quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

Érico Veríssimo (As Aventuras de Tibicuera) Capítulos 13 a 16

13 — UM PROBLEMA DE DISTÂNCIA
Vocês naturalmente sabem que o homem sempre mediu as distâncias de acordo com seus meios de transporte. Há cinquenta anos atrás nos perguntavam: “Do Rio a Porto Alegre é muito longe?” E a gente, pensando nos meios de transporte daquele tempo, respondeu: “É longe. São muitos dias de viagem.” A resposta hoje seria: “É perto. Algumas horas de avião.” E eu até acho que no futuro um cidadão poderá despedir-se dos amigos na Avenida Rio Branco e dizer: “Até a vista, rapazes. Vou até a Groenlândia. Volto daqui a pouco.”

Pois lá pelo ano de 1500, D. Manuel, o Afortunado, rei de Portugal, andava às voltas com um grave problema. O navegador português Vasco da Gama havia descoberto o caminho para as Índias, voltando de lá com um carregamento de pimenta, canela, gengibre — enfim: todas as preciosas especiarias do Oriente. Ora, esses artigos tinham grande aceitação na Europa, onde eram vendidos a bom preço. Estava claro que aquele que primeiro conseguisse chegar às Índias, voltando também pelo caminho mais curto, faria melhor negócio. Em resumo: a febre das especiarias orientais naquele tempo era mais ou menos parecida com a febre de petróleo de nossos dias.

D. Manuel não hesitou. Organizou uma armada. Botou no comando dela um capitão-mor, Pedro Álvares Cabral, e lhe disse, naturalmente em outras palavras: “Olhe, comandante, precisamos achar um caminho mais curto para as Índias, ouviu?”

A armada zarpou. O que aconteceu na viagem, não sei. Não vi. Contam muita coisa desencontrada. Uns dizem que Cabral se afastou das costas da África, batido por um grande temporal e acabou descobrindo o Brasil por acaso. Outros afirmam que o comandante português não andava às tontas, sabia onde tinha o nariz e chegou à terra desconhecida por causa dum plano muito bem traçado. Nada disto nos interessa. O importante é que o Brasil foi descoberto.

Um dos navios da armada, comandado por um tal André Gonçalves, voltou para Portugal para dar a boa notícia ao Rei, enquanto Cabral seguiu com o resto da frota para as Índias. D. Manuel decerto deu pulos de contentamento ao saber da novidade. Mais terras para a Coroa de Portugal!

Mandou três caravelas explorar a nova terra. As três casquinhas de nozes, todas cheias de velas e bandeiras, correram à costa, descobrindo cobras e lagartos, isto é: cabos, rios, ilhas, baías, montanhas... Dois anos depois veio mais uma esquadrilha exploradora. Alguns anos mais tarde, outra.

14 — A MADRUGADA DO BRASIL
Trinta anos após o descobrimento fez-se a primeira tentativa de colonização. Fundaram-se as primeiras povoações. São Vicente e Santo André da Borda do Campo.

Em 1534 quem reinava em Portugal era D, João III. Resolveu ele distribuir as terras do Brasil entre pessoas importantes do Reino, que tivessem capacidade para povoar e defender a nova pátria. Dividiu a costa em partes mais ou menos iguais a que deu o nome de feitorias. Eram 5: Santa Cruz, Rio de Janeiro. Cabo Frio, Iguaçu e Itamaracá. Logo depois dividiu a nova terra em capitanias hereditárias.

Olhando o mapa da divisão, não posso deixar de sorrir. O Brasil me dá a impressão duma perna de porco dividida em dez fatias. Vejam: Havia espalhados pela perna de porco, isto é, pelas dez capitanias, uns 2000 colonos. A maioria se dedicava à lavoura. Já apareciam os primeiros engenhos, as primeiras fabriquinhas. Era o clarear do dia duma nação. (Gostaram da frase? Pois podem ficar com ela. Dou-lhes de presente. Em 1500 essa imagem podia ser novidade. Mas hoje...)

Vocês pensam que as capitanias viveram em paz? Qual! Sofriam ataques dos selvagens, que não se conformavam com ver sua pátria invadida. Depois, começavam também a aparecer piratas. Vinham espiar a terra nova, com um olho deste tamanho, com uma vontade danada de abocanhar um naco da terra que Portugal descobrira.

Vendo que a divisão do Brasil em capitanias não dava resultado, o rei de Portugal resolveu criar um governo geral. O primeiro Governador Geral se chamava Tomé de Sousa. Trouxe para o Brasil 300 soldados, 300 colonos, 400 degredados e 6 jesuítas. Estes últimos eram chefiados pelo Padre Manuel da Nóbrega.

Tomé de Sousa fundou a cidade de Salvador da Bahia, visitou as capitanias do Sul, mandou grupos de homens explorar o sertão. Foram aventuras tremendas. As proezas de cada um desses grupos, que se chamavam entradas, davam um romance de arrepiar o cabelo. Infelizmente ninguém se lembrou de escrevê-lo.

Uma das coisas mais admiráveis da História do Brasil foi o trabalho dos jesuítas. Os padres fundaram colégios e, enquanto os outros homens pensavam em arrancar da terra ouro e pedras preciosas, eles se preocupavam exclusivamente com a educação dos selvagens. Achavam que uma alma valia mais que um diamante. E, sem armas de guerra, metiam-se no meio dos índios, aprendiam a sua língua, procuravam mostrar-lhes que eles levavam uma vida feia, sem conhecer o Único Senhor do Universo — Deus, um pai que não gostava que seus filhos na Terra cultivassem o pecado e a antropofagia.

Mas agora é que estou vendo que a história da minha vida está virando História do Brasil. Vamos fazer ponto e começar novo capítulo. O capítulo em que continuo as aventuras de Tibicuera, o valente guerreiro tupinambá. (Modéstia à parte.)

15 — EU E MEU FILHO
Todos esses fatos que narrei no capítulo que vocês acabam de ler, aconteceram na terra em que eu me encontrava. No entanto não presenciei nenhum deles. Só me lembro de que certa vez tomei parte num ataque a um aldeamento de portugueses. Fomos repelidos. Eles usavam canhões e espingardas. Os nossos homens ficaram apavorados diante dos “tacapes que vomitavam fogo”.

Minha tribo se meteu no mato. Passaram-se muitas e muitas luas. Meu filho cresceu a meu lado. Era um rapagão desempenado, da minha altura. Tão parecido comigo, que muitas vezes os outros guerreiros da tribo não sabiam distinguir o filho do pai. E como o rapaz se chamasse também Tibicuera, a confusão ficava maior ainda.

Eu amava meu filho. Meu filho me amava. Ensinei-lhe a arte da guerra. Contei-lhe os meus segredos. Ele aprendeu a nadar; a caçar; a fazer pinturas bonitas no corpo; a curar feridas produzidas por flechas envenenadas; a ser mais ágil que a onça; mais flexível que a cobra; mais impetuoso que a anta. Às vezes nós dois passávamos horas e horas um ao lado do outro, conversando. Eu não me esquecia das palavras do pajé, que me dissera que o pai pode continuar no filho, o filho no neto, e assim por diante, de sorte que o tempo e a morte deixam de existir.

Eu pulava de alegria quando meu filho caçava uma onça ou derrubava um inimigo. Às vezes eu olhava para o rapaz e ele imediatamente lia meus pensamentos, sem que fosse necessária a troca de palavras. Eu também enxergava as ideias dele no fundo de seus olhos, do mesmo modo como se vê um peixe colorido nadando no fundo de um rio de água transparente.

Meu filho foi pai de um filho, que recebeu também o nome de Tibicuera e cresceu na taba à nossa sombra. Passei a amar meu neto como amava meu filho. Era uma cadeia de afeição, de compreensão, de camaradagem. Contei a meu filho o que o pajé me disse aquela noite em sua oca a respeito do tempo, da morte e da eterna mocidade. E o resultado de tudo isso é estar eu hoje aqui, depois de mais de quatrocentos anos, sem saber se durante todos esses quatro séculos eu fui apenas uma pessoa ou uma série de pessoas do mesmo sangue, com o mesmo espírito. Não importa. De qualquer forma não importunarei mais vocês com essa história. Para facilidade de narrativa vamos admitir que só existiu um Tibicuera: este que está agora contando as suas aventuras, que coincidem até certo ponto com as aventuras do Brasil.

16 — VI A MORTE DE PERTO

Só sei que um dia me encontrei sozinho no mato, longe de minha tribo. Caminhei todo o dia sem rumo. Ao anoitecer, cansado, dormi debaixo duma grande árvore. Um bando de vagalumes pousou no meu corpo, cobrindo-o todo. Acordei aturdido. Que era aquilo? Sonho? Ou travessura de Anhangá? Meu corpo despedia uma luz esverdeada. Saí a caminhar, assustado. Os vagalumes não me deixavam. E — apaga acende, apaga acende — pareciam estrelas brilhando no céu pardo do meu corpo.

Quando dei por mim, tinha entrado às cegas numa taba. Os índios que me viram começaram a correr e a gritar: “Anhangá! Anhangá!”

Eu corria também, atordoado. Os vagalumes continuavam a piscar. O pajé da tribo desconhecida apareceu e começou a dançar a meu redor, dizendo palavras que eu não compreendia. De repente os vagalumes levantaram o voo Caí no meio da ocara, pois os meus joelhos se vergaram de cansaço.

Vendo que eu era um homem como os outros, os índios me cercaram e me fizeram prisioneiro. Fui levado à presença do morubixaba. Ele me fez perguntas numa língua que eu não entendia.

Tibicuera sacudia a cabeça, como a dizer que não lhes era possível responder.

Levaram-me para o centro da ocara e me amarraram com fortes cipós a um poste. Acenderam fogueiras. Os índios começaram a dançar a meu redor. Eu só via caras ferozes, retorcidas de raiva. A água fervia em grandes potes em cima das fogueiras. Compreendi. Eu ia ser morto, pelado em água fervente, e devorado por aqueles homens!

Olhei para o céu. A lua estava muito calma lá em cima, como se fosse cega, como se não enxergasse a minha desgraça. As estrelas eram como vagalumes agarrados ao corpo escuro da noite.

Os tambores batiam — bum-te-bum — os guerreiros dançavam, a água fervia. O pajé falou à sua gente. Levaram-me para cima duma grande pedra. Fiquei ali com os braços ainda amarrados, as pernas moles, a cabeça zonza. Um enorme guerreiro se aproximou de mim, com um tacape na mão. Era o meu fim. Lembrei-me do meu filho, da minha primeira guerra e esperei com coragem o golpe. Havia um silêncio de morte na taba. O índio ergueu o tacape, reboleou-o no ar. Fechei os olhos. E de repente ouvi uma voz que falava de longe.

Era uma voz diferente, tão clara, tão macia e tão fresca que parecia ter saído da própria lua. Abri os olhos sem querer. O homem que ia me matar deixou cair o tacape. Todas as cabeças se voltaram para o lado donde tinha partido a voz. Da escuridão surgiu um vulto. Não era índio. Não era, nas roupagens, nem parecido com os marinheiros portugueses que eu vira havia muitos anos. Era um homem branco, todo vestido de preto. Pareceu-me tão fraco que nem teria força para erguer um tacape. Havia, porém, no rosto dele qualquer coisa que logo me conquistou. Um rosto amigo e ao mesmo tempo severo. Senti perto dele aquela mesma impressão esquisita que produzira em mim a grande cruz dos portugueses.

O homem misterioso avançou pelo meio dos índios e parou na frente do morubixaba. Disse-lhe baixinho algumas palavras. Vi o chefe da tribo baixar a cabeça e depois dobrar os joelhos e fazê-los cair por terra, aos pés do desconhecido.

Deve ser Tupã que desceu à Terra para me salvar— pensei. Senti que me faltavam as forças. Desmaiei.

Fonte:
Érico Veríssimo. As aventuras de Tibicuera, que são também do Brasil. (Texto revisto conforme Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa em vigor em 2009). Porto Alegre: Edição da Livraria do Globo, 1937.

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