quarta-feira, 25 de março de 2009

Novalis (Hinos à Noite)



I.

Diante do espetáculo maravilhoso do espaço aberto à sua volta, que existência viva, sensível, não ama a deliciosa luz, com suas cores, raios e ondulações, sua onipresença gentil na forma do alvorecer? O mundo gigantesco das constelações despertas inala o dia como a mais profunda alma da vida, e flutua dançando em sua torrente azulada; a pedra tranqüilamente faiscante, a pesarosa planta, o mundo selvagem, ardente e multiforme dos animais o inala; porém, mais que elas, o nobre estrangeiro com olhos brilhantes, andar altivo, lábios melodiosos e cerrados. Como um rei que comanda a natureza mundana, ele invoca os poderes para transformações incontáveis, ata e desata inúmeras alianças, sustenta sob forma celestial cada substância terrena. Sua presença por si só revela o esplendor maravilhoso dos reinos do mundo.

E eu me volto para a Noite misteriosa, sagrada e indescritível. Ao longe repousa o mundo, em sepulcro profundo; um lugar solitário e arruinado. Nas cordas do peito golpeia uma tristeza profunda. Estou pronto para mergulhar nas gotas do orvalho, e misturar-me às cinzas. - A distância da memória, os desejos da juventude, os sonhos da infância, as breves alegrias e aspirações vãs de uma vida longa, surgem com uma veste acinzentada, como o vapor da tarde antes do pôr do sol. Em outras plagas a luz assentou suas tendas felizes: e se eu nunca mais retornar para suas crianças, que me esperam com a fé da inocência?

O que renova todos os pressentimentos de meu coração, e acalma o ar suave da tristeza? Negra Noite, não terás uma afinidade conosco? O que seguras sob teu manto, cujos poderes ocultos afetam minh'alma? O bálsamo precioso goteja do ramo de papoulas, em tuas mãos. Tu retiras os cravos de aço da alma. De modo obscuro e indescritível, somos tocados: estarrecido de prazer contemplo a face grave que, suavemente e em prece, inclina-se sobre mim, e, em meio a olhares confusos, revela o amor jovial da Mãe. Como a luz parece agora algo pobre e infantil! como é agradável e bem-vinda a partida do dia! -

Não é apenas porque a noite arrebata de ti seus servos, e lança aos abismos do espaço teus globos faiscantes, que proclamas, nos momentos de ausência, sua onipotência, e desejas seu retorno?

Temos olhos que a noite abriu em nosso interior, mais divinos que aquelas estrelas brilhantes. Sua visão alcança além dos incontáveis hóspedes mais pálidos da noite. Sem auxílio da luz eles penetram as profundezas que abrangem as regiões elevadas com inefável delícia. Glória à rainha do mundo, à grande profetisa dos mundos mais sagrados, à mãe cuidadosa do delicioso amor! ela mandou-te a mim, tu a mais suavemente amada, sol gracioso da Noite. Agora desperto, pois sou teu e meu. Fizeste-me conhecer a Noite, entregaste-a a mim para que se tornasse minha vida; tu fizestes de mim um homem. Consumas meu corpo com o ardor de minh'alma, de modo que eu, tornado ar purificado, possa misturar-me completamente contigo, e assim, nossa noite de núpcias durará eternamente.

II.
Por que a manhã deve sempre retornar? O despotismo do dia nunca terá fim? A atividade profana consome a visita angélica da noite. Nunca chegará o dia em que o sacrifício oculto do Amor arderá eternamente? Veio o tempo da Luz; porém, o domínio da Noite é eterno e ilimitado. A duração do sono é eterna. Sono Sagrado, servo dedicado da Noite, não se preencha de júbilo no trabalho mundano do dia. Os tolos julgam-te mal, nada conhecendo do sono exceto a sombra que lanças piedosamente sobre nós no crepúsculo da noite real. Eles não te sentem no fluxo dourado das videiras, no óleo mágico da árvore das amêndoas, e no suco marrom do pomo da papoula. Eles não sabem que és tu quem assombra o seio da bela dama, e transforma em Céu a sua nobreza; jamais suspeitam que és tu, guardiã do Céu, quem envia a eles as antigas histórias, mensageira silenciosa dos segredos infinitos, portadora da chave para a morada dos abençoados.

III.
Certa vez, quando derramava lágrimas amargas, que minha esperança, dissolvida na dor, se esvaía, e eu permanecia só sobre uma colina estéril que em seu contorno escuro, baixo, ocultava a desvanecida forma de minha Vida; só como ninguém jamais havia sido, tocado por uma angústia indescritível, privado de forças, e nada mais restava exceto a consciência da miséria; - enquanto olhava ao meu redor em busca de socorro; não podia avançar nem retroceder, e enfraquecido com a perda, extinguí minha vida com uma saudade sem fim; então surgiu das distâncias azuis, das profundezas de meu júbilo passado, uma chuva brilhante, crepuscular; e num só momento romperam-se as amarras do nascimento, os grilhões da Luz. Ao longe fugiu a glória da Terra, e com ela meus lamentos. A tristeza fluiu num mundo novo e inescrutável. Tu, ó inspiração da Noite, Sono celestial, viestes sobre mim. O local elevou-se suavemente, e acima pairou meu espírito recém-nascido, ilimitado. A colina tornou-se uma nuvem de poeira e envolveu-me, e na nuvem vislumbrei a glorificada face de minha Amada. Em seus olhos jazia a eternidade. Apertei suas mãos e minhas lágrimas tornaram-se um laço ardente e indestrutível. Milhares de anos fluíram ao longe nas distâncias do relâmpago e da tempestade. Em seu dorso eu saudei a nova vida com lágrimas e êxtase. Jamais tive tal sonho novamente; desde então e para sempre eu mantenho uma fé eterna e inabalável no Céu da Noite; e em seu sol, a Amada.
~ ~ ~

IV.
Agora sei quando chegará o derradeiro amanhecer: quando a luz não afugentar mais a Noite e o Amor, quando o sono persistir sem o despertar, existindo apenas um sonho contínuo. Sinto em mim uma exaustão celestial. Minha peregrinação para o túmulo sagrado foi longa e cansativa, e a cruz esvaia-se. Aquele que experimentou a onda de cristal que, imperceptivelmente ao sentido comum, brota do seio obscuro da colina batida pelo fluxo do mundo, aquele que esteve na montanha fronteiriça do mundo, e vislumbrou o interior das novas terras nos domínios da noite, certamente não retornará ao tumulto do mundo, às terras nas quais reina a Luz em inquietude perpétua.

Naquelas alturas ele constrói para si tabernáculos - tabernáculos de paz; lá recorda, ama e contempla, até que a mais querida das horas lança-o nas águas da fonte. Tudo o que é mundano flutua sobre ele, revolvendo-se em tempestades; mas o que se tornou sagrado pelo toque do Amor flui livremente através dos caminhos ocultos, das regiões mais além, onde, junto aos aromas, mistura-se ao amor adormecido. Doce Luz, tu ainda acordas o homem cansado para o trabalho, e em mim deitas a alegria da vida; mas tu não me afastarás do monumento coberto de musgo da memória. Oferecer-te-ei a mão laboriosa sempre que necessitares de mim; louve a rica pompa de teu esplendor; persiga incansável as harmonias amáveis de teu habilidoso artesão; contemple feliz a pesarosa paz de teu poderoso, radiante relógio; explore o equilíbrio das forças dos maravilhosos e incontáveis mundos e suas estações; mas meu coração secreto permanece da Noite, e do seu filho, Amor o criador.

Poderias tu me revelar um coração eternamente verdadeiro? Possui teu sol olhos amigos que me conhecem? Seguram tuas estrelas minha mão quando ela se oferece? Retribuem elas a pressão suave da minha palavra carinhosa? Tu não as adornaste com cores e com trêmulo contorno? Ou terá sido ela quem concedeu às tuas jóias um significado mais elevado, e querido? Que delícias, que prazeres, a tua vida me oferece, para aliviar o fardo dos transportes da Morte? Não será tudo aquilo que nos inspira investido da vivacidade da Noite? Tua mãe, é ela que te gera, e a ela deves toda tua glória. Tu poderias desvanecer em si, poderias dissipar-se no espaço infinito, se ela não te amparasse, não te enfaixasse para que permanecesses quente e flamejante, concebendo o universo. É certo que eu já existia antes de ti; a mãe enviou-me com minhas irmãs para habitar o mundo, para santificá-lo com amor de modo que ele se tornasse um memorial eternamente presente, para semeá-lo com flores que jamais fenecerão.

Mas assim como elas não germinaram, e nem estes pensamentos divinos; não há sinal algum do apocalipse que está próximo. Mas um dia teu relógio apontará para o fim do Tempo, e então deverás ser apenas um conosco, e deverás, pleno de ardente saudade, extinguir-se e morrer. Eu sinto em mim o término de tua atividade, experimento a liberdade celestial, e a restauração feliz. Com dores selvagens reconheço como estás distante de nosso lar, teu feudo junto ao antiquíssimo domínio, o Céu. Tua ira e teus delírios são em vão. Inconsumível paira a cruz, bandeira de vitória em nossa senda.

Peregrinei
Onde toda dor
Certo dia,
Só terá sabor de prazer.
Mais alguns momentos
E estarei livre,
Intoxicado
Na mentira envolvente do amor.
A vida eterna
Surge qual onda diante de mim:
Observo do cume,
Observo a ti.
Ó Sol, deves desvanecer
Sob a colina;
Uma sombra irá trazer-te
Irada frieza.
Ó, atire em meu coração amor,
Atire até que eu me vá;
Até que adormecido,
Ainda ame!
Eu sinto o fluxo da
Correnteza da jovem e generosa morte;
Que transforma meu sangue
Em bálsamo e éter!
Com fé e vontade
Eu vivo os dias:
Com um êxtase sagrado,
Morro a cada anoitecer.

V.
Em tempos antigos um Destino de ferro surgiu a reinar, com força implacável, sobre as dispersas famílias humanas. Uma opressão sombria envolveu suas almas ansiosas: a Terra não tinha fronteiras, ainda era um lar para os homens e morada de deuses. Sua estrutura misteriosa jazia desde eras eternas. Além das colinas rubras do amanhecer, no seio sagrado do mar, reinava o sol, aquele que tudo inflama, luminária viva. Era como um velho gigante abraçando este mundo feliz. Aprisionados nas profundezas jaziam os primogênitos da mãe Terra, sem esperanças em sua fúria destruidora contra a nova raça de deuses e seus parentes benévolos, os homens. O abismo esverdeado e obscuro do oceano abrigava uma deusa. Nas grutas de cristal as pessoas brincavam.

Os rios, as árvores, as flores e animais tinham a espiritualidade esperta do ser humano. O vinho era doce, servido por jovens personificadas; havia um deus nos vinhedos; uma deusa maternal, amável, cresceu entre as folhagens douradas; a sagrada embriaguez do amor era doce prece para a mais bela das deusas. A vida vagava através dos séculos numa contínua primavera, uma festa sem fim dos filhos do Céu, habitantes da terra. Todas as raças, como crianças, adoravam a chama etérea, multiforme, como a mais sublime entre as coisas do mundo.

Nada mais que uma ilusão, um sonho horrível -
Algo temível avançou sobre o banquete feliz,
E deixou os espíritos numa consternação selvagem.
Os próprios deuses não conheciam respostas ou conselhos,
Para infundir consolo nos corações sufocados.
A senda do monstro era misteriosa e sem rumo,
Cuja fúria não se aplacava com preces e sacrifícios;
Era a morte que invadiu o banquete com medos,
Com angústia, dores cruéis e lágrimas amargas.
Agora separados eternamente de tudo
Que inclina o coração à felicidade fluente do prazer,
Separados dos que amam, os corações partidos,
Em vão saudosos e em desespero sem fim -
Lutam em sonho tristonho,
Parecia que tudo era posse da morte profunda!
Que rompeu a vaga próspera da glória do homem
No rochedo inevitável da Morte.
Em vôo ousado, vão ao alto as asas do Pensamento;
Os homens cobrem a coisa horrível com o manto da beleza:
Uma bela jovem apaga a vela, para dormir;
O fim aproxima-se suavemente, como o lamento do alaúde do amante.
Uma sombra fria rasteja sobre a memória:
Assim dizia a canção, pois Miséria a movia.
Ainda indecifrável jaz a Noite interminável -
O símbolo solene de um Desejo distante.

O velho mundo entrou em declínio. O jardim de delícias da raça jovem definhou; mais acima, em regiões amplas e desoladas, agora combatiam os homens maduros tendo abandonando a infância. Os deuses desvaneceram-se junto a seu séquito. A natureza jazia solitária e sem vida. O Número seco e a Medida rígida aprisionaram-na com correntes de ferro. Envoltas no ar e na poeira as inestimáveis florações da vida fugiram para mundos obscuros. Fora-se a Fé, criadora de maravilhas, e aquele anjo que tudo une e transforma, seu companheiro, Imaginação. Os ventos do norte sopraram sobre aquela plaga tórrida, e a terra maravilhosa primeiro gelou-se, e então evaporou-se no éter. As profundezas distantes do Céu tornaram-se plenas em mundos relampejantes. A alma do mundo, junto a todos seus poderes, ocultou-se no santuário profundo, nas regiões mais puras da mente, até que um dia desperte o alvorecer da glória universal.

A Luz não era mais a morada dos deuses, nem o presságio celeste de sua presença: fora lançado sobre eles o manto da Noite. A Noite tornou-se o grande berço das revelações; nela retornaram os deuses, e adormeceram, persistindo em formas novas e gloriosas no interior do mundo transfigurado. Entre o povo, antes perfeito e bondoso, que havia se tornado zombeteiro e insolentemente hostil diante da abençoada inocência da juventude, apareceu o Novo Mundo, sob o disfarce nunca visto antes, de uma canção abençoada de pobreza, filho de uma dama, uma mãe, fruto eterno de enlace misterioso. A sabedoria oriental, profética, florescente, de pronto reconheceu o surgimento de uma nova era; uma estrela mostrou-lhes o caminho para o pobre berço do rei. Em nome de um futuro distante, homenagearam-lhe com respeito e perfumes, as mais elevadas maravilhas da natureza. Na solidão, o coração celeste revelou-se para o cálice em flor do amor grandioso, voltou-se para a face suprema do pai, e repousou sobre o seio da mãe solene e doce. Com fervor divino o olhar profético do filho contemplou os anos futuros, previu, imperturbável sob o fardo terreno de seus dias, a prole amada a surgir de sua árvore divina. As almas infantis reúnem-se ao seu redor, e anseiam pelo amor verdadeiro, maravilhosamente obtido. Como flores, elas desabrocham uma nova vida em sua presença. Mundos que jamais se esgotam e boas novas saem como faíscas de um espírito divino por seus lábios benévolos. De uma costa distante veio um bardo, nascido sob o céu claro de Hellas, para a Palestina, e cedeu seu coração inteiro para a criança maravilhosa: -

Tu és o jovem cujas eras mantiveram por tanto tempo
Pairando sobre nossos túmulos, perdido entre as névoas da imaginação;
Sinal na escuridão da boa-nova de Deus,
Quando madura a humanidade a colherá;
E é o que desejamos, e cultivamos com amor
E toda a desgraça perde o viço, o sentido;
A morte encontrou sua razão de ser na vida eterna,
Pois tu és Morte, e fizeste-nos totalmente unos.

Cheio de alegria, o bardo foi para o Indostão, o coração intoxicado com a doçura do amor, que expressou em canções compostas sob aquele céu suave, de modo que milhares de corações ajoelharam-se diante dele, e a boa nova frutificou em uma infinidade de ramos. Logo depois da partida do cantor, aquela vida preciosa foi entregue em sacrifício pela profunda queda do homem. Ele morreu jovem, arrebatado do mundo que tanto amava, de sua mãe chorosa, e seus amigos temerosos. Seus doces lábios sorveram a taça amarga de erros inexprimíveis. Em angústia horrível aproximou-se o nascimento de um novo mundo. Ele combateu bravamente os terrores da antiga Morte; grande foi o peso da antiga palavra sobre ele. Porém, ele olhou suavemente para a mãe; surgiu a mão libertadora do Amor eterno, e ele adormeceu.

Por alguns dias pairou um véu profundo sobre o mar revolto, sobre a terra que tremia; lágrimas sem fim brotaram de seus amados; o mistério desvendou-se: espíritos celestes arrastaram a grande rocha da tumba obscura. Anjos observaram-no, adormecido, desencorporado docemente em sonhos; ele despertou em nova glória, Divinificado galgou ao cume do novo mundo recém-nascido, enterrou com as próprias mãos o antigo cadáver na cavidade abandonada, e com mão suprema deitou sobre ela uma rocha que poder algum seria capaz de remover novamente.

Seus olhos amados lacrimejam sobre a tumba lágrimas graves de júbilo, lágrimas emocionadas, lágrimas de graça eterna, sempre renovadas; com felicidade observam-no a erguer-se novamente, e contemplaram seu lamento fervoroso e suave sobre o seio abençoado da mãe, a andar em comunhão pensativa com seus amigos, murmurando palavras como que arrebatadas da árvore da vida; vêem a ti, partindo saudoso para os braços do pai, levando consigo a jovem Humanidade, e a inexaurível taça de um futuro dourado. Logo a mãe juntou-se a ti em triunfo celeste, e era a primeira pessoa contigo na nova morada. Desde então, eras fluíram, e num esplendor sempre maior tens se dedicado à nova criação, e milhares seguiram a ti, em meio a dores e torturas, plenos de fé e desejosos pela verdade, andam contigo e a virgem celestial no reino do Amor, e serão para sempre teus, ministro do templo da Morte celestial.

A pedra é elevada,
E toda a humanidade ergue-se;
Todos nós residimos em ti,
Desaparecemos em nossa prisão.
Todos os tormentos se foram
Diante da taça dourada;
Pois nem a vida nem o mundo podem estar
Na mesa em que ceamos com o Senhor.
Ao casamento a Morte convida;
E nenhuma virgem tarda;
As lamparinas queimam vistosas;
Sem necessitarem de óleo algum.
Teus pés ao longe despertam
Ecos em nossas sendas!
E as estrelas criam símbolos
E doces vozes!
Dez mil corações aspiram
A ti, ó nobre mãe;
Nesta vida, carregados de tristezas,
Desejam apenas a ti;
Em ti esperam a cura;
Em ti esperam repouso seguro,
Quando, selando sua segurança,
Os abraçará contra teu peito.
Os que repousam no inferno
Queimam desapontados,
Pois por fim, ao te verem
Fogem deste mundo:
E tu apareces em auxílio,
A nós, em meio às dores:
Agora estamos mais próximos de tua morada,
E nunca mais iremos embora!
Agora não existem mais lágrimas
Que amor e preces junto aos túmulos;
O dom que o Amor concede
Não será mais roubado de ninguém.
Para apaziguar e aquietar a saudade
Vem a noite, e acalma os sábios;
A multidão de filhos do Céu nos envolve
Zela por nós e guarda nosso coração.
Coragem! pois esta vida ruma
Para uma vida sem fim adiante;
O sentido, amoroso, aguardando,
Torna-se claro e forte.
Um dia as estrelas, caindo,
Devem fluir como vinho dourado:
E nós, sorvendo tal néctar,
Brilharemos como estrelas vivas!
Livre, o amor emerge da tumba,
Para não morrer nunca mais;
Em plenitude, a vida eleva-se e ondeia
Qual mar sem limites!
Toda noite há uma deliciosa tarefa!
Uma ode de júbilo!
E o sol de todos nossos prazeres
É a face de Deus!

VI.
DESEJANDO A MORTE

No seio da terra!
Fora dos domínios da Luz!
As dores da Morte nada mais são
Que a partida, romper-se de grilhões!
Rapidamente, num barco esguio,
Rapidamente navegamos para a costa do Céu!
Bendita seja a Noite eterna,
E bendito o Sono sem fim!
Somos abrasados pelo dia luminoso,
E ressecados pelo tédio!
Estamos cansados da vida que dura:
Venha, agora iremos para casa, para Deus!
Para que permanecer neste mundo sublunar?
Para que nutrir o amor e a verdade aqui?
Se o que é antigo está muito além -
Para nós o novo deve perecer!
Aquele que ama o passado com piedade ardente
Está sozinho, amargurado, em exílio.
Porém, como o espírito humano, o passado
Elevou-se em chamas sublimes;
Onde os homens herdaram do Pai,
O dom de reconhecer sua face;
E, em simplicidade perfeita
Muitos tornaram-se seu arquétipo.
O Passado em rica florescência, no qual
Antigos troncos geraram o fruto glorioso;
E as crianças em busca do mundo futuro,
Buscaram a vitória sobre a dor e a morte;
E, apesar da vida e do prazer fenecerem,
Muitos corações partiram-se de amor.
O Passado no qual o próprio Deus possuiu
O vigor da juventude;
E enfrentou a morte prematura, por amor à verdade
Que os jovens contemplaram, e ousaram -
Enfrentar com paciência a angústia e a tortura
Para provar que o amavam.
Agora vemos com inquietação ansiosa
Aquele passado envolto em trevas;
Com a água deste mundo
Nunca poderemos matar nossa sede:
Precisamos retornar à nossa antiga morada
E conhecer aquele tempo abençoado de novo.
E o que impediria nosso retorno?
Já que repousam aqueles que amamos!
Sua sepultura é o limite de nossas vidas;
Nós recusamos com repugnância esta época odiosa!
Não somos enganados por nenhuma esperança:
O coração está pleno; o mundo vácuo!
Infinito e misterioso,
Vibra em mim um doce tremor,
Como se na distância ecoasse
Um sinal, semelhante ao nosso lamento:
Os amados esperam, assim como eu,
Enviam seu suspiro de saudade.
Abaixo, para a noite amorosa, e mais além
Para o amado Jesus!
Coragem! as sombras do entardecer tornam-se em cinzas,
Assim como nossos planos, e nos acalmam!
Um sonho romperá nossos grilhões,
E nos abrigará no coração do Pai.

(tradução de Orlando Ferreira)

Fontes:
http://canaldepoesia.blogspot.com/
http://www.redutoliterario.hpg.ig.com.br/
Capa do Livro -
http://www.assirio.com

Vera Lins (Novalis, Negatividade e Utopia)

Leanne Greb (O Eu Fragmentado)
Poetar é gerar

OS FRAGMENTOS DE NOVALIS, reunidos em Pólen, podem ser considerados o manifesto do primeiro romantismo alemão. Publicados pela primeira vez, em 1798, na revista Athenaeum, neles se condensam as propostas do grupo de Iena de revolução pela poesia, i.e, transformação do mundo pela imaginação produtora: “Estamos numa missão. Para a formação da Terra fomos chamados”, diz Novalis.

A Revolução Francesa inflamava esses românticos, críticos da Aufklärung, que, no entanto, viviam sob o estado prussiano. Mas sua revolução se baseava numa mudança epistemológica. Para Schlegel “A Revolução francesa, a filosofia de Fichte, e o Meister de Goethe são as grandes tendências da época [...]”.

Insatisfeitos com os novos tempos eram críticos do projeto moderno: “Outrora era tudo aparição de espíritos. Agora não vemos nada, senão morta repetição, que não entendemos. A significação do hieróglifo falta. Vivemos ainda do fruto de tempos melhores.” Convencidos do progresso humano como seus predecessores iluministas, acreditavam que o modo de pensar transcendental ou romântico, tornado possível por Fichte e Kant, era central, historicamente, como a revolução mesma. Novalis diz em Pólen:

O mundo precisa ser romantizado. Assim reencontra-se o sentido originário. Romantizar nada é senão uma pontenciação qualitativa. O si mesmo inferior é identificado com um si mesmo melhor nessa operação. Assim como nós mesmos somos uma tal série potencial qualitativa. Essa operação é ainda totalmente desconhecida, na medida em que dou ao comum um sentido elevado, ao costumeiro um aspecto misterioso, ao conhecido a dignidade do desconhecido, ao finito um brilho infinito, eu o romantizo.

Romantizar seria uma outra forma de pensar, com a razão auto-reflexiva que inclui a imaginação, e assim se emancipa da argumentação lógica, própria da razão instrumental capitalista. Romantizar é pensar poeticamente, e os fragmentos são experiências de pensamento.

Os primeiros românticos viam a subjetividade, condição para uma razão auto-reflexiva, problemática, no processo social de modernização através da dominação da sociedade pelo valor de troca. Não consideravam mais legítima a relação sujeito contraposto ao objeto como no modelo da epistemologia positivista. Do entendimento do outro faz parte o auto-entendimento. Em Pólen: “Como pode um ser humano ter sentido para algo, se não tem o germe dele dentro de si. O que devo entender tem de desenvolver- se em mim organicamente – e aquilo que pareço aprender é apenas alimento do organismo”.

Perguntavam pela liberdade de constituição da subjetividade. A vida está para ser criada assim como o sujeito, que vai ser para eles pura atividade da imaginação. O eu é tanto atividade como produto dessa atividade: “Eu é escolha e realização da esfera de liberdade individual, ou auto-atividade. Fichte se pôs em obra, como Brown – só que ainda mais universal e absolutamente.” Mas a auto-representação do eu, embora imperativa, é impossível, o que leva o eu à atividade constante. Novalis nos define como projeto: “Para o mundo procuramos o projeto – esse projeto somos nós mesmos. O que somos? Pontos onipotentes personificados. A execução, enquanto imagem do projeto, tem, porém de lhe ser igual na livre-atividade e auto-referência – e inversamente.

Apenas o eu prático pode ser apreendido: “A compreender-nos totalmente, nós não chegaremos nunca, mas podemo-nos, e iremos, muito mais que compreender”. Na verdade, o termo imaginação é um outro nome para o eu que é pura atividade, produtividade: “Tornar-se humano é uma arte.” E ainda: “cada ser humano é uma pequena sociedade.”

Para Seyhan, Novalis não vê a identidade como um princípio primordial que engendra uma divisão sujeito-objeto:

Ela é agora a atividade conjunta de companheiros num empreendimento comunicativo. Ainda mais, nos escritos de Novalis o eu fichteano é transformado num corpo social. Os espaços entre o sujeito e o mundo, eu e tu e objetos e representações passam do domínio teórico ao prático, informado por uma realidade textual e dialógica. Não há mais como escapar da linguagem; estamos dentro de uma teia de palavras que definem nosso ser.

O objetivo do projeto romântico era destruir o poder de uma razão “petrificadora e petrificada” – de forma que uma subjetividade livre pudessse se constituir. Aqui entra a imaginação, para Kant, faculdade produtiva de cognição.

Com ela, libertavam-se da lógica. Para os românticos, atos desconstrutivos e anárquicos da imaginação na relação do poeta com a linguagem eram a condição básica para a recuperação da subjetividade, levavam a uma emancipação fundamental da instrumentalidade: “O poeta conclui assim que começa o traço. Se o filósofo apenas ordena tudo, coloca tudo, o poeta dissolveria todos os elos. Suas palavras não são signos universais – são sons – palavras mágicas que movem belos grupos em torno de si.” A imaginação tem papel central no pensamento de Novalis, para quem a razão prática é pura imaginação.

Afirmavam liberdade quanto à representação, através da consciência de que é impossível representar o absoluto. Seu conceito de representação aponta para a ausência do que é representado, e a palavra Darstellung se distingue como apresentação. A poesia manifesta no mundo sensível o que está fora dele, a flor ausente de todos os buquês de Mallarmé. Essa apresentação é uma livre atividade criadora, que não se situa nem no sujeito nem no objeto. Acontece na linguagem:
Mas, e se eu fosse obrigado a falar? E esse impulso a falar fosse o sinal da instigação da linguagem, da eficácia da linguagem em mim? E minha vontade só quisesse também tudo a que eu fosse obrigado, então isto, no fim, sem meu querer e crer, poderia sim ser poesia e tornar inteligível um mistério da linguagem? E então seria eu um escritor por vocação, pois um escritor é bem, somente, um arrebatado da linguagem?

Liberdade e infinito são conceitos necessários para o jogo livre da apresentação pela imaginação produtora. O fragmento nega o postulado de uma representação contínua e introduz quebras no fundamento da idéia. Na poesia o resultado do livre jogo da imaginação é o arabesco, o verso que Hugo Friedrich encontra em Baudelaire, Rimbaud e Mallarmé. A crítica é um diálogo com o original, poesia e crítica têm que partilhar a mesma linguagem. Com isso rompem barreiras entre diferentes formas de conhecimento, filosofia, crítica, ciência e religião: “O melhor nas ciências é seu ingrediente filosófico – como a vida no corpo orgânico. Desfilosofem-se as ciências – o que resta – terra, ar e água.” Transformam o mundo num livro a ser decifrado, lido e escrito.

Novalis tinha o projeto de uma enciclopédia, cujo rascunho foi seu Das allgemeine Brouillon. Uma enciclopédia é um livro infinito. Há um livro de Werner Vortriede que mostra a relação dos simbolistas franceses com Novalis e o primeiro romantismo alemão. No Brasil, o crítico simbolista Nestor Vítor escreve sobre Os discípulos de Saïs e os Fragmentos, em 1889, e descobre no poeta alemão a genealogia de Mallarmé. Mas se o perigo da estetização ronda alguns simbolistas, nos primeiros românticos dominaria a criticidade de sua produção.

Poesia vai ser para eles reconhecer um objeto como referente não somente a si mesmo, mas ao solo de referência do eu, reconhecendo-o não somente como objeto mas como um objeto para a consciência. A realidade do mundo como se apresenta a nós é assim uma realidade significativa. O mundo é real, mas sua realidade fala a linguagem prescrita pela consciência. Por isso falam de uma poetização da natureza. Tudo está a ser produzido: “A vida não é um romance dado a nós, mas um romance feito por nós.”

Para Novalis, o momento objetivo da consciência não acontece sem um momento subjetivo. No fragmento 26 de Pólen, afirma:

[...]O primeiro passo vem a ser olhar para dentro – contemplação isolante de nosso eu – Quem se detém aqui só logra metade. O segundo passo tem de ser eficaz olhar para fora – observação auto-ativa, contida, do mundo exterior.

Para Molnár, cujo livro sobre Novalis ajuda a compreender a singularidade de seu pensamento, essa primazia da autoconsciência não implica que tudo foi levado para o interior do indivíduo e houve uma retirada para o solipsismo. A filosofia transcendental permite uma perspectiva que dá conta do que é conscientemente real e da realidade referida. O eu está continuamente afetado pela experiência, assim em constante mudança – aquilo a que a afetação é atribuída constitui o mundo em que se vive –, o mundo é o que afeta o sujeito, assim consciência do mundo é consciência do eu, que, por sua vez, é produtividade, um centro produtivo, atividade. Tudo é essencialmente um produto da atividade do eu.

Apenas o pré-requisito de se dirigir para dentro tem sido geralmente reconhecido como a direção típica do idealismo alemão. No entanto o oposto é o verdadeiro. O indivíduo precisa olhar para fora e ter experiências no mundo para realizar o potencial inato do eu em toda a sua extensão. Esse processo pode ser visto como uma viagem, de um começo indefinido a um objetivo também indefinido e esse é o desenvolvimento e a formação dos quais o Wilhelm Meister de Goethe é o paradigma. O caminho místico na direção de uma reunião com a realidade se transforma num processo de auto-realização em que ser humano significa ser um indivíduo com a obriga ção de transformar a existência casual em uma vida por escolha e desígnio. Diz o fragmento de Pólen:

Todos os acasos de nossa vida são materiais, a partir dos quais podemos fazer o que quisermos. Quem tem muito espírito faz muito de sua vida – todo encontro, toda ocorrência seria, para quem é inteiramente espiritual – primeiro termo de uma série infinita – começo de um romance infinito.

Espírito para os primeiros românticos significa imaginação. E liberdade significa determinar sua esfera própria, sair de si. No estado não-livre a esfera objetiva é experimentada como determinando o eu, que funciona apenas como um ponto de impacto para uma sucessão de eventos incompreensíveis. Para ser livre o eu precisa ser ativo e quando se age moralmente, se age livremente. E o caminho moral é uma via negativa, como o caminho místico, pois nega tudo o que possa exercer poder sobre o eu. Mas, ao contrário do místico, essa negação não é conseguida por meio de uma retirada ascética, mas através de um contínuo engajamento ativo no mundo. No entanto, a ação moral consiste em um duplo movimento: por um lado é um desengajamento do mundo até que o eu esteja sozinho, livre para decidir, e, por outro lado, um reengajamento, no qual o mundo não pode servir como fim, mas apenas como meio que leva da pura subjetividade de um agente livre para a sua validade geral. No modelo de Novalis, a ética é complementada por amor e atividade. Desse movimento fala o fragmento 51 de Pólen:

O interessante é aquilo que me põe em movimento, não em vista de Mim Mesmo, mas apenas como meio, como membro. O clássico não me perturba – afeta-me apenas indiretamente, através de mim mesmo – Não está aí para mim como clássico, se eu não o ponho como um tal, que não me afetaria se eu não me determinasse – me tocasse – eu mesmo à produção dele para mim, se eu não destacasse um pedaço de mim mesmo e deixasse desenvolver- se esse germe de um modo peculiar perante meus olhos – um desenvolvimento que freqüentemente só precisa de um momento – e coincide com a percepção sensorial do objeto – de modo que vejo perante a mim um objeto, no qual o objeto comum e o ideal, mutuamente interpenetrados, formam um único prodigioso indivíduo.

Molnár vê Novalis expandindo a visão de Fichte, avançando além da doutrina da ciência, ao armar um “esquema básico” em que o eu é igual ao mundo e o mundo, igual ao eu. Esse esquema sustenta seus trabalhos poéticos.

Além da filosofia de Fichte, com que trabalha nos Fichte-Studien, Platão e Hemsterhuis são suas referências filosóficas. A relação com Sofia, a mulher amada, enquanto viva e depois de sua perda, é um processo formativo que muda a relação de Novalis com o mundo e permite uma visão poética, uma visão em que objetos e acontecimentos atingem um sentido que não pode ser reduzido a preocupações pragmáticas.

Para Novalis, o poeta tem que passar por um processo formativo, através do qual atinge um nível de humanidade superior, em que encontra a visão poética – uma autoformação do eu. O artista é transcendental no sentido do que diz o fragmento:

A suprema tarefa da formação é – apoderar-se de seu si-mesmo transcendental – ser ao mesmo tempo o eu de seu eu. Tanto menos estranhável é a falta de sentido e entendimento completos para outros. Sem auto entendimento perfeito e acabado nunca se aprenderá a entender verdadeiramente a outros.

É esse processo formativo o que acontece em Heinrich von Ofterdingen, um romance sobre a poesia, que conta a formação de um poeta. Como diz Novalis num outro fragmento:

Anos de aprendizado são para o novato poético – anos acadêmicos para o filosófico. [...] Anos de aprendizado no sentido eminente são os anos de aprendizado de viver. Através de ensaios planejadamente ordenados aprende-se a conhecer os princípios dessa arte e adquire-se a destreza de proceder segundo esses princípios ao bel-prazer.

A poesia é tanto uma questão de linguagem quanto de autonomia moral do poeta. Compreender isso, segundo Molnár, pode impedir que a leitura contemporânea de Novalis caia no que chama de “a prisão da linguagem”. O trabalho poético é o caminho de um desenvolvimento pelo qual o eu ganha consciência de uma liberdade inerente. Quando essa consciência cresce, os antagonismos entre eu e mundo, e entre espírito e natureza, diminuem, e sua identidade fundamental começa a se tornar aparente, o que constitui a visão poética. A poesia de Novalis é caracterizada por essas visões de identidade eu/mundo: em Os Discípulos de Saís, a natureza deixa cair o véu frente aos que seguem o verdadeiro caminho, nos Hinos à noite, o não do mundo, i.e., a certeza da morte, perde seu poder sobre os que são guiados pelo amor e em Ofterdingen a progressão ao encontro do mundo é também progressão ao encontro de si mesmo.

Molnár vai ver isto se dando no romance inacabado, escrito por Novalis aos 27 anos, dois anos antes de morrer em 1801, e cujo tema é a transformação interna pela qual o indivíduo precisa passar para pôr o mundo e o eu numa relação que não é congelada num estado de oposição permanente. Pode-se compará-lo ao Meister de Goethe, o Bildungsroman, que os primeiro românticos consideravam fundamental, mas também criticado por Novalis.

Novalis trabalha numa via negativa, próxima de uma teologia negativa vinda dos místicos alemães como Eckart e Böehme, que marcaram o idealismo alemão. Negação significa usar o que já se sabe para formular uma questão, o que é equivalente a nos fazer receptivos para uma eventual resposta. Sem essa atitude questionadora, essa prontidão para receber, poderíamos ser expostos a todos os tipos de experiência, mas seríamos incapazes de absorvê-las.

Como a trama do romance é a do desenvolvimento interno, ele não descreve os ambientes com detalhes realistas e seus personagens são descarnados, embora Ofterdingen e Klingsohr tenham existido como trovadores medievais. Novalis queria expor suas idéias, com isso o romance é uma interpolação de narrativa, “contos simbólicos”, diálogos e poemas, atualizando o que Klingsohr afirma da poesia, “em toda poesia é preciso que o caos transpareça sob o véu regular da ordem”. O romance contém sua própria teoria.

O percurso de Heinrich vai mostrar uma mudança de perspectiva: um mundo transformado a partir de uma relação transformada com ele. No início, vive com os pais e o mundo pragmático não lhe é suficiente. O pai diz que sonho é mentira e em vez de se tornar um artista como prometia na juventude (ele também sonhara com a flor azul), torna-se um artesão. No final da narrativa, Heinrich encontra o médico Silvestre, que tinha aparecido como mineiro e este lhe conta sobre seu pai:

Eu discernia nele os signos anunciadores do grande artista plástico. Seu olho estava todo animado do desejo de se tornar um olho verdadeiro, um instrumento de criação. Seu rosto exprimia a firmeza interior e a aplicação. Mas o mundo presente tinha já criado raízes profundas demais em sua alma. Ele não queria escutar o chamado de sua natureza mais íntima [...]. Ele se tornou um artesão hábil e o entusiasmo não era mais do que loucura a seus olhos.

Tudo começa para Heinrich com o sonho em que vê a flor azul. A partir dele e do encontro com comerciantes narradores decide partir de sua cidade. Assim, com a conscientização do desejo pela flor, muda sua relação com o mundo. Quando alcança o máximo de consciência, apenas vai ser possível comunicar sua situação singular tornando-se poeta. E a chegada a Augsburg vai ser decisiva nessa descoberta da poesia. Encontra Matilde, a filha do poeta Klingsohr, que vai amar e depois perder. Quando mais tarde, melancólico, abandonado e infeliz, tem uma visão em que ela lhe fala, então toma a lira e compõe.

O sonho tem um papel preponderante na história, no sentido de revelação de uma realidade mais verdadeira. Nele, as imagens, fruto de uma imagi nação livre, podem revelar o eu, sua natureza verdadeira, atualizando a revolução copernicana de Kant. Segundo Molnár:

O sonhador executa de novo a revolução copernicana de Kant, mostrando que não há objetos como coisas em si, às quais a realidade experimental se refere. Coisas não são em si, mas fenômenos, o que significa que a imediaticidade das imagens do sonho se referem à criatividade do eu em formá-las e não a uma imagem externa do dado; expressam a ação livre do eu dando forma ao mundo.

No final o sonhador se vê como uma força ativa, construindo o mundo, dentro do qual esse eu objetificado toma seu lugar como um objeto entre outros.

Enquanto o eu procura a realização da lei moral, o mundo pode manifestar a mesma lei, lhe apresentando uma face humana. Quando Heinrich encontra a flor azul, suas pétalas se mudam numa face que ele mais tarde vai reconhecer como a de sua amada. Eros forja o laço que une o eu ao mundo e o mundo ao eu. A lenda que conta o personagem Klingsohr, o mestre, é um comentário do poder liberador do espírito da poesia. Eros, ajudado por Fábula, o espírito da poesia, tem a tarefa de dispersar o gelo sobre o mundo estranho e revelar a identidade escondida do eu com o mundo. Quando Heinrich encontra Silvestre, no final, diz algo que lembra a declaração do poeta Paul Celan, na Carta a Hans Bender , de que poesia pode ser um aperto de mão, ligando assim poesia à experiência e ao gesto moralmente livre:

Pois o verdadeiro espírito da fábula é um amável disfarce do espírito da virtude, e o objeto verdadeiro da poesia que lhe é subordinado, é a atividade de nosso eu a mais alta e mais pessoal! Há uma espantosa identidade entre um canto sincero e uma nobre ação.

Heinrich segue um caminho exterior que tem sua contrapartida interior e cada avanço numa direção registra um progresso na outra. São vários encontros: com alguns comerciantes, com um eremita, com um mineiro, com uma mulher oriental, todos simbólicos de atitudes no mundo. E todos são narradores, contam histórias reveladoras para Heinrich. Assim, uma vez que o eu se conhece de um modo não baseado na oposição ao mundo, o mundo cessa de se opor a ele. A dicotomia entre eu e mundo entra em colapso quando o eu assume a perspectiva da liberdade que ocupa em todos os processos de conscientização. O mundo não é mais um fator de oposição, mas “o mundo se torna sonho e o sonho se torna mundo”. O mundo sensível é uma ilusão, o mundo real, uma feérie do espírito. Nesse sentido pode-se entender o fragmento de Pólen que diz depender de nossos órgãos não vermos o mundo feérico. Em cada ato moralmente livre, o princípio de oposição eu/mundo é suspenso. O poeta dá sentido ao mundo, ou descobre seu sentido. Na lenda que Klingsohr conta, a Atlântida permanece escondida sob a superfície do mundo, o véu do estranhamento nos impede de reconhecê-la no outro e no texto da natureza. A utopia de uma revolução por um novo modo de pensar aparece, sempre em diálogo, também nas palavras do personagem Silvestre:

– Quando, diz Heinrich, não haverá mais necessidade de terror, de sofrimentos, de angústia e de mal no universo?
– Quando não houver mais que uma só força, a força da consciência; quando a natureza for disciplinada e moralizada. Há apenas uma única causa do mal: a mediocridade universal e esta fraqueza não é outra coisa senão uma insuficiência de sensibilidade moral e a ausência do poder estimulante da liberdade.

Contra o perigo do esteticismo e de atribuição de valor aos objetos, ao desejo e ao orgulho, o desapego do eu torna possível uma relação poética com o mundo, i.e, uma relação produtora. O poeta fala a linguagem que ouve, a língua original da humanidade. O que lembra Vico. Essa consciência da língua original faz o poeta. O poeta não fala o mundo, mas ouve o mundo falar, fala a linguagem que ouve, essa língua original, uma dimensão não dita que está em toda linguagem. Molnár diz que o uso poético da linguagem para Novalis abre uma nova dimensão que supera a realidade da existência humana, mas é inclusiva dessa realidade. Aqui está a crítica ao esteticismo. No romance o personagem de uma das histórias contadas, o rei tende a ver a dimensão poética como uma dimensão exclusiva. No entanto

A linguagem poética faz o familiar parecer estranho para tornar o estranho familiar, não para absolutizar o momento esotérico e constituir uma esfera autônoma na qual a arte substitui o mundo, mas para revelar o fundamento comum de nossa identidade como seres humanos com referência ao qual o mundo assume realidade para nós e nós assumimos realidade nele.

Conhecimento, arte e princípio de valor moral se inter-relacionam. O cientista não é um cientista a não ser que também aprecie as artes poéticas e o amante da poesia ama apenas a si próprio no objeto de arte se não for capaz de identificar seu ser com todos os seres humanos. Em um momento Klingsohr, já na chegada a Augsburg, parte decisiva na descoberta da poesia, diz, identificando poesia a ficção, no sentido que Rancière a vê, como procedimento próprio do espírito humano:

É uma pena que a poesia tenha um nome particular e que os poetas formem uma corporação à parte. A poesia não é coisa à parte. Ela é o modo de atividade próprio ao espírito humano. Todo homem não está a cada minuto de sua vida a fabular e a inventar?

O personagem do mineiro, trazendo o ouro que está escondido no uso prosaico da linguagem, dá uma demonstração de como qualquer ofício deve ser conduzido. Todo empreendimento pragmático é prosaico, mas tem dimensões sociais comunitárias, que equivalem à liberdade moral e sua manifestação comunitária é poesia. Não só o verdadeiro cientista se torna poeta, mas o verdadeiro historiador também, ao ler e falar a linguagem original. A história pressupõe um contexto humano de interpretação. O historiador tem que ter o sentido poético da adivinhação. Diz o eremita:

Quando examino tudo isso atentamente me parece necessário que um historiador seja também poeta, pois só os poetas se entendem nessa arte de encadear os acontecimentos de modo satisfatório. Nas suas narrativas e fábulas observei com um prazer secreto o sentimento delicado que têm do misterioso princípio da vida. Há mais verdade nos seus contos do que nas crônicas eruditas.

Na caverna do eremita, Heinrich encontra o livro de sua vida escrito em provençal, a linguagem dos trovadores. Quando aprender a linguagem dos poetas, Heinrich vai ser capaz de ler o texto e se descobrir como seu autor.

O movimento que tentamos mostrar em Novalis de uma revolução no pensamento, é mostrado num ensaio de Karl Heinz Bohrer “Metáfora e heresia, a desfiguração romântica do espírito”, que discute o poema de Novalis, Os hinos à noite e a relação entre religião e estética, mostrando como os primeiros românticos estranham, desfiguram o mito cristão e o transformam. O poema enfatiza o não-profano, mas estranhando as categorias teológicas centrais. Novalis seria herético enquanto a heresia é irmã da imaginação. Bohrer procura entender o que diz Schlegel quando fala de criar uma nova mitologia, em Conversa sobre a poesia, como uma desestabilização heréticosubversiva da tradição.

Os Hinos à noite são – diferentemente dos Night thoughts de Edward Young (1742/ 43), como um todo, uma homenagem ao lado noturno e inconsciente dos homens e seus meios: erotismo, sono e morte. Essa homenagem vale como uma noite, que no modo do sono é caracterizada como “mensagem silente de segredos infinitos”.

Bohrer mostra como uma semântica subjetiva da imaginação dissolve os dados objetivos de um discurso teológico histórico-filosófico previamente dado na sua temática: a tentativa de ler os Hinos à noite como uma mística autobiográfica, inspirada pela morte de Sofia e seguidora da mística de Boehme, ou seja, como uma religião privada conduzida de forma pietista, oculta o que aqui acontece em cadeias de imagens metafóricas. Também o texto de Novalis está marcado pela filosofia, especialmente pela discussão concentrada sobre a doutrina da ciência de Fichte. A proeminência do ato transcendental, como o caracterizam os aforismos teórico-especulativos de Novalis, atravessa os Hinos à noite: com isso evita-se que surja um mito no sentido tradicional, o que seria possível por meio da idéia básica da dicotomia entre noite e dia, num sentido quase arcaico.
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*VERA LINS, Doutora em Letras pela UFRJ em 1995, é Professora de Teoria Literária e Literatura Comparada do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Faculdade de Letras da UFRJ. É autora de Gonzaga Duque, a estratégia do franco-atirador (Tempo Brasileiro, 1991) e Novos Pierrôs, velhos saltimbancos (Secretaria de Cultura do Paraná, 1998).

Fontes:
http://www.ciencialit.letras.ufrj.br/
Pintura = http://www.portais.org

Dicionário de Folclore (Letra G)



GAGAU. Nome dado a um antigo jogo de dados no qual o dois e o ás eram os pontos maiores. Tomar gagau era como se dizia quando um rapaz ou uma moça estavam perdidamente apaixonados. Gagau também é o mingau das crianças.
GAGUEIRA. É a maneira sincopada de falar, própria de pessoas que têm essa deficiência, isto é, que são gagas. Para a pessoa ficar curada da gagueira, nada como se bater três vezes, na cabeça do gago, com uma colher de pau.
GAITA. 1. Sanfona, gaita-de-fole, realejo, fole, acordeon; 2. Gaita também é dinheiro, porque quem tem dinheiro anda sempre alegre, bem humorado, como quem toca gaita.
GALINHA. 1. É a fêmea do galo; 2. Mulher muito volúvel que se entrega aos homens com facilidade; 3. Pessoa covarde, medrosa; 4. Na linguagem popular a galinha também se faz presente: 1. Dormir-com-as-galinhas é dormir cedo, como as galinhas; 2. Quando-as-galinhas-criarem-dentes, nunca, jamais, porque as galinhas nunca criarão dentes; 3. Galinha-choca é a pessoa irrequieta, que não pára um instante; 4. Galinha-d'água é o descendente de holandês com brasileiro, aloirado, de olhos azuis.
GALINHA-GORDA. É uma brincadeira de meninos durante o banho de mar, de açude, de rio. Um dos meninos pega uma pedra, diz: "Galinha gorda! Gorda é ela! Vamos comê-la? Vamos a ela!" Em seguida atira a pedra dentro d'água e todos vão procurá-la.
GALINHA-MORTA. 1. Diz-se quando uma mercadoria é barata, é uma pechincha; 2. Coisa fácil de aprender, de ser feita; 3. Certa cantiga executada à viola ou ao violão (RS), e a dança que acompanha essa cantiga.
GALINHEIRO. 1. É o lugar onde dormem as galinhas; 2. É também, nos teatros, o poleiro, as torrinhas, onde a pessoa paga ingresso mais barato.
GALO-DA-MADRUGADA. O bloco carnavalesco Galo-da-Madrugada foi fundado por foliões residentes no bairro de São José, da cidade do Recife, em 1978. Todos os anos, acompanhado por uma multidão de milhares de pessoas, o bloco desfila no centro da cidade pela manhã do Sábado Gordo. Este bloco entrou para o livro dos recordes mundiais.
GANZÁ. O ganzá, ou canzá, caracaxá, é um cilindro feito de flandres, fechado, com um cabo. No seu interior são colocados grãos ou pequenos seixos que soam quando o ganzá é agitado, sacudido, movimentado.
GARAPA. 1. É o nome que se dá às diversas bebidas servidas geladas, feitas com água, açúcar e o suco de frutas geralmente como o tamarindo, o limão (limonada), o caju (cajuada); 2. No Sertão, garapa é o caldo de cana tirado das moendas; 3. Garapa é tudo que é fácil de ser adquirido, coisa de pouca importância. Também é uma coisa boa, supimpa; 4. É, também, água misturada com açúcar, que se dá para beber quando uma pessoa está nervosa ou quando leva um susto.
GATO. O gato, o bichano, é o animal doméstico encontrado em quase todas as casas, usado para pegar ratos e baratas. Sobre o gato existem muitas crendices e curiosidades: 1. Gato-preto: para algumas pessoas o gato preto dá sorte e para outras traz infelicidade; 2. Quem pisa no rabo de um gato não casa no ano, só nos anos seguintes; 3. Dizem que o gato não gosta de seus donos e sim da casa onde ele vive. Assim, quando uma pessoa muda de residência, deve levar o gato dentro de um saco e passar azeite no focinho dele para que ele perca o faro e não volte à antiga casa; 4. O melhor couro para se fazer uma tamborim é o couro do gato, segundo os entendidos no assunto; 5. Dizem que o gato é o animal mais difícil de morrer, porque tem sete fôlegos; 6. Quem mata um gato tem sete anos de azar. Os gatos estão nas estórias de Trancoso, como no Gato de botas, e no desenho animado, como no Gato Félix. Os homens aprenderam com os gatos a fazer fossas, vendo-os cavar um pequeno buraco, para fazerem cocô e cobri-lo com terra.
GEMADA. A gemada é uma bebida feita com gema de ovo, açúcar e leite quente, tudo misturado e bem batido, muito boa como fortificante capaz de restaurar as forças perdidas. Algumas pessoas costumam substituir o leite por conhaque ou vinho do Porto.
GÊMEOS. Para que a mulher não tenha filho gêmeos deve evitar comer frutas gêmeas. As crianças gêmeas são dotadas de qualidades singulares e tudo o que fazem têm mais poder, mais valor, até mesmo quando rezam. No Brasil, o gêmeo que atirar farinha para o ar em dia de nevoeiro acabará com a neblina. Dizem que menino gêmeo nunca morre afogado, nem se perde nos caminhos desconhecidos. Na Igreja Católica vamos encontrar alguns santos gêmeos: São Cosme e Damião, São Crispim e São Crispiniano, São Gervásio e São Protásio. O povo diz que quando um dos gêmeos sente uma dor, o outro também sente; quando um adoece, o outro fica triste, quase doente. Os gêmeos são sempre muito unidos.
GILBERTO FREYRE nasceu no dia 15 de março de 1900, na cidade do Recife, PE. Seus estudos iniciais foram feitos com professores particulares, entre os quais o inglês Mr. William, a francesa Madame Meunier, seu próprio pai, que lhe ensinou latim e português, e Telles Júnior que foi seu professor de desenho. Fez o curso secundário no Colégio Americano Gilreath, do Recife, seguindo para os Estados Unidos, onde se bacharelou em Ciências Políticas e Sociais pela Universidade de Baylor, fazendo, em seguida, o mestrado e doutorado de Ciências Políticas, Jurídicas e Sociais na Universidade de Colúmbia onde teve como mestres o antropólogo Franz Boas, o sociólogo Giddings, o economista Selingman, o jurista John Bassett Moore e outros. Em sua tese universitária - Social life in Brasil in the middle of the nineteenth century – publicada em inglês, sustenta que a situação do escravo no Brasil patriarcal fora superior à do operário europeu no começo do século XIX. Teve os graus de Bacharel, Mestre, Doutor em Letras, Doutor e Professor. No governo de Estácio Coimbra, Gilberto Freyre foi Chefe de Gabinete, merecendo daquele Chefe de Estado, extraordinária confiança. Foi fundador da cadeira de Sociologia Educacional na antiga Escola Normal de Pernambuco, inaugurando, pioneiramente, com a colaboração de suas alunas, não só no Brasil como na América Latina, trabalhos de campo cujos resultados de sentido social foram aproveitados pelo então Prefeito do Recife, criando playgrounds com o propósito de afastar as crianças dos perigos da rua. Em 1933 publicou Casa-Grande & Senzala, obra básica da história social brasileira, para, em seguida, publicar Sobrados e Mucambos (1936), Nordeste (1937), Açúcar (1939), Aventura e Rotina (1953), Assombrações do Recife Velho (1955), Sociologia da Medicina (1967) e dezenas de outros trabalhos que honram a cultura brasileira. Preso, por seu profundo amor, ao Recife, daqui nunca se ausentou, a não ser temporariamente, a ponto de recusar ministérios, cátedras em Universidades brasileiras, americanas e européias. Foi uma lei de sua autoria, quando deputado federal – eleito pelos estudantes pernambucanos - que criou o Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, hoje Fundação Joaquim Nabuco, nunca deixando de presidir seu Conselho Diretor. Gilberto Freyre colaborou em revistas especializadas em jornais nacionais e internacionais, participou, como membro efetivo, do Conselho Estadual e do Conselho Federal de Cultura. Faleceu, no dia 18 de julho de 1987, na cidade do Recife, PE.
GIRASSOL. O girassol é uma flor de bom tamanho, de cor amarela, que acompanha sempre a direção do sol, razão pela qual tem este nome. Serve para a alimentação dos pássaros e seu óleo está sendo usado na culinária brasileira.
GOGÓ-DE-SOLA. Trata-se de um pequeno animal que vive no Acre e que tem o pescoço da cor de ferrugem. Apesar de seu pequeno tamanho, é muito agressivo.
GONÇALVES FERNANDES nasceu em 1909,na cidade do Recife, PE. Diplomado em Medicina (1937) pela Universidade de Pernambuco, sempre foi conhecido como psiquiatra, antropólogo e folclorista especializado na faixa das superstições e da religiosidade popular. Foi professor da Faculdade de Ciências Médicas do Recife, da Faculdade de Direito do Recife e da Universidade do Brasil. Dedicado ao estudo e à pesquisa dos problemas humanos e sociais, encarados, de modo particular em seus aspectos religiosos e psiquiátricos sob critério e métodos da Antropologia e Folclore, fez vários cursos de especialização antropológica, neuropsiquiátrica e sociológica, estagiando, também, nos principais centros culturais da Bélgica, Holanda, Suíça, Itália, França, Portugal, Espanha e Argentina, especialmente convidado, pronunciando conferências sobre assuntos de interesse luso-brasileiro em diversos institutos científicos. Esteve no exercício de diversos cargos ligados à Medicina, de modo especial à Psiquiatria, à Psicanálise e à Antropologia Cultural. Assumiu, durante algum tempo, a direção do Departamento de Psicologia Social do então Instituto Joaquim Nabuco de Ciências Sociais, hoje Fundação Joaquim Nabuco, onde coordenou várias pesquisas. É autor de diversos livros na especialidade a que se dedicou, entre os quais Xangôs no Nordeste (1937), O folclore mágico do Nordeste (1938), As religiões no Brasil (1939), Seitas afro-brasileiras (1940) e O sincretismo religioso no Brasil (1941). Faleceu em 1986, na cidade do Recife, PE.
GONGUÊ. Também conhecido como chama, porque chama os dançarinos. O gonguê é um pequeno tambor usado no zambê, no bambelô. Seu som é surdo e seco (RN).
GOTEIRA. É o nome que os maçons dão aos que não são maçons. Na linguagem da cantoria, goteira é o cantador que não canta bem.
GRILO. Quando a pessoa está com o problema de retenção de urina, nada como tomar um chá de grilo, que é feito da seguinte maneira: pega-se um grilo e cozinha-se uma terça parte. É um remédio de efeito indiscutível. Pode-se, também, fazer o chá com 1/3 do grilo torrado na chapa do fogão.
GRITADOR. O gritador, também chamado de Zé-Capiongo, é da região do Vale do São Francisco. Tem este nome porque passa a noite gritando. Dizem que o gritador é alma de um vaqueiro que, desrespeitando a Sexta-Feira da Paixão, saiu para trabalhar e ninguém mais deu notícia dele. Ele grita tanto de noite como até mesmo durante o dia. Na Sexta-Feira da Paixão ouve-se até o barulho dos cascos de seu cavalo.
GRUDE. 1. É uma cola feita com goma e água; 2. É um bolo feito com goma ou massa de mandioca, embrulhado em folha de bananeira e, depois, assado, muito conhecido no Nordeste. Diz-se dos namorados que ficam agarrados o tempo todo, como um grude. Grude também é a sujeira dos que não tomam banho.
GUAIAMUM. É um caranguejo terrestre, de cor azulada, também conhecido por outros nomes: guaiamu, goiamum, fumbaba, gaiamum. O guaiamum vive em buracos nos mangues, e deixa sua casa no tempo de trovoada. Quando o povo quer pegar guaiamum fora do tempo de trovoada, aproxima uma lata qualquer da boca do buraco e bate nela com uma pedrinha. O guaiamum pensa que é trovoada e sai da sua toca. Na medicina popular, comer guaiamum é bom para quem tem coqueluche.
GUASCA ou GAÚCHO. Como é conhecida toda pessoa que nasce no Rio Grande do Sul. Gaúcho é a denominação mais conhecida.
GUDE. É um jogo infantil, com bolinhas de vidro, de massa ou com rolimãs de automóveis e que consiste em fazê-las entrar em três buracos, ganhando o jogador que acertar mais vezes. Há várias modalidades de se jogar o gude, entre as quais a barca.
GUERREIROS. Pertencendo ao ciclo do reisado, guerreiros é uma manifestação folclórica muito conhecida em Alagoas. Os guerreiros têm, como figurantes, o rei, a rainha dos guerreiros e rainha das moças, mestre e contramestre, primeiro e segundo embaixadores, o índio Peri, a lira, o general, a sereia, dois palhaços, dois Mateus, num total de 30 a 45 figurantes, incluindo as damas, os guerreiros, etc. Usando chapéus imitando catedrais, coroas, tiaras, mitras, espelhos, aljôfares, miçangas, fitas prateadas, os guerreiros têm uma coreografia (dança) pobre, animada apenas por sanfonas e pandeiros.
GURIATÃ. É uma ave da orla marítima e da zona da mata, de canto imitando outros pássaros. Também é conhecida como gurinhatã, guriatã-de-coqueiro.

Fontes:
LÓSSIO, Rúbia. Dicionário de Folclore para Estudantes. Ed. Fundação Joaquim Nabuco
Imagem = http://www.terracapixaba.com.br/

terça-feira, 24 de março de 2009

Graciliano Ramos (Auto-Retrato)

Retrato de Graciliano, por
Cândido Portinari

Nasceu em 1892, em Quebrangulo, Alagoas.
Casado duas vezes, tem sete filhos.
Altura 1,75.
Sapato n.º 41.
Colarinho n.º 39.
Prefere não andar.
Não gosta de vizinhos.
Detesta rádio, telefone e campainhas.
Tem horror às pessoas que falam alto.
Usa óculos. Meio calvo.
Não tem preferência por nenhuma comida.
Não gosta de frutas nem de doces.
Indiferente à música.
Sua leitura predileta: a Bíblia.
Escreveu "Caetés" com 34 anos de idade.
Não dá preferência a nenhum dos seus livros publicados.
Gosta de beber aguardente.
É ateu. Indiferente à Academia.
Odeia a burguesia. Adora crianças.
Romancistas brasileiros que mais lhe agradam: Manoel Antônio de Almeida, Machado de Assis, Jorge Amado, José Lins do Rego e Rachel de Queiroz.
Gosta de palavrões escritos e falados.
Deseja a morte do capitalismo.
Escreveu seus livros pela manhã.
Fuma cigarros "Selma" (três maços por dia).
É inspetor de ensino, trabalha no "Correio do Manhã".
Apesar de o acharem pessimista, discorda de tudo.
Só tem cinco ternos de roupa, estragados.
Refaz seus romances várias vezes.
Esteve preso duas vezes.
É-Ihe indiferente estar preso ou solto.
Escreve à mão.
Seus maiores amigos: Capitão Lobo, Cubano, José Lins do Rego e José Olympio.
Tem poucas dívidas.
Quando prefeito de uma cidade do interior, soltava os presos para construírem estradas.
Espera morrer com 57 anos.

Fonte:
http://www.graciliano.com.br/

Graciliano Ramos (1892 – 1953)



Graciliano Ramos nasceu no dia 27 de outubro de 1892, na cidade de Quebrangulo, sertão de Alagoas, filho primogênito dos dezesseis que teriam seus pais, Sebastião Ramos de Oliveira e Maria Amélia Ferro Ramos. Viveu sua infância nas cidades de Viçosa, Palmeira dos Índios (AL) e Buíque (PE), sob o regime das secas e das suas que lhe eram aplicadas por seu pai, o que o fez alimentar, desde cedo, a idéia de que todas as relações humanas são regidas pela violência. Em seu livro autobiográfico "Infância", assim se referia a seus pais: "Um homem sério, de testa larga (...), dentes fortes, queixo rijo, fala tremenda; uma senhora enfezada, agressiva, ranzinza (...), olhos maus que em momentos de cólera se inflamavam com um brilho de loucura".

Em 1894, a família muda-se para Buíque (PE), onde o escritor tem contacto com as primeiras letras.

Em 1904, retornam ao Estado de Alagoas, indo morara em Viçosa. Lá, Graciliano cria um jornalzinho dedicado às crianças, o "Dilúculo". Posteriormente, redige o jornal "Echo Viçosense", que tinha entre seus redatores seu mentor intelectual, Mário Venâncio.

Em 1905 vai para Maceió, onde frequenta, por pouco tempo, o Colégio Quinze de Março, dirigido pelo professor Agnelo Marques Barbosa.

Com o suicídio de Mário Venâncio, em fevereiro de 1906, o "Echo" deixa de circular. Graciliano publica na revista carioca "O Malho" sonetos sob o pseudônimo de Feliciano de Olivença.

Em 1909, passa a colaborar com o "Jornal de Alagoas", de Maceió, publicando o soneto "Céptico" sob o pseudônimo de Almeida Cunha. Até 1913, nesse jornal, usa outros pseudônimos: S. de Almeida Cunha, Soares de Almeida Cunha e Lambda, este usado em trabalhos de prosa. Até 1915 colabora com "O Malho", usando alguns dos pseudônimos citados e o de Soeiro Lobato.

Em 1910, responde a inquérito literário movido pelo Jornal de Alagoas, de Maceió. Em outubro, muda-se para Palmeira dos Índios, onde passa a residir.

Passa a colaborar com o "Correio de Maceió", em 1911, sob o pseudônimo de Soares Lobato.

Em 1914, embarca para o Rio de Janeiro (RJ) no vapor Itassuoê. Nesse ano e parte do ano seguinte, trabalha como revisor de provas tipográficas nos jornais cariocas "Correio da Manhã", "A Tarde" e "O Século". Colaborando com o "Jornal de Alagoas" e com o fluminense "Paraíba do Sul", sob as iniciais R.O. (Ramos de Oliveira). Volta a Palmeira dos Índios, em meados de 1915, onde trabalha como jornalista e comerciante. Casa-se com Maria Augusta Ramos.

Sua esposa falece em 1920, deixando quatro filhos menores.

Em 1927, é eleito prefeito da cidade de Palmeira dos Índios, cargo no qual é empossado em 1928. Ao escrever o seu primeiro relatório ao governador Álvaro Paes, “um resumo dos trabalhos realizados pela Prefeitura de Palmeira dos Índios em 1928”, publicado pela Imprensa Oficial de Alagoas em 1929, a verve do escritor se revela ao abordar assuntos rotineiros de uma administração municipal. No ano seguinte, 1930, volta o então prefeito Graciliano Ramos com um novo relatório ao governador que, ainda em nossos dias, não se pode ler sem um sorriso nos lábios, tal a forma sui generis em que é apresentado. Dois anos depois, renuncia ao cargo de prefeito e se muda para a cidade de Maceió, onde é nomeado diretor da Imprensa Oficial. Casa-se com Heloisa Medeiros. Colabora com jornais usando o pseudônimo de Lúcio Guedes.

Demite-se do cargo de diretor da Imprensa Oficial e volta a Palmeira dos Índios, onde funda urna escola no interior da sacristia da igreja Matriz e inicia os primeiros capítulos do romance São Bernardo.

O ano de 1933 marca o lançamento de seu primeiro livro, "Caetés", que já trazia consigo o pessimismo que marcou sua obra. Esse romance Graciliano vinha escrevendo desde 1925.

No ano seguinte, publica "São Bernardo". Falece seu pai, em Palmeira dos Índios.

Em março de 1936, acusado — sem que a acusação fosse formalizada — de ter conspirado no mal-sucedido levante comunista de novembro de 1935, é demitido, preso em Maceió e enviado a Recife, onde é embarcado com destino ao Rio de Janeiro no navio "Manaus". com outros 115 presos. O país estava sob a ditadura de Vargas e do poderoso coronel Filinto Müller. No período em que esteve preso no Rio, até janeiro de 1937, passou pelo Pavilhão dos Primários da Casa de Detenção, pela Colônia Correcional de Dois Rios (na Ilha Grande), voltou à Casa de Detenção e, por fim, pela Sala da Capela de Correção. Seu livro "Angústia" é lançado no mês de agosto daquele ano. Esse romance é agraciado, nesse mesmo ano, com o prêmio "Lima Barreto", concedido pela "Revista Acadêmica".

Foi libertado e passou a trabalhar como copidesque em jornais do Rio de Janeiro, em 1937. Em maio, a "Revista Acadêmica" dedica-lhe uma edição especial, de número 27 - ano III, com treze artigos sobre o autor. Recebe o prêmio "Literatura Infantil", do Ministério da Educação", com "A terra dos meninos pelados."

Em 1938, publica seu famoso romance "Vidas secas". No ano seguinte é nomeado Inspetor Federal do Ensino Secundário no Rio de Janeiro.

Em 1940, frequenta assiduamente a sede da revista "Diretrizes", junto de Álvaro Moreira, Joel Silveira, José Lins do Rego e outros "conhecidos comunistas e elementos de esquerda", como consta de sua ficha na polícia política. Traduz "Memórias de um negro", do americano Booker T. Washington, publicado pela Editora Nacional, S. Paulo.

Publica uma série de crônicas sob o título "Quadros e Costumes do Nordeste" na revista "Política", do Rio de Janeiro.

Em 1942, recebe o prêmio "Felipe de Oliveira" pelo conjunto de sua obra, por ocasião do jantar comemorativo a seus 50 anos. O romance "Brandão entre o mar e o amor", escrito em parceria com Jorge Amado, José Lins do Rego, Aníbal Machado e Rachel de Queiroz é publicado pela Livraria Martins, S. Paulo.

Em 1943, falece sua mãe em Palmeira dos Índios.

Lança, em 1944, o livro de literatura infantil "Histórias de Alexandre". Seu livro "Angústia" é publicado no Uruguai.

Filia-se ao Partido Comunista, em 1945, ano em que são lançados "Dois dedos" e o livro de memórias "Infância".

O escritor Antônio Cândido publica, nessa época, uma série de cinco artigos sobre a obra de Graciliano no jornal "Diário de São Paulo", que o autor responde por carta. Esse material transformou-se no livro "Ficção e Confissão".

Em 1946, publica "Histórias incompletas", que reúne os contos de "Dois dedos", o conto inédito "Luciana", três capítulos de "Vidas secas" e quatro capítulos de "Infância".

Os contos de "Insônia" são publicados em 1947.

O livro "Infância" é publicado no Uruguai, em 1948.

Traduz, em 1950, o famoso romance "A Peste", de Albert Camus, cujo lançamento se dá nesse mesmo ano pela José Olympio.

Em 1951, elege-se presidente da Associação Brasileira de Escritores, tendo sido reeleito em 1962. O livro "Sete histórias verdadeiras", extraídas do livro "Histórias de Alexandre", é publicado.

Em abril de 1952, viaja em companhia de sua segunda esposa, Heloísa Medeiros Ramos, à Tcheco-Eslováquia e Rússia, onde teve alguns de seus romances traduzidos. Visita, também, a França e Portugal. Ao retornar, em 16 de junho, já enfermo, decide ir a Buenos Aires, Argentina, onde se submete a tratamento de pulmão, em setembro daquele ano. É operado, mas os médicos não lhe dão muito tempo de vida. A passagem de seus sessenta anos é lembrada em sessão solene no salão nobre da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, em sessão presidida por Peregrino Júnior, da Academia Brasileira de Letras. Sobre sua obra e sua personalidade falaram Jorge Amado, Peregrino Júnior, Miécio Tati, Heraldo Bruno, José Lins do Rego e outros. Em seu nome, falou sua filha Clara Ramos.

No janeiro ano seguinte, 1953, é internado na Casa de Saúde e Maternidade S. Vitor, onde vem a falecer, vitimado pelo câncer, no dia 20 de março, às 5:35 horas de uma sexta-feira. É publicado o livro "Memórias do cárcere", que Graciliano não chegou a concluir, tendo ficado sem o capítulo final.

Postumamente, são publicados os seguintes livros: "Viagem", 1954, "Linhas tortas", "Viventes das Alagoas" e "Alexandre e outros heróis", em 1962, e "Cartas", 1980, uma reunião de sua correspondência.

Seus livros "São Bernardo" e "Insônia" são publicados em Portugal, em 1957 e 1962, respectivamente. O livro "Vidas secas" recebe o prêmio "Fundação William Faulkner", na Virginia, USA.

Em 1963, o 10º aniversário da morte de Mestre Graça, como era chamado pelos amigos, é lembrado com as exposições "Retrospectiva das Obras de Graciliano Ramos", em Curitiba (PR), e "Exposição Graciliano Ramos", realizada pela Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.

Em 1965, seu romance "Caetés" é publicado em Portugal.

Seus livros "Vidas secas" e "Memórias do cárcere" são adaptados para o cinema por Nelson Pereira dos Santos, em 1963 e 1983, respectivamente. O filme "Vidas secas" obtem os prêmios "Catholique International du Cinema" e "Ciudad de Valladolid" (Espanha). Leon Hirszman dirige "São Bernardo", em 1980.

Em 1970, "Memórias do cárcere" é publicado em Portugal.

Bibliografia:
- Caetés - romance
- São Bernardo - romance
- Angústia - romance
- Vidas secas - romance
- Infância - memórias
- Dois dedos - contos
- Insônia - contos
- Memórias do cárcere - memórias
- Viagem - impressões sobre a Tcheco-Eslováquia e a URSS.
- Linhas tortas - crônicas
- Viventes das Alagoas - crônicas
- Alexandre e outros irmãos (Histórias de Alexandre, A terra dos meninos pelados e Pequena história da República).
- Cartas - correspondência pessoal.

Fontes:
http://pt.wikipedia.org/
http://www.releituras.com.br/

Hélio Pólvora (Retrato em Preto e Branco de Graciliano Ramos)


Retrato Sem Pose Tirado de Longe

Esse Graciliano Ramos, ou Velho Graça, ou Major Graça, ou Mestre Graça, como o chamavam afetuosamente, é um fingidor. Por sentimentalismo ou vergonha, finge-se mais áspero do que é, mais espinhoso que um mandacaru. Sertanejo magro, de ombros curvos, um cigarro ardendo entre os dedos ou na boca, de roupas simples mas asseadas, mãos limpas (em todos os sentidos). Cria fama de grosseiro por causa de diálogos como estes:

— Bom dia, mestre Graça.

— Você acha, meu filho?

Ou então:

— Mestre Graça, se a situação continuar desse jeito, vamos comer merda — diz-lhe o romancista José Lins do Rego, nos tempos da ditadura de Getúlio Vargas.

— Se sobrar p’ra nós, Zé Lins. Se sobrar...

Seu romance de estréia, Caetés, ele o considera "um desastre" ou "uma encrenca". Angústia, o terceiro, é "este desastre que preparo e que terá, se aparecer um editor maluco, cinqüenta leitores do Amazonas ao Prata, talvez nem tanto". Vidas Secas tem uma "história mesquinha —um casal vagabundo, uma cachorra e dois meninos." Sua correspondência traz frases em italiano e francês. Traduz do francês e recita Le Cid, de Corneille, no original. Admira Eça de Queiroz, lê muito Machado de Assis. Conhece gramática portuguesa a fundo. Mas diz ter "uma cultura de almanaque". De vez em quando exalta-se: "Vai sair uma obra-prima, em língua de sertanejo, cheia de termos descabelados" (acerca de S. Bernardo, segundo romance). E reitera: "Foi palavreado difícil de personagens sabidos demais que arrasou a antiga literatura brasileira. Literatura brasileira uma ova, que o Brasil nunca teve literatura. Vai ter de hoje em diante" (idem).

Assim vê a atividade de escritor: "Somos uns animais diferentes dos outros, provavelmente inferiores aos outros, duma sensibilidade excessiva, duma vaidade imensa que nos afasta dos que não são doentes como nós. Mesmo os que são doentes, os degenerados que escrevem história fiada, nem sempre nos inspiram simpatia: é necessário que a doença que nos ataca atinja outros com igual intensidade para que vejamos neles um irmão e lhes mostremos as nossas chagas, isto é, os nossos manuscritos, as nossas misérias, que publicamos cauterizadas, alteradas em conformidade com a técnica" (carta à mulher Heloísa, abril de 1935).

Alfabetizou-se em casa dos pais, na fazenda, "agüentando pancada".

— Um aparte, por obséquio.

— Com que finalidade? Por quem o senhor se toma?

— Por um curioso, apenas curioso. No volume Infância o senhor se atém às memórias relevantes. Parece pensar, como Sherwood Anderson, que não existem histórias seriadas, seqüenciais. Se existem, é que houve intervenção do autor, o que pressupõe artifício. A vida é feita de raros instantes felizes e muitos transes amargos ou desgraçados.

Em Infância predomina o ácido e, em certos trechos, o travo azedo. O memorialista não está ali para emperequetar-se. A análise, tanto da família quanto das ambiências, de si próprio e dos outros, é de uma rudeza total. O senhor tinha o seu orgulho, claro, mas não nutria vaidades bestas. Imprecava principalmente contra si próprio. Era, como disse Oswald de Andrade, um mandacaru escrevendo.

Em um compêndio de achegas biobibliográficas, Moacir Medeiros de Sant’Ana refere-se aos "vários e contundentes julgamentos dos seus pais, feitos por Graciliano Ramos nas suas memórias da infância". O pai "não economizava pancadas e repreensões" e na mãe o que espantava mais "era a falta de sorriso". Por isso, Olívio Montenegro considera o livro "obra diabólica". E no seu Jornal de Crítica, Álvaro Lins afirma, constrangido: "Quando se decidiu a escrever um livro de memórias, a sensibilidade reagiu em toda a sua exacerbação: e exprimiu-se pela exteriorização daquilo que nela se gravara mais profundamente (...) Um mundo intolerável de castigos, privações e vergonhas". Sim, a memória não grava com igual nitidez as felicidades e infelicidades; o lado podre tem primazia.

A secura exata, as frases que dizem muito com grande economia de meios. É o prosador anti-ornamental numa terra em que os prosadores continuam bacharelescos, relutam em aposentar os ornatos.

Do mesmo modo que, em romances anteriores, o senhor desce ao limo das personagens, em Infância vai à borra do coração. Predominância do monólogo (até mesmo por se tratar de depoimento), palavras pesadas e mortais, que ecoam como badaladas, arrancadas que foram da carne viva dos significados, e que traduzem verdades literais.

Na formação do menino Graciliano entram muitos instrumentos de suplício: o áspero meio sertanejo no final do século passado e início do século 20; o pai comerciante e fazendeiro, tipo rude da média burguesia urbana e rural, com um perfil de patriarca que cobra obediência pronta; a mãe de poucas letras e minguado afeto. Repressão política do coronelismo tipo cabresto, enxada e voto. Repressão sexual. Repressão, sobretudo, à inteligência. A sensibilidade do menino ferida a todo instante, no relacionamento penoso com os pais, na escola, nas ruas, sofrendo o impacto da miséria ambiental. O menino cresce solitário e desconfiado, agarra-se a "migalhas de sons, farrapos de imagens"— dolorosos, todos eles. E apesar da violência do meio, plasma por dentro a sensibilidade, procura um espaço, uma expressão, enquanto por fora tece a couraça protetora.

Mesmo os que, indiferentes à beleza da arte literária, abrem Infância em busca de um documento social, decerto encontram achegas sobre a arte de martirizar crianças. Antes, arte apurada no regime patriarcal; hoje, arte nacional, de ponta a ponta, fio a pavio.
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Graciliano, Dalcídio e a Dama

Nos fundos da Livraria José Olympio Editora, na Rua do Ouvidor 110, quase esquina com Avenida Rio Branco, há um marquesão no qual poucos ousam sentar-se. É o refúgio de Graciliano Ramos, que tem o hábito de acomodar-se a um canto e cruzar as pernas magras.

Num certo fim de tarde, quando ele, lá do seu canto, dá trela ao poeta estreante Jorge Medauar, sentado no outro canto, o romancista Dalcídio Jurandir vai se aproximando. É do Pará, pertence ao Pecebão (o PC ortodoxo) e tem um jeito de camelo, com ligeira corcova. Sem cerimônia, ocupa o espaço vago no centro.

— Mestre Graça, tem um mineiro badalando muito. Um tal de Guimarães Rosa. Já leu?

— Ainda não.

— Imitador de Joyce. Em vez de Saga, pôs Sagarana no título. Quer ser o alquimista da língua.

— Ah, é?

— Li umas páginas. Não é de todo mau — condescende Dalcídio.

Pausa. O romancista paraense volta à carga:

— Mestre Graça, já leu Cyro dos Anjos?

— Não. Quem é?

— Outro mineiro. Escreve parecido com Machado de Assis.

— Nesse caso — pondera Graciliano, descruzando as pernas — eu prefiro o original.

— Apareceu também um tal de Breno Accioly. É contista lá da sua terra, das Alagoas — informa Dalcídio. —Já leu?

— Como se chama o livro?

— João Urso. Tem prefácio de Zé Lins.

— Não sou de prefácios, não gosto de arrodeios — confessa Graciliano. — Pego o cabra e leio sem intermediações.

— Mas já leu o João Urso?

— Só uns dois ou três contos.

— Pois eu não passei do primeiro — diz Dalcídio. — Uma prosa maluca, retórica. Coisa de doido.

Silêncio. Graciliano pigarreia e prepara-se para acender outro cigarro. Como ninguém toma a iniciativa da palavra, Dalcídio Jurandir ergue-se, dobrando os joelhos como fazem os camelos, e despede-se. Tem assuntos a tratar na ABI.

— Medauar — pede o velho Graça quando o vulto desaparece na porta —, vá atrás daquele safado e descubra se está falando mal de mim.

Mais ou menos nessa época, o velho regressa de uma viagem à URSS. Em Moscou, obrigaram-no a catar no chão do metrô a ponta de cigarro que ele havia atirado fora. O metrô moscovita era um espelho, brilhava. "Nós não o fizemos e limpamos para que os senhores do mundo capitalista venham sujá-lo com baganas", dissera-lhe, em tom acrimonioso, o guia.

A ida à URSS resulta num livro de impressões intitulado Viagem e que começa com uma demonstração de aborrecimento do velho Graça: ele não se sente bem na "encrenca voadora". É como chama o avião. Fumando seu cigarro no marquesão da José Olympio, vê uma senhora tremelicante de banhas e de jóias aproximar-se, toda sorridente, com um exemplar do livro para o indefectível autógrafo.

— Mestre Graciliano, assine aqui. O senhor voltou assumido da União Soviética?

— Assumido como, minha senhora?

— Ora, assumido. Assim como o André Gide.

É demais. O romancista estoura:

— Como, minha senhora? Veado?
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Pesadelo que não Acaba

"Um crime, uma ação boa dá tudo no mesmo. Afinal já nem sabemos o que é bom e o que é ruim, tão embotados vivemos", pensa Luís da Silva, narrador de Angústia, modesto funcionário público. Se vivesse hoje, mais de 60 anos depois, sua situação seria a mesma ou pior. De lá para cá, alguns indicadores sociais melhoraram, mas outros vícios, como a corrupção e a falência dos costumes, agravaram-se.

A classe média que o romance descreve, incerta e insegura, e sobrevivendo à custa de renúncias, estaria agora proletarizada. Luís luta para subir socialmente. Nordestino de origens rurais, vem de uma família outrora poderosa. São freqüentes, no fluxo memorialístico do narrador, suas lembranças do avô Trajano. Alcançou-o velho, caduco, a dormitar numa rede. Antes senhor de baraço e cutelo, assaltava a cadeia da vila para libertar cangaceiros; no final da vida, com umas reses magras na pastagem, embriagava-se e vomitava na sobrecasaca de um antigo escravo, mestre Domingos, que, por respeito, lhe suportava os destemperos.

A Graciliano Ramos não interessa o romance da decadência da aristocracia rural nordestina. É tarefa para seu contemporâneo José Lins do Rego, que enfocou principalmente os senhores de engenho. Contenta-se, em rápidas imagens repetidas pelo desespero do narrador, em transmitir do passado apenas o necessário com que exibir o desenraizamento de Luís da Silva, cujo pai vivia numa rede, a ler histórias românticas. O passado cruel condiciona a vida atual de Luís. Sente-se que o narrador é mais um Prometeu acorrentado. Ele próprio reconhece que, tivesse nascido em outro berço e recebido outra educação, seu destino seria melhor, ele pertenceria à classe dominante — a dos banqueiros, comerciantes, donos de jornais e diretores de repartição que o dominam de longe. Mas aquele passado rural de agricultores empobrecidos, vivendo dos antigos fastos, é uma marca escarlate, a marca da danação. A sensibilidade de Luís está aberta e sangra. Não há como conter o sangramento. As imagens patéticas ou trágicas assaltam-no nos sonhos e devaneios diários. Sua vida é um pesadelo econômico, um exílio social. Ele está a recordar constantemente o avô com uma cascavel enrolada ao pescoço e suplicando que a tirem; a avó que, sem conhecer o prazer sexual, paria numa cama de varas; o pai preguiçoso e violento que o atirou vezes seguidas ao rio, para ensiná-lo a nadar; um homem que se enforcou, de vergonha, porque tivera de esmolar um pão fresco que lhe foi negado; os pés disformes do pai morto sobre o marquesão sobrevoado por moscas. Cenas e imagens de pesadelo; de uma vida injusta, pobre, violenta, resultante da frágil economia do sertão habitado com o que o narrador chama "a minha raça vagabunda e queimada pela seca".

O narrador busca longe da vida sertaneja melhores condições de vida. Elas estariam no Sul — para onde emigram em geral os "descamisados", os de "pés no chão", os "sem-terra". Mas no Rio o retirante Luís da Silva, apesar dos pendores literários, sabendo escrever (aqui, no sentido da composição jornalística ou literária), com muitas leituras, conhece a solidão, o anonimato. O estabelecimento social rejeita-o. Ele está preso às engrenagens de uma sociedade então pré-capitalista (mal começara a fase de industrialização do Governo Vargas), hoje de economia globalizada, em que o dinheiro é valor supremo. Aos que nasceram bem aquinhoados, a estrada desdobra-se reta e chã; aos carentes, a dura tarefa de sobreviver. Esta é a sociedade brasileira dos anos ’30 subliminarmente descrita em Angústia, e que subsiste, em muitos aspectos piorada — daí a permanência temática do romance.

Romance "proletário", tal como o praticou Máximo Gorki, e romance de introspecção dostoievskiana. A exemplo dos humilhados e ofendidos de Dostoiévski, o destino de Luís da Silva é trágico — não somente por suas origens humildes, mas também porque há em volta dele, manietando-o, uma rede de circunstâncias restritivas. Em plena ditadura, com a renda e bem-estar concentrados na minoria privilegiada, resta aos despossuídos o sonho da revolução popular.
Um sonho bem vigiado pela polícia e sonho que, a essa altura, esvaziou boa parte de sua substância ideológica... Luís quer participar dele. Quer contribuir para a luta nas sombras por uma ordem igualitária. Ao mesmo tempo, tem de sobreviver: há o aluguel, os alimentos e remédios, ele é fustigado pelo impulso de verticalização social. Por isso se submete. No jornal, como revisor ou articulista, faz o que lhe mandam: "Escreva assim, seu Luís. Seu Luís obedecia. — Escreva assado, seu Luís. Seu Luís arrumava no papel as idéias e os interesses dos outros". Suas verdadeiras opiniões ficam para as conversas com Pimentel e Moisés, em casa, porque o café é perigoso, tipos suspeitos rondam os cafés. O intelectual Luís, um revoltado, escreve para o governo, elogia o governo. Em Vidas Secas, o vaqueiro Fabiano, depois de tomar facãozadas no lombo por ordem de um soldado amarelo, encontra-se com este na caatinga e, de facão em punho, recua e deixa-o passar: "Governo é governo".

A mesma atitude de subserviência ao poder. A diferença é que Fabiano, um bruto, sofre menos, enquanto o intelectualizado Luís recebe todas as agressões da desesperança e do repúdio social nos nervos tensos.

Nas primeiras páginas de Angústia o narrador declara-se "um molambo que a cidade puiu demais e sujou". Seu cotidiano triste divide-se entre a repartição, a banca de revisão, o café que freqüenta ocasionalmente e a casa velha, cheia de ratos, com uma criada meio surda, Vitória, que enterra no quintal as moedas do salário e conversa com um papagaio. Luís tem consciência da sua condição; nela, a tragédia, mais do que inspirada pelo passado familiar sertanejo, é um desdobramento. Sua visão de mundo é trágica porque está na sua formação, e as ações, ainda que limitadas pelo meio acanhado e opressivo, sinalizam a tragicidade. Romance naturalista, dir-se-á. Mas um naturalismo que, como o de Thomas Hardy, não se restringe ao jogo cego das forças do destino que Hardy, em Tess of the d’Urbervilles, atribui ao "President of the Immortals", citando Ésquilo. As personagens serão trágicas, no brasileiro, por herança e por uma necessidade inconsciente, intensa, de buscarem a tragicidade como forma até de explicação, justificação, sentido para a vida.

É o caso do narrador de Angústia. Cruel consigo mesmo, em comentários que chegam às raias do masoquismo, Luís da Silva atormenta-se. A princípio, diz: "Não sou um rato, não quero ser um rato". Mas não tardará a se considerar "um níquel social". Recebeu "muito coice da vida". É "uma criatura insignificante, um percevejo social..." Um rato rói-lhe as entranhas. O amor para ele é "uma coisa dolorosa, complicada e incompleta". Admite que rolou "faminto, esmolambado e cheio de sonhos" por esse mundo.

Robert H. Heilman observa, a propósito da Tess de Hardy: "Nossos egos estão ligados às nossas idéias; querem que os fatos se ajustem às idéias, do contrário nos ofendemos e tendemos, se tivermos poder para tanto, a nos tornar punitivos". Pois bem: a punição, em primeira etapa, vai para Luís da Silva, e este se humilha mais para sofrer mais, para purgar. Depois, com o aparecimento de Marina, os fados oferecem-lhe breve trégua. No seu romance de fundo de quintal com Marina — quintais cheios de lixo e plantações mesquinhas, onde um homem carrancudo e uma mulher triste trabalham com pipas e dornas —, Luís tem a impressão de descobrir o amor, quando está atraído pelo erotismo e Marina anseia apenas em sair da pobreza absoluta. De qualquer modo, é a felicidade: ele está relativamente tranqüilo, tem uns três contos de réis de economias, deseja casar-se. A idéia de casamento precipita a tragédia pessoal banhada pela tragédia social. Moça estouvada, de cabeça vazia, pensando em ostentações, Marina consome num ápice as suadas economias de Luís no enxoval e, em pleno "noivado", aceita a corte de um estranho, Julião Tavares, um parasita de discurso empolado e arrogância pavonácea. Tavares é o resumo de tudo quanto oprime Luís: dinheiro fácil, berço de ouro, prestígio social, mediocridade intelectual, poder de corromper e safar-se ileso. Gordo, cínico e esperto, Julião Tavares invade a casa de Luís, seduz Marina e distancia-se quando ela ostenta sinais de gravidez. A família submete-se: nenhuma queixa, apenas resmungos. Os humildes aprendem a vergar a espinha sob o peso dos opressores. O sedutor lança-se à conquista fácil de outras meninas pobres.

Mas o narrador de Angústia, espezinhado, traumatizado, esbulhado pela vida — este reage. É que o sofrimento atinge o ponto da exasperação, ele tem as comportas cheias de água estagnada. A fúria que antes o devastava se dirige ao opressor. Ele não tem, como Moisés, coragem de pichar muros, de distribuir "folhetos incendiários". Mas o Presidente dos Imortais lhe põe nas mãos o instrumento da vingança — uma corda. A essa altura o monólogo de Luís da Silva — o fluxo "objetivo" do inconsciente, ou seja, a linguagem da ação — se transforma em delírio. Imagens se atropelam: o cano de água é uma corda, a gravata enrola-se como corda, a cobra em volta do pescoço de Trajano é corda viva. O narrador vê-se compelido a matar Julião Tavares após a verificação de que Marina, grávida, procura parteira clandestina. No capítulo final as referências ao passado se aglomeram. É um entrechoque de lembranças. As imagens trágicas do meio rural e da vida urbana de Luís se juntam para entoar o coro da tragédia. Início e fim do romance se fecham quais pontas de um leque. Angústia é um pesadelo contínuo. O narrador pergunta: "Haverá dentro de 20 anos criaturas assim que, tendo corrido mundo, se resignam a viver num fundo de quintal, olhando canteiros murchos, respirando podridões, desejando um pedaço de carne viciada?" Sim, e em condições ainda piores.

Fonte:
http://www.vidaslusofonas.pt/graciliano_ramos.htm

Graciliano Ramos (Primeira Aventura de Alexandre)



Naquela noite de lua cheia estavam acocorados os vizinhos na sala pequena de Alexandre: seu Libório, cantador de emboladas, o cego preto Firmino e Mestre Gaudêncio curandeiro, que rezava contra mordedura de cobras. Das Dores benzedeira de quebranto e afilhada do casal, agachava-se na esteira cochichando com Cesária.

— Vou contar aos senhores... principiou Alexandre amarrando o cigarro de palha.

Os amigos abriram os ouvidos e Das Dores interrompeu o cochicho:

— Conte, meu padrinho.

Alexandre acendeu o cigarro ao candeeiro de folha, escanchou-se .na rede e perguntou:

— Os senhores já sabem porque é que eu tenho um olho torto?

Mestre Gaudêncio respondeu que não sabia e acomodou-se num cepo que servia de cadeira.

— Pois eu digo, continuou Alexandre. Mas talvez nem possa escorrer tudo hoje, porque essa história nasce de outra, e é preciso encaixar as coisas direito. Querem ouvir? Se não querem, sejam francos: não gosto de cacetear ninguém.

Seu Libório cantador e o cego preto Firmino juraram que estavam atentos. E Alexandre abriu a torneira:

— Meu pai, homem de boa família, possuía fortuna grossa, como não ignoram. A nossa fazenda ia de ribeira a ribeira, o gado não tinha conta e dinheiro lá em casa era cama de gato. Não era, Cesária?

— Era, Alexandre, concordou Cesária. Quando os escravos se forraram, foi um desmantelo, mas ainda sobraram alguns baús com moedas de ouro. Sumiu-se tudo.

Suspirou e apontou desgostosa a mala de couro cru onde seu Libório se sentava:

— Hoje é isto. Você se lembra do nosso casamento, Alexandre?

— Sem dúvida, gritou o marido. Uma festa que durou sete dias. Agora não se faz festa como aquela. Mas o casamento foi depois. É bom não atrapalhar.

— Está certo, resmungou mestre Gaudêncio curandeiro. É bom não atrapalhar.

— Então escutem, prosseguiu Alexandre. Um domingo eu estava no copiar, esgaravatando unhas com a faca de ponta, quando meu pai chegou e disse:

— "Xandu, você nos seus passeios não achou roteiro da égua pampa?" E eu respondi: — "Não achei, nhor não." — "Pois dê umas voltas por aí, tornou meu pai Veja se encontra a égua." — "Nhor sim." Peguei um cabresto e saí de casa antes do almoço, andei, virei, mexi, procurando rastos nos caminhos e nas veredas. A égua pampa era um animal que não tinha agüentado ferro no quarto nem sela no lombo. Devia estar braba, metida nas brenhas, com medo de gente. Difícil topar na catinga um bicho assim". Entretido, esqueci o almoço e à tardinha descansei no bebedouro, vendo o gado enterrar os pés na lama. Apareceram bois, cavalos e miunça, mas da égua pampa nem sinal. Anoiteceu, um pedaço de lua branqueou os xiquexiques e os mandacarus, e eu. me estirei na ribanceira do rio, de papo para. o ar, olhando o céu, fui-me amadornando devagarinho, peguei no sono, com o pensamento em Cesária. Não sei quanto tempo dormi, sonhando com Cesária. Acordei numa escuridão medonha. Nem pedaço de lua nem estrelas, só se via o carreiro de Sant'lago. E tudo calado, tão calado que se ouvia perfeitamente uma formiga mexer nos garranchos e uma folha cair. Bacuraus doidos faziam às vezes um barulho grande, e os olhos deles brilhavam como brasas. Vinha de novo a escuridão, os talos secos buliam,as folhinhas das catingueiras voavam. Tive desejo de. voltar para casa, mas o corpo morrinhento não me ajudou. Continuei deitado, de barriga para cima, espiando o carreiro de Sant'lago. e prestando atenção ao trabalho das formigas. De repente. conheci que bebiam água ali perto. Virei-me, estirei o pescoço e avistei lá embaixo dois vultos malhados, um grande e um pequeno, junto da cerca do bebedouro. A princípio não pude vê-los direito, mas firmando a vista consegui distingui-las por causa das malhas brancas. — "Vão ver que é a égua pampa, foi o que eu disse. Não é senão ela. Deu cria no mato e só vem ao bebedouro de noite." Muito ruim o animal aparecer .àquela hora. Se fosse de dia e eu tivesse uma corda, podia laçá-lo num instante. Mas desprevenido, no escuro, levantei-me azuretado, com o cabresto na mão, procurando meio de sair daquela dificuldade. A égua ia escapar, na certa. Foi aí que a idéia me chegou.

— Que foi que o senhor fez? perguntou Das Dores curiosa.

Alexandre chupou o cigarro, o olho torto arregalado, fixo na parede. Voltou para Das Dores o olho bom e explicou-se:

— Fiz tenção de saltar no lombo do bicho e largar-me com ele na catinga. Era o jeito. Se não saltasse, adeus égua pampa. E que história ia contar a meu pai? Hem? Que história ia contar a meu pai, Das Dores?

A benzedeira de quebranto não deu palpite, e Alexandre mentalmente pulou nas costas do animal:

— Foi o que eu fiz. Ainda bem não me tinha resolvido, já estava escanchado. Um desespero, seu Libório, carreira como aquela só se vendo. Nunca houve outra igual. O vento zumbia nas minhas orelhas, zumbia como corda de viola. E eu então... Eu então pensava, na tropelia desembestada: — "A cria, miúda, naturalmente ficou atrás e se perde, que não pode acompanhar a mãe, mas esta amanhã está ferrada e arreada." Passei o cabresto no focinho da bicha e, os calcanhares presos nos vazios, deitei-me, grudei-me com ela, mas antes levei muita pancada de galho e muito arranhão de espinho rasga-beiço. Fui cair numa touceira cheia de espetos, um deles esfolou-me a cara, e nem senti a ferida: num aperto tão grande não ia ocupar-me com semelhante ninharia. Botei-me para fora dali, a custo, bem maltratado. Não sabia a natureza do estrago, mas pareceu-me que devia estar com a roupa em tiras e o rosto lanhado. Foi o que me pareceu. Escapulindo-se do espinheiro, a diaba ganhou de novo a catinga, saltando bancos de macambira e derrubando paus, como se tivesse azougue nas veias. Fazia um barulhão com as ventas, eu estava espantado, porque nunca tinha ouvido égua soprar daquele jeito. Afinal subjuguei-a, quebrei-lhe as forças e, com puxavantes de cabresto, murros na cabeça e pancadas nos queixos, levei-a. para a estrada. Ai ela compreendeu que não valia a pena teimar e entregou os pontos. Acreditam vossemecês que era um vivente de bom coração? Pois era. Com tão pouco ensino, deu para esquipar. E eu, notando que a infeliz estava disposta a aprender, puxei por ela, que acabou na pisada baixa e num galopezinho macio em cima da mão. Saibam os amigos que .nunca me desoriento. Depois de termos comido um bando de léguas naquele pretume de meter o dedo no olho, andando para aqui e para acolá, num rolo do inferno, percebi que estávamos perto do bebedouro. Sim senhores. Zoada tão grande, um despotismo de quem quer derrubar o mundo — e agora a pobre se arrastava quase no lugar da saída, num chouto cansado. Tomei o caminho de casa. O céu se desenferrujou, o sol estava com vontade de aparecer. Um galo cantou, houve nos ramos um rebuliço de penas. Quando entrei no pátio .da fazenda, meu pai e os negros iam começando o ofício de Nossa Senhora. Apeei-me, fui ao curral, amarrei o animal no mourão, cheguei-me à casa, sentei-me no copiar. A reza acabou lá dentro, e ouvi a fala de meu pai: — "Vocês não viram por aí o Xandu?" — "Estou aqui, nhor sim, respondi cá de fora" — "Homem, você me dá cabelos brancos, disse meu pai abrindo a porta. Desde ontem sumido!" — "Vossemecê não me mandou procurar a égua pampa?" —"Mandei, tornou o velho. Mas não mandei que você dormisse no mato, criatura dos meus pecados. E achou roteiro dela?" — "Roteiro não achei, mas vim montado num bicho. Talvez seja a égua pampa., porque tem malhas. Não sei, nhor não, só se vendo. O que sei é que é bom de verdade: com umas voltas que deu ficou pisando baixo, meio a galope. E parece que deu cria: estava com outro pequeno." Aí a barra apareceu, o dia clareou. Meu pai, minha mãe, os escravos e meu irmão mais novo, que depois vestiu farda e chegou a tenente de polícia, foram ver a égua pampa. Foram, mas não entraram no curral: ficaram na porteira, olhando uns para os outros, lesos, de boca aberta. E eu também me admirei, pois não.

Alexandre levantou-se, deu uns passos e esfregou as mãos, parou em frente de mestre Gaudêncio, falando alto, gesticulando:

— Tive medo, vi que tinha feito uma doidice. Vossemecês adivinham o que estava amarrado no mourão? Uma onça-pintada, enorme, da altura de um cavalo. Foi por causa das pintas brancas que eu, no escuro, tomei aquela desgraçada pela égua pampa.

Fonte:
RAMOS, Graciliano. Alexandre e outros heróis. 44.ed. RJ: Record, 2003.