sábado, 17 de fevereiro de 2018

Érico Veríssimo (As Aventuras de Tibicuera) Capítulos 17 a 20

17 — MEU AMIGO ANCHIETA
Quando recuperei os sentidos encontrei-me num lugar desconhecido. Estava eu estirado numa rede, junto da qual vi o homem misterioso, que me contemplava com ar amigo. Sorri para ele. Fazia anos que eu não sorria para ninguém, porque eu achava que o guerreiro que sorri, abre no sorriso uma porta por onde pode entrar a piedade e a fraqueza.

Fiquei muito admirado quando o desconhecido falou minha língua.

— Como é teu nome? — perguntou ele.

— Tibicuera.

Começou então para mim uma vida nova. 0 homem misterioso era o padre jesuíta José de Anchieta. Tinha vindo ao Brasil com o segundo governador geral, Duarte da Costa. Estávamos em 1554, na aldeia de Piratininga. Não me lembro de ter dedicado a alguém amizade igual à que dediquei àquele homem. Segui-o por toda parte como um cão fiel. Sempre me achei disposto a sacrificar minha vida por amor dele. E ainda hoje me lembro com saudade daquele homem encurvado, fraco, feio e de grandes olhos brilhantes.

Morava Anchieta com outros padres numa pobre casinha de barro e paus, coberta de palha. Era ali que os jesuítas recebiam os índios e procuravam ensinar-lhes coisas úteis e belas. Essa casa tinha uma única sala duns quatorze passos de comprimento por dez de largura. Servia ao mesmo tempo de escola, enfermaria, dormitório, cozinha, despensa e refeitório. Chegavam até ela índios de todas as tribos. Entravam desconfiados, ariscos, olhando para os lados.

Anchieta os recebia como um pai. E falava-lhes em Deus. No Deus Único, que fez o Mundo e que o governa.

Como havia índios de cabeça dura! Por mais que o santo padre falasse, por mais que gesticulasse, desse exemplos e riscasse figuras explicativas na areia — os indígenas não percebiam nada. Mas Anchieta não perdia a paciência.

Se aparecia algum índio doente, ele lhe dava remédio e conforto. Se surgiam entre os indígenas brigas, questões, disputas, Anchieta resolvia tudo como o melhor e mais justo dos juízes

Anteontem, assistindo a uma ópera no Municipal, lembrei-me que a primeira representação que vi na minha vida me foi proporcionada no colégio de Piratininga pelo meu grande e saudoso amigo Anchieta. Como os indígenas não se interessavam pela religião e mesmo lhes era custoso compreendê-la, Anchieta organizava espetáculos no colégio. As peças que ele escrevia para os índios representarem chamavam-se autos.

Lembro-me bem de um auto em que tomei parte. Chamava-se “O Mistério do Natal”. Um dia Anchieta reuniu os índios mais inteligentes, ensinou-lhes seus papéis e deu começo aos ensaios. Aparecia no auto a Virgem Maria, São José, o Menino Jesus. Como não havia mulheres na missão, era um índio que fazia o papel de Virgem Maria. Fiquei muito aborrecido por não ter sido escolhido para tomar parte na representação. Anchieta me botou a mão no ombro e disse:

— Paciência, meu filho. Tomarás parte de outra vez. Os papéis já estão todos distribuídos.

Fiquei melancólico. Fiz ainda uma tentativa:

— Padre, se eu fizesse o papel de burrinho?

Anchieta sorriu. E no dia da festa eu fui o burrinho que estava no estábulo onde nasceu o Salvador do mundo.

E assim muitos índios compreenderam a doce história do Natal. E Anchieta encontrou facilidade para convertê-los depois.

Quando chegava a Piratininga a notícia de que alguma tribo atacara um aldeamento de brancos, Anchieta ficava triste, abatido e passava horas e horas a rezar.

18 — O DEUS ÚNICO
Anchieta me contou as maravilhas do mundo. Com desenhos riscados na areia e palavras simples ele me explicou o que era uma ilha, um continente, um cabo. Fiquei também sabendo que do outro lado do grande mar existiam outras terras, outras nações com povos de pele, cara e costumes diferentes dos das nossas tribos.

Uma noite, olhando pata o céu, Anchieta murmurou.

— Mundos, Tibicuera, mundos...

E apontou para as estrelas. Fiquei olhando para o céu, de boca aberta. E eu, que pensava que uma estrela cabia na palma de minha mão, relutei muito em acreditar que cada estrela fosse um mundo.

Anchieta tornou a falar:

— Deus, Deus é ainda muito maior que as estrelas que ele fez com suas mãos mágicas.

— Deus... — murmurei.

E a pergunta que eu trazia presa no peito conseguiu derrubar o muro da minha timidez e saltou:

— Padre, o teu Deus é mais forte que Anhangá?

Anchieta sorriu.

— Muito mais.

— Mais forte que Curupira?

— Anhangá e Curupira não existem, meu filho. E Deus está em toda a parte.

Dei um pulo e fiquei de pé.

— Mas eu vi, Padre, eu vi Curupira e Anhangá! Foi no mato. Ninguém pode com eles.

Anchieta bateu no meu ombro e explicou:

— Tu viste os espíritos do mato porque estavas cego. Cego é aquele que não conhece o Deus verdadeiro.

Eu sacudia a cabeça, teimoso como uma mula. Tinha visto os espíritos do mal que moravam na mata. Tinha, tinha e tinha.

— Só existe um Deus, senhor do Céu e da Terra. Os que creem nele não podem temer os gênios do mal.

Retruquei:

— As armas dos guerreiros não conseguem ferir os espíritos maus. Pajé me disse que ninguém pode com eles.

Anchieta me mostrou a cruz preta que trazia presa ao pescoço por um cordel de couro.

— Com esta arma vencerás os espíritos da floresta.

E me deu a cruz. Naquele mesmo dia entrei no mato. O medo tinha desaparecido de meu corpo. Eu trazia, apertada nos dedos, a cruz que o padre me dera. Gritava:

— Anhangá! Curupira!

O eco respondia longe. Mas depois caía o silêncio. A noite me surpreendeu no mato. E dentro da noite eu gritei ainda pelos espíritos maus.

Silêncio.

“Os gênios do mato morreram” — pensei. E voltei para o colégio.

19 — CORSÁRIOS FRANCESES
Nos meses que se seguiram, aprendi a amar e respeitar o Deus Único. Estudei gramática, catecismo e rudimentos de música. Fui batizado. Anchieta me quis dar um nome cristão. João, Tomé ou Pedro. Supliquei-lhe que me conservasse o nome antigo. Eu me lembrava das palavras do pajé: “e o neto do neto de Tibicuera ainda será Tibicuera”.

Passei dias felizes no colégio de Piratininga. Duma feita salvei a vida de Anchieta, livrando-o da flechada de um índio vingativo.

Um dia nos chegaram notícias desagradáveis. Os índios se revoltavam nas capitanias de Espírito Santo, Pernambuco e Bahia. Os tamoios se reuniam numa confederação muito forte, aliavam-se aos franceses e, juntos, pretendiam expulsar os portugueses do Brasil.

Anchieta escreveu na areia o nome do comandante da expedição francesa: Nicolau Durand de Villegaignon. Fiquei olhando por longo tempo estas palavras. Depois apaguei-as com o pé, raivoso. Pouco me importava que o Brasil ficasse com os portugueses ou com os franceses. Mas acontecia que meu amigo José de Anchieta era de corpo e alma devotado aos portugueses. As dores dele eram as minhas dores. Eu estava, portanto, contra os corsários franceses!

A situação piorava. Os aliados — tamoios e franceses — ficavam cada vez mais fortes.

Um dia Anchieta nos trouxe a notícia da chegada do novo Governador Geral, Mem de Sá. O chefe branco entrou com o pé direito. Procurou corrigir os erros do governo anterior, mandou construir aldeias, proteger os índios e auxiliar os padres na catequese. E bem como hoje se vê na tela dum cinema, nos intervalos, este letreiro: É proibido fumar no salão, Mem de Sá espalhou proclamas proibindo a guerra entre as tribos e a antropofagia. Ora, proibir a guerra e a antropofagia para a maioria dos índios era o mesmo que hoje proibir o basebol aos americanos do norte, as touradas aos espanhóis ou o futebol aos americanos do sul...

Eu já andava cansado da vida quieta do colégio. Não morrera o guerreiro que existia dentro do meu peito... Eu fazia a mim mesmo perguntas que ficavam sem resposta: “Por que será que o Governador não ataca os franceses?”

Achei que não podia ficar o resto de minha vida agarrado à batina de Anchieta, como um filho mimoso. Um dia me despedi dele com tristeza, dizendo-lhe que ia correr mundo.

— Vai — disse-me o padre. — Agora Tibicuera é cristão, conhece o Deus verdadeiro. Nada de mal lhe poderá acontecer.

Fui.

Caminhei pela beira do mar. Já não ia mais seminu como os indígenas. Levava roupas iguais às dos colonos portugueses. Trazia por baixo da camisa a cruz preta que Anchieta me dera.

20 — PASSAGEIRO CLANDESTINO
Cheguei à Bahia.

Vi navios ancorados no porto. Pelas conversas que ouvi nas ruas compreendi que se tratava de uma armada mandada de Portugal para combater 0s franceses.

Andei a caminhar sem rumo pelas ruas de Salvador. À tardinha ia olhai o mar. Via as naus num balanço suave sobre as águas. Gaivotas voavam ao redor dos mastros e depois partiam na direção do mar alto. Senti uma saudade estranha nem eu mesmo sabia de quê. Dormi aquela noite na areia da praia.

Antes de fechar os olhos fiquei olhando as estrelas. Elas me pareceram caravelas da grande armada de Deus e o céu um mar azul sem ondas. Sonhei que Anchieta estava prisioneiro dos franceses, que o iam matar. Acordei sobressaltado. Vi que havia a bordo dos navios muita agitação. Levavam para as porões barricas d’água, caixas com mantimentos. Marinheiros corriam dum lado para outro. Limpavam-se os canhões.

Naquela manhã aprendi muita coisa. O comandante da armada se chamava Bartolomeu Vasconcelos da Cunha. Ia descer para o Sul com seus navios, com o fim de combater e expulsar os franceses do Rio de Janeiro.

Passei o dia inquieto. Precisava ir com eles. Procurei um oficial. Supliquei-lhe que me levasse. Respondeu que a tripulação estava completa. Além do mais, eu era um índio que não conhecia o serviço de bordo.

Anoiteceu. O luar prateava as águas, acariciava os navios adormecidos. Eu tinha na cabeça um plano muito confuso... Tirei a roupa. Fiquei de tanga, como nos meus tempos de guerreiro tupinambá. Joguei-me n’água e
nadei sem ruído na direção dos navios. Aproximei-me do primeiro casco, subi por um grosso cabo que pendia da popa. O trabalho foi fácil. Eu era musculoso. Estava habituado a me içar pelos cipós que pendem de certas árvores do mato.

Consegui saltar para a coberta do navio sem ser visto. Escondi-me atrás de duas barricas que se achavam junto do castelo de proa. Ali fiquei muito quieto. A noite passou. Clareou um novo dia. Ouvi berrarem ordens. Içaram-se as velas. Os navios começaram a se mover. Dentro de algumas horas estávamos longe da Bahia.

Fonte:
Érico Veríssimo. As aventuras de Tibicuera, que são também do Brasil. (Texto revisto conforme Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa em vigor em 2009). Porto Alegre: Edição da Livraria do Globo, 1937.

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