quarta-feira, 4 de abril de 2018

Érico Veríssimo (As Aventuras de Tibicuera) Capítulos 37 a 40

37 — A DESTRUIÇÃO DOS QUILOMBOS

Foi em 1687 — nove anos depois do tratado — que a grande expedição comandada por Domingos Jorge Velho se aproximou dos Palmares. Preparamo-nos para a luta. Não pensem que ela durou três dias. Foram oito anos de guerra encarniçada, com pequenos intervalos de descanso aqui e ali. Dizem que o negro é covarde. Quem o viu lutar nos Palmares não acredita nesta afirmação.

Cercados, cansados, com a munição diminuindo, começamos a afrouxar a resistência. As mulheres do quilombo choravam e gemiam. A coisa mais triste de que me lembro foi de uma noite, já no fim da campanha, quando os tiros tinham cessado. As negras — velhas, moças, meninas — desataram num cantochão tão triste, tão arrastado, tão doloroso que eu tive vontade de sair correndo e gritando e me entregar aos soldados de Domingos Jorge Velho.

Os nossos guerreiros se acabavam. Aos poucos íamos perdendo terreno. Os olhos do Zumbi brilhavam e eu podia adivinhar um pensamento desesperado dentro daquela cabeça de gigante.

Por fim fomos completamente destroçados. O quilombo invadido e destruído. Não me esquecerei nunca mais daquela cena. O Zumbi e seus generais subiram para o alto dum penhasco. Eu os segui. Lá do alto eles ainda fizeram um gesto de desafio para as forças invasoras. Depois se precipitaram no abismo. Fechei os olhos. E no momento seguinte me encontrei sozinho naquele pico. Era preciso fazer alguma coisa. Só um pensamento me ocorreu: fugir... Fugi. Se não fugisse, não podia estar aqui agora, contando a vocês esta espantosa aventura.
38 — CEM ANOS SÃO CEM ANOS...

Vocês já leram a “Nova Floresta” do Pe. Manuel Bernardes? Há lá uma deliciosa história chamada “Como o Tempo Passa” onde se encontram estas palavras; tiradas dum salmo: “Mil anos à vista de Deus são como o dia de ontem, que passou...”

O tempo é mesmo uma coisa muito relativa. Relativa e vaga. Às vezes se confunde com o espaço. Por exemplo: “Que distâncias há daqui até ali?” — perguntamos. Respondem-nos: “Duas horas de trem; uma hora de automóvel.” Como se vê, medimos o espaço com o tempo. E vice-versa, pois, referindo-nos a uma palestra que mantemos num trem em movimento, podemos dizer: “Nossa conversa durou três quilômetros.” Não há minutos que nos parecem uma eternidade? E anos que nos parecem rápidos como um dia?

Cem anos são cem dias na História dum povo.

Que se passou nos dez anos que se seguiram à derrota e destruição dos Palmares? Na minha vida, nada. Foi um período cinzento, vazio de fatos interessantes. Na vida do Brasil tivemos a Guerra dos Emboabas e a Guerra dos Mascates. Emboabas era o nome que se dava aos portugueses. Ora, os paulistas, gente da terra, tinham descoberto as famosas minas gerais. Foi uma corrida parecida com a que muitos anos mais tarde se verificaria rumo do ouro da Califórnia. Toda a gente queria enriquecer da noite para o dia. Mas acontece que quem descobria as minas tinham sido os paulistas, que não viam com bons olhos o fato de os emboabas quererem também avançar nelas. A coisa acabou em guerra. Os emboabas levaram a melhor. O Governador Antônio Albuquerque de Carvalho serenou os ânimos e resolveu a questão. Tempos depois o governo tomou uma medida que prejudicava os trabalhadores das minas. Houve uma revolução cujo chefe foi Felipe dos Santos. Chegaram os revoltosos a sonhar com a independência de sua capitania. Mas apareceu por lá um tal Conde de Assumar (eles deviam desconfiar deste nome esquisito), fez umas promessas tentadoras, os revoltosos deixaram-se levar pelas cantigas do conde e acabaram mal. Filipe dos Santos foi condenado a ser atado vivo à cola de um cavalo bravo e arrastado pelas ruas. Seria mau gosto descrever a vocês o que foi esse suplício.

Por isso vamos dar depressa um salto para 1710, ano em que tivemos a Guerra dos Mascates, Mascates eram os portugueses estabelecidos no Recife. A guerra terminou em 1711. Uma rivalidade parecida com a que se verificou entre paulistas e emboabas; acontecia que no caso dos mascates não havia minas era jogo.

Quem olha hoje as claras fronteiras do extremo sul do Brasil, não imagina as lutas que se travaram em fins do século XVIII e princípios do XIX por causa delas. Graças aos paulistas e aos jesuítas o Brasil crescera, espichando-se até os confins do Paraguai e da Bolívia. Começou então a guerra entre portugueses e espanhóis por causa das fronteiras. Os portugueses fundaram a Colônia do Sacramento no extremo sul do Brasil, à margem esquerda do Rio da Prata. José de Garro, governador de Buenos Aires, não gostou da história, assaltou a nova colônia e tomou-a. Veio um tratado e mais tarde Sacramento voltou para os portugueses. Houve alterações na política da Espanha — fatos que não eram absolutamente de nossa conta mas que vieram influir na nossa vida. Surgiu um exército comandado por D. Alonso Valdez e lá se foi a Colônia do Sacramento outra vez para as mãos dos espanhóis.

Alguns anos mais tarde fez-se outro tratado e Sacramento tornou a voltar para o poder dos portugueses. A colônia era como uma peteca que andava dum lado para outro, num jogo que custava muitas vidas e muito dinheiro.

Entre 1710 e 1711 tivemos a amável visita de nada menos de dois corsários franceses, que queriam simplesmente tomar conta do Rio de Janeiro. O primeiro — François Du Clerc, foi mal sucedido. Vencido na guerra, foi depois assassinado misteriosamente, como num romance de Edgar Wallace. O outro — Duguay-Trouin — encontrou um governador fracalhão — Castro Morais - e tomou conta da cidade. Exigiu um resgate de 600 000 cruzeiros, 100 caixas de açúcar e 200 bois. Só foi embora depois que recebeu a última prestação do resgate. A História não conta — e eu não sei — se os bois foram também postos a bordo e levados para a França.

1750 foi o ano em que se procurou traçar claro a linha divisória entre os domínios de Portugal e os de Espanha. Lá veio outro tratado, o de Madrid.

Segundo ele, Portugal era obrigado a entregar a Colônia do Sacramento, recebendo em troca o território dos Sete Povos das Missões. Na hora, porém, em que a comissão encarregada de demarcar as fronteiras estava realizando o seu difícil trabalho, vieram os índios atrapalhar. Dou minha palavra de honra como não estava no meio deles. A questão acabou em briga feia. Em Portugal, o Marquês do Pombal desconfiou de que eram os jesuítas que incitavam os índios a guerrear os demarcadores das fronteiras. Promoveu então a expulsão dos jesuítas das terras de Portugal. Mas isso não matou a questão, é claro.

Rebentaram novas lutas nas bandas do Sul. D. Pedro Zeballos tomou a Colônia do Sacramento, invadiu o Rio Grande do Sul, apossou-se de alguns fortes, como Santa Teresa, São Miguel e o da povoação de São Pedro. A Europa estava em guerra por esse tempo. Os Bourbons, que governavam a França, as Duas Sicílias, Parma e Espanha, uniram-se em aliança contra a Inglaterra. Portugal nesse tempo era aliado da Inglaterra e ainda continua a sê-lo neste ano da graça de 1942. Foi uma razão bem forte para o rompimento das hostilidades entre portugueses e espanhóis no sul do Brasil.

Mas a pombinha da Paz pousou tímida no continente europeu. O tratado de Paris estabelecia que se restituísse tudo quanto se havia tomado como presa de guerra. Zeballos, porém não concordou com a decisão e só devolveu aos portugueses a famosa Colônia, ficando com os territórios ocupados no Rio Grande do Sul, que naquele tempo era conhecido pelo nome de Continente de São Pedro.

Zeballos não queria chegar às boas? Então de novo ia haver barulho. Por esse tempo o Rio de Janeiro foi elevado a Capital do Brasil e o vice-rei, Conde da Cunha, tratou de movimentar o seu exército para reconquistar os territórios perdidos no Sul. Depois duma longa campanha de altos e baixos, avanços e recuos — vence hoje o espanhol, vence amanhã o português — chega a notícia de que se firmara na Europa o Tratado de Santo Ildefonso, determinando, preto no branco, as fronteiras entre os domínios espanhóis e os portugueses. Quem saiu perdendo no negócio foi Portugal. Descontente, recorreu de novo às armas. Aquela gente gostava mesmo de brigar: atirava-se à guerra sem a menor cerimônia. Os espanhóis viram-se obrigados a, de derrota em derrota, recuar até Cerro Largo. Dois rio-grandenses desses de “faca na bota” — Borges do Canto e Santos Pedroso — conquistaram as Missões, que se compunham de sete povos: São Borja, São Nicolau, São Miguel, São Luís Gonzaga, São Lourenço, São João Batista e Santo Ângelo.

Á paz de Badajoz pingou um ponto final a essas guerras. E antes de botar o ponto final a este capítulo, quero repetir que cem anos são cem dias na História de um povo...
39 — POR CAUSA DE UMA DOR DE DENTE

Por causa de uma dor de dente eu me vi envolvido num dos dramas mais sérios e importantes da História do Brasil. Eu conto. Foi lá por fins do século XVIII Os ventos da sorte me tinha empurrado para Minas Gerais e eu me encontrava parado na Vila Rica como um navio que de repente, esquecido do rumo, tivesse estacado em meio do oceano.

Lembro-me bem de que passei uma noite em claro, por causa dum dente que me doía horrivelmente. A verdade era que nos meus tempos de índio livre eu não sentia nada na dentadura, apesar de lhe dar sempre um serviço duro e perigoso.

Vi clarear o dia. O meu desespero aumentou. Na rua mal tive voz para perguntar ao primeiro homem que encontrei:

— Moço, onde é que eu encontro um dentista?

Resposta:

— Vá à casa do Alferes Joaquim José.

Julguei que ele estava troçando e fiquei vermelho de raiva.

— Sou índio mas não sou burro. Onde se viu um alferes tirar dentes?

Disse isto e fiquei com vontade de brigar.

— Bom homem, não se zangue. Joaquim José da Silva Xavier é alferes dos dragões, mas nas horas vagas faz de dentista. Deram-lhe até o apelido de Tiradentes. É um sujeito muito habilidoso. Vá e não ficará arrependido.

Deu-me o endereço do alferes dentista Fui.

Encontrei um homem impressionante. Olhos escuros, brilhantes, cabelos pretos. O rosto pálido tinha um ar de decisão e de coragem. Dentro de um minuto eu estava na cadeira do Tiradentes. Enquanto preparava os ferros ele ia fazendo perguntas.

— Como se chama?

— Tibicuera.

— Descendente de índio?

— Não. Índio puro.

— Ah! Abra a boca e tenha coragem.

Vinte segundos depois Tiradentes me mostrava na ponta de um ferro o meu dente cariado. A dor foi aguda e forte, mas eu a suportei sem gemer.

— Agora faça bochechos com isto.

Deu-me um copo com água salgada. E enquanto eu bochechava, o dentista me fazia novas perguntas sobre minha vida. De repente parou diante de mim e disse:

— O Brasil também está com dor de dentes.

Olhei para ele espantado. Meus olhos perguntaram:

— Como?

— O dente que dói, o dente que é preciso tirar são os portugueses. Devemos mandá-los embora para sua terra e tomar conta deste grande país para nós, brasileiros.

Eu estava espantado. Esqueci o dente e fiz uma série de perguntas. Não me passara nunca pela cabeça a ideia de que fosse possível fazer o que Tiradentes queria.

— Mas os portugueses concordam em ir embora? — perguntei.

O alferes soltou uma risada.

— Havemos de vencê-los pelas armas. Faremos uma revolução! De repente se calou, ficou sombrio, como que arrependido de ter falado tanto na
frente dum desconhecido.

Levantei-me.

— Quanto custa? — indaguei.

— Não custa nada.

— Mas eu quero pagar.

— Então me pague da seguinte forma: pense no que lhe disse, procure amar o Brasil, desejar-lhe a liberdade, fazer dele uma nação independente, grande...

À medida que falava, Tiradentes ia se exaltando de tal forma que por fim já havia lágrimas em seus olhos. Disse-me que os brasileiros viviam esmagados pelos impostos. O governo em breve ia fazer a cobrança de impostos atrasados. Vila Rica não progredia, era até chamada Vila Pobre. Outros países já se tinham livrado de seus opressores. Os Estados Unidos da América do Norte, por exemplo, haviam proclamado sua independência, separando-se da Inglaterra. Era um povo novo como o nosso. Por que não podíamos nós também ser uma nação independente?

Fui-me da casa daquele homem levando um peso na alma. O Brasil podia ser livre! Esta ideia não me deixou o resto daquele dia, fez parte de meus sonhos daquela noite. Ao amanhecer um novo dia, fui procurar Tiradentes. Contei-lhe que era só no mundo e não tinha planos. Eu queria me entregar a ele. Seria um amigo seu, disposto a tudo. Eu não tinha influência política nem dinheiro; mas sabia brigar, podia repetir sem erro um recado e conhecia os caminhos do litoral.

Para encurtar o caso: fiquei com Tiradentes.

O alferes não descansava. Fazia propaganda da sua ideia Conseguia novos soldados para a revolução. Havia gente de posição metido na conspiração. Mas eu não sei que pressentimento me estava dizendo que aquilo tudo ia acabar mal.
40 — A CONSPIRAÇÃO

Uma noite os conspiradores se reuniram na casa de Tiradentes. Tive o prazer de lhes fazer um bom café. Enquanto eles discutiam, fiquei junto da porta, indo de quando em quando passeei pelo corredor e espiar pela fresta da janela, a ver se se aproximava algum vulto suspeito. As pessoas que lá estavam eram Joaquim José da Silva Xavier, o meu querido chefe; Alvarenga Peixoto, o Ten. Cel. Francisco de Paula Freire de Andrade, José Álvares Maciel, o Pe. Carlos Correia de Toledo e Melo, o Cel. Domingos de Abreu... e não me lembro mais de nenhum nome.

O plano era simples. Quando o governo fizesse a cobrança dos impostos — a derrama — explodiria o movimento. A senha era esta: “Hoje faço o meu batizado”.

O povo se revoltava, conseguia a adesão dos dragões, que seriam influenciados por Tiradentes e pelo seu comandante Paula Freire de Andrada. Prenderiam as autoridades portuguesas. Libertariam os escravos. Instalariam muitas fábricas importantes — todas as fábricas que um decreto recente de Portugal proibira de funcionar no Brasil. E a nova nação teria uma bandeira com este dístico: Libertas quae será támen. Quando os inconfidentes falaram nisto, não gostei. Eu não entendia. Fiquei sabendo depois que era uma frase latina do poeta Virgílio. Queria dizer: “Liberdade ainda que tarde”.

O Pe. Toledo junto com Alvarenga Peixoto conseguiu convencer o Desembargador Tomás Antônio Gonzaga e o Dr. Cláudio Manuel da Costa a aderirem ao movimento. Gonzaga era poeta. Estava apaixonado por uma moça chamada Dorotéia. Fazia versos em que lhe dava o nome de Marília. Sempre impliquei com esse costume que os poetas têm de não darem o nome verdadeiro às coisas. Mas eu gostava de Gonzaga, que era um homem melancólico, de ar sonhador. Muita vez levei recados seus à noiva. Foi um romance bonito mas que não teve aquele final dos romances antigos: “Casaram-se e foram muito felizes.”

A ideia marchava. Tiradentes resolveu ir até o Rio a serviço da revolução. Acompanhei-o montado num burro emprestado. Foi uma viagem dura. Chegamos à Capital do Brasil e uma tarde percebi que estávamos sendo seguidos. Disse de minhas desconfianças a Tiradentes. Ele sorriu e troçou:

— Tibicuera está vendo fantasmas...

Mas eu sentia a nosso redor a sombra dos espiões. Passei a andar inquieto e de olho alerta.

Tiradentes parava na casa de um amigo na Rua dos Latoeiros, que hoje se chama Gonçalves Dias. Um dia ouvimos barulho de passos na rua. Devia ser uma patrulha, a julgar pela cadência das batidas no calçamento. O dono da casa foi à janela e empalideceu. Voltou-se para o hóspede e não teve voz para lhe dizer que a casa estava cercada. Tiradentes compreendeu tudo num relance.

Gritou:

— Foge, Tibicuera!

E precipitou-se para a porta dos fundos. Era tarde. Prenderam-no cinco soldados. Mais dois caminhavam para mim. Dei um salto de tigre e desandei a correr pelo corredor... Derrubei o primeiro homem que encontrei pela frente. Saltei pela primeira janela aberta. Cai numa pequena área. Um muro na minha frente. Escalei-o com a agilidade de um... de um homem perseguido. Poucos segundos depois eu entrava na varanda de uma casa desconhecida onde duas mulheres se puseram a gritar. Ganhei o pátio dessa casa, saltei por cima de novo muro e me vi noutra rua. Comecei a andar com naturalidade. Caminhei durante meia hora. Estava fora de perigo. Mas um pensamento tomara conta de mim: Era preciso avisar os inconfidentes de Vila Rica. Com as economias que tinha, comprei um burro e me pus a caminho. Quando, dias depois, cheguei a Vila Rica foi para saber que todos os inconfidentes estavam presos.

Fonte:
Érico Veríssimo. As aventuras de Tibicuera, que são também do Brasil. (Texto revisto conforme Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa em vigor em 2009). Porto Alegre: Edição da Livraria do Globo, 1937.

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