quinta-feira, 28 de julho de 2016

Oscar Wilde (O Rouxinol e a Rosa)

- Ela disse que dançaria comigo se eu lhe levasse rosas vermelhas – exclamou o Estudante – mas estamos no inverno e não há uma única rosa no jardim…

Por entre as folhas, do seu ninho, no carvalho, o Rouxinol o ouviu e, vendo-o ficou admirado…

- Não há nenhuma rosa vermelha no jardim! – disse o Estudante, com os olhos cheios de lágrimas. – Ah! Como a nossa felicidade depende de pequeninas coisas! Já li tudo quanto os sábios escreveram. A filosofia não tem segredos para mim e, contudo, a falta de uma rosa vermelha é a desgraça  da minha vida.

Eis, afinal, um verdadeiro apaixonado! – disse o Rouxinol. Tenho cantado o Amor noite após noite, sem conhecê-lo no entanto; noite após noite falei dele às estrelas, e agora o vejo… O cabelo é negro como a flor do jacinto e os lábios vermelhos como a rosa que deseja, mas o amor pôs-lhe na face a palidez do marfim e o sofrimento marcou-lhe a fronte.

- Amanhã à noite o Príncipe dá um baile, murmurou o Estudante, e a minha amada se encontrará entre os convidados. Se levar uma rosa vermelha, dançará comigo até a madrugada. Somente se lhe levar uma rosa vermelha… Ah… Como queria tê-la em meus braços, sentir-lhe a cabeça no meu ombro e a sua mão presa a minha. Não há rosa vermelha em meu jardim… e ficarei só. Ela apenas passará por mim… Passará por mim… e meu coração se despedaçará.

- Eis um verdadeiro apaixonado… – pensou o Rouxinol. – Do que eu canto, ele sofre. O que é dor para ele é alegria para mim. Grande maravilha, na verdade, é o Amar! Mais precioso que esmeraldas e mais caro que opalas finas. Pérolas e granada não podem comprá-lo, nem se oferece nos mercados. Mercadores não o vendem, nem o conferem em balanças a peso de ouro.

- Os músicos da galeria – prosseguiu o Estudante – tocarão nos seus instrumentos de corda e, ao som de harpas e violinos, minha amada dançará. Dançará tão leve, tão ágil, que seus pés mal tocarão o assoalho e os cortesãos, com suas roupas de cores vivas, reunir-se-ão em torno dela. Mas comigo não bailará, porque não tenho uma rosa vermelha para dar-lhe… – e atirando-se à relva, ocultou nas mãos o rosto e chorou.

- Por que está chorando? – perguntou um pequeno lagarto ao passar por ele, correndo, de rabinho levantado.

- É mesmo! Por que será? – Indagou uma borboleta que perseguia um raio de sol.

- Por quê? – sussurrou uma linda margarida à sua vizinha.

- Chora por causa de uma rosa vermelha, – informou o Rouxinol.

- Por causa de uma rosa vermelha? – exclamaram – Que coisa ridícula! E  o lagarto, que era um tanto irônico, riu à vontade.

Mas o Rouxinol compreendeu a angústia do Estudante e, silencioso, no carvalho, pôs-se a meditar sobre o mistério do Amor.

Subitamente, abriu as asas pardas e voou. Cortou, como uma sombra, a alameda, e como uma sombra, atravessou o jardim. Ao centro do relvado, erguia-se uma roseira. Ele a viu. Voou para ela e posou num galho.

- Dá-me uma rosa vermelha – pediu – e eu cantarei para ti a minha mais bela canção!

- Minhas rosas são brancas. Tão brancas quanto a espuma do mar, mais brancas que a neve das montanhas. Procura minha irmã, a que enlaça o velho relógio-de-sol. Talvez te ceda o que desejas.

Então o Rouxinol voou para a roseira, que enlaçava o velho relógio-de-sol.

- Dá-me  uma rosa vermelha – pediu – e eu te cantarei minha canção mais linda.

A roseira sacudiu-se levemente.

- Minhas rosas são amarelas como as cabelos dourados das donzelas, ainda mais amarelas que o trigo que cobre os campos antes da chegada de quem o vai ceifar. Procura a minha irmã, a que vive sob a janela do Estudante. Talvez ela possa te possa ajudar.

O Rouxinol então, dirigiu o vôo para  a roseira que crescia sob a janela do Estudante.

- Dá-me uma rosa vermelha – pediu – e eu te cantarei a mais linda de minhas canções.

A roseira sacudiu-se levemente.

- Minhas rosas são vermelhas, tão vermelhas quanto os pés das pombas, mais vermelhas que os grandes leques de coral que oscilam nos abismos profundos do oceano. Contudo, o inverno congelou-me até as veias, a geada queimou-me os botões e a tempestade quebrou-me os galhos. Não darei rosas este ano.

- Eu só quero uma rosa vermelha, repetiu o Rouxinol, – uma só rosa vermelha. Não haverá meio de obtê-la?

- Há, respondeu  a Roseira, mas é meio tão terrível que não ouso revelar-te.

- Dize. Não tenho medo.

- Se queres uma rosa vermelha, explicou a roseira, hás de fazê-la de música, ao luar, tingi-la com o sangue de teu coração. Tens de cantar para mim com o peito junto a um espinho. Cantarás toda a noite para mim e o espinho deve ferir teu coração e teu sangue de vida deve infiltrar-se em minhas veias e tornar-se meu.

- A morte é um preço exagerado para uma rosa vermelha – exclamou o Rouxinol – e a Vida é preciosa… É tão bom voar, através da mata verde e contemplar o sol  em seu esplendor dourado e a lua em seu carro de pérola…O aroma do espinheiro é suave, e suaves são as campânulas ocultas no vale, e as urzes tremulantes na colina. Mas o Amor é melhor que a Vida. E que vale o coração de  um pássaro comparado ao coração de um homem?

Abriu as asas pardas para o vôo e ergueu-se no ar. Passou pelo jardim como uma sombra e, como uma sombra, atravessou a alameda.

O Estudante estava deitado na relva, no mesmo ponto em que o deixara, com os lindos olhos inundados de lágrimas.

- Rejubila-te – gritou-lhe o Rouxinol – Rejubila-te! Terás a tua rosa vermelha. Vou fazê-la de música, ao luar. O sangue de meu coração a tingirá. Em conseqüência só te peço que sejas sempre verdadeiro amante, porque o Amor é mais sábio do que a Filosofia, mais poderoso que o poder. Tem as asas da cor da chama e da cor da chama tem o corpo. Há doçura de mel em seus braços e seu hálito lembra o incenso.

O Estudante ergueu a cabeça e escutou. Nada pode entender, porém, do que dizia o Rouxinol, pois sabia apenas o que está escrito nos livros.

Mas o Carvalho entendeu e ficou melancólico, porque amava muito o pássaro que construíra ninho em seus ramos.

- Canta-me um derradeiro canto – segredou-lhe – sentir-me-ei tão só depois da tua partida.

Então o Rouxinol cantou para o Carvalho, e sua voz fazia lembrar a água a borbulhar de uma jarra de prata.

Quando o canto finalizou, o Estudante levantou-se, tirando do bolso um caderninho de notas e um lápis.

- Tem classe, não se pode negar – disse consigo – atravessando a alameda. Mas terá sentimento? Não creio. É igual a maioria dos artistas. Só estilo, sinceridade nenhuma. Incapaz de sacrificar-se por outrem. Só pensa em cantar e bem sabemos quanto a Arte é egoísta. No entanto, é forçoso confessar, possui maravilhosas notas na voz. Que  pena não terem significação alguma, nem realizarem nada realmente bom!

Foi para o quarto, deitou-se e, pensando na amada, adormeceu.

Quando a lua refulgia no céu, o Rouxinol voou para a Roseira e apoiou o peito contra o espinho. Cantou a noite inteira e o espinho mais e mais foi se enterrando em seu peito, e o sangue de sua vida lentamente se escoou…

Primeiro descreveu o nascimento do amor no coração de um menino e uma menina, e, no mais alto galho da Roseira, uma flor desabrochou, extraordinária, pétala por pétala, acompanhando um canto e outro canto. Era pálida, a princípio, qual a névoa que esconde o rio, pálida qual os  pés da manhã e as asas da alvorada. Como sombra de rosa num espelho de prata, como sombra de rosa em água de lagoa era a rosa que apareceu no mais alto galho da Roseira.

Mas a Roseira pediu ao Rouxinol que se unisse mais ao espinho. – Mais ainda, Rouxinol – exigiu a Roseira – senão o dia raia antes que eu acabe a rosa.

O Rouxinol então apertou ainda mais o espinho junto ao peito, e cada vez mais profundo lhe saía o canto porque ele cantava o nascer da paixão na alma do homem e da mulher.

E tênue nuance rosa nacarou as pétalas, igual ao rubor que invade a face do noivo quando beija a noiva nos lábios.

Mas o espinho não lhe alcançava ainda o coração e o coração da flor continuava branco – pois somente o coração de um Rouxinol pode avermelhar o coração de rosa.

- Mais ainda, Rouxinol. – clamou a Roseira – Raia o dia antes que eu finalize a rosa.

E o Rouxinol, desesperado, calcou-se mais forte no espinho, e o espinho lhe feriu o coração, e uma punhalada de dor o traspassou.

Amarga, amarga lhe foi a angústia e cada vez mais fremente foi o canto, porque ele cantava o amor que a morte aperfeiçoa, o amor que não morre nem no túmulo.

E a rosa maravilhosa tornou-se purpurina como a rosa do céu oriental. Suas pétalas ficaram rubras e, vermelho como um rubi, seu coração.

Mas a voz do Rouxinol se foi enfraquecendo, as pequeninas asas começaram a estremecer e uma névoa cobriu-lhe o olhar, o canto tornou-se débil e ele sentiu qualquer coisa apertar-lhe a garganta.

Então, arrancou do peito o derradeiro grito musical.

Ouviu-o a lua branca, esqueceu-se da Aurora e permaneceu no céu.

A rosa vermelha o ouviu, e trêmula de emoção, abriu-se à aragem fria da manhã. Transportou-o o Eco, à sua caverna purpurina, nos montes, despertando os pastores de seus sonhos. E ele levou-os através dos caniços dos rios e eles transmitiram sua mensagem ao mar.

- Olha! Olha! Exclamou a Roseira. – A rosa está pronta, agora.

Ao meio dia o Estudante abriu a janela e olhou.

- Que sorte! – disse – Uma rosa vermelha! Nunca vi rosa igual em toda a minha vida. É tão linda que tem certamente um nome complicado em latim. E curvou-se para colhê-la.

Depois, pondo o chapéu, correu à casa do professor.

- Disseste que dançarias comigo se eu te trouxesse uma rosa vermelha, – lembrou o Estudante. – Aqui tens a rosa mais linda e vermelha de todo o mundo. Hás de usá-la, hoje a noite, sobre o coração, e quando dançarmos juntos ela te dirá o quanto te amo.

A moça franziu a testa.

- Esta rosa não combina com o meu vestido, disse. Ademais, o Capitão da Guarda mandou-me jóias verdadeiras, e jóias, todos sabem, custam muito mais do que flores…

- És muito ingrata! – exclamou o Estudante, zangado. E atirou a rosa a sarjeta, onde a roda de um carro a esmagou.

- Sou ingrata? E o senhor não passa de um grosseirão. E, afinal de contas, quem és? Um simples estudante… não acredito que tenhas fivelas de prata, nos sapatos, como as tem o Capitão da Guarda… – e a moça levantou-se e entrou em casa.

- Que coisa imbecil, o Amor! – Resmungou o estudante, afastando-se. – Nem vale a utilidade da Lógica, porque não prova nada, está sempre prometendo o que não cumpre e fazendo acreditar em mentiras. Nada tem de prático e como neste século o que vale é a prática, volto à Filosofia e vou estudar metafísica.

Retornou ao quarto, tirou da estante um livro empoeirado e pôs-se a ler…

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