domingo, 3 de julho de 2016

A Presença Africana na Música Popular Brasileira (Parte II)

Afoxés e blocos afro: a matriz iorubá

As condições históricas da vinda maciça de iorubanos para o Brasil, do fim do século XVIII aos primeiros anos da centúria seguinte, fizeram com que a língua desse povo se transformasse numa espécie de língua geral dos africanos na Bahia e seus costumes gozassem de franca hegemonia. Esse fato, aliado, posteriormente, ao trabalho de reorganização das comunidades jeje-nagôs empreendido principalmente pela ialorixá Mãe Aninha, Obá Biyi (1869-1938) e pelo babalaô Martiniano do Bonfim, Aji Mudá (1858-1943), na Bahia, em Recife e no Rio de Janeiro, fez com que os iorubás passassem a ser vistos como a principal referência no processo civilizatório da diáspora africana no Brasil. Mas mesmo antes das ações concretas daquelas duas grandes lideranças, as tradições iorubanas já faziam presença na música. Tanto assim que, a partir do carnaval de 1897, saía às ruas de Salvador, encenando, com canto, danças e alegorias, temas da tradição nagô, o clube Pândegos d’África, considerado o primeiro afoxé baiano.

O afoxé, cordão carnavalesco de adeptos da tradição dos orixás, e por isso outrora também chamado “candomblé de rua”, apresenta-se cantando cantigas em iorubá, em geral relacionadas ao universo do orixá Oxum. Esses cânticos são tradicionalmente acompanhados por atabaques do tipo “ilu”, percutidos com as mãos, além de agogôs e xequerês, no ritmo conhecido como “ijexá”.

Observe-se que a etimologia dos nomes dos instrumentos citados remete sempre ao iorubá (ìlu, agogô, sèkérè). Da mesma forma que o vocábulo “afoxé” se origina em afose (encantação; palavra eficaz, operante) e corresponde ao afro-cubano afoché, o qual significa “pó mágico”; enfeitiçar com pó. E aí está a origem histórica do termo: os antigos afoxés procuravam “encantar” os concorrentes.

Os afoxés experimentam um período de vitalidade até o final da década de 1890, para declinarem até o término dos anos de 1920 e ressurgirem na década de 1940. O grande remanescente desses grupos é, hoje, o afoxé Filhos de Gandhi, fundado na cidade de Salvador em 18 de fevereiro de 1948. Criado “para divulgação do culto nagô, como forma de afirmação étnica”, segundo seus estatutos, e originalmente constituído por estivadores, no final da década de 1990, gozando do respaldo oficial, reunia mais de 4 mil associados, entre os quais um grande número de pais-de-santo. Em 12 de agosto de 1951 era fundado no Rio de Janeiro, no bairro da Saúde, seu homônimo carioca.

Nos anos de 1980, no bojo do movimento pelos direitos dos negros, surgem em Salvador os blocos afro, com o objetivo explícito de reafricanizar o carnaval de rua da capital baiana. Usando temas que buscam uma conexão direta com a África e a afirmação da negritude, essas agremiações criaram uma nova estética. Como acentua João José Reis, eles reinventaram as ricas tradições da cultura negra local, “para exaltar publicamente a beleza da cor, celebrar os heróis afro-brasileiros e africanos, para contar a história dos países da África e das lutas negras no Brasil, para denunciar a discriminação, a pobreza, a violência no dia-a-dia do negro”. Além disso, foram responsáveis pela estruturação de uma nova linguagem musical, que se expressa no estilo comercialmente conhecido como axé music, transformado em produto de domínio nacional.

A atuação de vários blocos afro, transcendendo o âmbito do carnaval, materializou-se dentro de um projeto estético-político e estendeu-se ao trabalho de recuperação, preservação e valorização da cultura de origem africana e de desenvolvimento comunitário. Nesse sentido, o trabalho, por exemplo, do Olodum e do Ilê Aiyê ganhou dimensão e reconhecimento internacionais.

Visto isso, examinemos, agora, o ponto de interseção entre as matrizes bantas e sudanesas na música brasileira, que se verifica, exatamente, através da religiosidade.

Música popular e religiões africanas

A origem banta (bantu) do samba, como vimos, já está devidamente comprovada. Da mesma forma, é também banta a origem dos vocábulos “umbanda”, “macumba” “mandinga” etc, pertencentes ao universo dos cultos bantos do Brasil. Antes, porém, de entrarmos no cerne do nosso objetivo, façamos o seguinte esclarecimento.

O registro mais antigo que se conhece de cultos bantos em nosso país é o da cabula, denunciado numa pastoral do bispo D. João Corrêa Nery no Espírito Santo, no fim do século retrasado. Congregando, entre 1888 e 1900, mais de 8 mil pessoas, a comunidade dos cabulistas, entretanto, e certamente também em função da repressão, não dispunha de templo organizado em espaço físico exclusivo. Suas reuniões de culto eram secretas, realizando-se ora em casa de um adepto ora no meio da mata, mas com práticas, vestimentas e paramentos – segundo o famoso relato do bispo Nery, divulgado por Nina Rodrigues – bastante semelhantes aos da umbanda.

Observe-se ainda que toda a literatura que se ocupou de comparar as concepções religiosas dos povos bantos de Angola e Congo com as dos iorubás apontou uma falta de substância daquelas em relação a estas outras. Mas o que é certo é que elas guardam entre si diferenças estruturais. Uma delas é a não existência de divindades intermediárias de forma humana, e sim gênios da natureza criados por Nzambi (este nome ocorre, com pequenas variantes, em quase todas as línguas bantas), mas sem relação alguma com formas corporais humanas; outra é a não existência de templos, como vimos; e ainda outra é a não fixação de datas certas para a celebração de cultos.

Até a virada dos séculos XIX e XX, parece que essas diferenças eram bem compreendidas, como ocorre, hoje, em Cuba. E as informações de que dispomos sobre a cabula nos parecem bastante esclarecedoras a esse respeito.

No entanto, com o estabelecimento das primeiras comunidades baianas no Rio de Janeiro, na segunda metade do século XIX, começa a se verificar, ao que parece, uma supremacia iorubana (nagô), como vemos, por exemplo, nos textos de João do Rio sobre as religiões africanas na antiga capital federal. Essa prevalência é que vai, talvez, determinar o surgimento dos candomblés chamados “de Angola” e “de Congo” e a iorubanização da linha ritual conhecida como “Omolocô”, os quais, ao que consta, já não exprimem o sentido original das concepções religiosas dos povos bantos, mas apenas adaptam os princípios jeje-nagôs a um sonhado universo angolo-conguês.

Feito o esclarecimento, vamos ver que a matriz principal da umbanda nos parece ser essa cabula capixaba, a qual deu origem ao omolocô, cuja expansão se verificou particularmente no Rio de Janeiro, na primeira metade do século XX. Pouco antes dessa expansão, a partir da segunda metade do século XIX, o processo gradativo que vai levar à abolição da ordem escravista traz, para a terra carioca, milhares de negros livres em busca de trabalho, que vêm juntar-se aos africanos, crioulos e mestiços que já ganhavam a vida na antiga capital do Império, principalmente nas zonas central e portuária. Esses negros livres é que vão constituir a já citada “Pequena África” e os outros núcleos dinamizadores do samba no Rio de Janeiro.

Examinemos, agora, um significativo texto do sambista Aniceto do Império. Nascido e falecido no Rio (1912-1993), Aniceto de Menezes e Silva Jr., um dos fundadores da escola de samba Império Serrano, destacou-se como exímio partideiro pela facilidade com que improvisava versos nas rodas de samba. Seu texto, letra de um samba ainda inédito, é o seguinte: “Assumano, Alabá, Abaca, Tio Sanin/ e Abedé me batizaram/ na lei de muçurumim...”. Vejamos quem são esses personagens a quem o partideiro se refere.

“Assumano”, algumas vezes erroneamente grafado como “Aço Humano”, foi o nome através do qual se fez conhecido Henrique Assumano Mina do Brasil, famoso alufá radicado no Rio de Janeiro e pertencente à comunidade da Pequena África, na virada do século XIX para o XX. Residiu no nº 191 da Praça Onze e tinha como frequentadores de sua casa, entre outros, o célebre sambista Sinhô e o jornalista Francisco Guimarães, o Vagalume, fundador da crônica de samba no Rio. O nome “Assumano” é o abrasileiramento do antropônimo Ansumane ou Ussumane (do árabe Othman ou Utmân), usual entre muçulmanos da antiga Guiné Portuguesa.

No mesmo contexto, João Alabá, falecido em 1926, foi um famoso babalorixá, certamente baiano, radicado no Rio de Janeiro. Um dos mais prestigiados de seu tempo, sua casa era no número 174 da rua Barão de São Félix, nas proximidades do terminal da Estrada de Ferro Central do Brasil. Seu nome marca sua origem nagô (alagba, chefe do culto de Egungun; pessoa venerável, de respeito; ou antropônimo dado ao segundo filho que nasce depois de gêmeos). Era pai de santo da legendária Tia Ciata, também mãe-pequena de sua comunidade religiosa.

Da mesma forma, Cipriano Abedé, falecido em 1933, foi um famoso babalorixá do Rio de Janeiro, no princípio do século XX, com casa, primeiro na rua do Propósito e depois na rua João Caetano, próximo à Central do Brasil. O nome Abedé, redução de Alabedé, designa uma das manifestações ou qualidades do orixá Ogum. Já “Abaca” é provavelmente corruptela de Abu Bacar, nome muçulmano, mas o personagem não foi por nós identificado. “Tio Sanim”, por sua vez, parece ser o mesmo Babá Sanin, morador na rua dos Andradas, e mencionado no já referido livro de João do Rio.

O universo dos sambistas pioneiros não se restringiu, porém, apenas à comunidade baiana e muitos menos ao povo de muçurumim (linha ritual de influência islâmica), já que, quando essa arte começa a se expressar nas escolas de samba, grande parte dos fundadores era oriunda do Vale do Paraíba e adjacências (zona de irradiação cultural bantu), como foi o caso do principal fundador da escola de samba Império Serrano, o legendário Mano Elói.

Mano Elói foi o nome pelo qual se fez conhecido Elói Antero Dias, sambista nascido em Engenheiro Passos, RJ, em 1888, e falecido na cidade do Rio, para onde viera com 15 anos de idade, em 1971. Em 1936 foi eleito “cidadão samba” em concurso promovido pela União Geral das Escolas de Samba do Brasil. E em 1947 ajuda a fundar a escola de samba Império Serrano, da qual foi presidente executivo e, depois, presidente de honra. Em 1930, Mano Elói tornou-se o pioneiro do registro em disco de cânticos rituais afro-brasileiros. Nesse ano, com o Conjunto Africano, gravou um ponto de Exu, dois de Ogum e um de Iansã. Seu companheiro nessa empreitada foi outro sambista pioneiro, o legendário “Amor”, sugestivo apelido de Getúlio Marinho da Silva, nascido em Salvador, em 1889 e falecido no Rio, onde viveu desde os 6 anos de idade, em 1964. Exímio bailarino, foi mestre-sala de vários ranchos carnavalescos. De 1940 a 1946 foi o “cidadão-samba” do carnaval carioca. Compositor, foi co-autor da marcha junina “Pula a fogueira”, até hoje executada.

O pioneirismo dos sambistas Amor e Mano Elói deve-se ao fato de eles terem levado para o disco verdadeiros cânticos rituais, executados e interpretados como autênticos pontos de macumba, com atabaques etc. Mas, antes deles, outros artistas da música popular já tinham criado obras baseadas nessa tradição, como foi o caso de Chiquinha Gonzaga com “Candomblé” (batuque composto em parceria com Augusto de Castro e lançado em 1888, provavelmente em comemoração à Lei Áurea, já que Chiquinha era ativa abolicionista), de “Pemberê” (de Eduardo Souto e João da Praia, lançado em 1921) e de “Macumba jeje” (lançada por Sinhô em 1923).

Depois de Mano Elói e Amor, vamos ter, entre muitas outras, “Xô, curinga” (Pixinguinha, Donga e João da Baiana), lançada em 1932 com a rubrica “macumba”, “Yaô” (Pixinguinha e Gastão Viana, 1938), “Uma festa de Nana” (Pixinguinha, 1941); “Macumba de Iansã” e “Macumba de Oxossi” (de Donga e Zé Espinguela, sambista e pai-de-santo, gravadas em 1940) e “Benguelê” (Pixinguinha, 1946) etc.

Contemporâneo de Amor e Mano Elói, e um verdadeiro elo entre o mundo do samba e o dos cultos afro, foi o tata Tancredo Silva Pinto. Compositor de “Jogo proibido”, de 1936, tido por muitos como o primeiro samba de breque, e co-autor de “General da banda”, grande sucesso do carnaval de 1949, além de autor de vários livros sobre a doutrina umbandista, Tancredo foi um grande líder do samba e da umbanda. Tanto que em 1947 ajudava a fundar a Federação Brasileira das Escolas de Samba e, logo depois, criava a Confederação Umbandista do Brasil.

Sobre a criação da Federação, Tata Tancredo (como era conhecido) contava um fato interessante, narrado no livro Culto omoloko:

... esse episódio passou-se na casa da minha tia Olga da Mata. Lá arriou Xangô, no terreiro São Manuel da Luz, na Avenida Nilo Peçanha, 2.153, em Duque de Caxias. Xangô falou: – Você deve fundar uma sociedade para proteger os umbandistas, a exemplo da que você fundou para os sambistas, pois eu irei auxiliá-lo nesta tarefa. Imediatamente tomei a iniciativa de fazer a Confederação Umbandista do Brasil, sem dinheiro e sem coisa alguma. Tive uma inspiração e compus o samba General da banda, gravado por Blecaute, que me deu algum dinheiro para dar os primeiros passos em favor da Confederação Umbandista do Brasil.

Quase vinte anos depois desse sucesso de Tancredo e do cantor Blecaute, em 1965, surge para o disco Clementina de Jesus, cantora nascida em Valença, RJ, em 1901, e falecida no Rio, onde vivia desde menina, em 1987. Descoberta para a vida artística já sexagenária, afirmou-se como uma espécie de “elo perdido” entre a ancestralidade musical africana e o samba urbano. Seu trabalho de maior expressão fez-se através da interpretação de jongos, lundus, sambas da tradição rural e cânticos rituais recriados, como o já mencionado “Benguelê”, de Pixinguinha. Logo depois do surgimento de Clementina, outra importante interseção entre a música popular brasileira e a religiosidade africana ocorre com os “afro-sambas” (“Canto de Ossanha”, “Ponto do Caboclo Pedra Preta” etc) lançados por Baden Powell e Vinícius de Moraes em 1966. E é o mesmo Vinícius que, agora em parceria com Toquinho, vai lançar um “Canto de Oxum”, em 1971, e um “Canto de Oxalufã”, em 1972. Daí em diante, a vertente começa a se rarefazer, com raras incursões, como a do cantor e compositor Martinho da Vila, que, em um de seus discos do final dos anos 70, registrou uma sequência de cantigas rituais da umbanda.

continua...

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