sábado, 14 de abril de 2018

Vanda Fagundes Queiroz (Resto de Sol)


APARÊNCIA E REALIDADE

O som de minha voz inutilmente
acontece, sem cor e sem motivo,
Tão diverso é o real mundo que vivo
da hora em que pareço estar presente.

É presença enganosa, que desmente
outra força suprema — a do furtivo
viver por dentro, onde, devota, arquivo
ignotos pulsares da alma ardente.

A voz que fala, o riso, a cor que é vista
é invólucro somente, e bem despista
do meu ego a essência, a vida inteira...

E, assim, esta duidade faz-me artista
na arte de viver de forma mista:
a que parece ser... e a verdadeira.

A COR DA MINHA TRISTEZA

A tristeza em meus suspiros tão frequente,
não lhe vês o ar de órfã desolada,
não entendes sua voz — brado silente,
não lhe dás nunca razão, nem cor, nem nada. .

E ela tem, nítida, a cor do riso ausente...
É triste andante de faces desbotadas,
tem a cor dos pés descalços, do inclemente 
abrigo sujo ostentado nas calçadas.

Tem a cor do pranto alheio, sofre o espinho
que a tantas flores impede de brotar.
Tem a cor da nulidade de urn caminho

que — acaso existe? —ninguém logra alcançar 
a cor de um mundo de risos tão mesquinho, 
tão farto em dor, que dá cor ao meu penar....

SUBLIMAÇÃO

Tento louvar a beleza do universo, 
cantar o céu, o infinito, o sol, a flor.
No silêncio existe som que escuto em verso, 
do matiz inexistente vejo a cor.

Numa gota d’água posso ver, submerso, 
do gigante mar azul todo o esplendor.
Penso em rosas onde o espinho mais perverso 
cresce, banindo a alegria e impondo a dor

A solidão povoei, o peito imerso
nos meus sonhos enfeitados com o verdor
da esperança, alado aroma ao céu disperso.

A viver concebo o Bem. Em meu fervor, 
sonhando a Paz, quando há guerra, quão diverso 
vê-se o mundo no altar-mor do meu Amor!...

COTA SUFICIENTE

Bendita a pérola pequena e inculta 
que fartas vezes vislumbrar logrei 
na concha humilde, a única que herdei 
do mar imenso que agiganta e avulta.

Bendito o mínimo botão que a estulta 
gente distante, nos jardins que andei, 
calcou aos pés. Pois dele me apossei, 
deixando a todos, livre, a rosa culta.

E vendo o mundo em ouro se encantar, 
busquei nas coisas simples me abrigar, 
sem ter cobiça a ventura imponente.

Fortuna tenho, imensa, a ostentar: 
pois no alto vendo o astro-rei brilhar, 
eu desejei a sombra. Simplesmente...

POLICROMIA

Nesta, profusão oculta de sentires 
que aconchego e acalento com ardor, 
não estranhes quando acaso descobrires, 
misturada a tanta cor, a tua cor.

Se entre as ânsias de minha alma um dia ouvires 
um som que possa a um lamento enfim se opor, 
é tua a voz! E feliz quando me vires, 
da alegria que eu sentir serás credor.

No cinzento do meu peito, mil nuanças, 
cor de rosa e de esperança, tentas pôr.
Com teus olhos, as tormentas são bonanças;

por tua mão, o agudo espinho é fina flor.
A mistura policroma já não cansa 
quando, em meio a tanta cor, há a tua cor.. .

ILOGISMO

Coisas simples por vezes têm magia; 
minúscula porção — eis que é bastante 
a tornar toda pequenez gigante 
e inundar o meu mundo de alegria.

A ave canta, a alma canta. A alma é poesia, 
vez ou outra: eis o amor de mim diante.
Há no ar perfumado um som cantante.
Olho o céu, vejo Deus. A noite é dia.

Arbitrário, impreciso sentimento!
Sublima meu instante, breve ou lento, 
mas se vem. .. quando vai... não dá certeza.

Bem assim acontece outro momento 
em que quero sorrir. Forcejo. Tento.
E, sem saber por que, tudo é tristeza...

IRREVERSÃO

Da terra brota a flor cada estação, 
haurindo a seiva fértil do existir. 
Nutrindo-se de vida, o coração 
da planta vibra, em cores a expandir.

Um dia... o ar sombrio, a acridão 
da quadra estéril, triste, que há de vir, 
desnuda o solo, onde, em contradição, 
terá lugar a ausência do florir.

A estação das flores retornando, 
cor de esperança a terra se enfeitando, 
a haste ostentará de novo a flor.

Murcha no peito a rosa da ilusão, 
a seiva não renova, e o coração 
passa, infecundo, à estação da dor.

A MEU FILHO

Vejo a criança de ontem em você 
que embalei nos meus braços ternamente. 
Sinto inundar-me de emoção porque 
eu vi botão a flor hoje imponente.

Ao pressentir o homem que, latente, 
eu já descubro e quase já se vê, 
tenho almejado que haja tão somente 
o bem, no mundo que se lhe antevê.

Não saber-lhe o porvir faz-se tortura 
que na alma-mãe me paira e assim perdura 
na ânsia vã de pautar-lhe a jornada.

Uma lágrima oculta, na costura 
enxugo. E rogo a Deus que faça pura 
e perfumosa a flor por mim plantada.

ANTES DE FECHAR A PORTA

Recordo, muita vez, sentada à porta 
de mim mesma, o tão nosso antigamente! 
O que espreito, bem sei, não mais importa 
que a mim só que de novo estou presente.

É a mão da saudade que transporta 
o que sou ao que fomos. De repente, 
tanta coisa, com rótulo de morta, 
vive em mim nova vida, inteiramente. ..

Julgas mera tolice a devoção 
de minha ardente peregrinação 
ao passado, E me acordas à verdade.

Volvo ao deserto de viver, então.
Mas, antes de esconder o coração, 
guardo já dentro mais uma saudade.

MALOGRO

Intenta extravasar-se em verso ardente 
a ânsia do sentir, impetuosa...
Mas vejo que a palavra é impotente 
e tem veracidade duvidosa.

Versos apócrifos — são meu presente 
ao papel onde quero, em verso ou prosa, 
retratar a minha alma, ardentemente, 
da forma como em mim apoteosa.

Tortura-me, no entanto, a rima ausente... 
Outro canto, outra luz, inutilmente 
vou tenteando em minha busca ansiosa.

Descubro que querer tornar patente 
este universo que há dentro da gente 
é uma ação sempre falha e lacunosa...

Fonte: 
Aparício Fernandes (organizador). Poetas do Brasil. Anuário de 1980. 
3. volume. Rio de Janeiro: Folha Carioca, 1980.

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