sábado, 30 de janeiro de 2016

Silvana da Rosa (A mulher escritora e personagem nos contos de fadas) Parte XXIII, final

Angela Lago (2000) retrata o já conhecido em um novo contexto. Na verdade, a escritora não reescreveu nenhum conto de fadas, mas a forma com que os personagens, até então perenizados em seus papéis e posturas sociais, assumem papéis inesperados é surpreendente. Tanto que o futuro príncipe, chamado Seinão, é considerado um menino zonzo, indeciso e que não sabe o que realmente quer da vida. Além disso, não possui sangue real, mas apaixona-se pela princesa.

A princesa não é nada convencional em suas atitudes, ou seja, é uma jovem independente, inteligente e debochada. E, por não levar a sério o amor de Seinão, propõe a ele uma tarefa impossível em troca de sua mão em casamento. Nessa tarefa não há dragões e nem ao menos princesas que dormem sonos seculares.

Seinão deveria ir não sei onde e buscar não sei o quê. De acordo com a determinação dessa prova, a princesa não queria se casar com o moço, aliás, ela escolheria quem seria seu marido. Decisões impossíveis há séculos atrás, uma vez que a mulher era condicionada a aceitar as ações do destino, as quais significavam as decisões da sociedade patriarcal.

O futuro príncipe foi submetido a uma missão que exigia coragem, situação semelhante imposta aos demais príncipes de contos precedentes, que, na verdade, representavam a coragem de forma simbólica, ou seja, eram os homens certos para um certo momento. Assim, ele, o Seinão, andou em inúmeras direções e foi até o inferno. Chegando lá, começou a trabalhar como atualizador dos arquivos e pastas de pecados e pecadores. Em troca, receberia a encomenda da princesa, que ele mesmo não sabia o que era.

De certa forma, essa obra retoma a ideia de que os príncipes do passado também foram até o inferno para conquistar o amor da princesa. No entanto, um certo dia, o diabo dispensou o garoto com um embrulho nas mãos, assim dizendo: “É não sei o quê, mas você não pode abrir, pois se abrir deixa de ser” (2000, p. 18).
 
O menino chegou vitorioso ao palácio entregando o “não sei o quê” à princesa, uma vez que a sua tarefa era ir buscá-lo. Agora, Seinão está muito bem casado com a princesa que não o queria, e o embrulho segue embrulhado.

Nessa história, o ambiente é o mesmo das narrativas já conhecidas, uma vez que havia um palácio e os sábios, conselheiros da princesa. Além disso, apesar de o pretendente da jovem ser desorientado e não possuir sangue real, ele agiu como os demais príncipes, sendo vitorioso em sua missão. Contudo, o diferencial está na atuação da personagem feminina, a qual tem muito em comum com a mulher contemporânea, pois ela se tornou independente, decidida, uma vez que é de sua escolha optar pelo matrimônio ou não. E essa decisão era única e exclusiva da jovem, sendo que os pais dela participaram da narrativa, porém jamais opinaram quanto a sua escolha. Somando-se a isso, a missão atribuída ao futuro príncipe de ir buscar um embrulho era somente um teste para se medir as suas virtudes e talvez, a curiosidade deste, visto que em Amor e psiquê, a personagem feminina não conseguiu ser mais forte que o seu ímpeto curioso e, por isso, ela não foi bem em sua aventura, inicialmente. Seinão mostra-se diferente, tanto que o embrulho que ele traz segue da mesma forma.

A imagem do príncipe Seinão de Angela Lago é bastante parecida com a figura proposta por Liz Lochhead, citada por Izabel Brandão, isto é, a imagem do príncipe que deveria simbolizar a perfeição, a completude e a força do sexo masculino, é massacrada e ironizada pela princesa. Depois de anos a fio reclusa, a princesa passou a se conhecer melhor e a questionar todas as coisas que não entende ou que não preenchem seus pré-requisitos. (LOCHHEAD apud BRANDÃO, 1997, p. 201)                     
Mais de cinquenta anos se passaram desde o grito de basta das feministas que não mais aceitam papéis submissos na ficção e na vida real. Aliás, Laura Cavalcante Padilha tão bem expressou essa ideia, citando em seu artigo a fala de Paula Tavares, escritora angolana: “Eu sinto-me melhor quando grito” (TAVARES apud PADILHA, 1997, p. 67). Laura Padilha ainda afirma que o grito recalcado das mulheres escritoras foram silenciados no passado pelos cordéis da dominação e que Paula Tavares é um exemplo dessa repressão machista contra a escritura e publicação de livros.

Franz já afirmava que “homens e mulheres não poderão reencontrar sua natureza    profunda    senão    no    reconhecimento    e    no    respeito de    sua complementaridade” (1995, p. 262). De acordo com essa visão, os tempos já se mostram renovados, uma vez que hoje, a mulher, a Bela adormecida do passado, não necessita mais de um beijo para acordar. Mas, talvez, de um beijo para dormir, após muito tempo estar acordada, escrevendo ou re-escrevendo sua história, numa trajetória histórica em que assumiu inúmeros papéis, que variaram desde o de bruxa até o de fada. No entanto, o mais importante no momento é escrever de próprio punho a narrativa de sua vida e nela mostrar que a Bela não se encontra mais em sono profundo e que papéis assumidos em remotos tempos não mais condizem com sua postura contemporânea. É evidente que nesse contexto a emancipação feminina não diz respeito somente à mulher, mas à libertação de um sistema histórico de dominação masculina.

Foi graças a mulheres de diferentes épocas como Beaumont, Carter, Atwood, Drabble, Etxebarría, Lago, Warner, Tatar, Lochhead, Franz, entre outras que, pensando a personagem feminina ao longo de uma incessante caminhada de sacrifícios e lutas, conseguiram desmistificar a representação determinada pelos preceitos masculinos. Tanto que na atualidade vêem-se a Julie, as Angelas, as Margarets, a Lucía, a Marina, a Maria, a Liz, a Marie-Louise, filhas, irmãs ou mulheres de quem? A ninguém interessa responder esta questão porque elas possuem as suas próprias sombras, não precisam representar que são sombras de figuras masculinas. Elas representam o novo feminino que se abstraiu de modelos passados. A imagem de donzela reprimida, a menina ignorante ou ingênua (como em A bela adormecida) ou o extremo, a bruxa perversa, não se encaixa mais em cenários contemporâneos. Visto que ao longo deste percurso, que pode ser caracterizado como feminino, muitas transformações aconteceram, especialmente relacionadas à postura ingênua da mulher. E essa mudança gradativa e contínua pode ser muito bem representada pelas personagens de Carter, Drabble e Etxebarría, entre outras.

Hoje, fruto de reivindicações, lutas, guerras, conquistas são colhidas. Sendo acertado afirmar que a emancipação da figura feminina, enquanto escritora, personagem e membro social, é parte da emancipação humana, o que deve resultar no equilíbrio almejado de saberes por ambos os sexos. Desse modo, homens e mulheres podem viver em harmonia os seus verdadeiros papéis em contos de fadas ou na vida real, retratando os novos tempos, desde que saibam respeitar os seus espaços e as suas próprias individualidades.

                           CONSIDERAÇÕES FINAIS
                            
É sabido que os contos existem desde o surgimento da humanidade, contribuindo para moldar a sociedade em seu tempo e valores. O curioso é a influência que estas narrativas exercem sobre a estrutura psicológica e social das pessoas. Tanto que, ainda hoje, muitos sonham em ser príncipes e princesas, reis e rainhas, além de desejarem viver em um conto de fadas, por mais que seja através de outros meios. Como exemplo disso, há os concursos de beleza em que a mulher vive um conto de fadas na contemporaneidade.

No entanto, o que se observa na constituição desses desejos é que as características dos personagens sofreram profundas transformações. Narrativas que correspondem a modelos alinhavados e costurados em séculos antes de Cristo, ainda circulam, no entanto percebe-se que moldes de príncipes-heróis e princesas– indefesas desatualizaram-se em meio à evolução da humanidade.

É bem verdade que a mulher ainda sonha em ser princesa ou rainha, mas com uma condição: ser normal. Nada de incorporar uma Madre Tereza de Calcutá. Aliás, essa exigência fazia parte do passado, em que a mulher deveria ter uma boa formação religiosa, que se estendia a ser uma boa filha, esposa, mãe, mulher devota. Essa formação já não consta mais dos manuais de conduta feminina.

Desde os séculos IX a XIII, com a obra Sendebar, de Sendabad, a figura da mulher permaneceu inerte, sem personalidade própria, em seus papéis, enquanto bruxa, madrasta, fada, princesa ou rainha, e essa perspectiva feminina foi disseminada também no século XIX pelos contos dos Irmãos Grimm, vindo somente a ser repensada em meados do século XX, quando a recomposição da personagem feminina passou a ser estruturada sob um novo enfoque, consoante com a ótica feminista.

Percebe-se, realmente, com a obra Sendebar, ou também chamada de O livro dos enganos das mulheres que a mulher passou a ser lograda, enganada em seu papel, como traiçoeira, falsa, má. E, para desfazer esses enganos, há muito registrados e disseminados através da cultura e entre as culturas, Bettelheim e Clarissa Pinkola Estés comprovaram que todo ser humano pode ser bom e mau, sendo que essa variação torna-se comum quando o mesmo interage no meio em que vive, uma vez que estes dois pólos opostos habitam o consciente humano.

Anteriormente a Bettelheim e Pinkola Estés, escritores como Basile, Perrault, Grimm, Romero divulgaram e persistiram na velha imagem do mito feminino, anjo ou demônio, que, na verdade, eles, como homens escritores, desejavam perpetuar, uma vez que a sociedade feminina era moldada de acordo com os ditames masculinos.

No entanto, movimentos começaram a se formar contra a discriminação feminina, ainda quando os folhetins estiveram em voga e os contos ultrapassaram a oralidade dos lares para alcançarem as ruas. Na verdade, as mulheres que começaram a se reunir contra o poder asfixiante patriarcal, viram-se como soldados que tomavam a frente e se prostravam diante de um pelotão extremamente armado com valores excludentes e preconceituosos.

Nessa batalha, muitas mulheres morreram, outras foram presas ou internadas em hospícios, mas foram raríssimas as que conseguiram driblar a vigilância masculina. Seguiram redigindo seus contos, suas histórias anônimas ou registradas com pseudônimos. Infelizmente, a história mostra que escrever contra a voz patriarcal é como se a princesa lutasse de mãos vazias contra o dragão.

Mesmo contrariando a situação adversa, um movimento se formou. As preciosas somaram forças, registrando as suas vivências, amarguras, desejos nos contos de fadas. Inicialmente, as escritoras divulgavam suas obras a um grupo seleto no interior de seus quartos ou salões.

Essas mulheres ousaram inserir-se em um universo de homens escritores. Algumas iniciaram seus trabalhos auxiliando escritores na redação de livros. Outras traduziram obras de homens, é claro!

Seguidoras de Mme d’Aulnoy continuaram a sua luta em favor das conquistas femininas, apesar de sofrerem constantes humilhações, maus-tratos. Nesse movimento de adesão literária, formado pelas preciosas, mulheres de muitas partes do mundo irmanaram-se a esta causa.

Posteriormente, mulheres de coragem redobrada surgiram, as escritoras que comprovaram que o estereótipo da figura feminina criada pelos homens em nada condizia com a sua realidade. Elas estavam cansadas de usarem máscaras que representavam papéis dissimulados no contexto literário e social.

Obras belíssimas surgiram, à luz da célula-mater oriental Calila e Dimna. Evidentemente que as mulheres escreveram usando pseudônimos, principalmente masculinos, para se protegerem e se inserirem em uma sociedade em que a condição da figura feminina estava subjugada por longo do tempo ao poderio masculino/patriarcalista.

Tristes realidades registradas em Marmoisan ou L’innocent tromperie, Peau d’ours, Le magasin des enfants. Nessas narrativas, as escritoras vestiram suas personagens de homens, soldados, em peles de urso, para serem vistas, valorizadas ou fugirem de freqüentes maus-tratos. Nessas estão os registros de tempos difíceis em que as mulheres eram condenadas a viver na segunda classe, como diria Angela Carter.

No Brasil, em meados do século XIX e XX, escritoras como Júlia Lopes de Almeida, Zalina Rolim, Francisca Júlia da Silva Munster e Alexina de Magalhães Pinto começaram a despertar para o mundo literário, escrevendo para o público infantil.

De outro modo, o reinado das mulheres começou sem mesmo elas se tornarem princesas, sob novo perfil, com Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato. Mundialmente, Alice e Dorothy já tinham mostrado a nova face feminina.

Essas personagens-protagonistas criadas por Lobato, Carrol e Baum possibilitaram à mulher, na ficção, mostrar a sua real identidade e seu espírito de liderança. Assim, percebiam-se novos rumos quanto ao destino da mulher, enquanto personagem e membro social.

Visto que, em meados dos anos 50, o Movimento Feminista se firmou, em muitas partes do mundo, inclusive no Brasil, convém salientar a presença de Presciliana Duarte, dentre as escritoras brasileiras, que foi uma figura de destaque, em âmbito literário e educacional, enquanto mulher e também feminista.

Dessa forma, com a disseminação do feminismo, sistemas sociais foram revistos e, consequentemente, a literatura se inseriu nesta reavaliação. Marina Warner já havia afirmado que os contos de fadas possuem poder perene, ou seja, a essência desses são sempre iguais, o que há de diferencial são os interesses e as necessidades do povo que determinam a sua moldura: “São histórias que possuem um poder permanente, como mostra sua Antiguidade, porque os significados que geram estão, eles mesmos, sempre mudando de forma e dançando segundo a necessidade do público” (1999, p. 22). E os interesses do povo mudaram, tanto que ritmos diferentes exigem novos movimentos, embasados em leituras representativas de sua realidade.

De certo modo, os dolorosos anseios e apelos femininos do passado se tornaram realidade. Essas solicitações já tinham sido escritas nas linhas e entrelinhas dos contos. Assim, as novas conquistas das mulheres, na verdade, não passam de antigas reivindicações femininas. Na verdade, a militância política feminista associada ao grupo restrito de escritoras transformaram a história social da humanidade. Tanto que hoje a mulher pode optar pela carreira militar e concorrer a patentes com os demais, homens e mulheres.

Conquistas as mulheres realmente tiveram, após uma longa caminhada de escravidão, medo, obediência. Adquiriram sim, o direito ao voto, à educação, à liberdade, à sexualidade, de optar ou não pelo casamento, de concorrer a cargos públicos, de participar da esfera política e administrativa de seu país, de controle da natalidade, de disputar vagas de trabalho em igualdade com homens, de conquistar seu espaço profissional fora de casa (com isso, somando, infelizmente, uma dupla jornada), mas o que se faz importante é que, através do trabalho, principalmente literário, a distância entre homens e mulheres se fez menor.

Carter, Atwood, Lago, Drabble, Etxebarría, Lochhead, são escritoras que, através de seus trabalhos, desmistificaram a personagem feminina, identificando a nova mulher, que é decidida, corajosa, inteligente, sutil, esclarecida, trabalhadeira, sensual, longe de endeusamentos, tanto que ela ainda sente momentos de insegurança, medo e vazio existencial.

E, nessa releitura dos papéis femininos, as paródias, os intertextos se fizeram mais que pertinentes, uma vez que o resultado foi o nascimento da mulher contemporânea, que não admite mais estar constantemente sob o jugo masculino.

É bastante sugestivo o título usado por Pinkola Estes (Mulheres que correm com os lobos), pois as mulheres correm com os lobos e não mais correm dos lobos. E, segundo Marina Warner, as mulheres variam de fera à loira, de acordo com seu bel-prazer. Agem como feras se querem lutar por seus ideais, seus filhos, sua família. Quando querem mostrar-se femininas, as feras transformam-se em morenas, ruivas, loiras, dependendo de seu estado de espírito.

As escritoras feministas adequaram seus personagens às atuais estruturas sociais, bem como diria Rita Terezinha Schmidt (Mulheres e literatura: (trans) formando identidades). Angela Carter permitiu que a Fera tirasse sua máscara e vestimentas seculares,    transformando-o,  senão em um príncipe, em um animal bonzinho. A personagem Bela, que há muito vinha sofrendo, pensando em morrer, na época de Beaumont, em Carter, deseja mais é viver e ser feliz. O ogro Barba-Azul, de Perrault, tem um páreo duro para enfrentar, a sogra, personagem de Carter.

A história das protagonistas mulheres na literatura de autoria feminina registra sua trajetória ao longo de séculos em que buscavam conquistar seu espaço. Além disso, as obras escritas por mulheres assumem grande importância para o público feminino, uma vez que contribuem para a composição da identidade da mulher em tempo presente e futuro, quer seja na ficção ou na vida real.

Segundo Guedes, “a reinterpretação dos contos de fadas por escritoras contemporâneas fornece textos mais positivos para as mulheres, em que os estereótipos são rompidos e as possibilidades de desenvolvimento feminino são reexaminadas e expandidas” (GUEDES, 1997, p. 78-79).

Contrariamente ao que Chaucer mencionou a respeito do sexo feminino, ou seja, que só quer mandar (ALMEIDA, 2003, p. 20), é possível afirmar que a mulher, enquanto escritora e personagem, não quer representar papéis, mas quer sim viver o seu papel em um espaço já conquistado, em um território não mais somente masculino.

Comprova-se, através da história que páginas e páginas foram escritas pelos homens. Agora, novas páginas estão construindo ou reconstruindo o percurso literário feminino, prenunciando novos tempos de igualdade.

A partir dessas observações, verifica-se a necessidade de se buscar possíveis respostas ou alternativas que contribuam para o campo literário, resultando em projetos novos relacionados à evolução da figura feminina nos contos de fadas, através dos tempos, e também na ficção, seja ela assinada por mulheres ou homens.

Fonte:
Silvana da Rosa. Do tempo medieval ao contemporâneo: o caminho percorrido pela figura feminina, enquanto escritora e personagem, nos contos de fadas. Dissertação de Mestrado em Letras. Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), 2009

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