domingo, 27 de julho de 2008

Antonio Carlos Secchin (A ainda pouco lida poesia de Jorge de Lima)

Quando duas pessoas falam do escritor Jorge de Lima, é certo que estejam se referindo à mesma pessoa, mas dificilmente estarão falando do mesmo poeta. Com efeito, o artista alagoano, cujo centenário de nascimento passou quase despercebido em 1995, representa, na literatura brasileira, a imagem do poeta em contínua mutação. Parnasiano medíocre e bem-comportado nos XIV alexandrinos (1914), regionalista na primeira onda do modernismo com Poemas (1927), Novos poemas (1929) e Poemas escolhidos (1932), místico-universal a partir de Tempo e eternidade (1935, co-autoria de Murilo Mendes), cosmogônico e barroco em Invenção de Orfeu (1952), Jorge de Lima - falecido em novembro de 1953 - sobreviveu a todas as transformações a que submeteu a própria obra e permanece hoje como um dos poucos poetas fundamentais da literatura brasileira do século 20.

Seu valor, no entanto, esteve longe de constituir consenso. Quatro vezes bateu à porta da Academia Brasileira de Letras e quatro vezes saiu de lá como simples mortal. Só no ano de 1937 tentou duas vezes: na primeira, perdeu de Barbosa Lima Sobrinho. Na segunda, por acabrunhantes 18 x 5, o vencedor foi outro poeta de constantes metamorfoses, o paulista Cassiano Ricardo. Àquela altura, Jorge de Lima há muito (desde 1930) deixara Alagoas, de onde viera ungido pelo epíteto de ''príncipe dos poetas'', e se estabelecera no Rio com fama de bom médico e de bom escritor. Já contabilizava dez títulos publicados, de poemas, ensaios e romances - dentre esses a tentativa surrealista de O anjo (1934) e a incursão engajada de Calunga (1935), texto que Otto Maria Carpeaux definiu como ''neonaturalista'' e que representou o namoro de Jorge de Lima com os princípios estéticos e ideológicos do ''romance de 30'', merecendo o livro, et por cause, intensos elogios de Jorge Amado.

Academia à parte, não foram poucos os louvores ao vate alagoano, provindos de nomes da expressão de um Mário de Andrade, de um Gilberto Freyre, de um Roger Bastide. Em 1939 veio a lume A poesia de Jorge de Lima, do crítico português Manuel Anselmo, entusiasmada leitura de Jorge com ênfase no arcabouço cristão que atravessava sua obra desde Tempo e eternidade. A partir daí, sucedeu um fenômeno curioso: avolumou-se a fortuna crítica do poeta, mas continuou rarefeita a circulação de sua poesia, confinada em edições quase clandestinas (algo análogo ocorreria com o grande ''amigo em Cristo'' Murilo Mendes).

Somente em 1949 foi publicada sua Obra poética (editora Getúlio Costa), organizada por Otto Maria Carpeaux e englobando dez livros em alentadas 659 páginas. Outra compilação de tal porte surgiria apenas em 1958, através da Obra completa (editora Aguilar), anunciada em dois volumes, dos quais apenas o primeiro, contendo a poesia e alguns ensaios, foi efetivamente impresso. Contos, teatro e romance continuam à espera de quem os reúna.

Aquilo que, para alguns, poderia soar como oportunismo - as metamorfoses do poeta, de acordo com o ar dos tempos - parece corresponder, em Jorge, a efetivas mutações de foro existencial, a partir de contínuas reflexões acerca do papel da arte e do artista. Isso, evidentemente, não isenta o poeta de certos equívocos, como bem assinalou Antônio Rangel Bandeira no arguto Jorge de Lima - o roteiro de uma contradição (São José, 1959). O ensaio, fugindo do tom laudatório, assinala como determinadas ambigüidades surgem não pelo confronto das fases do poeta, mas no interior de cada uma das etapas. Assim a representação do negro: intensíssima no período regionalista, oscilaria, no entanto, entre pólos de atração e repulsa, entre o endosso da miscigenação e o registro de certas reservas mais ou menos veladas a esse mesmo processo.

Num outro plano, também poderíamos apontar a discrepância entre o hermetismo de seu testamento poético, a Invenção de Orfeu, e o juízo condenatório da incomunicabilidade artística proferido por Jorge meses antes de publicar o poema. Mas, para além dessas incoerências (e será a coerência o melhor critério para avaliar a poesia?), importa ressaltar a contribuição radical de Jorge de Lima para a formação e a consolidação da linguagem poética de nossa modernidade. Minimizemos a fase parnasiana, cuja luz só nos chega, esmaecida, através dos versos do famoso soneto O acendedor de lampiões; detenhamo-nos na deliciosa exuberância rítmica de Essa negra Fulô; apreciemos, na guinada do plano telúrico para o místico, a inventividade lírica de peças como Distribuição da poesia e Amada, vem, de Tempo e eternidade; admiremos o exemplar domínio e a revitalização da forma fixa no Livro de sonetos (1949), antes de nos abeirarmos desse turbilhão de altíssimos e baixíssimos que é Invenção de Orfeu - texto de mais de 11 mil versos com enorme dispêndio verbal para, às vezes, alcançar culminâncias de expressão poética, a exemplo de navios que, como disse em outro contexto o próprio Jorge de Lima, gastam uma tonelada de carvão para recolher dois ramos de orquídeas.

Deve o leitor, portanto, preparar-se para uma árdua travessia, caso se disponha a percorrer toda Invenção de Orfeu, obra recém-reeditada com excelente prefácio do escritor Cláudio Murilo. Mas, se de um lado, o poeta adverte ''Não procureis qualquer nexo naquilo/ que os poetas pronunciam acordados'', de outro - o lado de quem embarca na aventura da poesia - sua voz ressoa em suave comunhão: ''Irmão que vindes, se sois também poeta/ eu tenho para vós inda uma rosa''.

Jornal do Brasil (Rio de Janeiro) 03/08/2005

Fontes:
Academia Brasileira de Letras.
http://www.academia.org.br
http://www.bmsr.com.br (foto)

Antonio Carlos Secchin (Poesia Completa, de Cecília Meireles: a edição do centenário)

Quando, em 2002, comecei a organizar a edição de poesia comemorativa do centenário de nascimento de Cecília Meireles, julgava que seria uma boa oportunidade para enfrentar certos problemas que há bastante tempo persistiam nas diversas reuniões de sua obra poética já a partir da primeira delas, de 1958, da José Aguilar, a única publicada em vida de Cecília, e provavelmente supervisionada pela própria escritora.

Reza a boa norma que a melhor lição textual é a da última publicação em vida do autor; por esse critério, bastaria reimprimir a obra de 1958, a ela acrescentando algum material inédito, postumamente localizado. Mas já neste primeiro passo nos defrontamos com várias dificuldades: Cecília excluiu da coletânea seus três primeiros livros (voltaremos ao assunto mais tarde), incluiu um (Giroflê Giroflá) escrito em prosa e, muito provavelmente, não fez a revisão do texto, que, embora em geral correto, em alguns casos introduz erros inexistentes nas edições princeps.

Esclareço, de início, que não tive acesso a originais manuscritos ou datiloescritos de Cecília; de acordo com depoimento de familiares, a escritora costumava bater a maquina seus poemas e não se preocupava em conservar o registro deles em arquivo pessoal. Assim, fui levado a valer-me unicamente de material impresso, a saber, as edições originais, suas reedições, e uma série de textos esparsos em periódicos. Por outro lado, em auxílio de minha tarefa, logo percebi que, diversamente do que ocorre com boa parte dos poetas, Cecília não modificava seus textos: uma vez publicados, ela já os considerava em versão definitiva. Por isso as discrepâncias textuais podem, sem grande risco, ser atribuídas a erros de impressão, alguns evidentes, como a presença de uma “quadra” de três versos, outros mais sutis, como a troca de um vocábulo por um substituto que também faz sentido. Mas, uma vez que várias alterações se deram somente nas edições post-mortem, apenas uma intervenção mediúnica poderia respaldá-las, e preferi permanecer na esfera terrena, não obstante Cecília definir-se como uma “pastora de nuvens”…

Retornemos à edição de 1958. Era composta de 12 livros de poesia, de Viagem (1939) ao Romance de Santa Cecília (1957), um livro de prosa (o citado Giroflê Giroflá) e de uns poucos inéditos, vários dos quais viriam a integrar, pouco depois, obras avulsas lançadas ainda em vida da autora. Abria o volume um alentado ensaio de Darcy Damasceno, que foi dos mais devotados estudiosos da poeta. Uma sucinta fortuna crítica, além de bibliografia ativa e passiva da autora, também integrava a edição. Apesar da colaboração de Cecília, patente, por exemplo, no fato de lhe haver sido atribuída a seleção de inéditos, a coletânea, como dissemos, registrava erros, que se foram tornando mais graves e numerosos nas edições subseqüentes, quando então, após a morte da escritora, no melhor dos casos as novas compilações apenas repetiriam os equívocos pregressos, e no pior, conforme acabou ocorrendo, elas aumentariam o rosário de equívocos.

Em 1967, vem a público a segunda edição da Obra poética, em formato menor, com a eliminação do texto em prosa e o acréscimo dos títulos que a autora publicara entre 1958 e o ano de seu falecimento, 1964. Em meio a esses títulos foi inserido um conjunto de dispersos e, na seção final, abrigaram-se 21 poemas inéditos. É de se indagar por que, na organização do volume, o bloco de dispersos se intrometeu entre as obras editadas autonomamente em livro.

A terceira edição, de 1972, repete a estrutura da anterior, suprimindo, todavia, a seção de inéditos, que fora sensivelmente ampliada em 1967.

O maior acréscimo de textos deu-se a partir de 1973, quando, pela Civilização Brasileira, Darcy Damasceno começa a editar em 9 volumes as Poesias completas de Cecília, num notável esforço de pesquisa, sem que, todavia, houvesse ganho análogo na qualidade textual ou no critério de organização. Os 5 primeiros volumes seguiram uma seqüência cronológica que se inicia em 1939, com Viagem, e finda em 1964, com a Crônica trovada da cidade de Sam Sebastiam do Rio de Janeiro. O número 6, porém, retrocede aos anos 20, misturando material nunca publicado (Morena, pena de amor) a 2 livros lançados, respectivamente, em 1923, Nunca mais, e 1925, Baladas para El-Rei, e nessa edição de 1973 pela primeira vez reeditados. Nos volumes 7 e (parcialmente) 8, desfila, sem informação de procedência, uma longa série de poemas não incluídos em livro. Tais textos se agrupam em tripartição cronológica algo arbitrária: I) bloco de 1942/1949; II) de 1950/1959; III) de 1960/1964. Ora, o único marco temporal explicitamente consignado por Cecília refere-se ao ano de 1939, tendo como baliza a publicação de Viagem: o período anterior seria, digamos, de textos “preparatórios” à sua maturidade artística. Ainda no volume 8, após o bloco 1960/1964, surge um livro em esboço, Sonhos, com poemas datados desde 1950, espraiando-se até 1963. O volume 9 congrega outros projetos que não receberam os retoques finais da poeta, a exemplo dos Poemas de viagem, que se abrem com texto de 1940. Portanto, assistimos nesta edição a um substancial crescimento do corpus poético de Cecília, mas não suficientemente valorizado pelos critérios (ou, et pour cause, pela ausência deles) no modo de ordená-lo. Igualmente a registrar a supressão do ensaio crítico e da informação bibliográfica que acompanhavam as coletâneas precedentes.

Em 1994, surge, sob responsabilidade de Walmir Ayala, a quarta edição da Aguilar, incorporando todo o material coligido por Damasceno. Walmir optou por uma divisão em duas partes: na primeira ficaram os livros publicados a partir de Viagem; na segunda entraram os textos enfeixados nos volumes finais da série de Darcy, ou seja, os poemas avulsos, os primeiros livros e os não concluídos, com o acréscimo de Cânticos, que, escrito nos anos 20, só veio a lume tardiamente, em 1982.

Por fim, em 1997, a Nova Fronteira lança, em 4 volumes, a Poesia completa de Cecília Meireles, valendo-se basicamente da lição textual de Damasceno, endossada por Ayala.

Passo, agora, a expor, de modo sintético, algumas das características da nova edição, a do centenário.

O texto foi minuciosamente revisto. Detectei nas compilações anteriores mais de 300 erros, desde os mais simples, como os ortográficos, até os menos óbvios, como a inversão de estrofes, além de certas “atualizações” que mascaravam a historicidade dos poemas; por exemplo: a utilização de maiúsculas no início de verso era a prática de Cecília nos anos 20, e não há registro dela nas reedições desses primeiros livros. A voz límpida da poeta vez por outra era turvada pela intervenção de revisores e tipógrafos distraídos.

No que tange ao aparato crítico, a nova edição vem enriquecida de três excelentes contribuições: o longo estudo introdutório de Miguel Sanches Neto, o resumo biográfico a cargo de Eliane Zagury e a seleta fortuna crítica comentada por Ana Maria Domingues de Oliveira. No denso e inédito ensaio de abertura, “Cecília Meireles e o tempo inteiriço”, Miguel analisa toda a produção poética da autora, demonstrando como lhe foi possível ser moderna sem necessariamente ser “modernista”. Eliane tece um quadro preciso e abrangente da vida de Cecília. Ana Maria, meticulosa e competente pesquisadora da bibliografia crítica ceciliana, fornece um precioso roteiro do que de melhor se escreveu sobre a poeta.

Resta abordar uma questão, talvez a mais polêmica: que tratamento dispensar aos livros iniciais, excluídos por Cecília da edição de 1958? E como lidar com as obras planejadas, mas que não chegaram à estampa durante a vida da autora? Vimos que, até aqui, esse material era enfeixado no segmento final dos volumes que passaram a abrigá-lo, desde 1973. Optamos por outra solução: na parte 1 da nova edição, comparecem todas as coletâneas – publicadas ou esboçadas – na seqüência tanto quanto possível rigorosa da cronologia de sua escrita, o que não corresponde necessariamente à cronologia de publicação: basta que se recorde o citado Cânticos, produzido na década de 20 e lançado mais de 50 anos depois...Assim, o leitor poderá acompanhar, com clareza, o início e o desdobramento do processo criador de Cecília, sem que sejam suprimidos ou aninhados numa espécie de apêndice-limbo os primeiros passos dessa longa caminhada através de 26 obras. Na parte 2, entrou apenas, ordenada temporalmente, a matéria dispersa, de natureza assistemática, não concebida pela autora como peça integrante de livro. Em suma: parte 1, Cecília em livros (editados ou projetados); parte 2, Cecília fora de livros; em ambos os casos, a poeta em sua historicidade de escrita.

Quanto a Espectros, sua obra de estréia em 1919, há mais de 80 anos dela não se tinha notícia. Publicada (provavelmente às custas da autora e em diminuta tiragem) após Cecília formar-se pela Escola Normal do Rio de Janeiro, trazia um prefácio de Alfredo Gomes, professor de português da instituição e à época prestigioso gramático. Fazendo jus ao nome, a obra tornou-se fantasmagórica: nunca reeditada ou sequer localizada, sobre ela correu a lenda de que, afinal, nem teria existido. Contra essa suposição depõe um breve artigo de João Ribeiro, bastante simpático ao livro, e publicado em O Imparcial, de 18 de novembro de 1919, em que vaticina um belo futuro para a jovem estreante. Mas o fato é que já em Nunca mais, de 1923, inexiste qualquer menção a Espectros, e em nenhum outro momento, ao que se saiba, Cecília voltou a referir-se a seu primeiro livro, diversamente do tratamento reservado às obras de 23 e 25, que, mesmo excluídas da coletânea de 1958, sempre figuraram como itens “autorizados” da bibliografia da autora. Nunca mais e Baladas para El-Rei revelam uma poeta de qualidade, mas ainda sem timbre individualizado, e bastante afeita à ortodoxia do simbolismo – uma artista, sem dúvida, aquém do salto qualitativo que se materializaria em Viagem (1939) , a ponto de a autora, em 1958, abrir com esse livro sua Obra poética. Mas, se a história “oficial” e “ideal” de Cecília começa em Viagem, o pesquisador e o leitor curioso hão também de indagar por sua “pré-história”. Desses primórdios, duas peças (Nunca mais e Baladas) já estavam disponíveis, com a vantagem adicional, na edição do centenário, de se estamparem com a reprodução das capas originais desenhadas por Fernando Correia Dias, primeiro marido da escritora. Talentoso e requisitado artista plástico de origem portuguesa, foi o responsável pelas ilustrações de vários livros da primeira fase de Cecília, e sua importante parceria com a esposa e com outros autores do período ainda não foi suficientemente enfatizada pelos historiadores.

Ainda faltava, todavia, o elo perdido, o texto primordial, verdadeiro espectro a povoar a insônia dos bibliófilos e dos arqueólogos literários. Finalmente, após numerosas buscas nos sebos e em bibliotecas públicas e particulares, tanto no Brasil quanto em Portugal, consegui, graças à generosa colaboração de um bibliófilo, localizar um exemplar do livro, que a nova edição restituirá à memória da poesia brasileira, décadas após seu – supostamente irreversível - desaparecimento. Com Espectros, será revelada uma nova e insuspeitada face de Cecília, de acentuada fatura parnasiana. A obra é formada por um conjunto de 17 sonetos rimados, em decassílabos ou alexandrinos, e que, em sua maioria, evocam celebridades da história universal e da religião católica. Vejam, a seguir, como a estreante Cecília elaborou sua versão da figura mítica de Joana d’Arc:

Firme na sela do ginete arfante,
Da coorte na vanguarda, ei-la às hostis
Trincheiras que galopa, delirante,
Fronte serena e coração feliz.

Sob os anéis metálicos do guante,
Os dedos adivinham-se viris,
Que sustêm o estandarte palpitante,
Onde esplende a dourada flor-de-lis.

Rica de sonhos, crença e mocidade,
A donzela de Orléans, no seu tresvário,
De mística, na indômita carreira

Sorri. Nenhum tremor a alma lhe invade!
E, entanto, o olhar audaz e visionário
Já tem clarões sinistros de fogueira!...

Eis um poema bem construído, em nada inferior à média do que produziam os nossos neoparnasianos no ambiente cultural pré-1922. Os demais sonetos de Espectros mantêm esse nível. Porém, a satisfação com a descoberta do livro fez-se acompanhar de uma dúvida: seria lícito reeditar uma obra que a autora, segundo tudo leva a crer, preferiu omitir de seu trajeto? A solução, quem sabe, poderia ser sua inclusão em apêndice, mas tanto a editora quanto os descendentes de Cecília foram favoráveis a que Espectros, ao contrário, abrisse a edição do centenário, não apenas pela importância da redescoberta de um livro dado como perdido de um de nossos maiores poetas, mas para que se mantivesse o critério de ordenação cronológica do material. Além disso, não se tratava de versos refugados em fundo de gaveta, mas de uma coletânea efetivamente publicada – e que em algum momento, portanto, correspondeu à “verdade literária” de Cecília, mesmo que essa verdade tenha mudado, e para melhor. Assim, a opção foi, de um lado, não sonegar a obra ao conhecimento público, e, de outro, enfatizar que Espectros deve ser lido em seu devido contexto e com as ressalvas aqui expostas – obra de juventude, sob vários aspectos ante(ou anti)ceciliana, mas de extraordinário valor documental.

Essas foram as linhas gerais do trabalho. Agora, é esperar que o esforço despendido tenha sido capaz de restituir do modo menos imperfeito possível a grandeza poética de Cecília Meireles.
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Fonte:
Revista Agulha. Revista de Cultura # 37 - Fortaleza, São Paulo - janeiro de 2004. Disponível em http://www.secrel.com.br/

sábado, 26 de julho de 2008

João Ubaldo Ribeiro ganha hoje o Prêmio Camões 2008

O escritor João Ubaldo Ribeiro ganhou hoje o Prêmio Camões 2008, o mais importante concedido a autores da língua portuguesa, informou o ministério da Cultura português. O anúncio foi feito em Lisboa.

João Ubaldo, de 67 anos, é o oitavo brasileiro a receber este prêmio. O primeiro brasileiro a ganhar o prêmio foi João Cabral de Melo Neto, em 1990, seguido por Rachel de Queiroz (1993), Jorge Amado (1994), Antonio Cândido (1998), Autran Dourado (2000), Rubem Fonseca (2003) e Lygia Fagundes Telles (2005).

"Olha, eu acho que eu ganhei porque eu mereço." Foi essa a frase usada pelo escritor brasileiro João Ubaldo Ribeiro ao comentar a conquista do prêmio.

João Ubaldo recebeu a notícia de sua vitória por um interlocutor não usual: a secretária eletrônica. "Eu estava passando por perto dela e ouvi a voz do meu amigo, (o escritor) Eduardo Portela, acadêmico (da Academia Brasileira de Letras) e baiano, e era um recado dizendo que eu tinha ganho o prêmio", disse, contando que tentou chegar a tempo à secretária, mas o amigo já havia desligado.

Questionado sobre como se sentia ao ganhar, o escritor foi honesto: "Para ser sincero, eu não acho nada demais. Eu acho que eu ganhei porque eu mereço. Olha eu poderia dizer agora toda uma hemorragia verbal, dizendo o quanto estou surpreendido por ter ganho, mas não vou fazer isso. Mas eu ganhei porque eu mereci", disse.

Sobre o prêmio em dinheiro, de 100 mil euros, o escritor comentou que a ajuda vai ser boa para complementar sua "aposentadoria de R$ 1.200". "Mas que ninguém pense que eu fiquei milionário", disse, entre risos.

Nascido em 1941, na ilha de Itaparica, Bahia, João Ubaldo Ribeiro é autor de várias obras de sucesso, muitas delas traduzidas para o francês e o inglês, como "Viva o povo brasileiro" (1984) e "O sorriso do lagarto" (1989).

O Prêmio Camões foi criado em 1988 por Portugal e Brasil para distinguir os autores de língua portuguesa que contribuíram para enriquecer o patrimônio cultural e literário das duas nações.
(Com informações da Agência Estado e AFP)

Fonte:
http://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/2008/07/26/joao_ubaldo_ribeiro_ganha_premio_camoes_2008_1473447.html

João Ubaldo Ribeiro (1941)

"Se não entendo tudo, devo ficar contente com o que entendo. E entendo que vejo estas árvores e que tenho direito a minha língua e que posso olhar nos olhos dos estranhos e dizer: não me desculpe por não gostar do que você gosta; não me olhe de cima para baixo; não me envergonhe de minha fala; não diga que minha fala é melhor do que a sua; não diga que eu sou bonito, porque sua mulher nunca ia ter casado comigo; não seja bom comigo, não me faça favor; seja homem, filho da puta, e reconheça que não deve comer o que eu não como, em vez de me falar concordâncias e me passar a mão pela cabeça; assim poderei matar você melhor, como você me mata há tantos anos."
(Vila Real)

João Ubaldo Osório Pimentel Ribeiro nasceu na Ilha de Itaparica, Bahia, em 23 de janeiro de 1941, na casa de seu avô materno, à Rua do Canal, número um, filho primogênito de Maria Felipa Osório Pimentel e Manoel Ribeiro. O casal teria mais dois filhos: Sonia Maria e Manoel. Ao completar dois meses de idade, João muda-se com a família para Aracajú, SE, onde passaria a infância.

Em 1947 inicia seus estudos com um professor particular. Seu pai, professor e político, segundo o biografado, não suportava ter um filho analfabeto em casa. Já alfabetizado, em 1948 ingressa no Instituto Ipiranga. A partir daí permaneceria horas trancado na biblioteca de sua casa devorando livros infantis, sobretudo os de Monteiro Lobato. Forçado por seu austero pai, iria se dedicar com afinco aos estudos, procurando ser sempre o primeiro da classe. Sobre essa fase de sua vida leia mais em "Memória de Livros", deliciosa crônica que consta de "Releituras".

No ano de 1951 ingressa no Colégio Estadual de Sergipe. Sempre dedicado aos estudos, prestava ao pai, diariamente, contas sobre os livros lidos, sendo, algumas vezes, solicitado a resumi-los e a traduzir alguns de seus trechos. João era também solicitado a verter para o português canções francesas que o pai ouvia. Não tinha folga nem nas férias, pois nelas praticava o latim e copiava os sermões do padre Vieira, apesar de afirmar que fazia aquilo com prazer. Manoel Ribeiro, seu pai, era chefe da Polícia Militar e, nessa época, passa a sofrer pressões políticas, o que o faz transferir-se com a família para Salvador. Na capital baiana João Ubaldo é matriculado no Colégio Sofia Costa Pinto. Conta ele que era perseguido pela professora de inglês, em virtude de seu sotaque. "Ela não percebeu que eu falava inglês britânico, já que estudara em Sergipe com um professor educado na Escócia", diz o escritor. Desafiado, dedica empenho extraordinário ao idioma, chegando a decorar 50 palavras por dia. Vizinho de engenheiros americanos, faz amizade com seus filhos para aprimorar ainda mais seus conhecimentos da língua inglesa.

Em 1955 matricula-se no curso clássico do Colégio da Bahia, conhecido como "Colégio Central".

1956 marca o início da amizade com Glauber Rocha, seu colega na escola.

Estréia no jornalismo, começando a trabalhar como repórter no Jornal da Bahia, em 1957, sendo que posteriormente se transferiria para A Tribuna da Bahia, onde chegaria a exercer o posto de editor-chefe.

Em 1958 inicia seu curso de Direito na Universidade Federal da Bahia. Com Glauber Rocha edita revistas e jornais culturais e participa do movimento estudantil. Apesar de nunca ter exercido a profissão de advogado, foi aluno exemplar. Lê (ou relê), então, os grandes clássicos: Rabelais, Shakespeare, Joyce, Faulkner, Swift, Lewis Carroll, Cervantes, Homero, e, entre os brasileiros, Graciliano Ramos e Jorge de Lima. Nessa mesma Universidade, concluído o curso de Direito, faz pós-graduação em Administração Pública.

Participa da antologia Panorama do Conto Bahiano, organizada por Nelson de Araújo e Vasconcelos Maia, em 1959, com "Lugar e Circunstância", e publicada pela Imprensa Oficial da Bahia. Passa a trabalhar na Prefeitura de Salvador como office-boy do Gabinete e, em seguida, como redator no Departamento de Turismo.

Seu primeiro casamento dá-se em 1960 com Maria Beatriz Moreira Caldas, sua colega na Faculdade de Direito. Separaram-se após 9 anos de vida conjugal.

Com "Josefina", "Decalião" e "O Campeão" participa da coletânea de contos Reunião, editada pela Universidade Federal da Bahia no ano de 1961, em companhia de David Salles (organizador do livro), Noêmio Spinola e Sonia Coutinho.

Em 1963 escreve seu primeiro romance, "Setembro não faz sentido", título que substituiu o original (A Semana da Pátria), por sugestão da editora.

Em plena efervescência política do ano de 1964, João Ubaldo parte para os Estados Unidos, através de uma bolsa de estudos conseguida junto à Embaixada norte-americana, para fazer seu mestrado em Administração Pública e Ciência Política na Universidade da Califórnia do Sul. Conta que, na sua ausência, teve até sua fotografia divulgada pela televisão baiana, encimada por um enorme "Procura-se". Segundo João, o movimento revolucionário não sabia que ele, tido e havido como esquerdista, estava nos Estados Unidos às expensas daquele país.

Volta ao Brasil em 1965 e começa a lecionar Ciências Políticas na Universidade Federal da Bahia. Ali permaneceu por 6 anos, mas desistiu da carreira acadêmica e retornou ao jornalismo.

Com o prefácio de Glauber Rocha, que se empenhou junto à José Álvaro Editores pela sua publicação, João Ubaldo tem seu primeiro romance "Setembro não faz sentido" impresso, com o apadrinhamento de Jorge Amado.

Em 1969 casa-se com a historiadora Mônica Maria Roters, que lhe daria duas filhas: Emília (nascida em fevereiro de 1970) e Manuela (cujo nascimento ocorreria em junho de 1972). O casamento acabaria em 1978.

Em 1971 lança, pela Editora Civilização Brasileira, o romance "Sargento Getúlio", merecedor do Prêmio Jabuti concedido pela Câmara Brasileira do Livro, em 1972, na categoria "Revelação de Autor". O livro é inspirado principalmente num episódio ocorrido na infância de João Ubaldo, envolvendo um certo sargento Cavalcanti, que recebera 17 tiros num atentado em Paulo Afonso, na Bahia; resgatado pelo pai do autor, então chefe da polícia de Sergipe, chegaria com vida em Aracaju. Segundo a crítica, esse livro filiou seu autor a uma vertente literária que sintetiza o melhor de Graciliano Ramos e o melhor de Guimarães Rosa.

Publica, em 1974, o livro de contos "Vencecavalo e o outro povo" (cujo título inicial era "A guerra dos Pananaguás"), pela Artenova.

Com tradução feita pelo próprio autor, o romance "Sargento Getúlio" é lançado nos Estados Unidos em 1978, com boa receptividade pela crítica daquele país.

Em 1979 passa nove meses como professor convidado do International Writting Program da Universidade de Iowa e publica no Brasil, pela Nova Fronteira, que a partir de então seria sua principal editora, um "conto militar", na sua definição, intitulado "Vila Real".

1980 marca seu terceiro casamento, com a fisioterapeuta Berenice Batella, que lhe daria dois filhos: Bento e Francisca (nascidos em junho de 1981 e setembro de 1983, respectivamente). Participa, em Cuba, do júri do concurso Casa das Américas, juntamente com o critico literário Antônio Cândido e o ator e diretor de teatro Gianfrancesco Guarnieri. O primeiro prêmio foi concedido à brasileira Ana Maria Machado.

Muda-se, com a família, para Lisboa, Portugal, em 1981, graças a uma bolsa concedida pela Fundação Calouste Gulbenkian. Edita, no período em que ali viveu, com o jornalista Tarso de Castro, a revista Careta. De volta ao Brasil, passa a residir no Rio de Janeiro, cidade que tanto ama, e lança "Política", livro até hoje adotado por inúmeras faculdades. Lança, também, "Livro de Histórias" (depois republicado com o título de "Já podeis da pátria filhos"), coletânea de contos. Inicia colaboração com o jornal "O Globo", que perdura até hoje, com pequenas interrupções, publicando uma crônica por semana. Sua produção dessa época seria reunida em 1988 no livro "Sempre aos domingos".

Em 1982 inicia o romance "Viva o povo brasileiro", que se passa na Ilha de Itaparica e percorre quatro séculos da história do país. Originalmente o livro se chamava "Alto lá, meu general". Segundo João, o livro nasceu de um desafio de seus editores e da lembrança de uma afirmativa de seu pai, que dizia: "Livro que não fica em pé sozinho, não presta." Como seus livros sempre tiveram poucas páginas, diante da provocação, fez um com mais de 700. Nesse ano participou do Festival Internacional de Escritores, em Toronto, Canadá.

No ano seguinte estréia na literatura infanto-juvenil com "Vida e paixão de Pandonar, o cruel". Seu livro "Sargento Getúlio" chega aos cinemas, num filme dirigido por Hermano Penna e protagonizado por Lima Duarte. O longa-metragem receberia os seguintes prêmios no Festival de Gramado: Melhor Ator, Melhor Ator Coadjuvante, Melhor Som Direto, Melhor Filme, Grande Prêmio da Crítica e Grande Prêmio da Imprensa e do Júri Oficial. Volta a residir em Itaparica, na casa onde nascera.

"Viva o povo Brasileiro" é finalmente editado em 1984, e recebe o Prêmio Jabuti na categoria "Romance" e o Golfinho de Ouro, do governo do Rio de Janeiro. Inicia a tradução desse livro para o inglês, tarefa que lhe consumiria dois anos de trabalho e a partir do qual passaria a utilizar o computador para escrever. Ao lado de Jorge Luis Borges e Gabriel Garcia Marques, participa de uma série de nove filmes produzidos pela TV estatal canadense sobre a literatura na América Latina.

João Ubaldo é consagrado na Avenida Marquês de Sapucaí: seu livro "Viva o povo brasileiro" é escolhido como samba-enredo da escola Império da Tijuca para o carnaval do ano de 1987.

Em 1989 lança o romance "O sorriso do lagarto".

Em 1990 publica "A vingança de Charles Tiburone", sua segunda experiência em literatura infanto-juvenil. A convite da Deutsch Akademischer Austauschdienst, muda-se com a família para Berlim, onde viveria por 15 meses. Publica crônicas semanais no jornal Frankfurter Rundschau, além de produzir peças radiofônicas de grande alcance popular, entre elas, uma adaptação de seu conto "O santo que não acreditava em Deus".

Retorna ao Brasil em 1991, e volta a residir no Rio de Janeiro. Seu romance "O sorriso do lagarto" é adaptado para o formato de minissérie por Walter Negrão e Geraldo Carneiro e estréia na Rede Globo, tendo como protagonistas Tony Ramos, Maitê Proença e José Lewgoy. Volta a escrever no jornal O Globo e inicia colaboração no O Estado de São Paulo, passando a publicar em ambos uma crônica aos domingos.

Em 1993 adapta "O santo que não acreditava em Deus" para a série Caso Especial, da Rede Globo, que teve Lima Duarte no papel principal. No dia 7 de outubro é eleito para a cadeira 34 da Academia Brasileira de Letras, na vaga aberta com a morte do jornalista Carlos Castello Branco. Disputavam com ele o piauiense Álvaro Pacheco e o mineiro Olavo Drummond. No terceiro escrutínio João Ubaldo obteve 21 votos contra 13 de Pacheco e um nulo.

Termina, em 1994, a adaptação cinematográfica, feita em parceria com Cacá Diegues e Antônio Calmon, do romance "Tieta do Agreste", de seu amigo e conterrâneo Jorge Amado. O filme teve a atriz Sonia Braga no papel principal e direção de Cacá Diegues. Toma posse na Academia Brasileira de Letras em 8 de junho. Cobre, nos Estados Unidos, a Copa do Mundo de Futebol como enviado dos jornais O Globo e O Estado de São Paulo. De volta ao Brasil é internado numa clínica em Botafogo, com arritmia cardíaca. Participa da Feira do Livro de Frankfurt, na Alemanha, e lá recebe o Prêmio Anna Seghers, concedido somente a escritores alemães e latino-americanos.

Recebe o prêmio Die Blaue Brillenschlange -- concedido ao melhor livro infanto-juvenil sobre minorias não-européias -- pela edição alemã de "Vida e paixão de Pandonar, o cruel". Lança o livro de crônicas "Um brasileiro em Berlim", sobre sua estada naquela cidade.

Volta a participar da Feira do Livro de Frankfurt, em 1996. Detém a cátedra de Poetik Dozentur na Universidade de Tubigem, Alemanha.

Em 1997 é internado novamente no Rio, desta vez com fortes dores de cabeça provocadas por uma queda. Cacá Diegues compra os direitos de filmagem do livro "Já podeis da pátria filhos". Renova contrato com a Nova Fronteira, depois de receber propostas de outras editoras. Publica o romance "O feitiço da Ilha do Pavão".

Participa em Paris do Salão do Livro da França, em 1998. Vende os direitos de "Viva o povo brasileiro" para o cinema; o filme deve ser dirigido pelo cineasta André Luis Oliveira. Lança o livro "Arte e ciência de roubar galinha", seleção de crônicas publicadas nos jornais O Globo e O Estado de São Paulo.

Durante a IX Bienal do Livro - Rio de Janeiro, em Abril de 1999, lança o livro "A Casa dos Budas Ditosos", da série Plenos Pecados, um romance sobre a luxúria publicado pela Editora Objetiva Ltda., que obtém enorme sucesso de vendas.

Ainda em 1999, foi um dos escritores escolhidos em todo mundo para dar um depoimento ao jornal francês "Libération", sobre o milênio que se aproximava. Escreveu, juntamente com Carlos (Cacá) Diegues, o roteiro de um filme baseado em seu conto "O santo que não acreditava em Deus", cujo título para o cinema foi "Deus é brasileiro". Seu romance "O feitiço da Ilha do Pavão" foi publicado em Portugal e em tradução alemã, pela editora C.H. Beck. "A Casa dos Budas Ditosos" torna-se um grande sucesso editorial, permanecendo, por mais de trinta e seis semanas, entre os dez livros mais vendidos. O romance foi publicado na Espanha, França e outros países. Seu lançamento em Portugal se transformou em problema nacional face à proibição, por duas redes de supermercados, de sua venda naqueles estabelecimentos. A primeira edição, de 5.000 exemplares, foi vendida em poucos dias e novas edições também.

João Ubaldo, em janeiro/2000, esteve lá para ser homenageado pelos escritores portugueses com um desagravo a tal procedimento. Nessa oportunidade participou da Semana de Estudos Lusófonos, na Universidade de Coimbra. Foi, também, citado em diversas antologias, nacionais e estrangeiras, inclusive numa sobre futebol, publicada pelo jornal "Le Monde", na França. Saíram várias reedições de seus livros na Alemanha, incluindo uma nova edição de bolso de "Sargento Getúlio". "O sorriso do lagarto" foi publicado na França. "A casa dos Budas ditosos" foi traduzido para o inglês, nos Estados Unidos. Seu livro "Viva o povo brasileiro" foi indicado para o exame de Agrégation, um concurso nacional realizado na França para os detentores de diploma de graduação.

OBRAS DO AUTOR

1. INDIVIDUAIS

Romances:
Setembro não tem sentido - 1968
Sargento Getúlio - 1971
Vila Real - 1979
Viva o povo brasileiro - 1984
O sorriso do lagarto - 1989
O feitiço da Ilha do Pavão - 1997
A casa dos Budas ditosos - 1999
Miséria e grandeza do amor de Benedita (primeiro e-book — livro virtual — lançado no Brasil) - 2000
Diário do Farol - 2002
Miséria e grandeza do amor de Benedita, Dom Quixote - Portugal - 2003
Diário do Farol - Dom Quixote - Portugal - coleção "Grandes Autores de Língua Portuguesa" - 2003

Contos:
Vencecavalo e o outro povo - 1974
Livro de histórias - 1981 (reeditado em 1991, incluindo os contos "Patrocinando a arte" e "O estouro da boiada", sob o título de "Já podeis da pátria filhos").

Crônicas:
Sempre aos domingos - 1988
Um brasileiro em Berlim - 1995
Arte e ciência de roubar galinha - 1998
O Conselheiro Come - 2000
Você me mata, Mãe gentil - 2004
A gente se acostuma a tudo - 2006

Ensaio:
Política: quem manda, por que manda, como manda - 1981

Literatura infanto-juvenil:
Vida e paixão de Pandomar, o cruel - 1983
A vingança de Charles Tiburone - 1990

Antologia:
História Pitorescas - 1977
Obra seleta - 2005

Participação em coletâneas:
"Lugar e circunstância". In: Panorama do conto bahiano - 1959
"Josefina", "Decalião" e "O Campeão". In: Reunião: contos - 1961
"Já podeis da pátria filhos". In: Onze em campo e um banco de primeira - 1998

Televisão
Adaptações:
O santo que não acreditava em Deus (Caso especial) - Do livro "Já podeis da pátria filhos" - Rede Globo - 1993

O compadre de Ogum (minissérie) - Do romance "Os pastores da noite", de Jorge Amado - Rede Globo - 1994

A maldita (Caso especial) - Do conto "Patrocinando a Arte" - Rede Globo - 1995

2. EM PARCERIA

Cinema
Tieta do Agreste (roteiro). De Jorge Amado. Com Cacá Diegues e Antônio Calmon - 1996

Televisão
Adaptações

Danada de sabida (Terça nobre) - Do conto "O artista que veio aqui dançar com as moças". Com Geraldo Carneiro - TV Bahia - 1997

ADAPTAÇÕES
1. PARA O CINEMA

Sargento Getúlio - Direção de Hermano Penna - 1983
Deus é brasileiro - Direção de Cacá Diegues - 2003

2. PARA A TELEVISÃO
O sorriso do lagarto - Adaptação de Geraldo Carneiro e Walter Negrão - Rede Globo - 1991 (ver também "Obras do autor - Televisão/Adaptações")
Ainda de e sobre o autor estão anotados diversos ensaios e apresentações incluídos em livros, artigos de jornais, artigos de revistas e entrevistas.

Fonte:
http://www.releituras.com/

João Ubaldo Ribeiro (Cântico de Argemiro)



Quem sabe do que vivemos?
Sabemos nós, que vivemos.
Quem sabe do sofrimento?
Sabemos nós, que sofremos.
Conheces os lobisomens?
Conhecemos mais que tu.
Falas como te falamos nós?
Achas que falas, maninho.
Tiveste fome em pequeno?
Tivemos nós, ó maninha.
Sabes tu como é meu nome?
Já tiveste em tua vida
Inteira desesperança,
Já sentiste que tua pança
É coisa mais que imoral?
Nunca soubeste ou sentiste,
Sempre pensaste e falaste
E para ti em minha caixa
Trago guardados, maninho,
Remédios feitos de ódio.
Sabes tu como é o meu nome?
Nunca soubeste, irmãozinho.
O meu nome é Meia-Lua
E te quero mal, maninho.
Porque, por ser estrangeiro,
Teu falar não é bem-vindo.
Antes morra eu na terra
Que tu viveres no céu.
Queremos tua mulher
Olhar como as nossas olhas.
Queremos interromper
Teu descanso imerecido.
Se antes tua visita
Era a visita da morte,
Tua jornada hoje é
Tua jornada ao inferno.
Não comas minha comida,
Não arranques minhas plantas,
Não me pegues, não me toques,
Espera que te perdoe
Por seres meu inimigo
E somente te perdôo
Por seres meu inimigo.
Por seres meu inimigo,
Despacho tua alma ao céu.
Por seres meu inimigo,
Quero que tu sejas santo.
Assim, quando tu chegares,
Te beijo e te tiro as tripas,
Te abraço e te assassino.
Mostro como te perdôo,
Te enfiando esta faca.
Mostro que te quero bem
Te humilhando também.
Verás que tenho paixão,
Ao furar teu coração.
Ganharás esta batalha
E tantas outras tu querias,
Tantas quanto teu dinheiro
Possa comprar no mercado.
Mas lembra que o Conselheiro
Não morreu ontem nem hoje,
Nem morreu sua consciência.
Inimigo muito feio,
Feio, feio inimigo,
Por que és tão feio assim?

João Ubaldo Ribeiro em seu livro "Vila Real", Editora Nova Fronteira - Rio de Janeiro, 1979, aborda a problemática central do homem nordestino (e que hoje é a de muitos outros de quase todas as regiões do país): aquele que por força do sistema de propriedade da terra é obrigado a perambular de um lado para o outro.

João Ubaldo Ribeiro (Mesa farta para todos)

Leio no Guinness que o francês Michel Lotito, nascido em 1950, come metal e vidro desde os 9 anos de idade. Um quilo por dia, quando está disposto. Informa-se ainda que, de 1966 para cá, ele já comeu dez bicicletas, um carrinho de supermercado, sete aparelhos de televisão, seis candelabros e um avião Cessna leve — este ingerido em Caracas, embora o livro não revele por quê. Sim, e comeu um caixão de defunto, com alça e tudo, a fim de garantir um lugar na História como o primeiro homem a ter um caixão de defunto por dentro, e não por fora.

Se é chute, não sei, mas não deve ser, levando em conta o rigor do Guinness. E esse tipo de coisa é menos raro do que se pensa. Nunca participei de comilanças de cacos de telha ou de torrões de barro, mas muitos amigos meus, na infância; às vezes traçavam até um tijolinho. E um outro amigo, poeta etíope que conheci nos Estados Unidos, me contou que, na tribo dele, os Galinas, todas as famílias tinham pelo menos um maluco, de quem se orgulhavam muitíssimo, porque maluco é visto como uma pessoa superior. Na sua própria família, havia diversos, embora um primo fosse favorito, pelo seu alto nível.

— Qual é a maluquice dele?

— Ah, ele come qualquer coisa. Você bota um troço na frente dele, ele pergunta se é para comer, você diz que é e ele come. Ele come comida normal também, mas se, depois de ele esvaziar o prato, você diz que pode comer o prato, ele come o prato. Come pneu, chifre, couro, madeira, qualquer coisa, nunca decepcionou.

Um certo Dr. Buckland, inglês do século XIX, ficou, digamos, famoso por sua determinação em comer amostras de todo o reino animal. Morava perto do zoológico de Londres e, quando um animal adoecia, entrava em prontidão. Se o bicho morria, ele comia e dizem que, certa feita, durante uma ausência dele, um leopardo morreu e ele, ao regressar,. não vacilou: desenterrou o leopardo e comeu um filezinho. Afirmava que o pior sabor era o da toupeira, mas depois mudou de idéia, porque achou a mosca-varejeira pior.

Em algum lugar do mundo ou outro (geralmente a China não há quem tenha ido à China e não traga uma história culinária provocante), são itens do passadio, ou finas iguarias, lagartas, larvas, sangue fresco, banha derretida, gafanhotos, ovos de cobra com cobrinhas dentro, caça em decomposição, fígado de foca cru, baba de andorinha, ovo podre e assim por diante. Para não falar nos esforços de cientistas mais ou menos renomados, que se bateram seriamente contra os tabus alimentares. Mero preconceito, manter excelentes fontes de proteína escandalosamente ignoradas, a exemplo de ratos, baratas e gente morta de causas não contagiosas, como propôs outro inglês, cujo nome agora esqueci. Na Bahia, não faz muito tempo, apareceu um japonês com amostras de vinho de — como direi? —, é isso mesmo, vinho de cocô. Segundo ele, era coisa da melhor qualidade, da mesma forma que bife de cocô, cuja tecnologia ele já dominava. Depois de higienizado e processado, o bife, garantia ele, era mais nutritivo e gostoso do que muita picanha aí. Besteira desperdiçar tanta comida boa por causa de uma ojeriza sem fundamento científico.

Por aí vocês vêem as dificuldades que o povo causa. Se fôssemos um povo de mente mais aberta, não existiria o problema da fome, que tantos embaraços traz aos nossos governantes em conferências internacionais. Temos ratos, baratas, piolhos, capim (outro japonês sugeriu capim, que também dá um bife de truz), temos tudo em abundância, notadamente a matéria-prima daquele vinho. Meu único receio é que, se der certo. tabelem o rato, a barata e o capim, cobrem IPI e ICM de todo mundo que for ao banheiro e regulamentem a captura de moscas com fins alimentícios. Mas vamos ter fé nos homens. Talvez eles livrem a cara do pequeno produtor, o que já é um grande passo e mostra sensibilidade para com os problemas da maioria do bravo povo brasileiro. Agora, sem boa vontade para colaborar e aceitar alguns pequenos sacrifícios, não se resolve nada.

Fonte:
Texto publicado na revista “Veja – Paulista”, Editora Abril, São Paulo, edição do dia 21/10/1992, encontrado nos “Arquivos Implacáveis” de João Antônio Bührer, do blog “Grafolalia”. Disponivel em http://www.releituras.com/

Graham Greene (1904 - 1991)

Graham Greene nasceu em 1904, na Inglaterra. Era tímido, sensível, e preferia a leitura aos esportes. Seu pai, diretor da escola onde estudava, o atormentava por isso, o que fez com que tentasse várias vezes se suicidar. Aos quinze anos de idade, após abandonar a escola, foi mandado para um psiquiatra, em Londres, que o incentivou a escrever. Estudou história contemporânea no Balliol College e, depois, foi para a universidade. Lá conseguiu alguma experiência trabalhando como editor do Oxford Outlook e foi também onde passou a se interessar por política, depois de se filiar ao Partido Comunista, segundo ele mesmo, por diversão.

Escreveu seu primeiro romance antes de se formar.Trabalhou no Times, em Londres, como editor assistente, em 1926. Casou-se com Vivien Dayrell-Browning. Escreveu seus primeiros romances políticos, "The Episode", que foi rejeitado pelos editores, e "The Man Within", que foi publicado com sucesso — o que levou Greene a ter que tomar uma decisão na vida: continuar a carreira de editor no Times, que ele adorava, ou se tornar um escritor. Optou pela segunda, mas quase teve que voltar atrás depois do fracasso dos dois romances que vieram a seguir, "The Name Of The Action" e "Rumor At Nightfall". Viveu um bom tempo com o dinheiro de adiantamentos dos editores e como crítico literário do Spectator. Dizem que as pressões por dinheiro fizeram que ele escrevesse "Stamboul Train" — um romance "escapista", com a intenção de agradar o público.

Mas a partir de "Stamboul Train", nunca mais teve que se preocupar se seus livros eram categorizados como "diversão" ou "sérios". Além de escrever resenhas de livros, passou a escrever sobre cinema e começou a escrever roteiros para filmes, sendo o mais famoso deles a adaptação de "The Third Man" ("O Terceiro Homem").

Viajou pelo mundo e, durante a Segunda Guerra trabalhou para o Serviço Secreto Inglês em Serra Leoa.

Com "The Power And The Glory" (O poder e a glória), considerado seu melhor romance, Greene recebeu o prêmio Hawthornden.

As constantes viagens, que serviam de combustível para seus livros, continuavam: foi ao Vietnam durante a guerra na Indochina, ao Quênia durante o levante Mau Mau, à Polônia stalinista, à Cuba de Castro, e ao Haiti de Duvalier.

Depois da publicação de "The Quiet American" (O americano tranqüilo), o autor foi acusado de ser anti-americano.

Sua vida pessoal também foi cheia de notoriedade: o sucesso financeiro depois da metade dos anos 60 permitiu que ele pudesse viver confortavelmente em Londres, Antibes e em Capri. Ele teve várias amantes e confessou ser "um péssimo marido" — separou-se da mulher ainda em 1948, mas nunca divorciou-se dela. Nos últimos anos de vida, viveu em Vevey, na Suiça, com Yvonne Cloetta.

Faleceu no dia 3 de abril de 1991.

Outras obras:
O décimo homem
Expresso do Oriente
Fim de caso
O homem de muitos nomes
Nosso homem em Havana
O poder e a glória
O americano tranqüilo
Reflexões
Um lobo solitário
O amante complacente
O coração da matéria
O galpão do jardim
O condenado
Os farsantes

Fonte:
http://www.releituras.com/

Graham Greene (O homem que roubou a torre Eiffel)

Não foi tanto o roubo da torre Eiffel que me criou dificuldades, mas sim colocá-la de volta antes que alguém notasse. Devo afirmar, sem falsa modéstia, que o plano foi muito bem arquitetado. Vocês podem imaginar o que me custou — uma frota de caminhões enormes para carregar a torre até um daqueles campos planos e desertos que se vêem a caminho de Chantilly. Lá a torre podia facilmente ser colocada na horizontal. Durante a viagem, em uma manhã nevoenta de outono, havia bem pouco tráfego, e o pouco que havia era insignificante. Ninguém que tentou ultrapassar meus 102 caminhões de seis rodas notou que eles eram unidos entre si pela torre, como as contas de um colar: Os carros particulares chegavam a fazer menção de ultrapassar, mas quando os motoristas dos Fiat e Renault viam aquela fila de caminhões à frente, desistiam e conformavam-se em seguir a procissão. Por outro lado, os carros que vinham em sentido contrário tinham a estrada toda para eles: meus caminhões transformaram o trajeto Chantilly—Paris em uma longa estrada de mão única. Os carros passavam a toda velocidade e nem tinham tempo de notar que a torre estava apoiada sobre cada caminhão da corrente, como numa espécie de berço de centenas de metros de comprimento.

Tenho muito carinho pela torre, e fiquei feliz em vê-Ia, depois de tantos anos de guerra, cerração, chuva e radar, em repouso. No primeiro dia da mudança caminhei ao seu redor, de vez em quando tocando um dos suportes: o quarto andar parecia um pouco desconfortável no pedaço que passava por cima de um afluente manso e lamacento do Sena, então coloquei-o mais à vontade. Depois voltei para sua sede original — ainda temia que alguém notasse. Os grandes blocos de concreto estavam lá, sem nada em cima. Lembravam tanto túmulos, que alguém já havia deixado um maço de flores para os heróis da Resistência. Um táxi parou trazendo os últimos turistas da estação antes de, como andorinhas, rumarem para oeste com a chegada do inverno. O homem estava com uma garota e cambaleava um pouco ao caminhar. Curvou-se para ver as flores e ao endireitar-se ficou vermelho nas bochechas lisas e empoadas.

— É um memorial — disse.

— Comment? — perguntou o motorista de táxi.

A garota acrescentou:

— Chester, você disse que poderíamos almoçar aqui.

— Não estou vendo torre nenhuma — disse o homem.

— Comment?

— Veja bem — tentou explicar, gesticulando para dar maior ênfase —, você nos trouxe para o lugar errado. Fez um esforço. — Ici n 'est pas la Tour Eiffel.

— Oui. Ici.

— Non. Pas du tout. Ici il n 'est pas possible de manger.

O motorista saltou do carro e olhou ao seu redor. Fiquei um pouco nervoso, com medo de que desse pela falta da torre, mas ele voltou para dentro do carro e virou-se para mim dizendo, melancólico:

— Vivem mudando o nome das ruas.

Falei com ele em tom confidencial.

— Eles só querem almoçar. Leve-os ao Tour d'Argent. — Partiram satisfeitos e o perigo passou.

Obviamente havia sempre o risco de que os funcionários chamassem a atenção do público, mas eu havia pensado nisso. Eles recebiam semanalmente e quem seria bobo de admitir que seu local de trabalho desapareceu antes de esperar a semana terminar e ver se o dinheiro entrou normalmente? Os cafés das redondezas tornaram-se o grande ancoradouro dos funcionários da torre, mas todos evitavam sentar na mesma mesa de seus colegas de trabalho para não dar margem a conversas constrangedoras. Identifiquei um boné de uniforme por bistrô em uma área de uma milha quadrada: cada homem passava as horas de seu expediente sentado tranqüilamente a uma mesa de bar, tomando uma cerveja ou um pastis dependendo do salário, levantando pontualmente para bater o ponto da saída. Não me pareceu que estivessem perplexos com o desaparecimento da torre. Era algo que podia ser convenientemente esquecido, como o imposto de renda. Melhor não pensar a respeito: se pensassem, alguém poderia esperar que tomassem uma providência.

Os turistas, obviamente, representavam o perigo maior. Aviões noturnos alegaram nevoeiro baixo, e o Ministério do Ar solicitou o "comentário" do Ministério das Relações Exteriores sobre várias reclamações de interferências no radar — um novo dispositivo russo na guerra fria. Mas logo espalhou-se a notícia, entre guias e motoristas de táxi, de que quando um turista pedisse para ver a torre Eiffel a melhor coisa a fazer era simplesmente levá-lo ao Tour d' Argent. A gerência do lugar não decepcionava, e a vista, nesses dias de outono, também era ótima, de modo que os turistas assinavam o livro de clientes a tanto por cabeça. Eu costumava ir para lá ouvi-los.

— Eu imaginava que era mais, como dizer... metálica — disse um deles. — Achei que dava para ver através dela.

— Expliquei-lhe que isso se aplicava perfeitamente ao estabelecimento em que se encontrava.

Férias nunca duram para sempre, e uma manhã, enquanto rodeava a torre aplicando um pouco de cuspe e polidor aos suportes, concluí que ela precisava voltar a funcionar antes que os empregados sentissem falta de seu salário. Só me restava esperar que, algum dia, ela encontrasse outra pessoa que, como eu, lhe desse a chance de passar uma temporada no campo. Garanto que não há risco nenhum. Ninguém em Paris admitiria que a ausência da torre passou despercebida por cinco dias — assim como um homem apaixonado não admitiria não ter notado a falta da amante.

Mesmo assim devolver a torre não foi fácil, tendo sido obrigado a lançar mão de alguns truques a fim de desviar a atenção das pessoas. Para facilitar, encomendei a um conhecido, que fazia figurinos teatrais, alguns uniformes da polícia, das Gardes Mobiles, das Gardes Républicaines e da Académie Française. Planejei uma reunião de poujadistes, uma rebelião de argelinos e um discurso pela morte de um crítico de teatro obscuro, que um amigo meu fez "disfarçado" de Ministro da Educação. Digo disfarçado, mas na verdade não havia a menor necessidade de mudar de nome, nem de cara, visto que ninguém lembrava quem ocupava essa pasta no gabinete de Monsieur Mollet.

Os turistas tiveram a última palavra e, curiosamente, enquanto admirava minha amada torre, que parecia dar piruetas na névoa da manhã, de volta a seu lugar, vi o mesmo americano chegando de táxi com a mesma garota. Ele olhou rapidamente ao seu redor e disse:

— Aqui não é a torre Eiffel.

— Comment?

— Ah, Chester — disse a garota —, onde é que nos trouxeram desta vez? Eles nunca acertam. Eu estou morrendo de fome, Chester. Estou sonhando com aquele Sole Délice que comemos.

Eu disse para o motorista:

— É o Tour d'Argent que eles querem — observei-os partir. A coroa para os heróis da Resistência havia murchado, mas eu peguei uma flor seca e desbotada, coloque lapela e acenei para a torre. Não ousei ficar mais tempo Poderia ficar tentado a roubá-la de novo.

Fonte:
Texto extraído do livro “A última palavra”, Editora Record – Rio de Janeiro, 1995, pág. 48, Disponível em http://www.releituras.com/

Folclore Tailandês (O ladrão de sonhos)

Certa noite, um jovem chamado Makibito teve um sonho tão belo que, ao acordar, foi consultar uma sábia anciã. Contou-lhe o sonho, que o mostrava num palácio vivendo com uma linda princesa. A mulher lhe disse apenas que seu sonho não passava de mera ilus@o. Porém, antes que terminassem de conversar chegou outro rapaz que desejava falar com a sábia, e ela pediu a Makibito que aguardasse na sala ao lado. O jovem, que era muito rico, também lhe contou seu sonho.

E a sábia lhe disse:

- Esse é um sonho de sorte. Mas para que se realize ‚ preciso guardar segredo. Jamais conte seu sonho a ninguém.

Quando Makibito voltou à presença da anciã, disse-lhe:

- Como eu gostaria de estar no lugar daquele jovem! Mas por que a senhora lhe pediu que guardasse segredo daquele sonho tão lindo?

- Porque o sonho pode ser roubado, e ele perderia sua sorte.

- Quer dizer - disse Makibito - que, se eu entrasse aqui novamente e repetisse as palavras dele, também teria sorte?

- Creio que sim.

- Não acredito - disse Makibito -, isso não é poss¡vel.

- Então saia, bata de novo à porta e me conte o sonho que ouviu há pouco.

Makibito obedeceu e a anciã também lhe prometeu um futuro de sorte.

Anos depois, ele se tornou um sábio. O rei foi pedir-lhe conselhos e gostou tanto dele que o convidou para ser seu conselheiro. Em seguida, Makibito foi nomeado primeiro-ministro e casou-se com uma linda princesa. E assim viveu até os cem anos. Mas, pouco antes da morte, resolveu contar ao neto a história do sonho.

- O que será que aconteceu ao outro jovem? - perguntou ao neto.

E concluiu: - De qualquer modo, aquela anciã era maluca. Até hoje acho tudo isso uma bobagem. Você não concorda?

O neto replicou:

- Mas, vovô, você teve mesmo uma vida de muita sorte.

Ao que Makibito respondeu:

- Pois é exatamente como no meu primeiro sonho!

Fonte:
http://www.esnips.com

Stendhal (O Vermelho e o Negro)

Julien Sorel é o anti-herói romântico por excelência. Carente de recursos, sua ambição o leva a encarar duas carreiras como possibilidade de alcançar o sucesso - a eclesiástica e a das armas. Sua trajetória constrói-se entre o vermelho e o negro. Envolve-se com duas mulheres - Madame Renal e Mathilde de la Mole.

Filho de um humilde carpinteiro,Julien Sorel sonha com uma vida intensa e gloriosa. Sua desmedida ambição o leva a conviver com a burguesia provinciana e com a aristocracia parisiense. Ainda assim Julien continua a ser um pobre no mundo dos ricos. A partir desses elementos, Stendhal criou um magistral romance psicológico, considerado o mais significativo da literatura francesa do século XIX.

Alguns comentários iniciais sobre o 'O Vermelho e o Negro'.

a] As intenções de Stendhal.

As sucessivas revoluções [Revolução Francesa, Consulado, Império Napoleônico e a Restauração] provocaram, ], num curto espaço de tempo, profundas transformações nos costumes e hábitos do povo francês. A imagem que a literatura produzia da França, contudo, estava defasada, segundo Stendhal.

'A França moral é ignorada no estrangeiro, eis por que, antes de tratar do romance do senhor de S[tendhal], foi preciso declarar que nada se assemelha menos à França alegre, divertida, um pouco libertina, que de 1715 a 1789 constituiu o modelo da Europa, do que a França grave, moral, triste , que nos legaram os jesuítas, as congregações e o governos dos Bourbons de 1814 a 1830'[1958:318]

Para Nobert Elias 'a especial sensibilidade dos escritores permitiu-lhes, como uma espécie de vanguarda da sociedade, perceber e expressar mudanças que estavam ocorrendo no campo mais amplo das sociedades em que viviam' [1994:87]. O que Stendhal se propôs foi traçar uma imagem fiel dos costumes das cidades e da província francesa e da relação entre indivíduo e sociedade. Para Stendhal sua caneta funcionava como um espelho: deveria refletir com precisão sua época. Buscava a objetividade.

'Senhores, um romance é um espelho que é levado por uma grande estrada. Umas vezes reflete aos vossos olhos o azul dos céus, e outras a lama da estrada. E ao homem que carrega o espelho nas costas vós acusareis de imoral! O espelho reflete a lama e vós acusais o espelho! Acusai antes a estrada em que está o lodaçal, e mais ainda o inspetor das estradas que deixa a água estagnar-se e formar-se o charco. '[: 345/46]

Para alcançar este objetivo, Stendhal colhia no mundo real o material para elaboração de suas obras. A própria história de Julien Sorel, é baseada em fatos verídicos, somando traços de sua personalidade e fatos que aconteceram na sua vida particular para constituição da personalidade de Julien Sorel. Segundo Cândido, 'Stendhal era incapaz de inventar um sistema fictício. O culto à experiência, ao fato constatado, assim como o amor à concatenação, levaram-no sempre a tomar como ponto de partida algo concreto e quase sempre meio elaborado. Para alguém tão convencido da realidade da experiência, a sensação e a impressão da leitura eram células germinais da criação fictícia'[1978:146].

A atenção maior era dada, não aos fatos em si, daí não ser um 'plagiador dos fatos reais', mas a como as pessoas os vivenciavam, interagiam. Ao mesmo tempo que Stendhal descreve encontros entre as pessoas, nos deixa penetrar nos seus pensamentos, através do fluxo de suas consciências, permitindo-nos escutar como os personagens racionalizavam as situações concretas, medindo as possibilidades de avanços e/ou recuos. As ações dos personagens são o resultado da ' interiorização da exteriorização e da exteriorização da interiorização' [Bourdieu, 1983:47]. Mais precisamente no caso de Sorel: 'os acontecimentos constituem Julien Sorel tanto quanto Julien os provoca ou com eles se confronta' [Perrone-Moisés, s/r: 22]

Para entender a dinâmica dos personagens que se encontram em espaços sociais estruturados, movidos por interesses particulares, mas que tinham que agir em conformidade com as normas desse espaço, Stendhal adequa um estilo de escrever, caracterizado pela economia de descrições. Nada sabemos sobre a forma dos vestidos que a Sra. Renal e a Srta. Mathilde usavam, ou sobre os móveis das mansões do bairro nobre Saint German. Ficaria a critério do leitor imaginá-los. Sua preocupação principal era contar como estava a sociedade francesa; o processo de interiorização por parte dos indivíduos dessa situação e, como estes agiam diante de situações concretas, negociando posições dentro das estruturas.

Para implementar seu projeto [descrever a França de sua época ], Stendhal nos fez entrar em contato com a vida na província [principalmente o jogo de poder político], com o mundo religioso, com a vida da alta sociedade parisiense. Que pode ser considerado como três campos: o campo político, o religioso e o campo da aristocracia. Outro tema que aparece constantemente ao longo do livro: o amor.

Esse vasto olhar sobre a vida social francesa, uma ambição totalizadora do conhecimento do seu mundo, nos chega através das ações do herói Julien Sorel.

b] Julien Sorel e sua época.

'Uma efêmera nasce às nove horas da manhã nos longos dias de verão, para morrer às cinco horas da tarde; como haveria ela de compreender a palavra noite?'
Há algum tempo escutei essas frases ditas por um personagem do filme 'Camilla'. Curiosa por saber o contexto daquelas frases que ficaram na minha cabeça como eco, encontrei-as no 'O Vermelho e O Negro' de Stendhal. Contextualizando-as, elas assumiam para mim uma nova dimensão: estavam inseridas no drama do jovem Julien Sorel, condenado a ser guilhotinado por um quase-crime que cometera.

Através de sua história, entramos em contato com o mundo social francês, tal qual representada por Stendhal. A intenção de Stendhal, nessa obra, era construir um quadro que demonstrasse a sociedade francesa da Restauração, daí ele não priorizar um campo determinado. Este quadro é construído através das andanças e aventuras de Julien Sorel. Assim, não temos uma situação onde o ator, portador de um habitus e de um capital, entra em determinado campo, ali se fixa, disputando o objeto em torno do qual o campo se mantém, investindo energia e, pela combinação de suas ações e de situações concretas, garantindo a manutenção do campo [reprodução] ao mesmo tempo que sua posição no seu interior muda [ou no sentido de ocupar um lugar de dominante - ortodoxa - ou permanecer como dominado - heterodoxa].

Embora encontremos essa situação constantemente ao longo do livro, não é especificamente o caso de Julien. A vida [fatos concretos] de Julien é antes uma 'câmara giratória' que circula em vários campos : um olhar vasto que aproxima e distancia o foco. Sua consciência é uma 'metralhadora giratória'. Por onde passou, encontrou a marca registrada do seu século: hipocrisia, medo, onde a palavra só servia para esconder o pensamento. Século da intriga, da suspeita.

Entender a personalidade de Julien, materializada nas suas ações, descolado de um contexto é impossível. Suas ações e a interpretação que ele tem do mundo são fruto da 'interiorização do exterior e exteriorização do interior' [Bourdieu , 1983:47]. A narrativa do romance é construída num sistema de relações, em que o tempo e o espaço onde ela se desenvolve tem um papel fundamental para entender o porquê de Julien agir de determinada forma.

Julien fazia parte de uma sociedade dividida em classes sociais. Cada uma com concepções de mundo diferentes, disputadas violentamente. Em cerca de trinta e três anos a França passou pela Revolução Burguesa, Consulado, o Império Napoleônico e a Restauração. Quatro anos depois que entramos em contato com a história de Julien, 1826, então com dezenove anos, eclode a Revolução de Julho.

As camadas do solo que Julien pisava estavam num processo de ajustamento, de movimento constante, gerando um sensação de insegurança e medo permanente. Crenças democráticas radicais coexistindo com o pensamento liberal, nostalgia pelo Ancien Régime. A idéia permanente era de dualidade, transição. Tal situação interfere nas relações entre os indivíduos, modificando-as: 'as pessoas só podem conviver harmoniosamente como sociedade quando suas necessidades e s socialmente formadas, na condição de indivíduos, conseguem chegar a um alto nível de realização; e o alto nível de realização individual só pode ser atingido quando a estrutura social formada e mantida pelas ações dos próprios indivíduos é construída de maneira a não levar constantemente as tensões destrutivas aos grupos e aos indivíduos' [ Elias, 1994: 122]. Com Julien Sorel há um desajuste entre seu habitus social e as situações objetivamente confrontadas, assim como era elevado o grau de desvio do seu habitus social e o habitus individual. Daí aparecer a noção de desajuste. Porém, conforme veremos mais à frente, Julien sempre tentava agir de acordo as normas e regras dos campos sociais por onde passava, sempre à custa de um enorme esforço de interiorizar as estruturas.

Durkheim [1992] foi um dos sociólogos mais preocupados com o fenômeno do individualismo nas sociedades modernas , apontando a alta taxa de suicídio como uma das patologias causadas por esse processo, principalmente aqueles do tipo anômico. A morte de Julien pode assim ser interpretada: ausência de valores morais sólidos compartilhados, fosse um grupo ou classe, que conferisse sentido para suas ações, para sua vida. Embora eu não esteja inteiramente de acordo com a forma objetivista de abordar o fenômeno do suicídio, por Durkheim, ela nos ajuda a compreender o porquê, no caso de Julien, a morte não o amedrontava; ao contrário, a idéia do suicídio lhe ocorria como uma imagem cheia de encantos, um delicioso descanso: 'um copo de água gelada oferecida ao miserável que, no deserto, morre de sede e de calor.' [ :346]

A possibilidade de coesão social na França de Julien estava restrita aos campos que conseguiam, através dos seus membros, reforçar a crença do campo, reproduzindo-o. Porém, quando tentamos perceber o nível de integração ou de comunicação entre os diversos campos, o que vemos, via Julien, é um processo de desintegração, de esgarçamento do tecido social. É neste quadro que Julien se movimenta.

3. 'O Vermelho e o Negro'

Primeiro Ato: 'Um jovem preceptor '

Julien Sorel, filho caçula de uma família camponesa , odiava sua origem e o futuro que lhe aguardava: trabalhar como serrador de tábuas. Não tinha músculos, nem disposição para este tipo de trabalho. Seus dois irmãos e seu pai o consideravam um preguiçoso, odiavam, acima de tudo, a principal mania do jovem filho: a leitura.

Sua ambição era fazer carreira militar. Tinha a mente povoada pelas campanhas vitoriosas e os grandes feitos do seu maior ídolo: Napoleão Bonaparte. Esta época , porém , fazia parte da história da França. Qual a alternativa então? Qual o campo que possibilitaria a um jovem camponês fazer fortuna?

'Quando Bonaparte deu que falar de si, a França tinha medo de ser invadida; o mérito militar era necessário e estava na moda. Hoje, a gente vê padres de quarenta anos com l00.000 francos de vencimentos, três vezes mais do que percebiam os famosos generais de divisão Napoleão. E ainda têm quem se dobre ante eles... Preciso ser padre.'[ :33]

O hábito preto: o uniforme do seu século. A opção de Sorel nos remete à teoria da prática de Bourdieu; as ações sociais são materializadas pelos agentes sociais, mas as chances de efetivá-las estão estruturas no interior da sociedade. Entre a vocação e a sua realização há condições [ou a falta delas] que escapam ao controle do sujeito. O agir dos agentes sociais encontra-se ajustado às chances objetivas. Foi essa mediação que Sorel fez. A opção em fazer-se padre não era nenhum grande lance de originalidade ou maquiavelismo. No seminário de Besançon, onde Julien passou algum tempo, os camponeses hegemonizavam. Há um nível de previsibilidade nas opções práticas que os sujeitos fazem.

Logo o prefeito da provinciana Verrières, Sr. Rênal, tem notícias de um jovem estudioso das Escrituras Sagradas, portador de uma memória invejável, capaz de recitá-la toda de cor em latim. Muito mais para aumentar seu prestígio diante do Sr. Valenod, diretor do asilo de mendicidade de Verrières, o prefeito contrata Sorel como preceptor dos seus filhos.

Entre o Sr. Rênal e o Sr. Valenod, existia uma relação de cordialidade, mas eram inimigos, disputavam posições dentro do campo político. O prefeito conseguiu ocupar melhores posições. Seus trunfos: um esposa milionária, defensora extremada da Restauração. Como num jogo, a vitória é feita de lances, vitórias parciais: quem tem os melhores cavalos, quem sabe receber melhor, quem oferece os melhores vinhos, os cristais mais raros, as melhores relações com a Côrte parisiense. Quem tem condições de ter um preceptor para seus filhos. Para estes senhores, Julien representa não mais que um símbolo, uma cartada a favor do Sr. Rênal que contribuiria para sua imagem pública.

O Sr. Valenod fora durante muito tempo protegido do senhor Rênal, mas começa a sentir-se ameaçado por ele. Sente que ele passa a ocupar gradativamente posições de destaque na vida política e social de sua cidade. O Sr. de Valenod é jesuíta, ousado, habilidoso, ambicioso, não se sentia humilhado diante de nada, prestava-se a todo tipo de papel. No decorrer das disputas entre ambos, o Sr. de Valenod torna-se sucessivamente barão e membro da câmara dos deputados.

O jovem preceptor está fora deste campo. Não disputa o objeto em jogo: o poder político. Mas queria tirar proveito da posição que ocupava: primeiro era preciso saber aonde estava pisando, fazer um mapa mental das posições dos freqüentadores da casa do Sr. Rênal. Esse processo de investigação silenciosa permitiu-lhe chegar a algumas conclusões: jamais revelar sua paixão por Napoleão, nem sua admiração pelas idéias Iluministas, principalmente por Rousseau; estava cercado de inimigos, tinha horror e ódio à alta sociedade em que, a bem dizer, era recebido com reservas. Sabia que por mais que tentasse se distanciar de sua classe de origem, os outros sempre o veriam como um portador do habitus camponês, identificado com o mau gosto, a rudeza, 'um saco de batatas' [ Marx].

Não foi difícil para ele perceber que o Sr. Valenod cobiçava-lhe e fazia todo o possível para levá-lo para sua casa. O Sr. Rênal também sabia. O medo de perder o preceptor fez o Sr. Rênal aumentar-lhe o salário. E sempre que Julien queria um tempo para se isolar ou para visitar o amigo Fouqué, burguês que tinha no trabalho o único valor moral, era-lhe concedida licença. Todas as vezes que encontrava com este seu amigo, ele lhe oferecia sociedade no seu negócio de madeiras. Poderia rapidamente ficar rico. Julien de certa forma 'arquivou' a proposta : caso não conseguisse fazer fortuna dentro da Igreja, a mesma poderia ser uma alternativa.

Cada ação de Sorel, ao longo do livro , é antecedida por um processo de racionalização que busca, em primeiro lugar, fazer o reconhecimento do meio social no qual se encontra [as regras, normas de conduta, qual posição que cada indivíduo ocupa] para, a partir daí, representar seu papel. Contudo, fazer esse reconhecimento e se movimentar com facilidade num espaço social onde as pessoas agiam de acordo com um habitus diferente do seu, levava um certo tempo. Tinha pavor de passar por ridículo, de não se comportar de acordo. Mesmo tendo uma memória invejável, tinha o cuidado de anotar em pequenos pedaços de papel o nome dos freqüentadores da casa, sua posição social e outras observações que achasse conveniente para não se perder, afinal ' ele vivia entre camponeses; nunca tivera grandes modelos. Mais tarde, logo que lhe foi dado aproximar-se de gente distinta, tornou-se admirável nos gestos como nas palavras' [ :54/55]. Com a ajuda dessa técnica e de uma conduta pautada num profundo arrivismo, conseguiu atualizar seu habitus a situações concretas.

Depois de algum tempo como preceptor, Julien tem que abandonar a casa dos Rênal: tornara-se amante da Sra. Rênal e fora denunciado por uma carta anônima, depois reconhecida como tendo sido escrita pelo Sr. Valenod.

Inicialmente o sentimento que levou Julien a envolver-se com esta senhora não foi a paixão ou algo parecido. Colocara-se como um desafio tê-la, fazê-la apaixonar-se. Estabelecia s. A cada etapa vencida [um toque de mão, um olhar mais demorado, visitas noturnas a seu quarto], ele suspirava feliz: ' Sim, eu ganhei uma batalha... Isso é puro Napoleão'[ :75]. Mas , eis que o imprevisto nos planos do nosso estrategista do amor acontece: ele se apaixona por aquela senhora tão suave e boa 'mas que fora criada no campo inimigo'. [ : 102]

Porém, seu tempo de amante acabara. Depois da carta anônima, não resta outra saída: Julien vai para o seminário em Besançon. Ali conhecerá o campo religioso.

Segundo Ato: No Seminário

No Seminário Julien assumiu um postura arrogante. Enxergava aqueles seminaristas como seres grosseiros; camponeses que preferiam ganhar o pão recitando algumas frases decoradas do latim à cultivar a terra. Uma situação que, na verdade , não era tão diferente da sua. Mas seu gosto pela leitura e a capacidade de julgar por si mesmo o faziam diferente. Contrastando sua capacidade com a dos outros, deu-se conta de sua superioridade . Através dessa observação, que fizera nos primeiros dias, sonhou com sucessos imediatos e viu-se ocupando posições de destaque. Nosso jovem herói, tão dado a pensar a vida como uma guerra, errou. Esqueceu de fazer o reconhecimento do campo inimigo [conhecer as regras do jogo] e a partir daí definir suas táticas. Esqueceu de que, para saber agir como padre, para ser padre, deveria dominar e interiorizar o funcionamento do campo religioso. Havia um conjunto de pressupostos consolidados que davam sustentação a esse campo, independente da vontade de Julien.

O esforço que Julien fazia para ser o primeiro nos diversos cursos de dogma e de história eclesiástica era visto como um enorme pecado. O inimigo número um da igreja naquele momento eram os livros. O Iluminismo e a Revolução Burguesa deixaram uma lição: a única coisa importante é a submissão do coração. Vencer nos estudos, mesmo sacros, é suspeito. O pensamento, a busca do conhecimento, trás em si o poder de libertação, de subversão. Todo raciocínio ofende.

A atitude de Julien, olhando sempre direto nos olhos, com ares de quem está sempre pensando, manteve os companheiros à distância. Ninguém queria relacionar-se com o jovem 'Martinho Lutero', como ficou conhecido. Julien era como uma nota musical entoada fora do tom. Desafinava . Percebeu, depois de algum tempo, que a diferença não se tolerava e que nada conseguiria com aquele seu jeito de agir.

Para adaptar-se àquele novo espaço social, Julien teve que ajustar suas ações às normas de conduta daquele campo: a maneira de andar, de mover os braços, os olhos, o tom da voz, o conteúdo das conversas. Tudo deveria ser feito com resignação, numa economia constante de energia. Julien percebeu, então, que 'no seminário, é o modo de se comer um ovo que revela os progressos feitos na vida devota'[ :218].

Além desse esforço de comportar-se de forma mais condizente com os padrões de um jovem padrezinho, Julien teve o cuidado de observar as disputas de posição entre aqueles que representavam a ortodoxia e, a partir daí, definir qual o melhor partido a tomar. Entre o diretor do Seminário, o abade Pirard , jansenista, e seu inimigo, o senhor de Frilair, Vigário Geral de Besançon, jesuíta. Julien alia-se ao primeiro, tomando-o como confessor e amigo .
Pela postura sempre tão calculista e maquiavélica de Julien , esperávamos que se aliasse ao senhor de Frilair, representado internamente no Seminário pelo Padre Castanède. Talvez por uma leitura errada das posições naquele campo Julien tenha se aproximado do Abade Pirard. Isso num primeiro momento. Depois a atenção e carinho que o Abade tinha por ele o conquistaram definitivamente.

O abade Pirard foi diretor do seminário durante quinze anos, boa parte dos quais envolvido em brigas com o senhor de Frilair. As disputas, que aconteciam ao nível da ortodoxia, refletiam nos seguidores de uma [jansenismo] ou outra posição [jesuítas]. Julien pôde sentir isso na pele.

O abade Pirard nomeou Julien, seu protegido, o explicador do Novo e Antigo Testamentos. Na prática, isso lhe conferia uma posição mais elevada na hierarquia em relação aos outros seminaristas [representava que seu capital tinha aumentado]: podia comer sozinho, tinha a chave do jardim podendo passear quando quisesse. Pouco a pouco tornou-se de mau gosto chamá-lo de 'Martinho Lutero'.

Chegou a época dos exames. Os examinadores eram nomeados pelo Vigário Geral de Frilair. Um examinador pôs-se a falar de Horácio, Virgílio e outro autores profanos. Julien aprendera de cor um grande número de passagens daqueles autores. Arrastado pelo sucesso, esqueceu em que lugar se achava e na companhia de quem. Depois de vários minutos recitando e parafraseando com entusiasmo odes de Horário, percebeu que caíra numa cilada: o examinador fechou a cara e reprovou-lhe o tempo perdido com estudos e idéias inúteis. Foi com prazer que o Vigário Geral colocou o número 198 ao lado do nome de Julien: o protegido do abade Pirard não conseguira uma colocação melhor. Através de Julien, o Vigário atingira seu inimigo.

Mas , por que Julien, tão ambicioso, não se aliara ao Vigário? A forma como as ações de Julien são construídas nos indica a complexidade de sua personalidade. Julien não é vilão, nem mocinho. Nada se distancia mais dele do que o tipo ideal desses dois extremos, imortalizado pelos personagens das novelas medievais. O carinho e a preocupação que o velho abade Pirard tinha por ele, fez Julien considerá-lo como um pai.

Inicialmente construímos a imagem de um jovem que ocultava sob um rosto singelo, a resolução 'inquebrantável de expor-se a mil mortes, contanto que chegasse a fazer fortuna '[ :33] Porém, muitas vezes diante de situações onde esperamos uma determinada conduta , ele nos surpreende e se surpreende. É no processo de conhecimento do mundo que ele realiza o auto-conhecimento. Mas, quem pode dizer que se conhece ou tem a capacidade de prever todas suas ações em todos momentos da vida social?

Todos nós somos portadores de determinado sistema de disposições duráveis, que nos capacita a compartilhar determinadas realidades sociais. Se entre o habitus e as situações concretas há um nível de previsibilidade das ações [conforme visto anteriormente], também há o da imprevisibilidade. Isto aparece em Julien quando se envolve com alguém, sente carinho. Neste momentos seu racionalismo, que procura numa ardente meditação interior suas razões de agir, volatiza-se. Não consegue pensar antes de agir e nem de pensar como o outro está pensando para lhe surpreender com um xeque-mate. Isso é mais visível quando está apaixonado. Aí se estabelece um duelo interior infernal entre a razão e o coração.
***
O inevitável na história do abade Pirard acontece: é obrigado a pedir demissão do seu cargo, devido ao crescente número de intrigas e da certeza que seria demitido. O abade Pirard tinha como amigo e aliado em Paris o Marquês de La Mole. Preocupado com os rumos que a vida do jovem Sorel poderia tomar naquele seminário com a sua ausência , o Abade convence o Marquês a torná-lo como seu secretário particular.

Terceiro Ato: Nos salões de Saint -Germain

Julien não se continha de tamanha felicidade. Finalmente deixaria aquele lugar sombrio, sem vida. Depois daquela temporada interno no seminário, entendeu que a cor do hábito não poderia ser outra. Iria para Paris. Quem poderia imaginar, um jovem camponês nos salões da alta sociedade parisiense ? Nem ele próprio.

O provinciano Sorel tudo admirava naquela cidade cheia de brilho, de pessoas, cavalos, damas perfumadas, prédios. Seus olhos pareciam querer saltar do rosto para conseguir absorver tudo quanto lhe rodeava. Quando entrou no Palácio dos La Mole, para assumir suas tarefas, pensou: 'Então é assim que eles vivem'. A alta sociedade provinciana, com a qual tivera contato, era composta de pessoas que ocupavam essa posição pelo adquirido e não pelo herdado, embora de um adquirido que ainda procurava se disfarçar sob a aparência deste. Era precisamente o caso do Sr. Rênal que se envergonhava de ter sido industrial antes de 1815.

Na alta sociedade parisiense o nome e o nascimento eram o principal passaporte para torna-se um freqüentador dos salões e ser reconhecido como par. Eram barões, duques, condes, marqueses que sabiam localizar com precisão o lugar que ocupavam na árvore genealógica dos Retz, Tolly, Croisenois, Caylus. A tradição, o passado dava o sentido do presente. É sua posição presente e passada na estrutura social que esses indivíduos transportam com eles todo tempo e lugar, sob a forma de um habitus assentado num conjunto de símbolos. O traje, o cetro, o manto, a coroa real representavam o máximo de capital: eram símbolos do capital social.

A posição que cada indivíduo ocupava dentro desse campo dependia do seu capital, objetivado em títulos, cruzes e outros símbolos. Havia disputas para conseguir títulos, que os colocariam numa posição mais elevada na hierarquia aristocrática. O objeto em torno do qual estas pessoas giravam era um 'sistema simbólico' [Bourdieu], que funcionava como instrumentos de conhecimento e de comunicação, exercendo um poder estruturante na medida que são estruturados, funcionando assim , como instrumentos de integração social.

Era outro mundo que Julien entrava em contato. Um mundo onde 'a história dos antepassados eleva-os acima dos sentimentos vulgares, e eles não têm de pensar continuamente na própria subsistência! Que miséria! Sou indigno de raciocinar sobre esses grandes assuntos. Minha vida não passa duma seqüência de hipocrisias, porque eu não tenho 1000 francos de renda para o pão '[ :293]. Ali ninguém se preocupava em trabalhar, encarava este como o pior dos males.
Durante os dias, Julien ocupava-se com suas funções de secretário. À noite, jantava com os donos do Palácio e com seus convidados. A presença de um plebeu inicialmente incomodou bastante, a ponto da Sra. de La Mole propor ao marido mandá-lo desempenhar uma missão qualquer nos dias em que tivessem certos personagens à mesa.

O medo de passar ridículo e a intenção de melhor orientar-se, fez Julien proceder da mesma forma que na casa dos Rênal: escreveu os nomes e uma frase sobre o caráter das pessoas que entravam no salão. A precaução de Julien lhe ajudou muito pouco. Todos caçoam de sua falta de jeito em se portar. Comportava-se como um subalterno inoportuno a quem ninguém se dava o trabalho de esconder o que achasse a seu respeito.

Passado algum tempo pôde perceber com mais clareza o código de conduta dos salões. O sentimento de admiração inicial cedia lugar ao menosprezo pelo mundo da alta sociedade parisiense. Participar todas as noites daqueles encontros tornara-se para ele uma suplício. Nos salões podiam comentar tudo livremente, menos fazer piadas 'a respeito de Deus, nem dos padres, nem do rei, nem das pessoas de posição, nem dos artistas protegidos pela corte, nem de tudo o que está estabelecido; contanto que não falassem bem de Béranger, nem dos jornais da oposição, nem de Voltaire, nem de Rousseau, nem de todos os que se permitiam certa linguagem franca; contanto, sobretudo, que nunca falassem em política, podiam comentar tudo livremente. ' [ :246]

Não havia espaço para qualquer idéia viva. O código dos salões era implacável. Não se admitia qualquer nível de imprevisibilidade nos comportamentos ou opiniões, fosse dos jovens ou velhos aristocratas. As maneiras encantadoras, tão alegres na aparência, careciam de idéias, de originalidade. Julien só enxergava cópias. Viviam à sombra de uma revolução. Buscavam voltar-se para dentro. Nada poderia transpor aquela parede invisível entre o mundo lá fora, em ebulição, e o dos salões. Podia-se sentir, contudo, que pairava o medo no ar, medo de outra revolução e da volta da aristocracia à guilhotina.

Julien sentia-se asfixiado. A única coisa que diminuía seu tédio eram as longas conversas que tinha com a Srta. Mathilde de La Mole. Eles tinham alguns pontos em comum: prazer nas leituras sérias e proibidas [tipo Voltaire], faziam a mesma interpretação do século em que viviam. Porém, enquanto Julien tinha como modelo Napoleão e Danton, Mathilde ia buscar em épocas muito mais longínquas seus modelos: na Côrte de Catarina de Médicis, quando os homens lutavam por uma causa, eram capazes de expor-se ao perigo. Eram de homens como seu antepassado, La Mole, que deu a vida pelo amor de Margarida, que carecia sua classe. Mathilde orgulhava-se profundamente do seu nome.

O ódio que ambos nutriam pelo seu século rendeu longas conversas e uma paixão que mudou o futuro de Julien. A jovem aristocrata sentiu-se atraída por Sorel por tê-lo na conta de um homem inteligente, um novo Danton. Embora fosse aristocrata, odiando tudo que lembrasse 1792, admirava as ações dos indivíduos ousados.

A história de amor de Mathilde e Julien é marcada por avanços e recuos: Mathilde, depois que consegue ter Julien, arrepende-se, sente-se envergonhada. Como se permitira se apaixonar por um criado da casa, um camponês?

Desprezado por Mathilde, Julien volta-se para dentro, tal qual casulo. Nunca sua situação de classe lhe pesara tanto. O ódio que nutria pela aristocracia foi domesticado. Sentia vergonha de sua origem e de não poder ter sua amada.

O processo para reconquistá-la assemelha-se a uma enorme batalha. Julien joga, provoca a orgulhosa Mathilde, despreza-a. Recuperou a razão . Pensava'...não pense Srta. Mathilde que eu esqueço meu lugar. Farei com que compreenda e sinta que é pelo filho de um carpinteiro que a senhora atraiçoa um descendente do famoso Guy de Croisenois'[ : 321].

Julien venceu. Teve sua amada de volta aos seus braços. Pouco depois, ela engravida. O Sr. La Mole quase enlouquece: 'Este século está destinado a confundir tudo, e nós marchamos para o caos! ' [ : 427]. A filha de um aristocrata grávida de um plebeu. A bela Mathilde com casamento marcado com o nobre Croisenois. Paris toda zombaria da Casa dos La Mole! Nada que o pai argumentava, a fazia reconsiderar: ia casar-se com Julien e dá o nome Sorel ao seu filho. Agora era o amor paixão que falava mais alto e não o cerebral. O amor paixão que nasce como uma força interior, representando a vitória da intimidade, do 'eu'.

O Sr. de La Mole consegue uma patente de Tenente de Hussardos para Julien, forja uma condição de nascimento nobre. Passaria a chamar-se Julien Sorel de La Vernay. Tudo que Julien sempre sonhara estava realizando: tornara-se um militar, conseguira ter seu amor correspondido, seria pai. Parecia que sua guerra com a sociedade findara.

Mas, então por que Julien não agiu de forma mais fria e racional, quando leu a carta da Sra. de Rênal, que o descrevia como egoísta, um homem que só pensava em dinheiro ? Por que ele correu até Verrières e atentou contra a vida dela , quase matando-a? Essa atitude reforça a idéia, a complexidade das ações e reações de Julien, acima colocadas.

Julien é preso. Durante o tempo que durou o processo, Mathilde dedica-se totalmente ao seu amado. Mas este vê ressurgir o amor pela Sra. Rênal.

As longas noites e dias na prisão são preenchidos por pensamentos profundos, filosóficos. No seu julgamento estava cheio desses pensamentos e ousou quebrar a regra de ouro do seu século; usou as palavras para expressar qual sua posição diante da sociedade: ' Senhores, eu não tenho a honra de pertencer à vossa classe; vós vedes em mim um camponês que se revoltou contra a baixeza de sua condição. . . Sou culpado. . . mereço a morte, mas mesmo que eu fosse menos culpado, vejo homens que, sem contemplação para o que a minha juventude possa merecer de piedade, hão de querer punir em mim e desencorajar para sempre os jovens que, oriundos, de uma classe inferior e de qualquer forma oprimidos pela pobreza, têm a felicidade de conseguir uma boa educação e a audácia de imiscuir-se naquilo que o orgulho da gente rica chama 'sociedade'. '[: 487]

Falando assim, ele decretou sua própria sentença. O Sr. de Valenod, presidente dos jurados, a lera: guilhotina.

Pouco antes de subir ao cadafalso, pensava; ' Uma efêmera nasce às nove horas de um lindo dia verão para morrer às cinco horas da tarde; como haveria ela de compreender a palavra noite ?'

Quando a lâmina afiada separou o corpo da cabeça de Julien, Mathilde não ficou desesperada. Agora ela via que estava certa : Julien era audacioso. Sentia-se a própria Margarida de Navarra. Pegou a cabeça de Julien , colocou-a à sua frente e beijou-lhe a fronte. E ela mesma a enterrou, com muita pompa.

Fontes:
http://www.algosobre.com.br/
http://www.leonardodavinci.com.br/ (imagem)