sábado, 4 de fevereiro de 2017

Olivaldo Junior (Um Livro Aberto)

Eu, por um bom tempo, me dispus a ser um livro, um livro aberto pra ti. Deixaste marcadas minhas páginas, dobrando-as nas pontas, para ver se, mais tarde, quando quisesses um trecho de destaque bem à mão, sequer trabalho tivesses de procurar em mim o que gostaste e irias repetir. 

Repito que fui pra ti um livro aberto, sempre alerta, como se eu fosse a Bíblia, sagrada em seu sacrossanto ofício de estar lá, livro que folheavas meio a esmo, mais do mesmo, sem muita emoção. Não, sequer eras devoto dos versículos que eu te mostrava serem teus. Eu, pra ti, se fui um deus, fui um deus morto, um totem visto lá de longe, de outra praia, foragido de meu dever de clarear a tua fé. Feito ateu, me deste adeus.

Soluço feito um livro de poemas de Florbela Espanca, esnobando o didatismo dos livros técnicos, segurando em mim as sílabas que teimam em voar de minhas linhas. Minha alma, em teu colo descoberta, era um livro aberto, romance que contava as crônicas de uma prosa quase nada poética... Quase me perdia em mim, Aurélio que a edição estava antiga, sem o Acordo Ortográfico, com todos os tremas e todos os hifens que nos cabiam e nos foram tomados, tirados da língua. À míngua, minguante, fechei-me ao toque dos dedos que me feriam o papel. Para! Já tenho orelhas demais e muitas, inúmeras notas de rodapé! Peças para alguém me por em braile. Lembro-me de que tu não tens tato o bastante para me ler nas entrelinhas, tocando-me as fibras, uma a uma; ao contrário, me espancas se me torno a bela flor de teu jardim, a obra-prima de teu sebo, o selo raro em tua pasta. Basta! Aberto, fecho-me a teus olhos, roído de traças me trago e me "voo".

[...] "Fecha o meu livro, se por agora / Não tens motivo nenhum de pranto." [...]. Tô com Bandeira e não abro! Abro a cadabra de mim e me sumo na estante. Nunca me encontrarás. Sob os olhos dos clássicos, caças algo para ler, e eu, que, por um bom tempo, me dispus a ser teu livro, aberto só pra ti, tiro a poeira dos móveis e me cubro com ela. Lambes o dedo a fim de virares mais facilmente as páginas. Não mais as minhas. Bíblico, mítico, místico, transfiguro-me em jornal e tens de mim as últimas notícias da Cidade, do Brasil e do Mundo. Nunca as minhas. Soluço, sim, mas salvo a pátria de meus ais com minhas páginas unidas, seladas pelo efeito da umidade que peguei quando chorei.

Disposto, aberto, marcado, dobrado, visto, revisto e ampliado, fui, assim, um livro que se abria pra a consulta, a qualquer hora. Feito lista, feito alguém que é descoberto especial quando é preciso. Viso outra forma de ser. Rezo para alguém me "conseguir". Velho, a esmo, o mesmo, quase pó.

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O Autor

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