sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

Moacyr Scliar (Infância passo-fundense)

Tenho um carinho especial por Passo Fundo, onde passei boa parte de minha infância. Isso aconteceu na pré-história, claro, mas ainda lembro de muita coisa: a casa onde morávamos, perto da Avenida Brasil, a antiga Delegacia de Polícia e, sobretudo, o Colégio Notre Dame, do qual fui aluno. Aliás, menor aluno, provavelmente; eu não tinha nem quatro anos e já frequentava o primeiro ano do curso primário. Devo dizer que era considerado, ao menos por minha mãe (fã entusiasmada do filho) como garoto prodígio. De fato, aprendi precocemente a ler e a escrever, o que seria um motivo de orgulho, não fosse por um episódio que me remeteu de volta à humildade.

Uma manhã estávamos em aula quando passou um desfile militar (se não me engano, em preparação para o Sete de Setembro). Todos, inclusive a professora, correram para as janelas para ver os garbosos soldados. E todos estavam entusiasmados. Menos eu.

Em primeiro lugar, não alcançava a janela: era pequeno demais. Em segundo lugar, estava com um prosaico problema: queria fazer xixi. Era inverno e nessa época o apelo da bexiga infantil se torna mais premente, imperioso, mesmo. Tentei chamar a atenção da mestra, que era uma religiosa, e de meus colegas. Inútil. O desfile os fascinava. Sem licença para ir lá fora, eu não podia sair da sala. Enquanto me debatia nesse dilema existencial, a natureza resolveu o problema da forma mais prática, ainda que pouco conforme às regras de etiqueta: quando vi, tinha feito xixi na calça, a grossa calça de lã que eu então usava. 

Foi, como se pode imaginar, uma humilhação. Naquele dia descobri uma coisa importante: se é para urinar nas calças, o melhor é não ser menino prodígio. Para adquirir cultura sempre há tempo. Para se fazer xixi quando se está apertado é que nem sempre se dispõe de tempo suficiente.

Voltei muitas vezes a Passo Fundo para palestras, debates, para as Jornadas de Literatura que hoje repercutem no país inteiro. Cada vez mais admiro a cidade. E cada vez mais me parecem mais gratas as recordações da infância que ali passei, nelas incluído o episódio do colégio. Ocorre-me que deveria ter guardado a calça que usava na ocasião. Pode não valer tanto quanto o vestido de Mônica Levinsky, mas para mim evocaria um momento transcendente. Ainda que molhado.

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