segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018

Érico Veríssimo (As Aventuras de Tibicuera) Capítulos 5 a 8


5 — VÉSPERA DE BATALHA

Muito tempo passou. Fiquei curumiaçu, que quer dizer adulto. Chegou a véspera da minha primeira guerra. Os tupinambás se enfeitaram de plumas, botaram no pescoço colares feitos com dentes de inimigos mortos, armaram-se de arcos, flechas, tacapes e lanças.

Eu me lembro com se tivesse acontecido ontem... Era de noite. Céu sujo, vazio de lua e de estrelas. As fogueiras ardiam vermelhas, debaixo dos
potes de cauim. O maracá começou a chocalhar.

Minha mãe chegou e disse:

— Tibicuera, vais para a guerra.

— Vou, mãe.

— Teus avós foram valentes.

— Eu sei.

— Estão morando do outro lado das grandes montanhas.

— Eu sei.

Minha voz estava trêmula. Eu olhava a minha sombra no chão. Não era mais o guri barrigudo de pernas de caniço. Eu era agora um homem forte,
um guerreiro.

Minha mãe continuou:

— Matarás muitos inimigos, derrubarás muitas cabeças, serás um grande chefe.

Estremeci. Apertei com força o meu tacape. Senti que meus olhos estavam fuzilando. Perguntei, com um nó na garganta:

— Mãe, mãe, quando chegará a hora? Quando? Estou fervendo como o cauim. Não posso esperar.

Minha mãe sorriu.

O pajé reuniu os guerreiros no meio da ocara. Falou. Sua voz parecia sair do fundo duma caverna cheia de cobras, escorpiões e morcegos. E enquanto o feiticeiro falava, as nuvens foram se abrindo e as estrelas aparecendo uma a uma.

— Guerra! — gritava o pajé. — O guerreiro forte que ficar na taba é covarde.

Penas e braços dançaram no ar. Um coro horrível repetiu:

— Guerra!

O pajé continuou:

— O goitacá traiçoeiro comeu a carne de nossos antepassados. Vingança!

O discurso do pajé durou cinco horas. Depois os tupinambás começaram a dançar e a beber cauim. Também dancei e bebi. E a madrugada ainda não tinha clareado quando nos pusemos a marchar.

6 — A VITÓRIA
O sol dourava o grande campo. A noite tinha se escondido do outro lado das montanhas. Os nossos guerreiros avançavam. Tudo quieto. Às vezes um gavião passava alto. Eu pensava:

— Anhangá pode estar escondido no corpo duma ave...

(Agora, sentado aqui numa boa poltrona, no estúdio de meu apartamento de Copacabana — onde escrevo esta história — eu sorrio ao me lembrar de meus pensamentos de selvagem.)

De repente, um grito. Tive a impressão de que as macegas, a uns duzentos metros de onde estávamos, cresciam de repente. Eram os inimigos que nos esperavam de emboscada. Uma chuva horizontal de flechas cortou o ar. Traziam nas pontas plumas azuis, amarelas, vermelhas e roxas. Eram tão lindas voando e brilhando no ar luminoso que fiquei de boca aberta, a contemplá-las, tão encantado que me esqueci de me deitar para fugir às flechadas.

Vi um companheiro cair perto de mim com uma seta cravada no peito. Os nossos começaram a atirar também. O combate durou muito tempo. No fim foi a luta corpo a corpo.

Os maracás chocalhavam. Os guerreiros gritavam. Agitei o tacape e corri na direção dos inimigos. Surgiu um índio forte na minha frente. Levantei o tacape e dei o golpe. Pan! O inimigo rolou.

(No momento em que descrevo esta cena, estou no ano de 1942. O meu rádio noticia voos estratosféricos, conta maravilhas da televisão. E a um anúncio de sabonete segue-se uma sinfonia de Beethoven. Olho para a minha máquina de escrever portátil e para as minhas mãos agora cuidadas e custa-me acreditar que estas mesmas mãos já empunharam armas brutais, já feriram, já derrubaram cabeças... Estremeço de leve. Toco a campainha. Peço um chá ao meu criado e continuo a descrever a minha primeira guerra.)

Apareceu outro goitacá. Pan! Rolou também. Outro. Pan! A mesma coisa. Todos caíam. Minha arma zunia no ar sem descanso e sem piedade.

Aquele quadro — homens baqueando aos gritos, plumas coloridas voando ao vento, som de maracás — foi tão forte que hoje, passados mais de quatrocentos anos, eu me lembro dele com toda a clareza. Por fim ergue-se na minha frente um guerreiro enorme. Pela pintura que trazia no corpo, vi que era o chefe da tribo inimiga. Levantou o tacape. Recuei e rebolei também a minha arma. As nossas clavas se chocaram no ar. Pléf! E se quebraram.

Olhei para os braços musculosos do meu adversário e pensei: Estou perdido. Mas não perdi a calma. Como um tigre saltei-lhe em cima. Atracados, rolamos por terra. Senti as mãos de ferro do goitacá trançadas nas minhas costas, enquanto seus braços apertavam meu tronco, procurando esmagá-lo. Fiz um esforço doido e consegui segurar com ambas as mãos a garganta do chefe. E enquanto ele me apertava a cintura eu lhe apertava o pescoço. No fim de alguns minutos notei que o abraço do inimigo afrouxava. Senti um alívio. Eu tinha vencido.

7 — SERENATA PARA AS ESTRELAS
Voltamos para a taba com os troféus da vitória.

Minha mãe me esperou sorrindo.

— Cem cabeças de inimigos. Que lindos enfeites para a nossa caiçara, mãe!

(Assim pensava eu no ano de 1490. Hoje, olho urna tela de Portinari ou uma escultura de Brecheret e digo: “Que lindos enfeites para o meu gabinete.)

Veio o pajé com o seu sorriso irônico e me disse:

— Tibicuera é um valente. Oh! Mas ele não pode com os gênios do mato.

Naquela noite a lua me pareceu mais clara, mais suave a minha rede, mais melodioso o barulho do mar. Com o osso da coxa do chefe inimigo fiz uma flauta. E na hora em que a taba dormia, comecei a soprar no instrumento. O som que saiu dele foi doce e triste. Então fiz a minha primeira serenata para as estrelas. Toquei com tanta alma, com tanto sentimento, que a música misteriosa dançou no ar leve voou para o mato e fez calar de espanto o urro do jaguar, o canto de fundo do urutau e o grito guinchado de Curupira. As cobras vieram me lamber os pés, tontas. Pareceu-me até que as próprias estrelas pararam de brilhar para melhor ouvirem a minha musiquinha. Eu soprava na flauta e de tão comovido comecei a chorar.

Mais tarde, fui dormir. Sonhei que o chefe goitacá veio para mim e disse:

— Tibicuera, estou contente por ter sido vencido por ti. Estou orgulhoso de ti. Porque fizeste uma flauta com o meu fêmur e tocas nela tão bem, tão bonito, que até os mortos que moram para além das grandes montanhas ficam com vontade de voltar, só para te ouvir.

8 — VELAS NO MAR
O pajé me contava histórias dos tempos em que a Lua era noiva do Sol. Eu ficava sentado na oca dele, de pernas cruzadas, escutando. Uma fogueira quase morta nos separava. A fumaça subia. Por trás da fumaça o pajé sorria, mostrando a boca escura e desdentada. E a faia dele era como o barulho do vento nas folhagens.

Um dia ele me estava recontando uma história que aprendera do velho Sumé, quando se ergueu uma gritaria na taba. Saí para ver o que acontecia. Um homem vira coisas estranhas no mar. Por isso estava gesticulando, gritando, contando... O chefe da tribo armou os seus guerreiros. Fomos todos para a beira do mar.

O nosso espanto foi enorme. Abria-se na nossa frente a grande baía. Dentro dela, balançando-se de leve, estavam pousadas umas doze ou treze embarcações como nunca tínhamos visto em toda a nossa vida. Nós cortávamos os rios e o mar nas nossas igarás, barcos compridos e rasos, feitos em geral de troncos de árvores. Mas agora era diferente... Tratava-se de barcos altos, compridos, largos, todos cheios de mastros, cordas, panos, bandeiras Eu estava de boca aberta. Olhava muito admirado para as bandeiras coloridas que ondulavam ao vento no cordame dos navios. E só cem anos depois é que eu iria aprender que aquela era a frota portuguesa que descobria o Brasil! Naquela hora não existia Brasil, mas sim a nossa terra, por nós chamada Pindorama, — serra boa e
grande onde nossa tribo e muitas outras corriam, livres, acampando aqui e ali, caçando, pescando, dançando, guerreando...

O chefe tupinambá quis reunir seus homens para o combate. Mas o pajé, veio, olhou, sorriu e botou a mão no ombro do chefe:

— Não vai haver guerra. Eles vão nos divertir.

Não disse mais nada.

Assim como filhotes de ave que deixam a plumagem quente da mãe, muitos barcos se afastaram do maior dos navios e se aproximaram da praia. Os índios os esperaram em silêncio. Quando os barcos embicaram na areia, pudemos ver que eles estavam cheios de homens brancos. Traziam armas desconhecidas. Falavam língua que nenhum de nós entendia.

Um dos estrangeiros avançou para o nosso grupo. Tinha um grosso bigode preto. Sua espada brilhava ao sol. Começou a fazer gestos e caretas. Atrás dele seus soldados esperavam...

O pajé fez um gesto de paz e disse à nossa gente em tupi:

— Que será que esse macaco quer?

Risadas.

O homem do bigodão fez um sinal. Um dos soldados trouxe e colocou aos pés dele um grande cesto. O chefe branco se inclinou e tirou do cesto uma mancheia de colares de miçangas coloridas, espelhos e outras bugigangas para nós desconhecidas. Os índios começaram a ficar inquietos e a dar pulos. Só o pajé continuava a sorrir com indiferença.

Outras canoas se aproximavam da praia, vendo que a primeira fora recebida em boa paz.

Fonte:
Érico Veríssimo. As aventuras de Tibicuera, que são também do Brasil. (Texto revisto conforme Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa em vigor em 2009). Porto Alegre: Edição da Livraria do Globo, 1937.

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