domingo, 11 de fevereiro de 2018

Érico Veríssimo (As Aventuras de Tibicuera) Capítulos 1 a 4

1 — NASCI

Nasci na taba duma tribo tupinambá. Sei que foi numa meia-noite clara. Fazia luar. Minha mãe viu que eu era magro e feio. Ficou triste mas não
disse nada. Meu pai resmungou:

— Filho fraco. Não presta para a guerra.

Tomou-me então nos seus braços fortes e saiu caminhando comigo para as bandas do mar. Ia cantando uma canção triste. De vez em quando gemia. Os caminhos estavam respingados do leite da lua. O urutau gemeu no mato escuro. Uma sombra rodopiou ligeira por entre as árvores.

O mar apareceu na nossa frente: grande, mole, barulhento, cheio de rebrilhos. Meu pai parou. Olhou primeiro para mim, depois para as ondas... Não teve coragem.

Voltou para a taba chorando. Minha mãe nos recebeu em silêncio.
2 — CRESCI

Passaram-se algumas luas. Uma tarde eu ia escanchado na cintura de minha mãe e o pajé da nossa tribo nos fez parar na frente de sua oca. Olhou para mim. Viu que eu era magro, feio e tristonho. O pajé era um homem muito engraçado. Como fazia troça de toda a gente e de todas as coisas, diziam que ele era irônico. Pois o pajé me examinou da cabeça aos pés, sorriu e disse:

“Tibicuera”.

O nome pegou. Toda a gente ficou me chamando Tibicuera. Tibicuera na nossa língua queria dizer cemitério. O nome sentava bem. Eu era magro e chorão.

Certa vez fiquei parado, olhando a minha sombra no chão. Era a sombra de um guri cabeçudo, de barriga enorme, como que inchada. As pernas eram finas como os juncos que crescem nos rios. Soltei um grito de tristeza. Na taba até pensaram que tinha sido gemido de urutau.

Uma tarde me debrucei sobre um córrego para matar a sede. Vi minha cara no espelho da água. Levei um susto. Ergui-me num pulo e saí a correr. Agarrei-me às pernas de minha mãe e choraminguei:

— Vi um peixe feio dentro d’água, mãe.

Cresci na caba, comendo terra, perseguindo as formigas e as minhocas. Aos cinco anos fiz minha primeira caçada de tucanos. Mas não me meti fundo no mato, porque tinha medo de encontrar Anhangá, Curupira e os outros espíritos maus.

À noite eu via as danças dos índios ao redor de uma grande fogueira. Os tupinambás pulavam, faziam roda, rebolavam as ancas, erguiam os braços,
batiam com os pés no chão. A fogueira tinha línguas de muitas cores. De dentro dela saltava um clarão que devorava a luz do luar, pintava de vermelho a cara dos guerreiros e ia abolir com o mato que estava dormindo.

Os guerreiros dançavam. Os tambores batucavam — bum-qui-ti-bum. bum-qui-ti-bum. bum, bum... Eu olhava para o céu. A lua parecia uma fogueira e as estrelas eram os índios dançando ao redor dela.

Um dia os tupinambás foram para a guerra. Os tambores soaram com raiva. 0 eco respondeu longe. O pajé reuniu o conselho. Os guerreiros prepararam suas armas. Dançaram os tacapes, os arcos, as frechas e as lanças. Depois os guerreiros entraram no mato. Só ficaram na taba os velhos, as mulheres e as crianças.

Comecei a sentir uma vontade muito grande de ficar homem para ir também à guerra.
3 — O MISTÉRIO DA CAVEIRAOs nossos guerreiros voltaram vitoriosos. Trouxeram muitos prisioneiros e o crânio do chefe inimigo. Fiquei olhando aquela cabeça sem corpo. Que cara horrível! Eu queria fechar os olhos ou olhar para outro lado, mas não podia. 0 crânio do chefe inimigo me atraía, me chamava, me prendia. . .

Naquela noite tive um pesadelo pavoroso. Sonhei que a cabeça sem corpo estava em cima de meu peito, pesando, procurando esmagar-me o coração. Acordei suando frio. Saí da minha oca. Silêncio na taba. A noite ia alta.

A lua minguante lá no céu parecia a caveira de algum grande chefe vencido. Os grilos cantavam. Saí a caminhar. Aonde era que eu ia? Alguma coisa me puxava...

Andei trocando pernas à toa por entre as ocas. Só depois de muito tempo é que compreendi o que queria. Eu tinha era vontade de pegar a caveira do chefe inimigo. Eu sabia que ela estava espetada num pau da caiçara perto da oca de nosso chefe. Fui...

Puxei o crânio branquinho com todo o cuidado. Sentei-me na areia da praia. E, sem ouvir o barulho do mar, nem o uivo do vento, nem os pios das aves da noite, revirei nas mãos a caveira e fiquei com os olhos pregados nela. Eu sentia um grande medo no coração. Queria decifrar o mistério daquela cabeça sem vida. Queria...

Que era aquilo? Cheguei a gritar para o céu. Que era aquilo?

O mar continuou rugindo, o vento uivando, as aves piando. Mas nada respondia à minha pergunta.

De repente senti um ímpeto... Peguei a caveira e joguei-a para o ar, como se a quisesse quebrar contra as pontas agudas das estrelas. A caveira brilhou ao luar e tornou a cair na areia. Póf!

Estendi-me ao lado dela e, cansado, dormi até o amanhecer.
4 — O MEU ENCONTRO COM ANHANGÁ

Eu gostava de visitar a oca do feiticeiro de nossa tribo. Havia lá dentro um ar de mistério, cobras se arrastando pelo chão, ervas colhidas em noites de lua cheia.

O pajé parecia andar sempre dormindo, olhos fechados, cara calma. Diziam que ele era mais velho que as árvores mais velhas do mato antigo. Sabia todos os segredos da vida. Tinha remédio para todos os males.

O pajé gostava de mim. Eu gostava do pajé. Ele me dizia:

— Ninguém pode com os espíritos maus. Anhangá entra no corpo dos guerreiros e os guerreiros ficam perdidos. Ai de quem encontrar Curupira no mato!

Eu escutava, com o coração batendo, os olhos muito arregalados.

Um dia, distraído a perseguir um bicho, me meti no matagal. Quando caí em mim, estava perdido. Comecei a caminhar sem rumo certo, procurando uma saída. Havia a meu redor troncos de árvores tão grossos e retorcidos que davam medo. Pareciam braços musculosos prontos para me esmagar. O sol mal entrava ali, porque a folhagem formava por cima da minha cabeça um toldo verde e espesso. Ouvi longe o ronco duma onça. Tremi. Um pássaro piou. Tremi de novo. Um graveto estalou. Tornei a tremer. Às vezes uma coisa mole e comprida passava ondulando pelo meio das ervas rasteiras. Cobra. Eu sentia calafrios.

De repente ouvi uma voz fina:
— Tibicuera!

Uma voz de caçoada. Parei. Quem seria? Olhei para os lados. Ninguém. Olhei para cima. Nada. Decerto tinha sido ilusão... Continuei a caminhar. Outro chamado:

— Tibicuera!

De repente um vulto cresceu diante de mim. Era uma figura esquisita, meio gente, meio bicho, preta como a noite, de olhos chispantes que pareciam duas fogueiras. Pulava num pé só, doidamente. Abri a boca num
espanto. Era Anhangá! Reuni toda a minha coragem e falei:

— Passa fora!

Anhangá soltou uma gargalhada: “Quá-quá-quá!”

O mato todo riu com ele. Riu de mim. Depois o diabo virou três cambalhotas no ar e começou a dançar com toda a velocidade em meu redor. Senti que meus olhos escureciam. Eu mal e mal ouvia a voz de Anhangá, berrando:

— Ninguém pode comigo! Ninguém me vence, nem Tupã!

Estendi os braços procurando agarrar alguma coisa. Foi quando Anhangá parou de rodopiar, recuou um pouco e pulou com o pé no ar. Senti uma dor muito forte no queixo e desmaiei.

Acordei na taba. Ouvi alguém perguntar:

— Foi Curupira?

Mal tive força para responder:

— Anhangá.

E comecei a chorar de raiva.

Fonte:
Érico Veríssimo. As aventuras de Tibicuera, que são também do Brasil. (Texto revisto conforme Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa em vigor em 2009). Porto Alegre: Edição da Livraria do Globo, 1937.

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