domingo, 29 de janeiro de 2017

Clarice Lispector (A entrevista alegre)

Há pouco tempo uma moça me telefonou dizendo que era da Editora Civilização Brasileira e que Paulo Francis me pedia para dar uma entrevista a ser publicada num dos livros da série Livro de cabeceira da mulher. Não gosto de dar entrevistas: as perguntas me constrangem, custo a responder, e, ainda por cima, sei que o entrevistador vai deformar fatalmente minhas palavras. Mas tratava-se de um pedido de Paulo Francis, e não havia como negar. Marquei o dia. E depois fiquei furiosa, até com Paulo Francis. Como é então? O Livro de cabeceira da mulher vende como pão quente e eles ganham dinheiro. A moça entrevistadora ganha dinheiro. E só eu tenho amolação. Tentei telefonar para Paulo Francis e desmarcar. Mas como? Se sou, como todo o mundo, vítima do telefone. Este ou não dava linha, ou dava e não estabelecia ligação. Afinal resignei-me. Mas vou me vingar, pensei, de um modo ou de outro vou me vingar.

Só que não pude nem tive vontade. Na hora marcada, entra-me pela porta adentro uma moça linda e adorável, Cristina. Tem um desses rostinhos difíceis de retratar, porque, apesar dos traços exteriores serem bonitos, o que mais importa são os interiores, a expressão. Estabelecemos logo um contato fácil. O que a fez me informar: também trabalhava para um jornal e seus colegas, ao saberem que ia me entrevistar, tiveram pena dela. Disseram que eu era fogo, que mal falava.

Cristina acrescentou: “Mas você está falando.” – Sim, falei – como resistir? O racionamento de luz começara, e Cristina, para ficar perto das duas velas que acendi, sentou-se no tapete, e já fazia parte da casa.

Suas perguntas eram inteligentes e complicadas, quase todas sobre literatura. Eu disse: mas pensei que o que interessaria à mulher de classe média seria se eu gosto de comer feijão com arroz.

Respondeu tranquila: “chegaremos lá. Aquilo era apenas o começo.” E fui me encantando com Cristina. É noiva. Que pena, pensei. Gostaria que ela ficasse bem sentadinha esperando durante muitos anos que meus filhos crescessem para um deles se casar com ela. Mas ela não pode esperar, meus filhos estão custando a crescer. Me conforto em recomendá-la como entrevistadora.

A entrevista começou com bom humor. Rimos várias vezes. Uma das vezes foi quando ela perguntou o que eu achava do que o crítico Fausto Cunha escrevera. Escrevera – e eu não sabia – que Guimarães Rosa e eu não passávamos de dois embustes. Dei uma gargalhada até feliz.

Respondi: não li isso, mas uma coisa é certa: embustes é que não somos. Podiam nos chamar de qualquer coisa, mas de embustes não. Ora essa, Fausto Cunha. Você, que conheci no casamento de Marly de Oliveira, é até simpático, mas que ideia. Veja se pensa um pouco mais no assunto. Acho que Guimarães Rosa também riria.

Cristina me perguntou se eu era de esquerda. Respondi que desejaria para o Brasil um regime socialista. Não copiado da Inglaterra, mas um adaptado a nossos moldes.

Perguntou-me se eu me considerava uma escritora brasileira ou simplesmente uma escritora. Respondi que, em primeiro lugar, por mais feminina que fosse a mulher, esta não era uma escritora, e sim um escritor. Escritor não tem sexo, ou melhor, tem os dois, em dosagem bem diversa, é claro. Que eu me considerava apenas escritor e não tipicamente escritor brasileiro. Argumentou: nem Guimarães Rosa que escreve tão brasileiro? Respondi que nem Guimarães Rosa: este era exatamente um escritor para qualquer país.

Cristina estava com tosse e eu também: mais um traço de união. A entrevista era entrecortada de acessos de tosse, e até isso serviu para quebrar a cerimônia. Além do mais nenhuma das duas estava tomando um xarope, e pelo mesmo motivo: preguiça; Minha vingança resumiu-se em também entrevistar Cristina. Fiz-lhe várias perguntas, às quais respondeu com simplicidade e inteligência. Sob o pretexto de mostrar-lhe retratos que fizeram de mim, percorri com ela o apartamento quase todo: Cristina era uma das minhas, e tinha o direito de me conhecer através de minha casa. Casa é muito reveladora. Entrou num dos quartos onde um de meus filhos estava deitado lendo à luz de uma vela. Ele nem se incomodou, tão simples é a presença de Cristina. Meu outro filho ia ao cinema com um amigo. E ele, que está na idade de mostrar que é independente da mãe, também não se perturbou em me dar um beijo de despedida, na frente da moça. O outro filho não se importou de interromper-nos para pedir dinheiro para comprar Manchete: era o anoitecer de uma quarta-feira. Terminei tão à vontade que estirei as pernas em cima de uma mesa e fui descendo pelo sofá abaixo até estar quase deitada.

Cristina, você representa o melhor da juventude brasileira. Dá orgulho. Quero que meus filhos um dia venham a ser assim.

Aliás uma pergunta que me fez: o que mais me importava – se a maternidade ou a literatura. O modo imediato de saber a resposta foi eu me perguntar: se tivesse que escolher uma delas, que escolheria? A resposta era simples: eu desistiria da literatura. Nem tem dúvida que como mãe sou mais importante do que como escritora.

Cristina disse-me: “O crime não compensa. A literatura compensa?” De jeito nenhum.

Escrever é um dos modos de fracassar. Cristina se surpreendeu, perguntou-me então por que eu escrevia. E eu não soube responder.

O engraçado é que a moça veio tão preparada para a entrevista que sabia mais sobre mim do que eu própria. Perguntou-me por que meus personagens femininos são mais delineados do que os masculinos. Protestei em parte. Tenho um personagem masculino que ocupa o livro inteiro, e que não podia ser mais homem do que era.

Cristina, um dia talvez eu a entreviste. Os estudantes universitários vão se identificar com você e quase todos pensarão em casamento. Que seu noivo tome cuidado. Também tenho um amigo que, se a conhecesse, ia se apaixonar do modo mais poético e real. Você é tão
necessária ao Brasil. Muitos rapazes e moças como você, e o Brasil iria para a frente.

Percebo que afinal estou tendo a minha vingança: a moça escreve sobre mim, mas eu vou e escrevo sobre ela. Aliás, Cristina, você quer jantar uma noite dessas comigo? É só me telefonar.

Você vai se casar com um diplomata, mas esse será um jantar não diplomático, na nossa copa provavelmente, pois continuo esquecendo de comprar uma campainha de chamar empregada e na certa não poderemos jantar na sala. Aliás, uma grande amiga dadivosa, mas distraída, disse que tinha mais de uma campainha e que me daria uma. Cadê? Distraio-me e não compro, ela se distrai e não me dá.

Perguntou-me o que eu achava da literatura engajada. Achei válida. Quis saber se eu me engajaria. Na verdade sinto-me engajada. Tudo o que escrevo está ligado, pelo menos dentro de mim, à realidade em que vivemos. É possível que este meu lado ainda se fortifique mais algum dia.

Ou não? Não sei de nada. Nem sei se escreverei mais. É mais possível que não.

Perguntou-me o que eu achava da cultura popular. Eu disse que ainda não existe propriamente. Quis saber se eu a considerava importante. Eu disse que sim, mas que havia algo muito mais importante ainda: oferecer oportunidade de ter comida a quem tem fome. A menos que a cultura popular leve o povo a tomar consciência de que a fome dá o direito de reivindicar comida. Vide a nova encíclica que fala no recurso extremo à rebelião em caso de tirania.

Até breve, Cristina, até o nosso jantar. Você parece que também gostou de mim. O que é bom. Mas não sei por que, depois que li a entrevista, saí tão vulgar. Não me parece que eu seja vulgar. E nem tenho olhos azuis.

Fonte:
Clarice Lispector. A Descoberta do Mundo.

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