segunda-feira, 6 de junho de 2016

Elen de Medeiros (Nelson Rodrigues e as Tragédias Cariocas: A Estética do Trágico Moderno) 1a. Parte

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RESUMO: O presente trabalho tem por objetivo apresentar um estudo das Tragédias Cariocas, último ciclo do teatro de Nelson Rodrigues, sob a perspectiva do trágico moderno. Para isso, estudiosos do gênero, como Peter Szondi e Raymond Williams, foram tomados como base para compreender a modificação que tem ocorrido dentro do gênero no decorrer dos séculos. Aspectos como o funcionamento das três unidades aristotélicas, as personagens e a ação desenvolvida através da relação intersubjetiva, além, é claro, da própria ideia que a palavra trágico tem se apropriado, é fundamental para entender o mecanismo interno deste gênero literário.
                                                                           
1. Introdução

O que segue é uma análise voltada à tragédia como gênero literário e em seu sentido popular, ou seja, no seu sentido mais acadêmico e no uso comum do termo. A princípio, as peças em estudo são classificadas como tragédias, denominação que Nelson adotou antes de falecer quando na elaboração do seu teatro completo. Porém, verificarei se podem realmente ser definidas como tragédias, uma vez que a base do gênero mudou radicalmente. Isso porque desde o surgimento da tragédia grega, com os helênicos, passando por uma crise, com Eurípides, até uma tentativa de salvamento, com os alemães[1], tal formação teatral pouco manteve de sua ideia inicial, da sua ambivalência dionisíaca e apolínea. Da tragédia grega à tragédia moderna houve uma transformação gigantesca. E esse resultado é o que mais me interessa, visto que é com base na tragédia moderna que analisarei Nelson Rodrigues.

Quando falamos em tragédia, numa concepção atual e vulgar do termo, sempre nos vem à mente um acontecimento ruim, relacionado ou a acidentes, ou a problemas sérios. E quando falamos, então, em ler uma tragédia ou assistir a uma tragédia, pensamos logo numa peça de teatro que envolva acontecimentos tristes, mortes, desgraça para as personagens. É certo que isso vem de uma tradição e se mantém até hoje, extrapolando as fronteiras da dramaturgia e inserindo-se no cotidiano. E isso é ainda mais forte quando vinculado ao nome de Nelson Rodrigues, um dramaturgo tido por maldito, cujas peças são infestadas de mortes, assassinatos, suicídios, relações incestuosas. Mas também é certo que quando falamos em tragédia, principalmente no aspecto literário, abordamos o fator estético: o gênero trágico. E falar de estética literária implica saber como funcionam sua trama, sua estrutura. Para o meio acadêmico, trágico é antes de tudo o gênero. É claro que não devo desconsiderar uma natural ligação entre os dois sentidos de trágico: o sentimento trágico e o gênero trágico.

A tragédia é um gênero que percorreu milhares de anos. Existente desde os helênicos em Sófocles e Ésquilo, ultrapassou todo esse tempo e persiste até hoje entre nós. Obviamente, depois de tanto tempo, ela não permanece com as mesmas características. A tragédia helênica, conforme explica Nietzsche, tinha como base principal o coro, que com o tempo, mais precisamente com a influência de Sócrates sobre Eurípides, foi abolido, perdendo a tragédia seu elemento ambivalente fundamental[2]. Hoje se consegue distinguir a tragédia clássica, medieval, renascentista, elisabetana, neoclássica e a tragédia moderna[3]. A que mais me interessa neste momento é a última, a permanência da tragédia moderna, pois é a partir dela que pretendo analisar as tragédias rodrigueanas.

2. Trágico rodrigueano

A obra dramática rodrigueana tem suas peculiaridades estéticas e formais, principalmente se formos percebê-la sob a perspectiva da tradição da tragédia. Falo de peculiaridades tanto se olharmos Nelson com base nesta tradição quanto se o vermos dentro de seu próprio conjunto de peças, uma vez que ele sempre tentou experimentar novos formatos.

Nas Tragédias Cariocas, Nelson elaborou o próprio sentido do trágico, misturado ao riso e ao grotesco. Daí provêm as várias nomenclaturas para designar suas peças, variando de “tragédia carioca” à simples “peça”. A questão é se, com tais nomenclaturas, o dramaturgo manteve uma linha trágica, com elementos do trágico clássico e do trágico moderno, fundando o que eu prefiro chamar de trágico rodrigueano.

Se por um lado a tragédia clássica baseava-se na representação do mito a partir de uma perspectiva externa, a tragédia moderna se funda na esfera do intersubjetivo, numa perspectiva interna. Assim, o que interessa na tragédia helênica é o que está fora, tanto das personagens quanto da sua própria estética. Já na tragédia moderna, interessa o que está dentro.

Conforme Schiller explica em Teoria da tragédia (1991), a tragédia é a representação do real, apenas transparecendo imagens dos homens enfrentando situações-limite impulsionados pelas crenças espirituais. “O trágico apresenta o homem naquela situação-limite em que, ser natural que é, comprova contudo a sua destinação espiritual.” (1991:12) Assim, a tragédia mostra o homem sofrendo, mas resistindo a esse sofrimento graças à dignidade. Mostra, enfim, a luta que há entre a vontade e a natureza, a moral e o natural, não sem sofrimento, mas com resistência.

Sabe-se, entretanto, que Schiller desenvolveu suas ideias acerca da tragédia clássica. Apesar de ser um olhar voltado ao clássico, essa carga de tragicidade, de sofrimento, perdurou por muito tempo e ainda hoje resiste. Embora as bases da tragédia tenham mudado radicalmente, pode ser identificada, pelo menos em Nelson Rodrigues, a tendência em demonstrar a vontade do herói em luta contra a natureza. Ou seja, o herói [4] possui uma vontade interna iminente que entra em conflito com um fator externo, social, natural, desafiando as “forças do universo”.

Exemplos disso são os heróis das tragédias de Nelson Rodrigues. Há neles uma tentativa à adequação moral imposta pela sociedade vigente, em que eles se portam conforme são ditadas as regras, comportando-se como bons maridos, esposas, filhos e pais de família. Entretanto, a vontade interior de cada um deles clama por uma libertação. Daí surge o conflito que se passa no íntimo das personagens: a luta entre o que elas querem e o que elas devem. Porém, chega um momento em que os desejos são mais fortes, sobressaem-se às regras sociais, extrapolam protocolos e são, enfim, revelados. Então, surgem a agonia e o sofrimento, pois as personagens digladiam consigo mesmas e com outras personagens, até que elas deixam de resistir, resignam-se a aceitar a força maior do desejo evidente.

Assim é o caso de Zulmira, Tio Raul, “Seu” Noronha, Aprígio, Werneck e Herculano – cada qual com suas peculiaridades. São personagens que sofrem por um desejo reprimido e sucumbem a esse desejo depois de um estado de luta entre a vontade e o natural. Nesse aspecto, Nelson Rodrigues consegue atualizar o que o trágico clássico pretendia, como também consegue, ao mesmo tempo, refletir aquilo que há de mais incômodo na sociedade contemporânea: a relação conflitante entre desejo e repressão social. No entanto, há no herói e no sábio da arte trágica uma superioridade, pois eles não sofrem suas dores, comovem-se e comovem-nos. Tanto é assim que o sofrimento do homem virtuoso nos comove mais dolorosamente que o do depravado. Já a felicidade de um malfeitor nos faz sofrer muito mais que a infelicidade de um homem virtuoso. Nelson Rodrigues comentou atitude sua semelhante, ao comparar seu trabalho dramático com Brecht:

Brecht inventou a “distância crítica” entre o espectador e a peça. Era uma maneira de isolar a emoção. Não me parece que tenha sido bem-sucedido em tal experiência. O que se verifica, inversamente, é que ele faz toda sorte de concessões ao patético. Ao passo que eu, na minha infinita modéstia, queria anular qualquer distância. A plateia sofreria tanto quanto o personagem e como se fosse também personagem. A partir do momento em que a plateia deixa de existir como plateia – está realizado o mistério teatral.
 
O “teatro desagradável” ofende e humilha e com o sofrimento está criada a relação mágica. Não há distância. O espectador subiu ao palco e não tem a noção da própria identidade. Está ali como o homem. (RODRIGUES, 1995:286)

Com isso, o dramaturgo apresenta sua intenção que já fica clara em suas peças: levar o sofrimento humano, sem distanciamento, para o palco, para que o público possa refletir sobre suas dores. Além, é claro, que possa sofrer ao mesmo tempo em que a personagem sofre no palco. Em suma, a intenção de Schiller está transparecida na intenção de Nelson Rodrigues. Se o herói sofre, o espectador sofre junto.

Aquele estado de luta do qual Schiller fala, e transcrevo aqui, acontece justamente para que o homem mantenha a adequação moral. É por conta desse princípio que a tragédia é o gênero literário que mais proporciona prazer moral. Na tragédia os instintos naturais são suprimidos em prol da adequação moral. Assim é o processo de Nelson Rodrigues nas suas tragédias, pois as personagens não conseguem carregar em si a força da moral e sucumbem, depois de um estado de luta, à força natural, ou melhor, ao instinto.

Se formos utilizar o exemplo de Zulmira, de A falecida, identificamos um viés semelhante ao explanado por Schiller. Zulmira tem uma estranha doença não diagnosticada pelo médico, mas instintivamente descoberta pela própria heroína. Ao mesmo tempo, sabemos da implicância que ela tem com sua prima Glorinha, inclusive atribuindo a ela o motivo de sua doença. Inconscientemente, Zulmira sacrifica-se em prol de uma moral, uma vez que a sua traição foi descoberta e, moralmente, ela não aceita o fato de ter um amante. Daí, a busca de uma doença para compensar a traição.

(Zulmira num desespero maior.)
ZULMIRA – Mas ela tem razão! Eu é que não podia ter um amante!
PIMENTEL – Vem cá!
(Pimentel tenta segurar Zulmira, que se desprende com violência.)
ZULMIRA – Não me toque!
PIMENTEL – Dá um beijo!
ZULMIRA – Nunca!
PIMENTEL – Por quê?
ZULMIRA – Não adianta. Não acho mais graça em beijo, não acho mais graça em nada! (RODRIGUES, 1985:110-1)

Mas é aqui que acontece o caminho inverso da tragédia clássica: a adequação moral está no interior da própria personagem, não no externo, representado na ação trágica. Há a busca da realidade, mas da realidade interior. E a realidade interior de Zulmira é que não podia ter traído o marido, por isso agora não pode amar mais ninguém e abstém-se do amor.

Um outro exemplo é o do jovem Arandir, de O beijo no asfalto. Aparentemente um herói inexoravelmente virtuoso, mas cuja virtude vai sendo, pouco a pouco, destruída pelas matérias sensacionalistas do repórter Amado Ribeiro. Aos olhos do público, Amado faz Arandir aparecer como um homossexual, que empurrou o amante para debaixo do lotação e o beijou. Dentro do texto, sabe-se que Arandir não empurrou o rapaz, pois o próprio Amado confirma que é invenção sua. Por outro lado, sobre o beijo dado no atropelado, paira uma dúvida durante toda a peça, pois há o testemunho de Arandir, de Aprígio e de Amado, sempre contraditórios e ambíguos. Esse é um fator que faz desta peça uma das grandes obras-primas de Nelson: a questão do beijo não é resolvida, ninguém fica sabendo em que circunstâncias o beijo foi dado, visto que o próprio Arandir se contradiz sobre o beijo que ele mesmo deu.

SELMINHA (com surda irritação) – Primeiro, responde. Preciso saber. O jornal botou que você beijou.
ARANDIR – Pensa em nós.
SELMINHA – Com outra mulher. Eu sou tua mulher. Você beijou na...
ARANDIR (sôfrego) – Eu te contei. Propriamente, eu não. Escuta. Quando eu me abaixei. O rapaz me pediu um beijo. Um beijo. Quase sem voz. E passou a mão por trás da minha cabeça, assim. E puxou. E, na agonia, ele me beijou.
SELMINHA – Na boca?
ARANDIR – Já respondi.
SELMINHA (recuando) – E por que é que você, ontem!
ARANDIR – Selminha.
SELMINHA (chorando) – Não foi assim que você me contou. Discuti com meu pai. Jurei que você não me escondia nada!
ARANDIR – Era alguém! Escuta! Alguém que estava morrendo. Selminha. Querida, olha! (Arandir agarra a mulher. Procura beijá-la. Selminha foge com o rosto) Um beijo.
SELMINHA (debatendo-se) – Não! (Selminha desprende-se com violência. Instintivamente, sem consciência do próprio gesto, passa as costas da mão nos lábios, como se os limpasse.) (RODRIGUES, 1990:128)

Por ter beijado na boca outro homem, por ter sucumbido a uma vontade maior, a uma força natural, Arandir encontra-se em luta consigo mesmo, num sofrimento solitário, pois ninguém mais acredita nele, que, ainda assim, resiste contra as forças externas, as imposições e protocolos sociais.

Para Schiller, o teatro é uma forma artística capaz de elevar o sentimento humano a um sublime entretenimento. É no teatro que se evocam as coisas mais inteligíveis e autênticas, onde há homens de vício e virtude, onde há a felicidade e a desgraça. É no teatro que o homem confessa suas paixões, onde tira suas máscaras, onde a verdade se mantém incorruptível. Assim vejo o teatro de Nelson Rodrigues: nele, os homens não conseguem se manter nas formalidades que a sociedade impõe e revelam os seus maiores problemas, suas verdades, sejam elas quais forem.

As personagens trágicas, essas são seres reais, que obedecem à violência do momento e representam um indivíduo e revelam a profundeza da humanidade. Assim são as personagens de Nelson Rodrigues: parecem ser representantes da espécie, uma espécie repleta de segredos, os quais elas vêm revelar. Revelam não somente as suas verdades, mas a realidade de uma sociedade inteira.

Conforme explica Peter Szondi, em Teoria do drama moderno (2001), o conceito de drama possui vínculos históricos também com sua origem e não somente com seu conteúdo. Uma vez que a arte expressa algo inquestionável, seu entendimento só é total em uma época para a qual o evidente se tornou problema. Ou seja, do ponto de vista estético, uma obra de arte só é compreensível em uma certa época em que foi escrita e quando a sua problemática estava em voga.

A esfera do “inter”, no drama moderno, parecia o essencial da existência do homem, mas não é nada senão o seu interior que se manifesta e torna-se presença dramática. Tudo o que ficava aquém ou além dessa esfera, deveria permanecer estranho ao drama, principalmente o que era desprovido de emoção. Desse modo, toda a temática do drama se manifesta na esfera do “inter”.

Nesse meio intersubjetivo, o meio linguístico utilizado era o diálogo e, no Renascimento, se tornou o único componente da tessitura dramática. Isso é o que distingue o drama da tragédia antiga, da peça religiosa medieval, da peça histórica e do teatro barroco. Assim, o diálogo se compõe no segundo elemento constitutivo do drama, sendo o primeiro a própria ação intersubjetiva.

O diálogo reflete aquilo que se passa no decorrer da trama da peça, dentro do drama. Nada de fora interessa ou é transmitido com o domínio do diálogo. O diálogo é o principal instrumento para a realização das relações interhumanas, ou seja, a ação do “inter” encontra no diálogo sua melhor forma de expressão. O diálogo é o transmissor exclusivo da dinâmica interna do drama moderno.

Nesse caso específico do diálogo, Nelson o incorpora não só enquanto portador de toda ação dramática. O dramaturgo vai além, ele inova na simples forma dialógica teatral. Peças como Boca de Ouro, A falecida, O beijo no asfalto e Toda nudez será castigada, por exemplo, têm toda a peculiaridade nos diálogos. Coerentes com seus propósitos, as personagens mantêm o uso vocabular específico, distintivo. Mas, mais do que isso, é a estruturação dos diálogos, curtos, entrecortados, facilitando a dinâmica interna do texto.
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Notas:
Este texto é parte integrante da dissertação de mestrado denominada Nelson Rodrigues e as Tragédias Cariocas: um estudo crítico social das personagens rodrigueanas, com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

[1] A respeito disso, Friedrich Nietzsche desenvolve todo o livro O nascimento da tragédia (2001).

[2] Irã Salomão, em Nelson, feminino e masculino (2000), observa que nas tragédias de Nelson Rodrigues acontece algo semelhante a essa ambivalência, mas entre o feminino e o masculino, que entram em conflito dentro da estrutura dramática, mas não se anulam. “Masculino e feminino realizam um jogo, no qual as regras e seus participantes são muito diferentes de cada lado. (...) Uma fricção e uma fluidez acontecem intermitentemente dentro de cada um destes universos. Da mesma maneira tais contatos e trocas ocorrem entre eles. Neste movimento, nenhuma parte se anula mas, ao contrário disto, elas possuem e reafirmam sua identidade concomitantemente ao seu digladiar.” p. 71.

[3] Quem dá uma abordagem mais detalhada da tragédia de cada época é Raymond Williams em Tragédia Moderna (2002).

[4] Faço observar que, embora seja evidente essa relação entre a vontade e a natureza no teatro rodrigueano, em geral a perspectiva é interna da personagem. Daí Nelson figura-se como dramaturgo moderno. Esse assunto será retomado adiante, quando tratado o trágico moderno.

continua…

Fonte:
Literatura : caminhos e descaminhos em perspectiva / organizadores Enivalda Nunes Freitas e Souza, Eduardo José Tollendal, Luiz Carlos Travaglia. - Uberlândia, EDUFU, 2006. ©Instituto de Letras e Linguística da Universidade Federal de Uberlândia e autores

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