tália, a garota da neve, espeta o dedo em uma roseira e morre e, mesmo estando morta, ela é abusada sexualmente pelo conde, na presença de sua esposa. Em seguida, ambos partem. Cena semelhante é narrada em Sole, Luna e Tália, uma vez que a princesa havia espetado “uma lasca de linho debaixo da unha” (BASILE, 1996, p. 53) e se encontrava adormecida. O rei, que também era casado, entrou no castelo e, encontrando-a sozinha e encantada, estuprou-a, posteriormente, esquecendo-se do ocorrido.

No primeiro conto, O quarto do Barba-Azul, há a presença marcante da mãe da protagonista. Nos dois subseqüentes, A corte do Sr. Lyon e A noiva do tigre, as protagonistas eram órfãs de mãe e, no último conto, A garota da neve, não se faz menção aos pais da moça.    Maria Tatar, a respeito disso, comenta que muitas narrativas enfocam essa temática, visando enaltecer a benevolência de uma mãe morta, em contrapartida vê-se uma madrasta cruel que se encontra viva.

[...] Os contos de fadas muitas vezes cindem a figura materna em dois componentes: uma mãe boa, morta, e uma madrasta malévola, viva. Isso permite às crianças preservar uma imagem positiva da mãe ao mesmo tempo em que se entregam a fantasias sobre a maldade materna. (TATAR, 2004, p. 96)                     
De acordo com o que já foi visto, é possível afirmar que o texto literário é o reflexo social e histórico da humanidade, uma vez que perpassam nele situações isoladas, somando-as, arrematando-as em um único contexto, o próprio texto, que nada mais é que um processo intertextual. E o interessante é que nesses dois últimos séculos as mulheres não escreveram somente contos de fadas, mas a história social, a sua trajetória de vida. E, mais especificamente, quanto aos contos analisados de Carter, percebe-se a verdadeira identidade feminina.

Carter comprovou que não é mais concebível considerar as mulheres como “cidadãs de segunda classe”, uma vez que suas personagens protagonizam seus papéis na ficção e na vida real. Além disso, a escritora desconstruiu a velha imagem da figura feminina, recriando a mulher contemporânea. Essa não é princesa e nem admite parecer-se como tal. É uma mulher normal que deseja tomar as rédeas de seu destino, buscando a felicidade.

Na verdade, a escritora emancipou a figura feminina de um longo período de dependência masculina. E, agora, considerada independente, a mulher quer desfrutar de seus direitos. Junto a Carter, as escritoras Drabble e Extrebarría também engajaram-se  no processo de composição da identidade feminina, o que será visto no subcapítulo seguinte.

continua…

Silvana da Rosa. Do tempo medieval ao contemporâneo: o caminho percorrido pela figura feminina, enquanto escritora e personagem, nos contos de fadas. Dissertação de Mestrado em Letras. Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), 2009

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