segunda-feira, 4 de julho de 2016

A Presença Africana na Música Popular Brasileira (Parte III)

As escolas de samba e os sambas-enredo

Com relação às escolas de samba cariocas – cujos terreiros (terreiros e não “quadras”, como hoje) até os anos de 1970 obedeciam a um regimento tácito semelhante ao dos barracões de candomblé, com acesso à roda permitido somente às mulheres, por exemplo –, veja-se que elas, hoje, são, ainda, um veículo em que a temática africana é recorrente. Muito embora seus enredos e sambas enfoquem a África por uma perspectiva meramente folclorizante.

O samba-enredo – esclareçamos – é uma modalidade de samba que consiste em letra e melodia criadas a partir do resumo do tema elaborado como enredo de uma escola de samba. Os primeiros sambas-enredo eram de livre criação: falavam da natureza, do próprio samba, da realidade dos sambistas. Com a oficialização dos concursos, na década de 1930, veio a exaltação dirigida de personagens e fatos históricos. Os enredos passaram a contar a história do ponto de vista da classe dominante, abordando os acontecimentos de forma nostálgica e ufanística. A reversão desse quadro só começou a vir em 1959, quando a escola de samba Acadêmicos do Salgueiro apresentou, com uma homenagem ao pintor francês Debret, e com grande efeito visual, o cotidiano dos negros no Brasil à época da colônia e do Império, o que motivou uma sequência de enredos sobre Palmares, Chica da Silva, Aleijadinho e Chico Rei, voltados para o continente africano. Mas, se a ingerência governamental já não era tão forte, pelo menos enquanto cerceamento da liberdade na criação dos temas, um outro tipo de interferência começava a nascer: a dos cenógrafos de formação erudita ou treinados no show-business, criadores desses enredos, os quais imprimiram ao carnaval das escolas a feição que ele hoje ostenta e que, direta ou indiretamente, selaram o destino dos sambas-enredo. Tanto que, no final do século XIX, o samba-enredo é um gênero em franca decadência. Em cerca de 60 anos de existência, no entanto, a modalidade mostrou sua força em dezenas de obras antológicas.

Entre os enredos apresentados pelas escolas de samba cariocas das várias divisões, a partir de 1948, muitos fazem referência mais direta à África, como, por exemplo: 
“Navio negreiro” (Vila Isabel, 1948, e Salgueiro, 1957), 
“Quilombo dos Palmares” (Salgueiro, 1960, Viradouro, 1970, e Unidos de Padre Miguel, 1984), 
“Chico Rei” (União de Vaz Lobo, 1960, Salgueiro, 1964, e Viradouro, 1967), 
“Ganga Zumba” (Unidos da Tijuca, 1972), 
“Valongo” (Salgueiro, 1976, e Unidos de Padre Miguel, 1988), 
“Galanga, o Chico Rei” (Unidos de Nilópolis, 1982), 
“Ganga Zumba, raiz da liberdade” (Engenho da Rainha, 1986). 

Isso sem falar em outros tantos temas como “Porque Oxalá usa ekodidé”, “Oju Obá”, “Logun, príncipe de Efan”, “O mito sagrado de Ifé”, “Oxumará, a lenda do arco-íris”, “Alafin Oyó”, “Príncipe Obá, rei dos descamisados”, “Ngola Djanga”, “De Daomé a São Luiz, a pureza mina-jeje”, “Império negro, um sonho de liberdade, “Kizomba, festa da raça”, “Preito de vassalagem a Olorum” etc.

De alguns desses títulos, selecionamos, como exemplo de abordagens, e sem maiores comentários, alguns trechos:

África... misteriosa África/ Magia, no rufar dos tambores se fez reinar/ Raiz que se alastrou por este imenso Brasil/ Terra dos santos que ela não viu... (“Os santos que a África não viu”, Grande Rio, 1996 – Mais Velho, Rocco Filho, Roxidiê, Helinho 107, Marquinhos e Pipoca); 

África encanto e magia/ Berço da sabedoria/ Razão do meu cantar/ Nasceu a liberdade a ferro e fogo/ A Mãe Negra abriu o jogo/ Fez o povo delirar... (“Quando o samba era samba”, Portela, 1996 – Wilson Cruz, Cláudio Russo, Zé Luiz); 

Vem a lua de Luanda/ Para iluminar a rua/ Nossa sede é nossa sede/ De que o apartheid se destrua...(“Kizomba, festa da raça”, Vila Isabel, 1988 – Rodolfo, Jonas e Luiz Carlos da Vila); 

Vivia no litoral africano/ Uma régia tribo ordeira/ Cujo rei era símbolo/ De uma terra laboriosa e hospitaleira/ Um dia essa tranquilidade sucumbiu/ Quando os portugueses invadiram/ capturando homens/ para fazê-los escravos no Brasil/ na viagem agonizante/ Houve gritos alucinantes/ Lamentos de dor/ Ô ô ô, adeus baobá, ô ô ô/ Ô ô ô, adeus meu Bengo, eu já vou... (“Chico Rei”, Salgueiro, 1965 – Geraldo Babão, Djalma Sabiá e Binha); 

Ilu Aiê, Ilu Aiê, odara! / Negro cantava na nação nagô/ Depois chorou lamento de senzala/ Tão longe estava de sua Ilu Aiê... (“Ilu Aiê, terra da vida”, Portela, 1972 – Cabana e Norival Reis); 

Bailou no ar/ O ecoar de um canto de alegria/ Três princesas africanas/ Na sagrada Bahia/ Ia Kalá, Iá Adetá, Iá Nassó/ Cantaram assim a tradição nagô/ Olorum, senhor do infinito/ Ordena que Obatalá/ faça a criação do mundo/ ele partir, despreando bará/ E no caminho adormecendo/ Se perdeu/ Odudua, a divina senhora chegou... (“A criação do mundo segundo a tradição nagô”, Beija-Flor, 1978 – Neguinho da Beija-Flor, Mazinho e Gilson); 

Conta a lenda que a deusa Oiá/ Foi aconselhar Ifá/ A buscar a cura em Sabadã/ Pra Obaluaiê se levantar... (“O bailar dos ventos, relampejou mas não choveu”, Salgueiro, 1980 – Ala dos Compositores); 

Lá da África distante/ Trouxeram o misticismo da magia/ maçons e mestres alufás/ Usavam estratégia e ousadia... (“Salamaleikun, a epopéia dos insubmissos malês”, Unidos da Tijuca, 1984 – Carlinhos Melodia, Jorge Moreira e Nogueirinha); 

Esta negra caprichosa/ Convidou o rei da Costa do Marfim/ E o recebeu de forma suntuosa/ A festa parecia não ter fim... (“O rei da Costa do Marfim visita Xica da Silva em Diamantina”, Imperatriz, 1983 – Matias de Freitas, Carlinhos Boemia e Nelson Lima); 

Lua alta/ Som contante/ Ressoam os atabaques/ lembrando a África distante... (“Misticismo da África ao Brasil”, Império da Tijuca, 1971 – Marinho da Muda).

Sobre a predominância, nesses sambas, de temas ligados ao universo iorubano, observe-se que isso ocorre pela maior visibilidade que essa matriz tem no Brasil, notadamente através da Bahia. A Bahia, graças principalmente à sua capital, é internacionalmente conhecida pela riqueza de suas tradições africanas, apropriadas como verdadeiros símbolos nacionais brasileiros. Segundo algumas interpretações, a visualização desse precioso acervo cultural teria ocorrido pela presença histórica, em Salvador e no Recôncavo Baiano, de diversas “nações” africanas organizadas, e muitas vezes adversárias, cada uma ciosa de sua identidade étnica. E isto teria feito com que, lá, no combate ao racismo, os afrodescendentes se destacassem mais fortemente através da afirmação de suas expressões culturais específicas do que através da luta política, como em São Paulo, por exemplo. Entretanto, veja-se que personagens como Chico Rei, Ganga Zumba, Zumbi e Rainha Jinga, pertencentes ao universo banto, são também bastante frequentes nos enredos que relacionamos.

continua...

Fonte:
Portal da Cultura Afro-Brasileira

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