quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

Valter Luciano Gonçalves Villar (A Presença Árabe na Literatura Brasileira: Jorge Amado e Milton Hatoum) Parte V

Turco Nacib (Armando Bógus) e
Gabriela (Sonia Braga) no filme
"Gabriela"
Nessa transfiguração do imigrante em tipo nacional, Jorge Amado consegue não apenas naturalizá-lo, mas inseri-lo em todas as esferas da vida brasileira, sejam elas públicas ou privadas. Nesse intento, desfilam pela obra de Jorge Amado o brasileiro-árabe mascate, o comerciante, seja proprietário de bares (como Nacib) seja proprietário de loja de calçados ou de outros tipos de comércio; o fazendeiro, o vagabundo, o contrabandista, o intelectual, o poeta, o alfaiate, a prostituta, a dançarina, o revolucionário, o estudante, o cirurgião-dentista, o advogado, o menor abandonado, o conquistador da terra baiana, em meio aos diversos tipos étnicos que formam o nosso mosaico cultural, como já percebera Jorge Medauar ao se voltar para a movimentação árabe no tecido romanesco de Jorge Amado:

Movimentando-se entre negros, crioulos, espanhóis ou portugueses criados para viverem o drama, a tragédia ou o amor que palpita nos romances desse autor que é o mais expressivo escritor da ‘nação grapiúna’ definida por Adonias Filho, outra não menos significativa expressão daquela ‘civilização’ tão particular. (MEDAUAR, 1993, não paginado)

Na realidade, ao privilegiar a presença árabe, em meio à sua construção identitária do sul da Bahia, Jorge Amado inauguraria um caminho estético, marcado pela ausência de estranhamento e por uma perspectiva de mão dupla, que ora realça o agudo sentimento árabe de pertencimento à nossa terra, com a correspondente e efusiva aprovação das personagens
brasileiras, o que só é possível graças ao apagamento das diferenças e ao realce das similaridades culturais entre nós e os árabes; ora o caminho em que, numa estratégia claramente mais complementar, tanto o árabe quanto o brasileiro reconstroem, solidariamente, o espaço nacional, como se verifica, hoje, em Milton Hatoum.

Nesse itinerário narrativo, Jorge Amado tematiza o abrasileiramento árabe no interior da Bahia, enquanto põe e repõe em circulação um assimilacionismo de correspondência, o mesmo do qual se nutririam Manuel Bandeira, Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade, mais ambiguamente, e Milton Hatoum, no século atual.

Ignorada e ocultada, ainda hoje, pelas mais variadas perspectivas acadêmicas que, ao renegarem a perspectiva do Naturalismo adotada por Jorge Amado, e por outros importantes autores de nossa literatura, condenam a obra do autor baiano a uma quase esterilidade crítica, ou a uma leitura de depreciação, a significativa contribuição estética do escritor grapiúna é, geralmente, encoberta por essas interpretações que a rebaixam à categoria de expressão menor, como exemplifica as observações críticas de Alfredo Bosi:

Cronista de tensão mínima, [Jorge Amado] soube esboçar largos painéis coloridos e facilmente comunicáveis que lhe franqueariam um grande e nunca desmentido êxito junto ao público. Ao leitor curioso e glutão a sua obra tem dado de tudo um pouco; pieguice e volúpia em vez de paixão, estereótipos em vez de trato orgânico dos conflitos sociais, pitoresco em vez de captação estética do meio, tipos ‘folclóricos’ em vez de pessoas, descuido formal a pretexto de oralidade... [...] O populismo literário deu uma mistura de equívocos, e o maior deles será por certo o de passar por arte revolucionária. (BOSI, 1980, p. 456-457)

Considerando Jorge Amado como cronista de tensão mínima e a sua obra como uma mistura de equívocos, Alfredo Bosi procede a uma dura crítica às narrativas amadianas.

Assim, ressalta como caracteres dos romances amadianos o descuido formal, a orientação populista, a pieguice e a velha perspectiva pitoresca, comum às nossas primeiras elaborações identitárias. Nessa visão, procede a uma classificação, ou mais precisamente a uma desclassificação, das narrativas de Jorge Amado:

Na sua obra podem-se distinguir: a) um primeiro momento de águas-fortes da vida baiana, rural e citadina (Cacau, Suor) que lhe deram a fórmula do “romance proletário”; b) depoimentos líricos, isto é, sentimentais, espraiados em torno de rixas e amores marinheiros (Jubiabá, Mar Morto, Capitães da Areia); c) um grupo de escritos de pregação partidária (O Cavaleiro da Esperança, O Mundo da Paz); d) alguns grandes afrescos da região do cacau, certamente suas invenções mais felizes, que animam de tom épico as lutas entre coronéis e exportadores (Terras do Sem-Fim, São Jorge dos Ilhéus); e) mais recentemente, crônicas amaneiradas de costumes provincianos (Gabriela, Cravo e Canela, Dona Flor e Seus Dois Maridos) [...] Na última fase abandonam-se os esquemas de literatura ideológica que nortearam os romances de 30 e 40; e tudo se dissolve no pitoresco, no “saboroso”, no “gorduroso”, no apimentado do regional. (BOSI, 1980, p. 457)

Longe de se constituir como uma visão particular e isolada, a leitura de Alfredo Bosi é paradigmática da recepção acadêmica à obra de Jorge Amado, como demonstram as observações da ensaísta Walnice Nogueira Galvão e as de Tânia Pellegrini, professoras de Literatura de importantes centros acadêmicos. Nessas observações, abaixo descritas, essas duas intérpretes assinalam, à maneira de Bosi, a ausência do trabalho e do rigor formal na obra amadiana, enquanto apontam a perspectiva mercadológica como norteadora da produção do escritor baiano:

Quanto nós, entra ano sai ano, aguarda-nos mais um romance de Jorge Amado, reiterando seu amaneiramento, apenas aguçando seus instrumentos para pior. Os livros são cada vez mais volumosos, o que lhes aumenta o preço e a decorrente quantia para o autor sobre o total da venda. Há, cada vez mais, trechos obviamente repetidos; percebe-se que são três ou quatro versões de um mesmo episódio [...] Cada vez mais, há menor elaboração artística [...] A bandeira progressista de Jorge Amado é o populismo. (GALVÃO, 1976, p. 15-16)

Tomando o conjunto da obra de Jorge Amado, o que na verdade se percebe é uma acentuação gradativa daquilo que era apontado como fragilidade ou deslize, na mesma proporção em que se dilui seu traço de força maior, a saber, a fusão harmoniosa entre documento e poesia, espécie de chave de sua fórmula estética, nos primeiros romances. O que prevaleceu parece  ter sido o “mínimo de literatura” como compromisso estético, enquanto o “máximo de honestidade”, como compromisso ético, foi aos poucos adquirindo conotações mais ligadas à lógica da mercadoria. (PELLEGRINI, 1999, p. 128)

Leitor atento de Jorge Amado, Paulo Bezerra, estudioso e tradutor da literatura e da teoria russa entre nós, se contrapõe, com indignação, a essa corrente do pensamento crítico-acadêmico, reconhecendo-a como absurda, responsável por uma lacuna injustificável em nossas interpretações do acervo literário nacional, segundo denuncia em seu prefácio à obra de Eduardo Assis Duarte, Jorge Amado: romance em tempo de utopia, publicada em 1995:

Entre os absurdos que a universidade brasileira comete, há um que certamente chega ao paroxismo: a ausência de estudos sistemáticos e abrangentes sobre a obra de Jorge Amado, o nosso escritor mais lido dentro e fora do país. Essa lacuna, injustificável sob qualquer motivo, deve-se a vários fatores, um dos quais ligado ao falacioso argumento de que a obra do romancista baiano seria de baixa qualidade estética, o que a tornaria desmerecida de integrar o Olimpo das obras pesquisáveis. Daí a ausência ou o número ridiculamente irrisório de teses sobre Jorge Amado nas nossas universidades. (BEZERRA, 1995, não paginado)

Nesse entendimento. Paulo Bezerra afirma que essa posição teórico-acadêmica seria decorrente do preconceito estético, em face da convenção estética adotada por Amado, mascarador, por sua vez, do preconceito ideológico, que vitima, freqüentemente, a obra amadiana. Em sua interpretação da recepção crítica a Jorge Amado, acusaria também o despreparo teórico dessa postura crítica que a incapacitaria, segundo Bezerra, à compreensão das convenções que sedimentam o projeto amadiano:

Por sua vez, a crítica da obra amadiana tem-se caracterizado, com raras exceções, pela falta de abrangência e profundidade, por um preconceito estético que frequentemente mascara o preconceito ideológico e, principalmente, pelo despreparo teórico para compreender o real significado da obra, além do desconhecimento das matrizes populares que a alimentam. Em vista disso, mantém-se quase sempre alheia à natureza do projeto amadiano, passando à margem ou simplesmente ignorando as convenções de que o autor lançou mão para concretizá-lo. (BEZERRA, 1995, não paginado)

De forma similar, Eduardo de Assis Duarte se debruçaria sobre a questão da recepção crítica a Jorge Amado. Numa clara demonstração de confluência entre a sua perspectiva e a do prefaciador de sua obra, Assis Duarte acentuaria na “Apresentação” de sua obra o alheamento crítico em face da natureza do projeto amadiano e das convenções adotadas pelo autor baiano para concretizá-lo. Esse alheamento, somado a uma perspectiva critica que privilegia os parâmetros estéticos do modernismo, seria, segundo Assis Duarte e Paulo Bezerra, a razão da reserva crítico-acadêmica e da incompreensão do discurso romanesco de Jorge Amado:

A crítica brasileira, salvo raras exceções, poucas vezes dedicou-se a uma leitura do romance amadiano que levasse em conta a natureza de seu projeto ou as convenções adotadas para a sua concretização. Marcada pelas balizas estéticas do modernismo, dedicou-se em grande parte ora uma crítica dos defeitos, ora a uma crítica das belezas, para ficarmos com as expressões de Agripino Grieco. No primeiro caso, buscando ressaltar tão somente as fragilidades, no segundo, apenas os méritos e, em ambos, não conseguindo uma compreensão mais profunda e global desses escritos. (DUARTE, 1995, p. 37 – grifos do autor)

Nesse caminho interpretativo, Assis Duarte procederia a uma leitura dos textos críticos acerca de Amado, em especial dos ensaios de Álvaro Lins, depreciador da obra amadiana, e do texto de Roger Bastide que, levando em conta a convenção naturalista de Jorge Amado, acentua a inovadora contribuição efetuada pelo escritor nordestino, na transformação dessa herança estética entre nós. A partir dessa leitura de revisão, Eduardo Duarte se voltaria para o projeto amadiano e dos recursos utilizados para a sua concretização. Em sua apreciação do projeto amadiano, problematizaria, novamente, as pesquisas elaboradas acerca do conjunto da obra de Jorge Amado:

Tal projeto tem como premissa básica a ampliação do horizonte recepcional da obra. ‘Escrever para o povo’ constitui-se como meta primordial e ponto de partida para a adoção de uma linguagem marcada pela oralidade, com o uso do coloquial configurando-se grande traço distintivo da expressão amadiana. No plano do enredo, essa busca do popular leva à absorção dos esquemas de aventura e heroísmo amplamente disseminados, seja no cordel ou no romance de folhetim, seja no melodrama, na novela radiofônica ou no cinema popular da época. Ao lado disso, há um inconfundível acento emotivo, de origem melodramática, perpassando os enredos. Ao invés de pesquisar o porquê desses recursos, alguns críticos preferiram o caminho mais cômodo de apontar a ‘pieguice’ ou o ‘romantismo’ de determinadas soluções, pouco contribuindo para o entendimento da questão. (DUARTE, 1995, p. 39)

Mais recentemente, Lúcia Lippi Oliveira (2002), numa leitura orientada pelo recorte étnico-identitário, se aproximaria das perspectivas de Eduardo de Assis Duarte e de Paulo Bezerra. Ao se deter sobre Jorge Amado, especialmente sobre as suas representações das gentes baianas, reconhece a importância de Jorge Amado, tanto como romancista, quanto como intelectual. Observando a constituição do povo baiano, na qual se verifica a ostensiva presença de negros e mestiços, e os preconceitos que, historicamente, cercam essas populações, Lúcia Lippi veria a obra amadiana como signos literários responsáveis pela redefinição e pela reinterpretação dos traços culturais baianos, ao mesmo tempo em que assinala a ruptura amadiana com as idéias que alimentaram a escola Baiana de Medicina, especialmente com a visão de Nina Rodrigues:

Não por acaso é na Bahia, profundamente impregnada de preconceitos raciais, que se desenvolve a Escola Baiana de Medicina, com Nina Rodrigues à frente, absorvendo da Europa a ciência racialista que classifica os povos a partir de traços raciais! É também na Bahia, pela obra de Jorge Amado, que se reconstrói nova versão da mistura das três raças originais e se produz a imagem do paraíso racial. Os personagens de seus romances, na maioria figuras populares, mestiças, falam da alegria, da sensualidade, da sexualidade, do sincretismo religioso. Jorge Amado, entre outros, pode ser tomado como romancista, como intelectual, que produziu uma mudança de sinal interpretação dos traços da cultura baiana. (OLIVEIRA, 2002, p. 44)

Escritor engajado, atento às vicissitudes de seu tempo, Jorge Amado entranha, à sua tessitura narrativa, as suas perspectivas e anseios políticos. Nesse entranhamento, nos legaria um conjunto textual no qual se pode aferir, simultaneamente, as suas opções estéticas e as suas reivindicações políticas, num comportamento pouco raro entre os nossos literatos, como assinala Eduardo de Assis Duarte ao se voltar para o contexto escritural brasileiro, dos fins do século dezenove e inícios do século vinte:

No Brasil, em cuja história a literatura e a política andaram quase sempre de mãos dadas, este é o momento em que muitos escritores começaram a querer dar as mãos aos operários. A onda de agitações e greves do período 1917-1920, encabeçada pelos anarquistas e anarco-sindicalistas, funciona como reflexo, embora longínquo, dos acontecimentos russos, e dá oportunidades a intervenções como as de Lima Barreto [...] Avançando um pouco o retrospecto histórico, pode-se notar que o ano de 1922 enseja três acontecimentos de importância decisiva na carreira de Jorge Amado: a Semana de Arte Moderna, o levante do Forte de Copacabana e a fundação do PCB [...] No caso específico de Jorge Amado, modernismo, tenentismo e comunismo funcionarão como referenciais muito precisos numa trajetória em que política e literatura vão caminhar lado a lado. (DUARTE, 1995, p. 22-23)

Na verdade, não obstante as diversidades, de objetivos e de organização textual, verificadas entre o discurso literário e o discurso científico da sociedade, essas modalidades discursivas apresentam um contínuo diálogo que acirra o debate sobre o contraponto entre o discurso artístico e o discurso sociológico, principalmente quando a temática trabalhada, a exemplo da de Jorge Amado, diz respeito às questões nacionais, como ressaltam o filósofo Octávio Ianni, ao discorrer sobre as afinidades entre a literatura e a sociologia e o crítico Antonio Candido, ao ressaltar o caráter empenhado de nossa literatura:

É mais do que evidente que a sociologia e a literatura nascem e desenvolvem-se desafiadas, influenciadas ou fascinadas pela questão nacional. Colaboram decisivamente na elaboração do mapa da nação, ajudando a estabelecer o território e a fronteira, a história e a tradição, a língua e os dialetos, a religião e as seitas, os símbolos e as façanhas, os santos e os heróis, os monumentos e as ruínas. (IANNI, 1999, p. 14)

Tanto no caso da literatura messiânica e idealista dos românticos, quanto no caso da literatura realista, na qual a crítica assume o cunho de verdadeira investigação orientada da sociedade estamos em face de exemplos de literatura empenhada numa tarefa ligada aos direitos humanos. No Brasil isto foi claro nalguns momentos do Naturalismo, mas ganhou força real sobretudo no decênio de 1930, quando o homem do povo com todos os seus problemas passou a primeiro plano e os escritores deram grande intensidade ao tratamento literário do pobre. Isso foi devido sobretudo ao fato do romance de tonalidade social ter passado da denúncia retórica, ou da mera descrição, a uma espécie de crítica corrosiva, que podia ser explícita, como em Jorge Amado, ou implícita, como em Graciliano Ramos [...] mas que contribuíram para formar o batalhão de escritores empenhados em expor e denunciar a miséria, a exploração econômica, a marginalização, o que os torna [...] figurantes de uma luta virtual pelos direitos humanos. (CANDIDO, 1995, p. 255-256)

Voltado para as questões identitárias no Brasil, em cujas representações deixa as marcas de sua trajetória literária e política em nossa vida contemporânea, no Brasil e no exterior, Jorge Amado vai impregnar a sua obra de um realismo manifesto, que o filiará ao naturalismo francês, em especial ao de Émile Zola, autor de sua admiração e de sua predileção sentimental, segundo afirma, em 1992, em entrevista à Folha de São Paulo:

Divido os escritores franceses entre os que amo e admiro e aqueles a quem simplesmente admiro. Flaubert não é do meu amor. Mesmo Balzac, um imenso escritor, não é dos meus preferidos. Entre os franceses, o que me diz mais mesmo é Zola. (AMADO, 9.8.1992)

As escolhas ou preferências de Jorge Amado, no que diz respeito à perspectiva literária do Naturalismo e a Zola, longe de serem gratuitas se adéquam ao seu projeto e aos seus intentos literários, como se apreende da leitura de suas obras e da observação das linhas norteadoras da vertente naturalista. Para essa compreensão, concorre a obra de Flora Süssekind, Tal Brasil, qual romance?: uma ideologia estética e sua história: o naturalismo, publicada em 1984.

Longe de ver a gratuidade e/ou o mero prestígio das idéias européias como elementos motivadores da calorosa e duradoura recepção ao Naturalismo entre nós, Flora Süssekind procede a um verdadeiro inventário crítico acerca do Naturalismo, utilizando-se das mais variadas fontes críticas. Em sua leitura, ressalta a filiação de Jorge Amado a essa tradição estética, aproximando-a a Aluísio Azevedo, a José Lins do Rego e a Zola:

Em O Cortiço, romance exemplar da virada do século, usa Aluísio Azevedo como uma de suas epígrafes um dos mais conhecidos enunciados do Direito Criminal: ‘La vérité, toute la vérité, rien que la vérité’. Na nota introdutória de 1933 a Cacau, avisa, por sua vez, Jorge Amado: ‘Tentei contar neste livro, com um mínimo de literatura para um máximo de honestidade, a vida dos trabalhadores das fazendas de cacau do sul da Bahia’ [...] Diante da ênfase nos ciclos se poderia perguntar [...] Por que Cacau se desdobra em Terras do Sem Fim e São Jorge dos Ilhéus? Por que Menino de Engenho continua em Doidinho, Bangüê, Moleque Ricardo e Usina? Por que um ‘ciclo’ do cacau e um ‘ciclo’ da cana-de-açúcar? A idéia do ciclo não chega a ser exclusiva dos anos Trinta. Basta lembrar o ciclo dos Rougon-Macquart de Zola. Ou o esboço de um ciclo romanesco que Aluísio Azevedo apresentara num artigo de 1885, publicado em A Semana. (SÜSSEKIND, 1984, p. 36; 162-163)

Apoiada em Adonias Filho, Antonio Candido, José Guilherme Merquior, Nelson Werneck Sodré, Otto Maria Carpeaux, entre outros, Flora Süssekind reconhece os vínculos de afinidades entre o discurso literário brasileiro, recorrente na incessante busca de nossas identidades, e as linhas norteadoras da estética naturalista, em especial as da busca da referencialidade, do documental, apropriadas às construções de nacionalidade, como se lê em seu discurso abaixo, no qual insere a leitura de Adonias Filho:

Normalmente, procura-se uma literatura que, ao documentar o país, pareça acreditar na existência de uma identidade nacional. Uma literatura que, não se indagando como linguagem, funcione no sentido de exterminar quaisquer dúvidas, digam elas respeito à ficção ou ao país. O que corrobora algumas observações de Adonias Filho a respeito da vinculação do romance brasileiro ao documentário: “O país nele pode encontrar a sua identidade. E pode encontrá-la sobretudo porque, em estado de testemunho, guardando as imagens como em um espelho, não anula em sua fixação as percepções dos romancistas”. A estética naturalista funciona, portanto, no sentido de representar uma identidade para o país, de apagar, via ficção, as divisões e dúvidas [...] É em sentido literalmente oposto a essa fragmentação que se constroem os textos pautados numa estética naturalista. (SÜSSEKIND, 1984, p. 43-44 – grifos da autora)

Em relação à preferência brasileira por Émile Zola, como a manifesta explicitamente Jorge Amado, Flora Süssekind, utilizando-se das ponderações de Merquior, ressalta o caráter pragmático da acolhida dos nossos escritores à estética de Zola, descartando, mais uma vez, o simples prestígio das idéias européias como fator determinante das escolhas brasileiras:

Não se procura observar por que justamente o naturalismo entrou em moda e que vínculos orgânicos mantinha com o sistema intelectual brasileiro para que adquirisse tão grande repercussão. Não é qualquer “idéia estrangeira” que recebe acolhida tão boa. Em meio às diversas sementes intelectuais lançadas à terra nem sempre tudo “dá”. Em meio a Flaubert e Zola, escolheu-se o último. Coisa de que o próprio Merquior se dá conta na sua Breve História da Literatura Brasileira: “Foi o romance naturalista à Zola, que trocou a objetividade esteticista de Flaubert pela análise de pretensões científicas, que constituiu, entre nós, a primeira manifestação de peso de um estilo pós-romântico”. Prefere-se Zola a Flaubert, como entre Marx, Comte e Spencer, escolhem-se os dois últimos. Não é muito difícil perceber o que se repete nas escolhas. Não se trata de “plágio” ou de “imitação” indiscriminados. A preferência é sempre por qualquer pensamento que ajude a estabelecer um conjunto de identidades, leis e semelhanças. (SÜSSEKIND, 1984, p. 53)

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continua…

Fonte:
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Letras da Universidade Federal da Paraíba, como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre em Literatura Brasileira. Universidade Federal da Paraíba – Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes – Programa de Pós-Graduação em Letras. João Pessoa/PB, 2008

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