sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

Silvana da Rosa (A mulher escritora e personagem nos contos de fadas) Parte XXII

4.3 Escritoras engajadas no processo de composição da identidade feminina

Hoje, os estudos sobre a literatura feminina, feitos quase sempre pela própria mulher, buscam uma leitura engajada com o social, mostrando como as obras escritas por homens construíram a estereotipia do feminino, através da passividade, da história, ou do caráter fraco e maléfico das personagens femininas. PAIXÃO, 1997, p.73.                                                  
Neste subcapítulo serão realizadas algumas abordagens quanto às escritoras Margaret Drabble e Lucía Extrebarría que, através de suas releituras e re-escrituras, engajaram-se na composição da personagem feminina em suas obras, embora não sejam autoras de contos infantis. Será citada ainda a teórica Marie-Louise von Franz, de acordo com seus estudos realizados nesta área.

Margaret Drabble também adotou o mesmo processo de Carter. Apesar de escrever romances e não contos, a escritora criou personagens e roteiros concernentes aos novos tempos. Além disso, Drabble salienta a importância dos romances e de suas personagens femininas, quando mostram a realidade vivida pela mulher em âmbito mundial, visto que essas narrativas contribuem para a composição da identidade social e psicológica feminina, em tempo presente e também para uma perspectiva futura.

Muitas pessoas leem romances a fim de encontrar padrões ou imagens para futuras possibilidades – para saber como se comportarem, o que podem esperar ser mais tarde. Não queremos nos parecer com as mulheres do passado, mas onde está nosso futuro? É isso, exatamente, o que muitos romances escritos por mulheres estão tentando responder; alguns em termos cômicos, outros de forma trágica e outros, ainda, de maneira especulativa. Vivemos num mundo sem coordenadas, no que se refere ao modo de viver e à moral; estamos tendo que criar nossa própria moralidade, à medida que avançamos. Nosso campo é vastíssimo, há padrões totalmente novos a serem criados... os que sentem a necessidade de fazê-lo estão ativamente empenhados em criar um novo padrão, um novo esquema. (DRABBLE apud GUEDES, 1997, p. 8)                     
Assim como Drabble,    Angela Carter também se enquadra nesta busca e criação de um novo padrão a ser seguido pela mulher, em observância às suas personagens femininas, ou seja, ambas mostram que nem tudo está perfeito ou é aceitável do modo como se encontra. Desse modo, Drabble propõe ajustes ou afrouxamentos para situações que se relacionam ao contexto feminino. E, tratando– se da composição da identidade da mulher, principalmente em sua integridade psicológica, quer na vida real ou na ficção, nada melhor que a própria mulher realizar o seu auto-retrato e apresentá-lo à sociedade para que seja difundido.

Além disso, mais uma coincidência remete às obras de Drabble e Carter, as referências intertextuais. Os romances de Drabble estão repletos de intertextos, assim considera Guedes, comentando o estilo narrativo da escritora:

Seria impossível listar aqui todas as alusões e citações explícitas ou os ecos sutis que entrelaçam as obras de Shakespeare, Austen, Dickens, Eliot, Lawrence e outros com a trilogia de Drabble. Os textos de Drabble sempre foram repletos de referências intertextuais. A intertextualidade é um aspecto significativo de seu estilo narrativo e delineia a sua relação com um sentido de tradição literária em permanente mudança e evolução. (GUEDES, 1997, p. 60)                     
No entanto, nas obras de Drabble os intertextos acontecem também com as personagens que se repetem em obras sequenciais, consequentemente as suas narrativas não apresentam final. Dessa forma, a escritora incita o leitor a buscar a continuidade do texto que não se finda na última linha.

Provavelmente, Drabble tenha adotado esse estilo, abolindo o final de suas narrativas, deixando as últimas linhas “entreabertas” à imaginação para salientar um anseio feminino, a busca de uma “brecha”, um espaço no mundo dos homens, para que a mulher possa mostrar o quanto é capaz, determinada em seus objetivos pessoais e profissionais.

Desse modo, ela aproxima a ficção da vida real, uma vez que a vida é um processo contínuo, que se desenrola cotidianamente. Provavelmente, essa nova construção seja uma característica tipicamente feminina.

Nesse    ponto, Angela Carter,    Margaret Drabble    e Lucía Etxebarría assemelham-se, ou seja, suas personagens vivem conflitos psicológicos comuns a qualquer mulher quando se encontra num processo de descobrimento e composição de sua própria identidade.

“Eu gostaria”, disse Liz Ablewhite , após a meia-noite, com o olhar fixo nas colunas flamejantes esbranquiçadas, irregulares, brilhantes e incertas da lareira à gás, “de entender o sentido das coisas”. “Coisas” aí significava ela própria. Ou pelo menos era assim que ela pensava. “Eu gostaria”, disse Alix, “de mudar as coisas”. “Coisas” não significava ela mesma. Ou pelo menos ela achava que não. “Vocês querem chegar muito alto”; dizia Esther, “eu quero obter informações interessantes. Só isso”. (DRABBLE apud GUEDES, 1997, p. 22)
[...] No ha merecido la pena esforzarme en demostrar que soy una buena chica. Antonio se ha muerto y no me importa. Borja está vivo y no me importa. Lo único que me importaba, lo único que ha importado siempre, era limpiar una mancha. Pero eso tampoco importa ya. Al fin y al cabo, la limpieza ya no me obsesiona. Anita organizó una revancha de opereta y Ana duerme con un extraño, confinada en una casa que ha demostrado no necesitarla, recluida en un calabozo que ella misma ha decorado. Y yo me siento vacía como una mujer burbuja. (ETXEBARRÍA apud ALMEIDA, 2003, p. 35)                     
Essas três escritoras apresentam em suas obras o novo perfil da personagem feminina. Além disso, Carter acresceu às suas personagens uma característica comum ao sexo feminino na vida real, o sexto sentido. Já Etxebarría, utilizando-se das personagens, irmãs Gaena, mostra o conflito psicológico vivido por três mulheres (Cristina, Rosa e Ana), percebido através do vazio de suas vidas e das escolhas erradas que fizeram, seguindo critérios medíocres, arraigados em falsos valores.

[...] yo era la tonta de la casa, una buena chica sin más, pero me temo que no era tan tonta, que soy demasiado lista, lo suficientemente lista, al menos, para darme cuenta de que esta vida que llevo no me dice nada, y que lo que yo querría es ser como tú, pero lo suficientemente tonta para no saber cómo arreglar este desaguisado en que yo misma me he metido. (ETXEBARRÍA apud ALMEIDA, 2003, p. 35)                     
De certa forma, essa procura contínua da mulher vem ao encontro das ideias de Beauvoir, citadas por Zahidé Lupinacci Muzart. O que falta essencialmente à mulher de hoje, para fazer grandes coisas, é o esquecimento de si: para se esquecer é preciso primeiramente que o indivíduo esteja solidamente certo, desde logo, de que se encontrou. Recém-chegada ao mundo dos homens, e mal sustentada por eles, a mulher está ainda ocupada com se achar. (BEAUVOIR apud MUZART, 1997, p. 89)                     
A mulher pode ainda não ter se achado no “mundo dos homens”, como Beauvoir fez menção, e talvez, um dos motivos para que ela se depare com esse período de desencontro seja porque, durante muito tempo, tenha sido obrigada a se esconder do mundo, omitindo seus pensamentos e a sua própria identidade. No entanto, percebe-se que muito do que a mulher sentia, tornava-se explícito na composição das narrativas aqui trabalhadas.

Visto que Carter e Drabble, entre outras, inovaram em seus estilos narrativos, relativizando palavras e contextos autoritários, bem como, atribuindo diferentes interpretações para as últimas linhas de seus textos, percebe-se, desse modo, que as escritoras contemporâneas estão modificando os finais de suas obras, objetivando aproximá-los à nova postura feminina que se distancia de antigos encargos patriarcais, como o casamento e a maternidade. A esse respeito, Guedes menciona que:

[...] As escritoras do século XX têm tentado modificar os finais dos romances – habitualmente episódios de casamento ou morte – criando narrativas que oferecem uma série diferente de opções à heroína, questionando assim as imagens tradicionais da socialização da mulher [...] (GUEDES, 1997, p. 18)                     
Convém mencionar aqui, novamente, Margaret Drabble, citada por Peônia Guedes (1997), uma vez que a escritora de romances como The Radiant Way, A Natural Curiosity e The Gates of Ivory utiliza-se destes para apresentar ao público, em especial feminino, a nova imagem da Cinderela contemporânea. Na verdade, as personagens de seus romances, Liz, Alix e Esther, são Cinderelas ao avesso, ou seja, mulheres que não admitem seguir o roteiro original desse conto de fadas. Na verdade, a imagem de uma Cinderela sofredora, humilhada e sonhadora elas decidem não viver, pois desejam ser felizes, compondo as suas próprias histórias, desvinculadas de um passado marcado por preconceitos e censuras.

Desse    modo,    torna-se    também    impossível    deixar    de    comparar as personagens princesas de contos passados (de Basile, Perrault e Grimm) com a princesa de Angela Lago, uma vez, apesar do distanciamento temporal dessas narrativas, há elementos intertextuais que as interligam deixando-as com um “ar de semelhança”. Além disso, as personagens criadas por Angela Lago surpreendem em adotar posturas nada convencionais, ou seja, personagens decididas e donas de seus destinos, se comparadas às personagens de narrativas historicamente disseminadas no meio cultural da humanidade, sendo que o papel feminino de suas histórias está realmente condizente com o assumido pela mulher hoje, enquanto personagem, mulher e escritora.

De outro modo, segundo a escritora chilena Guerra, citada por Navarro, a produção feminina, mais especificamente, latino-americana, seria uma “proliferação de sombras, a apropriação estratégica de modelos masculinos” (1997, p. 48). No entanto, verifica-se que as obras das escritoras latino-americanas, como Angela Lago e Lucía Etxebarría se contrapõem ao que Guerra afirma. Talvez, se Guerra mencionasse que há algumas e belíssimas exceções, fosse mais acertada a sua colocação.

continua…

Silvana da Rosa. Do tempo medieval ao contemporâneo: o caminho percorrido pela figura feminina, enquanto escritora e personagem, nos contos de fadas. Dissertação de Mestrado em Letras. Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), 2009

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