terça-feira, 7 de junho de 2016

Elen de Medeiros (Nelson Rodrigues e as Tragédias Cariocas: A Estética do Trágico Moderno) 2a. Parte

Vejamos este exemplo de O beijo no asfalto:

CUNHA – Noiva. Vai se casar. Eu quando eu olho pra você, penso na minha filha. Nunca se sabe o dia de amanhã. Vamos que o meu genro. Essas coisas, sabe como é. Casamento é loteria, mas eu, quero que você, entende? (Para o repórter) Você não acha, Amado? (Para Selminha novamente) Quero que você me veja como um pai. Agora responda: – ainda tem medo de mim? (RODRIGUES, 1990:133)

Ou então, em Toda nudez será castigada, peça escrita poucos anos depois:

HERCULANO – Meu bem, raciocina! Você vai ter sua noite de núpcias, como se eu fosse deflorar você. E outra coisa. Eu tenho uma casa, longe da cidade. No subúrbio. Mobiliada, tem tudo lá. A família que estava lá saiu. Vamos pegar um táxi. Te deixo lá. Mas, já sabe: – eu volto, nada de dormir. Só quando for minha esposa. Você fica lá e não sai, não sai. (Idem, ibidem:198)

Vê-se que, principalmente, há quebra das orações, numa tentativa de transpor a oralidade para dentro do texto. As frases quebradas, principalmente pelo ponto final, estabelecendo a desordem sintática no diálogo, fazem de Nelson um autor peculiar nesse aspecto.

A época do drama moderno é sempre o presente. Quando o presente passa, se torna passado, mas não estará mais em cena. Como absoluto, o drama funda o seu próprio tempo. Isso só é possível pela sua estrutura dialética, baseada na relação intersubjetiva. Esse, então, é o terceiro elemento constitutivo do drama: o tempo presente.

A totalidade do drama é de origem dialética. Ela se desenvolveu mediante a superação, sempre efetivada e sempre novamente destruída, da dialética intersubjetiva, que no diálogo se torna linguagem. O diálogo é o suporte do drama.(SZONDI, 2001:34)

Quando verificada a crise do drama, Szondi identifica-a por volta do final do século XIX, pois há negação de seu conteúdo dialético e absoluto. Quando os três fatores da forma dramática entram em relação com sujeito ou objeto, eles são relativizados e perdem sua força. Grande parte dos dramas dessa época traz a oposição entre sujeito e objeto, que é representada pelas cenas épicas inseridas nas cenas dramáticas. Assim, o drama começou a sofrer algumas invasões de elementos épicos, que foram a causa principal de sua crise e de sua transformação.

Na tragédia clássica, o homem não tinha domínio sobre seus atos e decisões, era dominado por forças metafísicas, transcendentes – as forças dos deuses. Assim, o homem figurava como objeto dos deuses, o que resultava numa oposição entre sujeito e objeto no drama, e o herói não era sujeito das suas ações.

No drama moderno, conforme explica Szondi, a distinção entre sujeito e objeto não é perceptível, pois ao mesmo tempo em que o homem é sujeito de suas ações, ele também é objeto de outros homens. Ou seja, ao mesmo tempo em que o herói do drama moderno é dotado de arbítrio para suas atitudes – e por isso a esfera do “inter” da qual fala Szondi –, ele também é o objeto de outros homens, dotados de poderes superiores que o dominam.

Portanto, a grande crise do drama moderno é justamente quando, com a inserção de elementos épicos e com a impossibilidade do diálogo, essa distinção entre sujeito e objeto volta à tona, tirando do herói sua própria existência, colocando-o como objeto. Ou melhor, o herói perde a possibilidade de ser, ao mesmo tempo, o sujeito e o objeto da ação. Nisso Szondi identifica a crise do drama moderno.

Os três elementos constitutivos do drama moderno, conforme o aborda Szondi, são reformulados segundo a necessidade surgida após o Renascimento. Por isso que, a partir de então, a ação transcorre na esfera do “inter”. Esta é uma necessidade efetivamente moderna. Com o herói enfrentando suas vontades naturais, entrando em conflito consigo mesmo, toda a condução da trama parte da relação intersubjetiva do herói com a ação. Penso que o ponto culminante da esfera do “inter” relatada por Szondi aconteceu no expressionismo, quando toda a ação transcorria a partir da vontade interna da personagem e tudo o que se passava era fruto da sua imaginação – inclusive as outras personagens.

Quanto aos elementos trágicos, em se tratando de uma configuração moderna, Raymond Williams define-os muito bem em Tragédia moderna (2002). A diferença entre “tragédia” e tragédia – sentido acadêmico e senso comum – permeia toda a primeira parte do livro de Williams. Ele afirma que tragédia pode ser uma experiência imediata, pode ser um conjunto de obras, um conflito teórico, um problema acadêmico. O nome tragédia se tornou comum para alguns tipos de experiência, mas ao mesmo tempo é um nome específico de arte dramática.

Tragédia não é só sofrimento e morte, mas é um tipo específico de acontecimento e de reação trágicos que a tradição incorpora. O que parece que está em jogo é mais um tipo específico de morte, de sofrimento e uma interpretação dessas questões do que propriamente o termo “tragédia” para descrever algo diverso de uma obra da literatura dramática.  Ora, as “tragédias” de Nelson estão repletas de tragédias. Ainda que mescladas a situações grotescas e risíveis, elas são trágicas, fortalecendo e auxiliando na elaboração de um gênero trágico moderno. São momentos de agonia, morte, desespero das personagens que, enclausuradas em um modo de vida específico, cheias de vícios, misturam os sentimentos com as atitudes, criando situações farsescas, tragicômicas ou melodramáticas.

Hegel, explica Williams, definiu a tragédia como um tipo especial de ação espiritual, mais do que acontecimentos específicos. Essa ideia marca a necessidade de ideias trágicas modernas. Para Hegel, o importante na tragédia são as causas do sofrimento, e não apenas o mero sofrimento. Assim, a definição hegeliana de tragédia está centrada num conflito de substância ética. Como condição para que a tragédia ocorra, é preciso que a personagem esteja consciente da sua individualidade e os conflitos individuais e naquilo que acarretam são essenciais para a efetivação da ação trágica. Ou melhor, tanto os propósitos do indivíduo quanto o conflito resultante são essenciais e substanciais.

A diferença entre tragédia antiga e moderna é que a primeira trabalha a personagem representando fins éticos de uma sociedade, enquanto a última volta-se à necessidade individual. Na tragédia moderna, pelo fato de as personagens serem mais individualizadas, a questão toda da resolução é mais difícil. A justiça é mais abstrata, mais fria. Quando ocorre reconciliação, acontece no interior da personagem, é mais completa e menos satisfatória. Assim, o isolamento do herói trágico é uma característica da tragédia moderna. Visto isso, pode-se perceber que Williams e Szondi convergem suas ideias de moderno, que estão voltadas, principalmente, para a necessidade individual do herói.

Segundo Raymond Williams, a teoria trágica é interessante pois, por meio dela, compreendemos mais a fundo o contorno e a conformação de uma cultura específica. Mas a tragédia deve ser compreendida dentro de um determinado contexto, caso contrário ela se transformará apenas em um aglomerado de experiências, convenções. “Em situações nas quais o sofrimento se faz sentir, nas quais ele abrange o outro, estamos, claramente, no âmbito das possíveis dimensões da tragédia.” (WILLIAMS, 2002:71) E a tragédia acadêmica é uma ideologia. O que está em jogo é a característica e a qualidade do sentido geral, não o processo que vincula um evento a este sentido geral. Separar tragédia de “mero sofrimento”, além de moderna, é o ato de separar o controle ético e a ação humana da nossa compreensão da vida política e social.

A interpretação mais comum da tragédia a vê como uma ação que destrói o herói. Porém, essa é apenas uma interpretação parcial, pois nem todas as tragédias terminam com a destruição do herói. O herói pode até ser destruído, mas isso não implica o fim da ação trágica. Pensamos na tragédia como aquilo que acontece com o herói, mas a ação trágica usual é o que acontece por meio do herói. 

A falecida, encenada pela primeira vez em 1953, é a peça que abre o novo ciclo da dramaturgia de Nelson Rodrigues. Sob a classificação de farsa trágica[5], ela vem apresentar ao público uma nova perspectiva do autor, substituindo o clima tenso e complexo das peças míticas – repletas de incestos e assassinatos – por um clima mais ameno, menos tenso, em que o riso tem seu lugar certo.

Coerente com seu propósito, Nelson mescla elementos constitutivos da farsa e da tragédia, compondo, assim, a farsa trágica. Os elementos que irão constituir a parte farsesca da peça são justamente os elementos cômicos, presentes em grande parte das cenas, que por parte aliviam a tensão causada pelos elementos trágicos. Em geral, além de trazer à tona o riso, esses elementos também são utilizados como recurso para que o público possa sentir-se mais à vontade com algumas situações cotidianas, que denunciam fatores repressivos da sociedade. Ou seja, os elementos da farsa são formas de uma subversão, pois o espectador pode rir e liberar-se de alguma repressão provinda da sociedade. Exemplo disso são algumas cenas grotescas, que evidenciam um cotidiano grosseiro do subúrbio carioca, da peça em questão.

Logo no início da peça, já na primeira cena, em que Zulmira vai à cartomante, Madame Crisálida depõe contra si mesma: com um pano de enxugar pratos, aparência desgrenhada, de miséria, acompanhada de um menino de pés no chão que permanece durante toda a cena, “bravamente, com o dedo no nariz” (RODRIGUES, 1985:57). E assim compõe-se quase toda a peça, de elementos do grotesco do cotidiano. Mais adiante, há uma passagem na terceira cena do mesmo ato em que Tuninho fica com dor de barriga por causa de um pastel que comeu e precisa ir para casa. Ao tentar entrar no banheiro, Zulmira está lá dentro, numa posição de “O Pensador”, de Rodin. Saindo Zulmira, entra Tuninho e assume a mesma posição. Assim há várias cenas, principalmente as que retratam uma relação matrimonial enfadada e desgastada, completando uma aparente decadência financeira da família:

(Larga os sapatos. Deita-se, numa melancolia medonha. Ao lado, sentada, no meio da cama, Zulmira se torce, em acessos tremendos.)
TUNINHO – Às vezes, eu tenho inveja de ti. Tu não te interessa por futebol, não sabes quem é Ademir, não ficas de cabeça inchada, quer dizer, não tens esses aborrecimentos... Benza-te Deus!
(Tuninho vira-se para o lado. Acesso de Zulmira.)
ZULMIRA – Ai, meu Deus, ai meu Deus!
(Tuninho, ao lado, já ronca. Nova golfada de Zulmira. Encosta o lenço na ponta da língua. Olha e, patética, sacode o marido.) (Idem, ibidem:94)

O misto entre os elementos cômicos e trágicos evidencia um misto de gêneros, característicos do autor. A distinção de gêneros já não cabe a Nelson, ao seu teatro. Aqui, os próprios elementos cômicos são trágicos e vice-versa. Assim, é difícil distinguir quais são os elementos meramente cômicos ou meramente trágicos, visto que eles se fundem, se mesclam, tornando-os tragicômicos.
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Nota

[5] À farsa geralmente se associa um cômico grotesco e bufão, um riso grosseiro e um estilo pouco refinado: qualificativos condescendentes e que estabelecem de imediato e muitas vezes de maneira abusiva que a farsa é oposta ao espírito, que ela está em parte ligada ao corpo, à realidade social, ao cotidiano. A farsa sempre é definida como forma primitiva e grosseira que não poderia elevar-se ao nível de comédia. (PAVIS, 1999:164)

continua…

Fonte:
Literatura : caminhos e descaminhos em perspectiva / organizadores Enivalda Nunes Freitas e Souza, Eduardo José Tollendal, Luiz Carlos Travaglia. - Uberlândia, EDUFU, 2006. ©Instituto de Letras e Linguística da Universidade Federal de Uberlândia e autores

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