quarta-feira, 8 de junho de 2016

Elen de Medeiros (Nelson Rodrigues e as Tragédias Cariocas: A Estética do Trágico Moderno) 3a. Parte

Representada em 1957, Perdoa-me por me traíres foi denominada por Nelson como tragédia de costumes. Para um moderno como Nelson Rodrigues, era de se esperar que houvesse um misto de gêneros em seus textos, o que aqui, mais uma vez, se consolida com a mistura de tragédia e comédia de costumes. Importante observar o conceito de comédia de costumes: “Estudo do comportamento do homem em sociedade, das diferenças de classes, meio e caráter.”(PAVIS, 1999:55) Ora, o estudo que aborda o conceito pode ser encontrado em várias peças de Nelson, mesmo aquelas denominadas como farsas, tragédias, ou tragédias de costumes, pois essa é uma característica evidente na obra do dramaturgo. E essa peça não deixa de ter elementos da farsa, do trágico e também da comédia de costumes, bem como na peça analisada anteriormente.

No início da peça, Glorinha vai a uma casa de meninas com sua amiga Nair. Lá se deparam com duas figuras que compõem o grotesco – elemento da farsa – na tragédia em questão: Pola Negri, um típico “garçom de mulheres”, ou seja, um homossexual, e Madame Luba, dona da casa de meninas. Ambas as personagens são caracterizadas grosseiramente pelo dramaturgo, numa espécie de sátira de determinados elementos sociais. Pola Negri, por exemplo, é descrito da seguinte forma: “Na sua frenética volubilidade, ele não pára. Desgrenha-se, espreguiça-se, boceja, estira as pernas, abre os braços.” (RODRIGUES, 1985:128) Tal observação está em uma rubrica, bem como a descrição de Madame Luba: “Madame Luba é uma senhora gorda, imensa, anda gemendo e arrastando os chinelos. Dá a impressão de um sórdido desmazelo.”(Idem, ibidem:129) Esta última é lituana e carrega consigo um pesado sotaque nas falas.

MADAME LUBA (melíflua) – Como vai, Nair? Como está passando?
(fala com Nair mas não tira os olhos de Glorinha.)
NAIR – Bem. E a senhora?
MADAME LUBA (com violento sotaque) – Eu sempre vou muito bem, nunca ter uma dor de dentes...
NAIR – Trouxe-lhe aqui...
MADAME LUBA – Oh, sim, seu colega de colégio, Glorinha!(Idem, ibidem:129)

Um outro exemplo é a atitude do médico que faz o aborto em Nair. Pago por Madame Luba, mas sem anestesia, o aborto ocorre numa clínica clandestina, onde o médico “aparece, chupando tangerina e expelindo os caroços”(Idem, ibidem:141). Mas além desses elementos grosseiros, que evidenciam o lado cômico desta tragédia, há também os elementos específicos da comédia de costume, ou seja, elementos que demonstram o comportamento do homem dentro de um meio social, evidenciam as diferenças de classes. Como em A falecida havia Pimentel, um homem milionário, que demonstrava a diferença social entre Tuninho e o empresário, em Perdoa-me por me traíres há o deputado, Dr. Jubileu de Almeida, que frequenta a casa de meninas e que oferece à Glorinha um emprego em troca de seus serviços. Tanto na primeira quanto na segunda peça, os homens dotados de poder, superiores, têm domínio sobre as personagens com poder econômico inferior. Estes são bons exemplos para a união entre sujeito e objeto do drama moderno. Personagens que, aparentemente, são dotadas de arbítrio por seguirem suas próprias vontades, mas, ao mesmo tempo, servem de objeto para outras personagens, num ciclo que se repete a cada nova personagem.

Assim como há essa demonstração das diferenças de classes sociais, Nelson utiliza desses elementos da comédia de costumes para ironizar convenções sociais impostas. No caso, Dr. Jubileu é um deputado velho, velhíssimo, como diz a rubrica, que procura serviços da casa de meninas – com meninas de 14, 15 ou 16 anos que estão lá por dinheiro – e que os jornais chamam de “reserva moral”. Do mesmo modo, a casa de meninas, um lugar onde só entram “imunidades”, onde a polícia não aparece, pois está sob controle de Madame Luba.

Mas dentre os três, o elemento mais importante aqui é o trágico. Fatores que compõem a tragédia, enquanto uma tragédia moderna, na peça em questão. Bem mais evidente do que na peça anteriormente analisada, a partir do segundo ato a peça se constituirá basicamente de elementos trágicos, misturados ao cômico, fortalecendo a estrutura tragicômica.

Há vários momentos trágicos na peça, conforme a percepção de Raymond Williams. Ou seja, encontram-se várias passagens em que situações trágicas, carregadas de sofrimento são transcritas para a realidade da peça, como no final dos atos. Logo no primeiro ato, na cena final, é o momento em que o aborto de Nair dá errado e ela está com hemorragia. Num clima tenso, Nair está sofrendo na cadeira e o médico não pode fazer nada. Como único remédio, manda que sua enfermeira reze. Apesar de ser uma cena que carrega em si o sofrimento trágico, é inevitável que a relacionemos à ironia e ao grotesco, bem ao estilo do autor.

(Assombrado diante do destino, o Médico está falando com uma calma imensa, uma apaixonada serenidade.)
MÉDICO – Mas não adianta gaze, nem Pronto Socorro, nada!
NAIR – Não posso mais... Glorinha... vamos morrer... nós duas... Glorinha....
MÉDICO (tem nova explosão. Berrando) – Mas isso nunca aconteceu comigo, nunca! Não sei como foi isso! (para a Enfermeira) Reza, anda reza, ao menos isso, reza!
(A Enfermeira cai de joelhos, une as mãos no peito.)
MÉDICO (berrando) – Não rezas?
ENFERMEIRA – Estou rezando!
MÉDICO (enfurecido) – Mas não reza só para ti! Pra mim também! Eu quero ouvir! Anda! Alto! Reza, sua cretina!
(A Enfermeira ergue-se e rompe a cantar um ponto espírita. O médico soluça.) (Idem, ibidem:144)

No final do segundo ato, a cena está transcorrendo em flashback, rememorando como Judite, mãe de Glorinha, morreu. Na cena final, Tio Raul força Judite a tomar o veneno, logo depois de ela ter confessado que teve vários amantes, que se entregou até por um “bom dia”. Judite bebe todo o conteúdo do copo de uma vez só e cai agonizante no chão. A sequência tensa que converge para o final do ato trágico, unido a outros atos que também carregam o trágico em si – apesar de vinculados ao cômico – fortalecem a estrutura da tragédia, evidenciando uma linha coerente, até então, dentro do conjunto Tragédias Cariocas. Semelhante cena trágica acontece no final do terceiro ato, mas agora quem protagoniza são Tio Raul e a sobrinha Glorinha. Depois de uma cena bastante tensa, em que Tio Raul ameaça Glorinha, os dois combinam de morrer juntos. Mas eis que Glorinha não bebe o veneno e deixa Tio Raul morrer agonizante no chão enquanto ela volta à casa de meninas.

As cenas são compostas basicamente do trágico, sem grande menção a elementos cômicos, que desfaçam a tensão do momento. Mas, por mais que sejam momentos trágicos, eles são apenas parte de um todo que compõe a tragédia enquanto gênero. O trágico é um elemento que se tornou constitutivo da tragédia ao longo de uma tradição, e hoje já é quase indissolúvel, embora também apareça em vários outros gêneros. Assim como em A falecida, e em grande parte das peças desse ciclo, Nelson utilizou o recurso do flashback. Pela perspectiva de Szondi isso poderia ser um problema, pois passado não deve estar mais em cena. No entanto, para o dramaturgo esse recurso é a solução do problema, pois é utilizado justamente para preenchimento de alguma lacuna que, eventualmente, possa ficar no texto. Mas isso não diminui o moderno de Nelson, ao contrário, torna-o ainda mais moderno pelo uso de recursos inovadores. Sendo assim, quando apresentado em flashback, é o presente evidenciado em relação ao passado.

Sete gatinhos, encenada em 1958, foi descrita como divina comédia. Irônico da parte de Nelson ou não, esta é a peça que talvez possua menos elementos cômicos, que evidenciam o riso. Se as três características da comédia são, opostas às da tragédia, provocar o riso no espectador, ter um final feliz e possuir personagens modestas (PAVIS, 1999), esta peça de Nelson não se enquadra nesse gênero. Muito menos faz jus a um “divino”, no sentido restrito da palavra [6]. A peça inteira é composta de elementos trágicos, com algumas referências aos elementos da farsa, mas não à comédia.  Assim como em Perdoa-me por me traíres, há cenas trágicas em sua essência que, unidas aos outros elementos, constituem a tragédia em um todo. Principalmente, por se tratar de uma peça em que a ação é centrada na necessidade individual do herói (de Silene), e que a ação trágica acontece por meio desse herói – ou, no caso, a heroína. Silene é uma menina mimada e se torna o fundamento central desta família – ou melhor, o seu casamento é o objetivo da família. É em torno de sua virgindade que a trama transcorrerá, pois essa é a salvação da família de “Seu” Noronha.

Como referência de ação trágica, pode ser retomada a cena em que Dr. Bordalo, médico da família, revela a “seu” Noronha que Silene está grávida. Neste momento, todo o enaltecimento da jovem menina cai por terra e inicia-se uma sequência de atos trágicos: as irmãs já não veem mais motivos para continuarem se prostituindo para juntar dinheiro para o enxoval da irmã mais nova, revelam-se os podres da família. Descobre-se que “seu” Noronha é o responsável pela prostituição das filhas e, como consequência, há o desfecho trágico: ele é assassinado pelas próprias filhas.

Unindo esses fatores do trágico ao fato de que a peça desenvolve-se em torno de si mesma, como absoluta, sem utilizar-se de nenhum fator externo, a peça se caracterizará como drama moderno. Isto porque, dentro desse absolutismo dramático, reina o diálogo como fator linguístico escolhido para carregar todas as informações necessárias para o desenvolvimento da peça, e ela transcorre num tempo presente, dado o início da ação até o desfecho, com a morte de Bibelot e “Seu” Noronha.
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NOTA

[6] Por outro lado, “Divina Comédia” também pode ser uma alusão ao poema de Dante.

continua…

Fonte:
Literatura : caminhos e descaminhos em perspectiva / organizadores Enivalda Nunes Freitas e Souza, Eduardo José Tollendal, Luiz Carlos Travaglia. - Uberlândia, EDUFU, 2006. ©Instituto de Letras e Linguística da Universidade Federal de Uberlândia e autores

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