quinta-feira, 26 de março de 2009

Affonso Romano de Sant'Anna em Xeque



Affonso Romano de Sant’Anna conversa sobre os universos paralelos da mente do escritor, em entrevista para André Azevedo da Fonseca

Com tanta informação circulando no planeta nos veículos de comunicação, por que ainda precisamos de literatura para pensar sobre a condição humana?

Por uma razão muito simples: a literatura é uma espécie de parábola da realidade e da condição humana, e através das parábolas você espelha muito mais a realidade do que através de análises objetivas e científicas. Mesmo porque um dos efeitos da parábola — ou seja, da ficção e da poesia — é solicitar da cabeça do leitor que ela se ponha também em movimento para articular o imaginário. Então é uma obra a muitas mãos, uma leitura a muitas mãos.

Mas através das notícias a mídia também parece capaz de oferecer essas parábolas. Por exemplo, a cobertura jornalística sobre o maníaco do parque ofereceu ao imaginário da cultura de massa um personagem quase literário, pronto para encarnar um novo mito, ou uma atualização de um mito. Não há uma conversa entre real e imaginário na imprensa?

Sim, a mídia hoje é o grande romance de folhetim. A novela é apenas uma parte de um grande romance de folhetim que começa no jornal de manhã, continua nos programas infantis, nos desenhos animados, nos esporte e nas mesas redondas, no Jornal Nacional, no Fantástico. É um mundo como espetáculo, como representação. E isso provoca até situações muito intrigantes, porque o indivíduo que não está equipado para decompor esses elementos que são atabalhoadamente jogados na telinha, ou que se amontoam no jornal, ele tem uma visão das coisas muito surrealista. Eu tenho a impressão que grande parte do povo brasileiro mistura o Fantástico com Jornal Nacional, com a Bíblia, e faz um "melê" que é difícil deslindar exatamente.

Às vezes, quando penso em livros, me vem a idéia que o leitor e o escritor não passam de sujeitos covardes que, por não ter coragem de experimentar a vida de forma carnal e se entregar às aventuras reais, se contentam em ser voyeurs de personagens fictícios. Paulo Freire ensinava que nos alfabetizamos não apenas na leitura das palavras, mas na leitura do mundo. Será que um dia conseguiremos nos livrar da mediação dos livros e aprender a ler o mundo diretamente, sem esse intermédio simbólico?

Eu colocaria de outra maneira. A escritura e a leitura são modos de extensão da vida, de complementação da vida. Eu não posso ir à Lua. Julio Verne também não podia. Mas ele descreveu a viagem à Lua. Julio Verne não podia fazer uma viagem submarina. Mas ele imaginou como seriam as 20 mil léguas submarinas. José de Alencar, ou um dos autores românticos, não viveram na Idade Média mas viajaram lá através da imaginação. Mesmo o romancista que narra histórias fantásticas está dilatando o seu universo e dilatando o universo dos outros. As pessoas não cabem dentro do seu próprio corpo. Por isso elas sonham de noite. Como elas não cabem dentro do próprio corpo elas têm que ler livros e ver novelas. E têm que amar os outros.

O que têm a ver o amor e a idéia de extensão da vida?

O amor é um ato de transferência de você para o outro. Você se muda para dentro do ser alheio. E no caso dos místicos, eles tentam imigrar de vez para a humanidade inteira se fundir com a figura de Deus.

Lembro-me de Schopenhauer quando ele diz que nós, antes de nos materializarmos enquanto animais biológicos, na verdade já começamos a existir quando ainda somos um mero desejo expresso na troca de olhares de nossos pais. Na verdade ele diz que as idéias e pensamentos se esforçam para apoderar-se da matéria para se transformar em algo físico, pois no instante mesmo do desejo o real já está sendo construído. A literatura faz isso, não?

É. O real é uma construção. Assim como em um teatro de arena, onde cada espectador está vendo a cena de um ângulo diferente, o real é algo sempre construído e desconstruído. O que a arte faz sistematicamente é destruir e reconstruir a realidade. Veja as peças de Shakespeare: de repente, como tem no Rio agora, e ocorre de vez em quando em várias partes do mundo, vem um diretor e apresenta um Hamlet, um McBeth totalmente diferente e às vezes até oposto e contraditório ao que seria o Shakespeare original. Não existe um Shakespeare original, assim como a realidade em si é uma coisa que nós temos que aprender a construir e ler diariamente.

Gostaria que você falasse um pouco das diferenças que no livro A sedução da palavra (Letraviva, 2000) você estabelece entre o autor e o escritor.

Todo mundo pode ser autor. Qualquer pessoa pode dizer: ah, vou escrever a vida no meu sítio, ou escrever a história da minha tia, ou a história da minha cidade, do meu cachorro; um médico pode fazer um livro de medicina… todos são autores. Agora, o escritor é alguém que, além de ser autor, se dá ao luxo de ter heterônimos, pseudônimos, pode multiplicar a sua personalidade. O escritor é alguém que tem um trato com a linguagem muito especial. Ele constrói as coisas a partir da linguagem. Ele sabe que as coisas não existem antes da linguagem dar consistência a elas. Ou seja, a diferença entre um escritor e uma pessoa comum é que a pessoa comum diz: minha vida daria um romance; e o escritor faz um romance. Porque vida de ninguém é um romance. A vida das pessoas é interessantíssima, mas só viram romance não se forem simplesmente escritas, mas se forem muito bem escritas. E para isso tem que ser escritor.

No processo de formação do escritor é preciso que ele leia porcaria?

O escritor lê porcaria até sem querer, né? Assim como a gente assiste a filme ruim propositalmente, e há alguns filmes ruins que são ótimos, como há romances e poemas kitsch que são ótimos, volta e meia você se surpreende cantando tangos e boleros, né? O kitsch e o mau gosto fazem parte da realidade. E a formação nossa, tanto na hora de colocar um vestido, escolher um sapato, quanto na hora de escolher um bom livro, um bom concerto, é saber distinguir o que é a coisa kitsch e o que é a coisa mais bem elaborada, o que é o chamado mau gosto e o que é um gosto mais sofisticado. Então essa questão passa por tudo. Da escolha do que se vai comer no restaurante ao livro de poemas que vamos ler.

Metade do autor é o leitor?

Metade. E às vezes há casos até curiosíssimos de autor que é um leitor voraz, um leitor insaciável, como é o caso do Borges, que vivia dizendo: enquanto outros se orgulham dos livros que escreveram, eu me orgulho dos livros que eu li. Porque para ele escrever é uma forma de ler e reler.

Nas obras deles, Marquês de Sade arreganhava elogios à depravação total; Thomas de Quincey defendia que assassinatos eram obras de arte; os poetas da beat generation faziam apologia ao uso desenfreado de drogas. A literatura pode ser perigosa como dizem que é a TV? Ou, pelo contrário, num outro extremo, não há perigo algum nesses atrevimentos literários?

Tudo pode ser perigoso ou não. A palavra farmácia vem do grego farmakon, que significa ao mesmo tempo veneno e remédio. Então quando você entra na farmácia, você acha veneno e remédio. Se tomar alguma coisa errada você pode morrer, se tomar a coisa certa você pode se curar. Nesse sentido a literatura, como a música, não é em si nem boa nem má. Pode potencializar nas pessoas aquilo que elas têm numa ou noutra direção. Por exemplo, na música você pode pensar assim: Mozart é uma coisa sublime, rock é coisa pesada; uma é angelical, outra é diabólica. Isso é um estereótipo, porque se algumas pessoas já cometeram violência e crime "por causa" do rock, nem todas as pessoas cometem crime e violência por causa do rock. E ao contrário, muitos dos carrascos nazistas gostavam de Bach, de Mozart. Então... é o farmakon.

Essa do farmakon foi boa! Vamos a próxima. Livro é muito caro. Hoje a média é R$30, ou seja, uns 10% do salário mínimo — isso se o Lula passasse o mínimo para R$300. Você defende o direito de que quem não tem grana possa "xerocar" os seus livros?

Realmente, o livro dentro dos padrões brasileiros é muito caro. Até na China, que tem 400 milhões de leitores, o livro custa entre R$2 e R$3. A questão do xerox tem sido debatida no mundo inteiro. Eu participei de vários seminários internacionais, sobretudo quando dirigi a Biblioteca Nacional. Cada país tenta defender uma estratégia determinada: alguns colocam uma taxa na produção da máquina que vai reverter como direito autoral para os autores, outros têm outras estratégias. No caso brasileiro especificamente, não há como impedir, por mais que se aconselhe. O professor quer dar um livro, ainda que ele recomende a compra, mas o livro está esgotado. Como fazer? O professor não vai dar aula sobre aquele livro? Por outro lado, em muitos livros você precisa só de um capítulo. Não precisa do livro inteiro. Então é uma questão muito complexa. Não de trata de proibir. Trata-se de estabelecer uma política mais ampla disso.

Você deu aulas nas Universidades da Califórnia e do Texas, nos EUA; na Universidade de Colônia, na Alemanha; e na Universidade Aix-en-Provence, na França. Como essas coisas são discutidas por lá?

Você entra numa universidade americana e em cada andar da biblioteca tem máquinas de xerox. Você compra um cartãozinho na entrada e copia quantos livros quiser, quantas páginas quiser. É só comprar e renovar o cartão. Eu já saí de bibliotecas americanas com "toneladas" de xerox.

Mas como eles lidam com a questão dos direitos autorais neste caso?

Eles têm um processo. Aquele dinheiro cobrado pelo xerox vai reverter de alguma maneira para uma política do livro, para o autor.

É uma boa idéia.

É necessário rever isso tudo. Por exemplo, em alguns países da Europa o autor ganha pelo fato de em uma biblioteca pública alguém tirar o livro dele para ler. Cada leitor da biblioteca pública é computado e o autor ganha uma comissão. É uma coisa interessante.

Você conhece um conceito que se chama copyleft?

[Sant’Anna me olhou meio de lado e vi surgir uma interrogação sobre sua cabeça.]

Esse termo inventado por um hacker americano é uma inversão da idéia de copyright.

[O escritor percebe imediatamente a idéia e se diverte com o trocadilho, soltando uma risadinha. Mesmo assim prefiro explicar melhor]

É um tipo especial de licença que ao mesmo tempo em que garante a propriedade intelectual, autoriza expressamente que os leitores reproduzam a obra à vontade, desde que não seja para fins comerciais. Se uma editora quer comercializar a obra, paga os direitos autorais. Se é para uso pessoal você pode comprar o livro ou então copiá-lo gratuitamente. A idéia é que, na verdade, quanto mais a obra circula, mesmo que seja através de cópias, mais ela vende. De cada vinte leitores que copiam, seguramente uns três ou quatro vão acabar comprando, porque ao gostar do texto não vão querer guardar as folhas grampeadas do xerox, mas sim a cópia durável e de bom acabamento do livro.

Claro.

O que acha dessa idéia?

É uma proposta interessante. Agora, embutida nessa questão tem um outro problema que acho riquíssimo e que foi exposto implicitamente num filme que se chama "O Homem que copiava". Eu até escrevi duas crônicas sobre isso, dentro de um conjunto de análise que eu estava fazendo da arte contemporânea, sobre a questão da cópia. O problema da cópia é interessantíssimo, porque a sociedade em que vivemos, que é chamada de pós-moderna, instituiu perversamente a idéia de que o autor não existe. Qualquer um pode se apoderar de qualquer coisa. O sujeito não existe. Isso, filosoficamente, redunda em uma tragédia epistemológica, porque se o sujeito não existe somos todos objetos. Eu não gosto de uma cultura onde todos são objetos. O esforço é para que as pessoas se transformem em sujeitos.

Conheço outra linha de discussão: o autor não existe porque o que ele faz é pouco mais do que copiar e cruzar vários outros autores que estão dentro de seu universo mental. Tom Zé chama isso de estética do plágio, ou estética do arrastão. Para ele, nós somos o nosso contexto, somos a nossa circunstância. [a observação ia ficando longa, e o entrevistado já ficava inquieto para falar]. Não será por mero acidente que conseguimos escrever algo novo?

Aí tem várias coisas interessantíssimas. Tem um lado que é verdade: na natureza nada se cria, tudo se transforma. É uma lei da Química. Por outro lado, dentro do folclore, da literatura, as histórias são recriadas. Você encontra pedaços da lenda do Rei Arthur em Mil e Uma Noites, em Decameron e em vários lugares. Agora, isso é uma coisa, é um fato real — o processo de metamorfose, de transformação que existe na natureza, na cultura. Outra coisa é a cultura da leviandade que a pós-modernidade cultiva. Ou então certas coisas que são veiculadas através da chamada estética do falso.

O que é isso?

Autores que fazem romance jogando com a idéia da falsidade, levantando uma questão que em última instância é a seguinte: alegam que numa sociedade se mente muito, numa sociedade tudo é falso, tudo é fake. Então a pessoa produz uma obra falsa, uma obra fake. Então eu digo: é juntando mentira a mentira que vamos combater a mentira? É juntando falsidade a falsidade que nós vamos combater a falsidade? Em termos de arte e escatologia, é juntando merda a merda que nós vamos sair da merda?

O que é uma obra falsa?

Pois é. O que é uma obra falsa?

Ou o que seria a estética do falso?

A estética do falso pretende que não há autoria. Há um deslizamento constante através do qual todos participam, que tem seu lado verdadeiro. Quando entra na moda usar um tipo de calça, de camisa, todo mundo se apropria daquilo. Mas estou desenvolvendo já há algum tempo um raciocínio que, ao lado de reconhecer o que há de natural nisso, há um outro lado perverso: a questão da apropriação. Em arte se usa muita técnica de apropriação, mas os bandidos também usam. Como um caso de um artista na França que resolveu fazer uma exposição chamada "Tudo Aquilo que Roubei de Vocês". Ele roubou vários objetos dos amigos e fez uma exposição. Os amigos não gostaram e chamaram a polícia.

Aí surgiu uma discussão, que envolveu Ministro da Cultura e Ministro da Justiça na França, se roubar é um ato artístico, um gesto estético. Até que ponto é apropriação, ou quem sabe, que é a minha ótica, a gente não deve analisar isso tudo dentro de um contexto? Analisando dentro de um contexto gestaltiano mais amplo, você entende Fernandinho Beira-Mar, o narcotráfico, a violência da nossa sociedade e a falta de caráter geral.

Entende ou justifica?

Entende. Justificar jamais. A grande ansiedade do ser humano é entender as coisas, pelo menos. Chega alguém e mata outra pessoa, você fica horrorizado, você quer entender por que matou, tem que ter uma causa, tem que ter uma razão! Não vai justificar, mas tem que entender.

Patrick Grainville, em entrevista a Betty Milan, diz que é muito importante que o escritor tenha um ofício qualquer fora da literatura, porque senão ele fica maluco, fica muito distante do mundo e se perde. O que você acha disso?

Isso é um problema dele.

Perguntei isso consciente desse contexto em que vivemos, no qual o escritor, com as raras exceções, não consegue viver de sua obra. Então…

Eu adoraria ficar só escrevendo poesia, se me financiassem por aí. Adoraria enlouquecer escrevendo poesia. Não teria nenhum medo. [nesse momento ele fez uma pausa retórica]

Você tem uma sugestão para…

Ao contrário. Quando eu trabalhava em banco, e era estudante de letras, ficava possesso porque estava jogando meu tempo fora em vez de estar escrevendo literatura. Esse Patrick pode voltar a trabalhar no banco porque eu já passei por essa experiência.

[Enquanto ria, lembrei sofregamente que, sobretudo quando entrevistamos escritores, é uma peleja para discernir quando eles já disseram tudo, quando querem deixar a coisa ambígua, ou quando o momento de silêncio é apenas uma pausa retórica na exposição do raciocínio.]

Qual a sua sugestão para pensar esse problema de o autor não conseguir viver de sua obra?

Olha, aí tem duas coisas. Uma: em qualquer profissão é complicado. Jovem arquiteto, jovem médico, jovem advogado, jornalista, costureiro, estilista, todo mundo tem uma certa dificuldade. A quantidade de pessoas que abrem lojas e fecham é muito grande. Então há uma dificuldade que no caso brasileiro se agrava porque estamos em recessão há trinta anos. Agora, nos países que têm uma estrutura econômica e social mais estável é possível viver de literatura, não só através do livro, mas de uma série de estímulos que governo, fundações e instituições culturais e fornecem — como bolsas e auxílios de pesquisa. Eu mesmo estive em uma meia dúzia de bolsas dadas por fundações estrangeiras. A última foi em Bellagio, na Itália. Eles tinham pago umas vinte pessoas no mundo inteiro para ficarem um mês, sem nenhuma preocupação, para executar um projeto, seja um livro, uma pesquisa etc. Tudo pago. Tinha escritores lá, e eu fui para terminar um livro que eu estava fazendo. E isso é muito comum na Europa e nos Estados Unidos.

Dá para adaptar essas idéias no Brasil?

Quando eu dirigi a Biblioteca Nacional eu criei um sistema de bolsas de escritores dando umas dez ou quinze bolsas por ano para o escritor terminar o trabalho dele. Criei o sistema de financiamento de tradução de autores brasileiros no exterior. Umas trinta ou cinqüenta obras traduzidas no exterior por ano. Então há mecanismos. Se você ganhar da prefeitura daqui, ou de uma fundação, uma bolsa durante um ano ou dois anos para uma pesquisa ou um livro, você estaria vivendo de literatura.

Mmmmmm, seria um sonho! Há escritores que só escrevem sob pressão, e há mesmo quem diga que a calmaria e a estabilidade não é criativa. Orson Wells tem disse aquela famosa frase, dizendo que enquanto a Itália cheia de guerras gerou a Renascença, a pacata Suíça produziu apenas o relógio cuco. O que acha disso?

A questão, outra vez, é diversificada, é complexa. Há pessoas que só conseguem funcionar, para tudo, sob pressão. Eu conheço donas-de-casa que resolvem experimentar em um jantar — onde vêm convidados! — pratos que nunca fizeram, sem saber se vai dar certo. A Marina [Colasanti] é assim.

Muito bom isso.

A tensão de fazer um negócio que nunca fez, que é desafiador, mobiliza. Como o ladrão que está correndo da polícia, ou correndo de um pitbull, ele pula um muro de cinco metros de altura. Se não tiver o pitbull, ele não pula nem um metro. Então há pessoas que precisam dessa adrenalina, outros não. Tive até duas experiências curiosas com isso. Uma vez eu estava em um programa de jovens escritores em Iowa, nos Estados Unidos, em uma dessas bolsas. Eram quarenta escritores do mundo inteiro. Dois terços diziam que não conseguiam escrever porque tinham saído exatamente de seus países onde viviam sob pressão, tendo que trabalhar, cuidar da família, não sei o quê. Ficaram num lugar só para escrever e não conseguiram escrever. Eu levei um projeto para escrever, que era a minha tese sobre Drummond, e fiz a tese normalmente; enquanto um dramaturgo turco, quinze dias antes de terminar esse período de nove meses, não tinha conseguido escrever uma linha. Já em Bellagio, onde fui mais recentemente, eu tinha levado um projeto de ensaio; mas aquele clima de paz, de beleza, de encantamento era de tal ordem que eu joguei aquilo pra lá e fiquei um mês só transando poesia.

Em Canibalismo Amoroso você desenvolve um conceito muito interessante ao considerar o texto como uma "manifestação onírica social". Você poderia falar um pouco sobre isso?

A idéia básica desse livro — na verdade é uma idéia básica para se entender a literatura — é que o escritor é uma espécie de sonhador de utilidade pública. Ele fantasia coisas que não são apenas fantasias pessoais, mas fantasias comunitárias. Ele é apenas, como propunha Ezra Pound, uma antena que está captando algumas coisas. Daí certos livros terríveis, O médico e o monstro, os livros policiais, etc. Por que as pessoas lêem isso? Você pode pensar: o autor devia ser um neurótico. Mas por que milhões de pessoas lêem Agatha Christie? Porque através do crime e do mistério elas estão elaborando os seus fantasmas. Então a literatura e a arte em geral é o lugar de elaboração de grandes fantasmas de fantasias.

Ops, eu pulei uma pergunta. Antes de falar de Canibalismo Amoroso eu queria ter conversado sobre o movimento antropofágico. Depois da minissérie da Globo, todo mundo comemora a aventura de Oswald e Mário de Andrade. Apesar de reconhecer a importância da Semana de 22, sei que você tem críticas ao modernismo. Você pode falar sobre isso?

Eu tenho várias considerações. Primeiro, o modernismo foi muito importante mas cometeu vários equívocos, várias injustiças. Ensinou uma geração a ter preconceito contra o século 19, contra certos poetas parnasianos, simbolistas, contra a literatura romântica, e isso por um vezo futurista de querer ser diferente do outro. Entende-se perfeitamente que isso tenha ocorrido num primeiro momento. Agora, além disso eu tenho uma outra colocação sobre a Semana de Arte Moderna. É que à rigor ela não aconteceu em fevereiro de 1922. Ela não só começou a acontecer muito antes disso, com Brás Cubas, com Sertões de 1902, com Lima Barreto e por aí a fora, como em 1922 aconteceu uma certa coisa da qual o país não tomou o menor conhecimento na ocasião. Mas aquela coisa tinha uma força original que foi captada por outras pessoas. Então, a Semana da Arte Moderna começou a acontecer, sistematicamente, depois. Ou seja, todo autor que estudou um autor modernista é um modernista, ajudou a fazer o modernismo. Quando alguém analisa Oswald de Andrade, dá interpretação nova, analisa Drummond, José Lins do Rego, Jorge Amado, Graciliano, é como se estivesse batendo esse bolo que está fermentando, que está crescendo, como se estivesse sendo um acionista de uma grande empresa. E isso chegou a um ponto tal que virou essa novela da Globo. Essa novela foi a apoteose popular de uma semana que continua sendo inventada. O que aparece ali não tem nada a ver com o que foi em 1922. Ou seja, a idéia da Semana é uma idéia em construção. Ela não acontece em 22.

Antropofágica pra valer!

É. Então estou devorando a Semana, fazendo uma "meta-antropofagia" com a Semana. Estou reduzindo ao meu estômago aquela semana que aconteceu.

Em seu livro você defende que o canibalismo é um traço fundamental de nossa cultura. Por quê?

Eu comecei a colecionar notícias policiais envolvendo canibalismo. Que é impressionante. Não é apenas essa coisa imaginária que existe na literatura, ou um ato episódico dos jogadores uruguaios que caíram na neve e começaram a comer os companheiros e tal. Isso existe como um impulso neurótico e Freud consegue explicar de certa maneira essa perversidade oral. E é muito comum. Ainda agora aquele programa Linha Direta vai mostrar um criminoso de São Paulo chamado Chico Picadinha, que pegava as mulheres, sobretudo prostitutas, retalhava, picava e comia; como aquele canibal alemão que pôs um anúncio na Internet porque queria comer uma pessoa e, entre vários candidatos, um se ofereceu realmente e foi devorado por ele. Existe uma coisa, um desvio, uma perversão que no lado mais ameno e mais normal se dá numa relação amorosa, que são grandes "entredevorações".

Sua pesquisa mostra como que na poesia, do parnasianismo ao romantismo, a mulher passou a ser representada de flor a fruta, ou seja, de algo para ser visto a algo a ser comido, do jardim ao pomar. Depois as metáforas passaram a comparar a mulher a animais que o homem deveria caçar se quisesse comer. Essa ligação da culinária e do amor é um traço evidente do canibalismo amoroso.

Sim, faz parte desse canibalismo masculino, como existe um canibalismo feminino. Em alguns animais, alguns insetos, a fêmea é a devoradora; assim como existe um grande mito no imaginário masculino, sobre o qual eu falo no Canibalismo: o mito da Vagina Dentada, o grande medo da grande mãe castradora, como os folclores todos trabalham isso, e como é que até a ficção moderna trabalha isso. O José Rubem Fonseca, por exemplo.

Freud disse assim: "A grande questão para a qual não encontrei nenhuma resposta durante trinta anos de pesquisas sobre a natureza da mulher é a seguinte: o que elas querem enfim?" Você, marido da Marina Colasanti, já tentou esboçar alguma resposta para esses enigmas? Por que tememos tanto as mulheres? O que elsas querem afinal?

Primeiro porque elas são seres superiores. São adoráveis, mais inteligentes. Em segundo lugar, existe uma resposta para essa pergunta do Freud, eu até fiz uma crônica sobre isso, que é uma parábola sensacional que não vai dar pra você contar, porque é muito grande, que remete à lenda do Rei Arthur.

Ah, pode contar!

Ela começa quando o Rei Arthur, ainda jovem, invadiu o terreno de um rei e como punição foi condenado à morte. E o rei falou que ele só poderia escapar da morte se conseguisse resolver a seguinte questão: o que querem as mulheres? Há todo um desenvolvimento disso e a solução que se encontra é uma coisa maravilhosa. O Arthur contou isso para um colega, um dos cavaleiros, que disse: — Eu vou resolver esse problema pra você. Eu soube que tem uma bruxa na montanha que tem a resposta. Esse cavaleiro era belíssimo, inteligente, e então foi lá no lugar do Arthur e falou com a bruxa. — Escuta aqui, tenho um problema e preciso saber: o que querem as mulheres? A bruxa falou assim: — Olha, eu posso te contar, mas tem o seguinte: você tem que casar comigo. Só se você casar comigo eu respondo. E para salvar o amigo, casou com a bruxa. — Vou te contar na noite de núpcias. No banquete a bruxa estava comendo, toda desgrenhada, sem dente, vesga, jogando comida no chão e o pessoal se perguntando: pô ele vai casar com essa mulher? Aí quando ele entrou no quarto nupcial, perguntou: Bom, então me diz agora, finalmente! Estamos casados! A bruxa disse o seguinte: — Eu vou te fazer uma revelação. Eu sou bruxa de dia, mas de noite eu sou outra pessoa. E se transformou numa mulher deslumbrante, a mulher mais deslumbrante que qualquer homem pode imaginar, nem precisa descrever, cada um descreve a sua. E apareceu aquela mulher! Na alcova do cavaleiro! E aí a bruxa transformada na bela mulher disse: — Mas você vai ter que decidir com qual de nós duas você quer ficar, a bruxa ou essa deusa. Aí o cavaleiro, como era um cavaleiro mítico, um herói, de caráter sem jaça, um sábio, disse para ela: — Você decide. Você é que decide quem você quer ser. Então o resultado dessa melódia é: o que querem as mulheres? As mulheres querem ser o que elas querem ser, e não o que os homens querem que elas sejam.

Fale um pouco sobre as estratégias compensatórias pelas quais driblamos nossas frustrações, um assunto que explora bem em sua obra.

O imaginário humano é muito rico, ele desliza muito. Há um princípio básico da psicanálise que continua válido até hoje porque na verdade corresponde até a uma lei da Física e da Química: assim como Lavoisier disse que tudo se transforma, em termos de psicanálise e inconsciente Freud mostrou, entre outras coisas, que nós não suportamos nenhuma frustração. Nós não abrimos mão das coisas; nós substituímos. Então o nosso imaginário vive fazendo substituições. Se você não pode ter uma coisa, troca por outra, consciente ou inconscientemente, dentro de um jogo que a psicologia chama de redução da dissonância cognitiva. Você quer casar com uma mulher, ela não gosta de você, mas você casa com outra, em outras circunstâncias. Mas você tem que "justificar" aquele casamento. Então você diz: casei mas ela é rica né? Ela me dá tudo, e tal, eu não preciso trabalhar... Tem que ter alguma vantagem! Eu trabalho naquela empresa ali, eu não gosto muito não, mas me pagam muito bem. E assim por diante. Então isso existe em relação a tudo. A parte erótica, a parte amorosa, social, econômica...

Proust dizia que muitas vezes o escritor só encontra a sua verdadeira personalidade no texto. Será que isso explica o fato, por exemplo, de uma pessoa escrever coisas maravilhosas, humanistas, mas na vida real ser um crápula, um monstro?

Nós temos várias pessoas dentro de nós. Fernando Pessoa não inventou nada de extraordinário. Ele apenas contextualizou uma esquizofrenia que todos nós temos. Balzac criou tantos personagens que diziam que ele estava fazendo concorrência com os cartórios, de tanta gente que ele tinha criado. Ele era todas aquelas pessoas e também não era. Então o escritor é isso. Aliás isso é até terapêutico. Inclusive no teatro eu acho que isso é mais terapêutico ainda. Quando você faz psicanálise, às vezes você pode entrar para a terapia de grupo. Você vê nos seus colegas uma série de reflexos seus que te ajudam. Então você pode tratar-se através do psicodrama, cada um representa uma série de obsessões, de fobias, de fantasias e põe aquilo para fora em termos de catarses que exorcizam. Um ator um dia representa um amante, um dia um assassino, um dia um pai, um dia um filho, empregado, patrão, ele está exercendo um universo dentro dele terapêutico incrível. E o leitor é isso também. O leitor vai encarnando. O espectador de celebridades é a mesma coisa. A pessoa que está vendo Darlene queria ser também célebre, condena a Darlene por uma série de ações, mas também fica meio siderada com a fama. Há uma transferência.

Você que é um pensador do amor, responda aí essa última pergunta, inspirada em Saint-Exupery: somos responsáveis por aqueles que nós cativamos?

De alguma maneira sim. Mas a sua relação com alguém nessa troca de emoções, de afetos, de conhecimento, deve também fazer com que o outro cresça, que o outro não seja um dependente, de tal maneira que haja uma relação de maturidade, uma relação adulta. O outro não deve ser tratado nunca como uma criança, mas com respeito. E vice-versa.

Affonso Romano de Sant‘Anna, muito obrigado pela entrevista. Foi um grande diálogo e certamente vai inspirar muitas idéias nos leitores.

Fontes:
Portfólio André Azevedo da Fonseca
Matéria publicada no Revelação (jornal-laboratório do curso de Comunicação Social da Universidade de Uberaba) n. 284, em 4 de maio de 2004
Fotomontagem - José Feldman

Affonso Romano de Sant'Anna (A Mulher Madura)



O rosto da mulher madura entrou na moldura de meus olhos.

De repente, a surpreendo num banco olhando de soslaio, aguardando sua vez no balcão. Outras vezes ela passa por mim na rua entre os camelôs. Vezes outras a entrevejo no espelho de uma joalheria. A mulher madura, com seu rosto denso esculpido como o de uma atriz grega, tem qualquer coisa de Melina Mercouri ou de Anouke Aimé.

Há uma serenidade nos seus gestos, longe dos desperdícios da adolescência, quando se esbanjam pernas, braços e bocas ruidosamente. A adolescente não sabe ainda os limites de seu corpo e vai florescendo estabanada. É como um nadador principiante, faz muito barulho, joga muita água para os lados. Enfim, desborda.

A mulher madura nada no tempo e flui com a serenidade de um peixe. O silêncio em torno de seus gestos tem algo do repouso da garça sobre o lago. Seu olhar sobre os objetos não é de gula ou de concupiscência. Seus olhos não violam as coisas, mas as envolvem ternamente. Sabem a distância entre seu corpo e o mundo.

A mulher madura é assim: tem algo de orquídea que brota exclusiva de um tronco, inteira. Não é um canteiro de margaridas jovens tagarelando nas manhãs.

A adolescente, com o brilho de seus cabelos, com essa irradiação que vem dos dentes e dos olhos, nos extasia. Mas a mulher madura tem um som de adágio em suas formas. E até no gozo ela soa com a profundidade de um violoncelo e a sutileza de um oboé sobre a campina do leito.

A boca da mulher madura tem uma indizível sabedoria. Ela chorou na madrugada e abriu-se em opaco espanto. Ela conheceu a traição e ela mesma saiu sozinha para se deixar invadir pela dimensão de outros corpos. Por isto as suas mãos são líricas no drama e repõem no seu corpo um aprendizado da macia paina de setembro e abril.

O corpo da mulher madura é um corpo que já tem história. Inscrições se fizeram em sua superfície. Seu corpo não é como na adolescência uma pura e agreste possibilidade. Ela conhece seus mecanismos, apalpa suas mensagens, decodifica as ameaças numa intimidade respeitosa.

Sei que falo de uma certa mulher madura localizada numa classe social, e os mais politizados têm que ter condescendência e me entender. A maturidade também vem à mulher pobre, mas vem com tal violência que o verde se perverte e sobre os casebres e corpos tudo se reveste de uma marrom tristeza.

Na verdade, talvez a mulher madura não se saiba assim inteira ante seu olho interior. Talvez a sua aura se inscreva melhor no olho exterior, que a maturidade é também algo que o outro nos confere, complementarmente. Maturidade é essa coisa dupla: um jogo de espelhos revelador.

Cada idade tem seu esplendor. É um equívoco pensá-lo apenas como um relâmpago de juventude, um brilho de raquetes e pernas sobre as praias do tempo. Cada idade tem seu brilho e é preciso que cada um descubra o fulgor do próprio corpo.

A mulher madura está pronta para algo definitivo.

Merece, por exemplo, sentar-se naquela praça de Siena à tarde acompanhando com o complacente olhar o vôo das andorinhas e as crianças a brincar. A mulher madura tem esse ar de que, enfim, está pronta para ir à Grécia. Descolou-se da superfície das coisas. Merece profundidades. Por isto, pode-se dizer que a mulher madura não ostenta jóias. As jóias brotaram de seu tronco, incorporaram-se naturalmente ao seu rosto, como se fossem prendas do tempo.

A mulher madura é um ser luminoso é repousante às quatro horas da tarde, quando as sereias se banham e saem discretamente perfumadas com seus filhos pelos parques do dia. Pena que seu marido não note, perdido que está nos escritórios e mesquinhas ações nos múltiplos mercados dos gestos. Ele não sabe, mas deveria voltar para casa tão maduro quanto Yves Montand e Paul Newman, quando nos seus filmes.

Sobretudo, o primeiro namorado ou o primeiro marido não sabem o que perderam em não esperá-la madurar. Ali está uma mulher madura, mais que nunca pronta para quem a souber amar.

Fonte:
SANT’ANNA, Affonso Romano de. A Mulher Madura. RJ: Rocco, 1986.

quarta-feira, 25 de março de 2009

208 Anos da Morte de Novalis

Fotomontagem: José Feldman

Novalis (1772 – 1801)



Georg Philipp Friedrich von Hardenberg (Oberwiederstedt, Harz, 2 de Maio de 1772 — Weißenfels, 25 de Março de 1801), Freiherr (Barão) von Hardenberg, mais conhecido pelo pseudônimo Novalis, foi um dos mais importantes representantes do romantismo alemão de finais do século XVIII e o criador da flor azul, um dos símbolos mais duráveis do movimento romântico.

Seu pseudônimo, Novalis, vêm de um nome que a sua família teria usado. Por vezes chamado do profeta do Romantismo, tem como central imagem das suas visões uma flor azul, que mais tarde se transformou como símbolo de saudade entre os Românticos. A “Flor Azul” era inatingível e assim o continuará.

Nasceu em Oberwiederstedt, na Saxônia Prussiana, numa família nobre de protestantes. Quando tinha 10 anos foi enviado para uma escola religiosa mas teve dificuldades em se ajustar. Foi entretanto viver com o seu tio que lhe abriu portas para o Racionalismo e cultura francesa. Mudou-se com os seu pai para Weissenfels e entre 1790 e 1791 estudou Direito, tal como Goethe, na Universidade de Jena onde conheceu Friedrich von Schiller e Friedrich Schlegel. Completou os estudos em Wittenberg em 1793. As idéias da recente Revolução Francesa rapidamente se espalharam por toda a Alemanha e Novalis sonhava com o tempo das “Muralhas de Jericó” derrubadas. Um romântico místico, inclinava-se por uma restauração da república cristã, desaparecida desde a reforma protestante, enquanto Kant, um homem do Iluminismo, antevia como solução para a Europa uma liga das nações, uma república secular, humana, constituída por uma federação mundial a ser acertada no devir.

O livro de Goethe “Wilhelm Meisters Lehrjahre” (Anos de Aprendizagem de Wilhelm Meiste) influenciou-o profundamente, de tal modo que ele o considerou a bíblia da “Nova Era”. Por volta de 1796 estudou as obras de Johann Gottlieb Fichte.

Com 21 anos, muda-se para Tennstädt, perto de Langensalza, para trabalhar como Administrador Civil, depois de o pai ter rejeitado o convite do ministro prussiano para um outro cargo governamental em Berlim, com receio das influências liberais. No ano seguinte foi nomeado Auditor da Direção das minas de sal de Weißenfels, onde o pai trabalhava como Diretor.

A conselho de amigos, que pretendiam impedi-lo de sucumbir à forte e inexperimentada tentação da vida militar que sentira, havia-se mudado, no final de 1794, para Arnstadt, na Thuringia, para continuar no ramo de trabalho do pai. No entanto, um acontecimento na vizinha Grueningen, haveria de transformar toda a sua vida, como relata o seu futuro amigo e editor Ludwig Tieck:

Não terá sido muito depois da sua chegada a Arnstadt, quando numa mansão senhorial nas redondezas, ele travou conhecimento com Sophie von K____. O primeiro vislumbre desta justa, maravilhosa e amável forma foi decisivo para toda a sua vida; não, podemos dizer que este sentimento, que agora o penetrou e inspirou, foi a substância e essência de toda a sua vida. Algumas vezes, no olhar e figura de uma criança, estampar-se-á uma expressão que é tão etérea e angelicamente bela, que somos forçados a chamar de não-terrestre ou celestial; e é voz comum, que, na visão de tais faces puras e quase transparentes, chega a nós um medo de que elas sejam excessivamente ternas e delicadas para serem moldadas para esta vida terrena; isso é a Morte, ou a Imortalidade, que nos olha de frente tão expressivamente com esses olhos deslumbrantes para a Certeza. Ainda são mais intensas estas figuras quando o primeiro período é alegremente ultrapassado, e elas florescem na véspera de feminilidade. Todas as pessoas que conheceram esta maravilha amorosa do nosso Amigo, concordam em testemunhar que nenhuma descrição pode exprimir que graça e celeste harmonia a moviam, que beleza irradiava, que macio e majestoso era o halo que a rodeava. Novalis tornava-se um poeta sempre que tinha a possibilidade de falar sobre isso. Ela tinha concluído o seu décimo terceiro ano quando ele a viu; a Primavera e Verão de 1795 foram o desabrochar da sua vida. Cada hora que ele podia liberar-se do seu negócio, ele a passava em Gruningen: e no Outono desse mesmo ano ele obteve dos pais de Sophie, o tão aguardado consentimento para o noivado.”

Infelizmente, no entanto, estes dias de alegre tranquilidade foram de curta duração. Pouco depois, Sophie von Kühn ficou perigosamente doente, com febre. Pouco a pouco a sua febre foi diminuindo mas as dores ainda a atormentavam violentamente. Dito que eram sem importância pelo Físico, Novalis retornou para Weissenfels, para os seus pais. Na Primavera seguinte ele visitou a família e encontrou Sophie bem de aparência. Mas, de súbito, no Verão, as suas esperanças e ocupações foram interrompidas por avisos de que ela estava em Jena, e fora submetida a uma operação cirúrgica. A pequena donzela suportou tudo isto com inflexível coragem e alegre resignação. Em dezembro, por sua vontade retornou para casa, onde era evidente a sua fraqueza crescente. Ia e vinha entre Gruningen e Weissenfels, que também se tinha tornado uma casa de mágoa, pois o seu irmão padecia de uma longa doença e aparentava morte certa. De novo, Tieck reconta:

No dia 17 de Março era o décimo-quinto aniversário da sua Sophie; e no dia 19, por volta do meio-dia, ela partiu. Ninguém se atreveu a contar a Novalis estas tristes notícias; por fim, o seu irmão Carl tomou a iniciativa. O pobre jovem não se calava, e depois de três dias e três noites de choro e lamentos, partiu para Arnstadt, onde, com o seu verdadeiro amigo, poderia estar mais perto do lugar em que agora permaneciam os restos do que havia sido o de mais querido para ele. No dia 14 de Abril, morria o seu irmão Erasmus. Informa a seu irmão Carl.

Sê bom de coragem’, escrevia ele, ‘Erasmus prevalece; as flores do nosso justo ramalhete estão a cair aqui, uma por uma, para que possam ser unidas além, amavelmente e para sempre.’”

Em 1798, publica uma série de fragmentos filosóficos, “Fragmente.” No seu lamento, começou um diário contemplando suicídio e a escrever poemas.

Começa a estudar Mineração na Academia de Feiberg. Ali ele torna-se amigo de Ludwig Tieck e outros Românticos. Em 1798, fica noivo de Julie von Charpentier, à qual nunca se juntará. Ele pensava que Julie tornava a presença de Sophie ainda mais aparente.

Em 1800, a sua única coleção acabada de poemas, ”Hymnen an die Nacht” (Hinos à Noite), é a expressão do seu desgosto pela morte do seu primeiro grande amor. O conjunto de seis prosas e versos líricos foi publicado na Athenäum, uma revista literária editada por August Wilhelm Schlegel e por seu irmão Friedrich Schlegel.

Na sua viagem a Weimar, conhece Goethe, Herder, e Jean Paul, e em Jena, os irmãos Schlegel. Começa a trabalhar na sua escrita com um novo entusiasmo, mas já nessa altura estava seriamente doente.

Antes de poder casar-se com Julie, Novalis morre de tuberculose, em 1801 em Weissenfels.

Os seus dois romances filosóficos, “Heinrich von Ofterdingen” e “Die Lehrlinge zu Sais”(Os Noviços em Sais) foram deixados incompletos.

Em “Heinrich von Ofterdingen” um jovem poeta medieval procura uma misteriosa Flor Azul.

Em “Die Lehrlinge zu Sais”, um noviço adolescente argumenta que: “Só os poetas deviam ocupar-se do líquido e ter o direito de falar dele à juventude ardente”.

Entre setembro de 1798 e março de 1799, ele escreveu fragmentos chamados de “Das Allgemeine Brouillon” que faziam parte da sua planejada enciclopédia, em que examinava a polaridade na Natureza.

A vida de Novalis inspirou Penelope Fitzgerald para o seu romance “The Blue Flower” (1995).

Fontes:
http://pt.wikipedia.org

Novalis (Hinos à Noite)



I.

Diante do espetáculo maravilhoso do espaço aberto à sua volta, que existência viva, sensível, não ama a deliciosa luz, com suas cores, raios e ondulações, sua onipresença gentil na forma do alvorecer? O mundo gigantesco das constelações despertas inala o dia como a mais profunda alma da vida, e flutua dançando em sua torrente azulada; a pedra tranqüilamente faiscante, a pesarosa planta, o mundo selvagem, ardente e multiforme dos animais o inala; porém, mais que elas, o nobre estrangeiro com olhos brilhantes, andar altivo, lábios melodiosos e cerrados. Como um rei que comanda a natureza mundana, ele invoca os poderes para transformações incontáveis, ata e desata inúmeras alianças, sustenta sob forma celestial cada substância terrena. Sua presença por si só revela o esplendor maravilhoso dos reinos do mundo.

E eu me volto para a Noite misteriosa, sagrada e indescritível. Ao longe repousa o mundo, em sepulcro profundo; um lugar solitário e arruinado. Nas cordas do peito golpeia uma tristeza profunda. Estou pronto para mergulhar nas gotas do orvalho, e misturar-me às cinzas. - A distância da memória, os desejos da juventude, os sonhos da infância, as breves alegrias e aspirações vãs de uma vida longa, surgem com uma veste acinzentada, como o vapor da tarde antes do pôr do sol. Em outras plagas a luz assentou suas tendas felizes: e se eu nunca mais retornar para suas crianças, que me esperam com a fé da inocência?

O que renova todos os pressentimentos de meu coração, e acalma o ar suave da tristeza? Negra Noite, não terás uma afinidade conosco? O que seguras sob teu manto, cujos poderes ocultos afetam minh'alma? O bálsamo precioso goteja do ramo de papoulas, em tuas mãos. Tu retiras os cravos de aço da alma. De modo obscuro e indescritível, somos tocados: estarrecido de prazer contemplo a face grave que, suavemente e em prece, inclina-se sobre mim, e, em meio a olhares confusos, revela o amor jovial da Mãe. Como a luz parece agora algo pobre e infantil! como é agradável e bem-vinda a partida do dia! -

Não é apenas porque a noite arrebata de ti seus servos, e lança aos abismos do espaço teus globos faiscantes, que proclamas, nos momentos de ausência, sua onipotência, e desejas seu retorno?

Temos olhos que a noite abriu em nosso interior, mais divinos que aquelas estrelas brilhantes. Sua visão alcança além dos incontáveis hóspedes mais pálidos da noite. Sem auxílio da luz eles penetram as profundezas que abrangem as regiões elevadas com inefável delícia. Glória à rainha do mundo, à grande profetisa dos mundos mais sagrados, à mãe cuidadosa do delicioso amor! ela mandou-te a mim, tu a mais suavemente amada, sol gracioso da Noite. Agora desperto, pois sou teu e meu. Fizeste-me conhecer a Noite, entregaste-a a mim para que se tornasse minha vida; tu fizestes de mim um homem. Consumas meu corpo com o ardor de minh'alma, de modo que eu, tornado ar purificado, possa misturar-me completamente contigo, e assim, nossa noite de núpcias durará eternamente.

II.
Por que a manhã deve sempre retornar? O despotismo do dia nunca terá fim? A atividade profana consome a visita angélica da noite. Nunca chegará o dia em que o sacrifício oculto do Amor arderá eternamente? Veio o tempo da Luz; porém, o domínio da Noite é eterno e ilimitado. A duração do sono é eterna. Sono Sagrado, servo dedicado da Noite, não se preencha de júbilo no trabalho mundano do dia. Os tolos julgam-te mal, nada conhecendo do sono exceto a sombra que lanças piedosamente sobre nós no crepúsculo da noite real. Eles não te sentem no fluxo dourado das videiras, no óleo mágico da árvore das amêndoas, e no suco marrom do pomo da papoula. Eles não sabem que és tu quem assombra o seio da bela dama, e transforma em Céu a sua nobreza; jamais suspeitam que és tu, guardiã do Céu, quem envia a eles as antigas histórias, mensageira silenciosa dos segredos infinitos, portadora da chave para a morada dos abençoados.

III.
Certa vez, quando derramava lágrimas amargas, que minha esperança, dissolvida na dor, se esvaía, e eu permanecia só sobre uma colina estéril que em seu contorno escuro, baixo, ocultava a desvanecida forma de minha Vida; só como ninguém jamais havia sido, tocado por uma angústia indescritível, privado de forças, e nada mais restava exceto a consciência da miséria; - enquanto olhava ao meu redor em busca de socorro; não podia avançar nem retroceder, e enfraquecido com a perda, extinguí minha vida com uma saudade sem fim; então surgiu das distâncias azuis, das profundezas de meu júbilo passado, uma chuva brilhante, crepuscular; e num só momento romperam-se as amarras do nascimento, os grilhões da Luz. Ao longe fugiu a glória da Terra, e com ela meus lamentos. A tristeza fluiu num mundo novo e inescrutável. Tu, ó inspiração da Noite, Sono celestial, viestes sobre mim. O local elevou-se suavemente, e acima pairou meu espírito recém-nascido, ilimitado. A colina tornou-se uma nuvem de poeira e envolveu-me, e na nuvem vislumbrei a glorificada face de minha Amada. Em seus olhos jazia a eternidade. Apertei suas mãos e minhas lágrimas tornaram-se um laço ardente e indestrutível. Milhares de anos fluíram ao longe nas distâncias do relâmpago e da tempestade. Em seu dorso eu saudei a nova vida com lágrimas e êxtase. Jamais tive tal sonho novamente; desde então e para sempre eu mantenho uma fé eterna e inabalável no Céu da Noite; e em seu sol, a Amada.
~ ~ ~

IV.
Agora sei quando chegará o derradeiro amanhecer: quando a luz não afugentar mais a Noite e o Amor, quando o sono persistir sem o despertar, existindo apenas um sonho contínuo. Sinto em mim uma exaustão celestial. Minha peregrinação para o túmulo sagrado foi longa e cansativa, e a cruz esvaia-se. Aquele que experimentou a onda de cristal que, imperceptivelmente ao sentido comum, brota do seio obscuro da colina batida pelo fluxo do mundo, aquele que esteve na montanha fronteiriça do mundo, e vislumbrou o interior das novas terras nos domínios da noite, certamente não retornará ao tumulto do mundo, às terras nas quais reina a Luz em inquietude perpétua.

Naquelas alturas ele constrói para si tabernáculos - tabernáculos de paz; lá recorda, ama e contempla, até que a mais querida das horas lança-o nas águas da fonte. Tudo o que é mundano flutua sobre ele, revolvendo-se em tempestades; mas o que se tornou sagrado pelo toque do Amor flui livremente através dos caminhos ocultos, das regiões mais além, onde, junto aos aromas, mistura-se ao amor adormecido. Doce Luz, tu ainda acordas o homem cansado para o trabalho, e em mim deitas a alegria da vida; mas tu não me afastarás do monumento coberto de musgo da memória. Oferecer-te-ei a mão laboriosa sempre que necessitares de mim; louve a rica pompa de teu esplendor; persiga incansável as harmonias amáveis de teu habilidoso artesão; contemple feliz a pesarosa paz de teu poderoso, radiante relógio; explore o equilíbrio das forças dos maravilhosos e incontáveis mundos e suas estações; mas meu coração secreto permanece da Noite, e do seu filho, Amor o criador.

Poderias tu me revelar um coração eternamente verdadeiro? Possui teu sol olhos amigos que me conhecem? Seguram tuas estrelas minha mão quando ela se oferece? Retribuem elas a pressão suave da minha palavra carinhosa? Tu não as adornaste com cores e com trêmulo contorno? Ou terá sido ela quem concedeu às tuas jóias um significado mais elevado, e querido? Que delícias, que prazeres, a tua vida me oferece, para aliviar o fardo dos transportes da Morte? Não será tudo aquilo que nos inspira investido da vivacidade da Noite? Tua mãe, é ela que te gera, e a ela deves toda tua glória. Tu poderias desvanecer em si, poderias dissipar-se no espaço infinito, se ela não te amparasse, não te enfaixasse para que permanecesses quente e flamejante, concebendo o universo. É certo que eu já existia antes de ti; a mãe enviou-me com minhas irmãs para habitar o mundo, para santificá-lo com amor de modo que ele se tornasse um memorial eternamente presente, para semeá-lo com flores que jamais fenecerão.

Mas assim como elas não germinaram, e nem estes pensamentos divinos; não há sinal algum do apocalipse que está próximo. Mas um dia teu relógio apontará para o fim do Tempo, e então deverás ser apenas um conosco, e deverás, pleno de ardente saudade, extinguir-se e morrer. Eu sinto em mim o término de tua atividade, experimento a liberdade celestial, e a restauração feliz. Com dores selvagens reconheço como estás distante de nosso lar, teu feudo junto ao antiquíssimo domínio, o Céu. Tua ira e teus delírios são em vão. Inconsumível paira a cruz, bandeira de vitória em nossa senda.

Peregrinei
Onde toda dor
Certo dia,
Só terá sabor de prazer.
Mais alguns momentos
E estarei livre,
Intoxicado
Na mentira envolvente do amor.
A vida eterna
Surge qual onda diante de mim:
Observo do cume,
Observo a ti.
Ó Sol, deves desvanecer
Sob a colina;
Uma sombra irá trazer-te
Irada frieza.
Ó, atire em meu coração amor,
Atire até que eu me vá;
Até que adormecido,
Ainda ame!
Eu sinto o fluxo da
Correnteza da jovem e generosa morte;
Que transforma meu sangue
Em bálsamo e éter!
Com fé e vontade
Eu vivo os dias:
Com um êxtase sagrado,
Morro a cada anoitecer.

V.
Em tempos antigos um Destino de ferro surgiu a reinar, com força implacável, sobre as dispersas famílias humanas. Uma opressão sombria envolveu suas almas ansiosas: a Terra não tinha fronteiras, ainda era um lar para os homens e morada de deuses. Sua estrutura misteriosa jazia desde eras eternas. Além das colinas rubras do amanhecer, no seio sagrado do mar, reinava o sol, aquele que tudo inflama, luminária viva. Era como um velho gigante abraçando este mundo feliz. Aprisionados nas profundezas jaziam os primogênitos da mãe Terra, sem esperanças em sua fúria destruidora contra a nova raça de deuses e seus parentes benévolos, os homens. O abismo esverdeado e obscuro do oceano abrigava uma deusa. Nas grutas de cristal as pessoas brincavam.

Os rios, as árvores, as flores e animais tinham a espiritualidade esperta do ser humano. O vinho era doce, servido por jovens personificadas; havia um deus nos vinhedos; uma deusa maternal, amável, cresceu entre as folhagens douradas; a sagrada embriaguez do amor era doce prece para a mais bela das deusas. A vida vagava através dos séculos numa contínua primavera, uma festa sem fim dos filhos do Céu, habitantes da terra. Todas as raças, como crianças, adoravam a chama etérea, multiforme, como a mais sublime entre as coisas do mundo.

Nada mais que uma ilusão, um sonho horrível -
Algo temível avançou sobre o banquete feliz,
E deixou os espíritos numa consternação selvagem.
Os próprios deuses não conheciam respostas ou conselhos,
Para infundir consolo nos corações sufocados.
A senda do monstro era misteriosa e sem rumo,
Cuja fúria não se aplacava com preces e sacrifícios;
Era a morte que invadiu o banquete com medos,
Com angústia, dores cruéis e lágrimas amargas.
Agora separados eternamente de tudo
Que inclina o coração à felicidade fluente do prazer,
Separados dos que amam, os corações partidos,
Em vão saudosos e em desespero sem fim -
Lutam em sonho tristonho,
Parecia que tudo era posse da morte profunda!
Que rompeu a vaga próspera da glória do homem
No rochedo inevitável da Morte.
Em vôo ousado, vão ao alto as asas do Pensamento;
Os homens cobrem a coisa horrível com o manto da beleza:
Uma bela jovem apaga a vela, para dormir;
O fim aproxima-se suavemente, como o lamento do alaúde do amante.
Uma sombra fria rasteja sobre a memória:
Assim dizia a canção, pois Miséria a movia.
Ainda indecifrável jaz a Noite interminável -
O símbolo solene de um Desejo distante.

O velho mundo entrou em declínio. O jardim de delícias da raça jovem definhou; mais acima, em regiões amplas e desoladas, agora combatiam os homens maduros tendo abandonando a infância. Os deuses desvaneceram-se junto a seu séquito. A natureza jazia solitária e sem vida. O Número seco e a Medida rígida aprisionaram-na com correntes de ferro. Envoltas no ar e na poeira as inestimáveis florações da vida fugiram para mundos obscuros. Fora-se a Fé, criadora de maravilhas, e aquele anjo que tudo une e transforma, seu companheiro, Imaginação. Os ventos do norte sopraram sobre aquela plaga tórrida, e a terra maravilhosa primeiro gelou-se, e então evaporou-se no éter. As profundezas distantes do Céu tornaram-se plenas em mundos relampejantes. A alma do mundo, junto a todos seus poderes, ocultou-se no santuário profundo, nas regiões mais puras da mente, até que um dia desperte o alvorecer da glória universal.

A Luz não era mais a morada dos deuses, nem o presságio celeste de sua presença: fora lançado sobre eles o manto da Noite. A Noite tornou-se o grande berço das revelações; nela retornaram os deuses, e adormeceram, persistindo em formas novas e gloriosas no interior do mundo transfigurado. Entre o povo, antes perfeito e bondoso, que havia se tornado zombeteiro e insolentemente hostil diante da abençoada inocência da juventude, apareceu o Novo Mundo, sob o disfarce nunca visto antes, de uma canção abençoada de pobreza, filho de uma dama, uma mãe, fruto eterno de enlace misterioso. A sabedoria oriental, profética, florescente, de pronto reconheceu o surgimento de uma nova era; uma estrela mostrou-lhes o caminho para o pobre berço do rei. Em nome de um futuro distante, homenagearam-lhe com respeito e perfumes, as mais elevadas maravilhas da natureza. Na solidão, o coração celeste revelou-se para o cálice em flor do amor grandioso, voltou-se para a face suprema do pai, e repousou sobre o seio da mãe solene e doce. Com fervor divino o olhar profético do filho contemplou os anos futuros, previu, imperturbável sob o fardo terreno de seus dias, a prole amada a surgir de sua árvore divina. As almas infantis reúnem-se ao seu redor, e anseiam pelo amor verdadeiro, maravilhosamente obtido. Como flores, elas desabrocham uma nova vida em sua presença. Mundos que jamais se esgotam e boas novas saem como faíscas de um espírito divino por seus lábios benévolos. De uma costa distante veio um bardo, nascido sob o céu claro de Hellas, para a Palestina, e cedeu seu coração inteiro para a criança maravilhosa: -

Tu és o jovem cujas eras mantiveram por tanto tempo
Pairando sobre nossos túmulos, perdido entre as névoas da imaginação;
Sinal na escuridão da boa-nova de Deus,
Quando madura a humanidade a colherá;
E é o que desejamos, e cultivamos com amor
E toda a desgraça perde o viço, o sentido;
A morte encontrou sua razão de ser na vida eterna,
Pois tu és Morte, e fizeste-nos totalmente unos.

Cheio de alegria, o bardo foi para o Indostão, o coração intoxicado com a doçura do amor, que expressou em canções compostas sob aquele céu suave, de modo que milhares de corações ajoelharam-se diante dele, e a boa nova frutificou em uma infinidade de ramos. Logo depois da partida do cantor, aquela vida preciosa foi entregue em sacrifício pela profunda queda do homem. Ele morreu jovem, arrebatado do mundo que tanto amava, de sua mãe chorosa, e seus amigos temerosos. Seus doces lábios sorveram a taça amarga de erros inexprimíveis. Em angústia horrível aproximou-se o nascimento de um novo mundo. Ele combateu bravamente os terrores da antiga Morte; grande foi o peso da antiga palavra sobre ele. Porém, ele olhou suavemente para a mãe; surgiu a mão libertadora do Amor eterno, e ele adormeceu.

Por alguns dias pairou um véu profundo sobre o mar revolto, sobre a terra que tremia; lágrimas sem fim brotaram de seus amados; o mistério desvendou-se: espíritos celestes arrastaram a grande rocha da tumba obscura. Anjos observaram-no, adormecido, desencorporado docemente em sonhos; ele despertou em nova glória, Divinificado galgou ao cume do novo mundo recém-nascido, enterrou com as próprias mãos o antigo cadáver na cavidade abandonada, e com mão suprema deitou sobre ela uma rocha que poder algum seria capaz de remover novamente.

Seus olhos amados lacrimejam sobre a tumba lágrimas graves de júbilo, lágrimas emocionadas, lágrimas de graça eterna, sempre renovadas; com felicidade observam-no a erguer-se novamente, e contemplaram seu lamento fervoroso e suave sobre o seio abençoado da mãe, a andar em comunhão pensativa com seus amigos, murmurando palavras como que arrebatadas da árvore da vida; vêem a ti, partindo saudoso para os braços do pai, levando consigo a jovem Humanidade, e a inexaurível taça de um futuro dourado. Logo a mãe juntou-se a ti em triunfo celeste, e era a primeira pessoa contigo na nova morada. Desde então, eras fluíram, e num esplendor sempre maior tens se dedicado à nova criação, e milhares seguiram a ti, em meio a dores e torturas, plenos de fé e desejosos pela verdade, andam contigo e a virgem celestial no reino do Amor, e serão para sempre teus, ministro do templo da Morte celestial.

A pedra é elevada,
E toda a humanidade ergue-se;
Todos nós residimos em ti,
Desaparecemos em nossa prisão.
Todos os tormentos se foram
Diante da taça dourada;
Pois nem a vida nem o mundo podem estar
Na mesa em que ceamos com o Senhor.
Ao casamento a Morte convida;
E nenhuma virgem tarda;
As lamparinas queimam vistosas;
Sem necessitarem de óleo algum.
Teus pés ao longe despertam
Ecos em nossas sendas!
E as estrelas criam símbolos
E doces vozes!
Dez mil corações aspiram
A ti, ó nobre mãe;
Nesta vida, carregados de tristezas,
Desejam apenas a ti;
Em ti esperam a cura;
Em ti esperam repouso seguro,
Quando, selando sua segurança,
Os abraçará contra teu peito.
Os que repousam no inferno
Queimam desapontados,
Pois por fim, ao te verem
Fogem deste mundo:
E tu apareces em auxílio,
A nós, em meio às dores:
Agora estamos mais próximos de tua morada,
E nunca mais iremos embora!
Agora não existem mais lágrimas
Que amor e preces junto aos túmulos;
O dom que o Amor concede
Não será mais roubado de ninguém.
Para apaziguar e aquietar a saudade
Vem a noite, e acalma os sábios;
A multidão de filhos do Céu nos envolve
Zela por nós e guarda nosso coração.
Coragem! pois esta vida ruma
Para uma vida sem fim adiante;
O sentido, amoroso, aguardando,
Torna-se claro e forte.
Um dia as estrelas, caindo,
Devem fluir como vinho dourado:
E nós, sorvendo tal néctar,
Brilharemos como estrelas vivas!
Livre, o amor emerge da tumba,
Para não morrer nunca mais;
Em plenitude, a vida eleva-se e ondeia
Qual mar sem limites!
Toda noite há uma deliciosa tarefa!
Uma ode de júbilo!
E o sol de todos nossos prazeres
É a face de Deus!

VI.
DESEJANDO A MORTE

No seio da terra!
Fora dos domínios da Luz!
As dores da Morte nada mais são
Que a partida, romper-se de grilhões!
Rapidamente, num barco esguio,
Rapidamente navegamos para a costa do Céu!
Bendita seja a Noite eterna,
E bendito o Sono sem fim!
Somos abrasados pelo dia luminoso,
E ressecados pelo tédio!
Estamos cansados da vida que dura:
Venha, agora iremos para casa, para Deus!
Para que permanecer neste mundo sublunar?
Para que nutrir o amor e a verdade aqui?
Se o que é antigo está muito além -
Para nós o novo deve perecer!
Aquele que ama o passado com piedade ardente
Está sozinho, amargurado, em exílio.
Porém, como o espírito humano, o passado
Elevou-se em chamas sublimes;
Onde os homens herdaram do Pai,
O dom de reconhecer sua face;
E, em simplicidade perfeita
Muitos tornaram-se seu arquétipo.
O Passado em rica florescência, no qual
Antigos troncos geraram o fruto glorioso;
E as crianças em busca do mundo futuro,
Buscaram a vitória sobre a dor e a morte;
E, apesar da vida e do prazer fenecerem,
Muitos corações partiram-se de amor.
O Passado no qual o próprio Deus possuiu
O vigor da juventude;
E enfrentou a morte prematura, por amor à verdade
Que os jovens contemplaram, e ousaram -
Enfrentar com paciência a angústia e a tortura
Para provar que o amavam.
Agora vemos com inquietação ansiosa
Aquele passado envolto em trevas;
Com a água deste mundo
Nunca poderemos matar nossa sede:
Precisamos retornar à nossa antiga morada
E conhecer aquele tempo abençoado de novo.
E o que impediria nosso retorno?
Já que repousam aqueles que amamos!
Sua sepultura é o limite de nossas vidas;
Nós recusamos com repugnância esta época odiosa!
Não somos enganados por nenhuma esperança:
O coração está pleno; o mundo vácuo!
Infinito e misterioso,
Vibra em mim um doce tremor,
Como se na distância ecoasse
Um sinal, semelhante ao nosso lamento:
Os amados esperam, assim como eu,
Enviam seu suspiro de saudade.
Abaixo, para a noite amorosa, e mais além
Para o amado Jesus!
Coragem! as sombras do entardecer tornam-se em cinzas,
Assim como nossos planos, e nos acalmam!
Um sonho romperá nossos grilhões,
E nos abrigará no coração do Pai.

(tradução de Orlando Ferreira)

Fontes:
http://canaldepoesia.blogspot.com/
http://www.redutoliterario.hpg.ig.com.br/
Capa do Livro -
http://www.assirio.com

Vera Lins (Novalis, Negatividade e Utopia)

Leanne Greb (O Eu Fragmentado)
Poetar é gerar

OS FRAGMENTOS DE NOVALIS, reunidos em Pólen, podem ser considerados o manifesto do primeiro romantismo alemão. Publicados pela primeira vez, em 1798, na revista Athenaeum, neles se condensam as propostas do grupo de Iena de revolução pela poesia, i.e, transformação do mundo pela imaginação produtora: “Estamos numa missão. Para a formação da Terra fomos chamados”, diz Novalis.

A Revolução Francesa inflamava esses românticos, críticos da Aufklärung, que, no entanto, viviam sob o estado prussiano. Mas sua revolução se baseava numa mudança epistemológica. Para Schlegel “A Revolução francesa, a filosofia de Fichte, e o Meister de Goethe são as grandes tendências da época [...]”.

Insatisfeitos com os novos tempos eram críticos do projeto moderno: “Outrora era tudo aparição de espíritos. Agora não vemos nada, senão morta repetição, que não entendemos. A significação do hieróglifo falta. Vivemos ainda do fruto de tempos melhores.” Convencidos do progresso humano como seus predecessores iluministas, acreditavam que o modo de pensar transcendental ou romântico, tornado possível por Fichte e Kant, era central, historicamente, como a revolução mesma. Novalis diz em Pólen:

O mundo precisa ser romantizado. Assim reencontra-se o sentido originário. Romantizar nada é senão uma pontenciação qualitativa. O si mesmo inferior é identificado com um si mesmo melhor nessa operação. Assim como nós mesmos somos uma tal série potencial qualitativa. Essa operação é ainda totalmente desconhecida, na medida em que dou ao comum um sentido elevado, ao costumeiro um aspecto misterioso, ao conhecido a dignidade do desconhecido, ao finito um brilho infinito, eu o romantizo.

Romantizar seria uma outra forma de pensar, com a razão auto-reflexiva que inclui a imaginação, e assim se emancipa da argumentação lógica, própria da razão instrumental capitalista. Romantizar é pensar poeticamente, e os fragmentos são experiências de pensamento.

Os primeiros românticos viam a subjetividade, condição para uma razão auto-reflexiva, problemática, no processo social de modernização através da dominação da sociedade pelo valor de troca. Não consideravam mais legítima a relação sujeito contraposto ao objeto como no modelo da epistemologia positivista. Do entendimento do outro faz parte o auto-entendimento. Em Pólen: “Como pode um ser humano ter sentido para algo, se não tem o germe dele dentro de si. O que devo entender tem de desenvolver- se em mim organicamente – e aquilo que pareço aprender é apenas alimento do organismo”.

Perguntavam pela liberdade de constituição da subjetividade. A vida está para ser criada assim como o sujeito, que vai ser para eles pura atividade da imaginação. O eu é tanto atividade como produto dessa atividade: “Eu é escolha e realização da esfera de liberdade individual, ou auto-atividade. Fichte se pôs em obra, como Brown – só que ainda mais universal e absolutamente.” Mas a auto-representação do eu, embora imperativa, é impossível, o que leva o eu à atividade constante. Novalis nos define como projeto: “Para o mundo procuramos o projeto – esse projeto somos nós mesmos. O que somos? Pontos onipotentes personificados. A execução, enquanto imagem do projeto, tem, porém de lhe ser igual na livre-atividade e auto-referência – e inversamente.

Apenas o eu prático pode ser apreendido: “A compreender-nos totalmente, nós não chegaremos nunca, mas podemo-nos, e iremos, muito mais que compreender”. Na verdade, o termo imaginação é um outro nome para o eu que é pura atividade, produtividade: “Tornar-se humano é uma arte.” E ainda: “cada ser humano é uma pequena sociedade.”

Para Seyhan, Novalis não vê a identidade como um princípio primordial que engendra uma divisão sujeito-objeto:

Ela é agora a atividade conjunta de companheiros num empreendimento comunicativo. Ainda mais, nos escritos de Novalis o eu fichteano é transformado num corpo social. Os espaços entre o sujeito e o mundo, eu e tu e objetos e representações passam do domínio teórico ao prático, informado por uma realidade textual e dialógica. Não há mais como escapar da linguagem; estamos dentro de uma teia de palavras que definem nosso ser.

O objetivo do projeto romântico era destruir o poder de uma razão “petrificadora e petrificada” – de forma que uma subjetividade livre pudessse se constituir. Aqui entra a imaginação, para Kant, faculdade produtiva de cognição.

Com ela, libertavam-se da lógica. Para os românticos, atos desconstrutivos e anárquicos da imaginação na relação do poeta com a linguagem eram a condição básica para a recuperação da subjetividade, levavam a uma emancipação fundamental da instrumentalidade: “O poeta conclui assim que começa o traço. Se o filósofo apenas ordena tudo, coloca tudo, o poeta dissolveria todos os elos. Suas palavras não são signos universais – são sons – palavras mágicas que movem belos grupos em torno de si.” A imaginação tem papel central no pensamento de Novalis, para quem a razão prática é pura imaginação.

Afirmavam liberdade quanto à representação, através da consciência de que é impossível representar o absoluto. Seu conceito de representação aponta para a ausência do que é representado, e a palavra Darstellung se distingue como apresentação. A poesia manifesta no mundo sensível o que está fora dele, a flor ausente de todos os buquês de Mallarmé. Essa apresentação é uma livre atividade criadora, que não se situa nem no sujeito nem no objeto. Acontece na linguagem:
Mas, e se eu fosse obrigado a falar? E esse impulso a falar fosse o sinal da instigação da linguagem, da eficácia da linguagem em mim? E minha vontade só quisesse também tudo a que eu fosse obrigado, então isto, no fim, sem meu querer e crer, poderia sim ser poesia e tornar inteligível um mistério da linguagem? E então seria eu um escritor por vocação, pois um escritor é bem, somente, um arrebatado da linguagem?

Liberdade e infinito são conceitos necessários para o jogo livre da apresentação pela imaginação produtora. O fragmento nega o postulado de uma representação contínua e introduz quebras no fundamento da idéia. Na poesia o resultado do livre jogo da imaginação é o arabesco, o verso que Hugo Friedrich encontra em Baudelaire, Rimbaud e Mallarmé. A crítica é um diálogo com o original, poesia e crítica têm que partilhar a mesma linguagem. Com isso rompem barreiras entre diferentes formas de conhecimento, filosofia, crítica, ciência e religião: “O melhor nas ciências é seu ingrediente filosófico – como a vida no corpo orgânico. Desfilosofem-se as ciências – o que resta – terra, ar e água.” Transformam o mundo num livro a ser decifrado, lido e escrito.

Novalis tinha o projeto de uma enciclopédia, cujo rascunho foi seu Das allgemeine Brouillon. Uma enciclopédia é um livro infinito. Há um livro de Werner Vortriede que mostra a relação dos simbolistas franceses com Novalis e o primeiro romantismo alemão. No Brasil, o crítico simbolista Nestor Vítor escreve sobre Os discípulos de Saïs e os Fragmentos, em 1889, e descobre no poeta alemão a genealogia de Mallarmé. Mas se o perigo da estetização ronda alguns simbolistas, nos primeiros românticos dominaria a criticidade de sua produção.

Poesia vai ser para eles reconhecer um objeto como referente não somente a si mesmo, mas ao solo de referência do eu, reconhecendo-o não somente como objeto mas como um objeto para a consciência. A realidade do mundo como se apresenta a nós é assim uma realidade significativa. O mundo é real, mas sua realidade fala a linguagem prescrita pela consciência. Por isso falam de uma poetização da natureza. Tudo está a ser produzido: “A vida não é um romance dado a nós, mas um romance feito por nós.”

Para Novalis, o momento objetivo da consciência não acontece sem um momento subjetivo. No fragmento 26 de Pólen, afirma:

[...]O primeiro passo vem a ser olhar para dentro – contemplação isolante de nosso eu – Quem se detém aqui só logra metade. O segundo passo tem de ser eficaz olhar para fora – observação auto-ativa, contida, do mundo exterior.

Para Molnár, cujo livro sobre Novalis ajuda a compreender a singularidade de seu pensamento, essa primazia da autoconsciência não implica que tudo foi levado para o interior do indivíduo e houve uma retirada para o solipsismo. A filosofia transcendental permite uma perspectiva que dá conta do que é conscientemente real e da realidade referida. O eu está continuamente afetado pela experiência, assim em constante mudança – aquilo a que a afetação é atribuída constitui o mundo em que se vive –, o mundo é o que afeta o sujeito, assim consciência do mundo é consciência do eu, que, por sua vez, é produtividade, um centro produtivo, atividade. Tudo é essencialmente um produto da atividade do eu.

Apenas o pré-requisito de se dirigir para dentro tem sido geralmente reconhecido como a direção típica do idealismo alemão. No entanto o oposto é o verdadeiro. O indivíduo precisa olhar para fora e ter experiências no mundo para realizar o potencial inato do eu em toda a sua extensão. Esse processo pode ser visto como uma viagem, de um começo indefinido a um objetivo também indefinido e esse é o desenvolvimento e a formação dos quais o Wilhelm Meister de Goethe é o paradigma. O caminho místico na direção de uma reunião com a realidade se transforma num processo de auto-realização em que ser humano significa ser um indivíduo com a obriga ção de transformar a existência casual em uma vida por escolha e desígnio. Diz o fragmento de Pólen:

Todos os acasos de nossa vida são materiais, a partir dos quais podemos fazer o que quisermos. Quem tem muito espírito faz muito de sua vida – todo encontro, toda ocorrência seria, para quem é inteiramente espiritual – primeiro termo de uma série infinita – começo de um romance infinito.

Espírito para os primeiros românticos significa imaginação. E liberdade significa determinar sua esfera própria, sair de si. No estado não-livre a esfera objetiva é experimentada como determinando o eu, que funciona apenas como um ponto de impacto para uma sucessão de eventos incompreensíveis. Para ser livre o eu precisa ser ativo e quando se age moralmente, se age livremente. E o caminho moral é uma via negativa, como o caminho místico, pois nega tudo o que possa exercer poder sobre o eu. Mas, ao contrário do místico, essa negação não é conseguida por meio de uma retirada ascética, mas através de um contínuo engajamento ativo no mundo. No entanto, a ação moral consiste em um duplo movimento: por um lado é um desengajamento do mundo até que o eu esteja sozinho, livre para decidir, e, por outro lado, um reengajamento, no qual o mundo não pode servir como fim, mas apenas como meio que leva da pura subjetividade de um agente livre para a sua validade geral. No modelo de Novalis, a ética é complementada por amor e atividade. Desse movimento fala o fragmento 51 de Pólen:

O interessante é aquilo que me põe em movimento, não em vista de Mim Mesmo, mas apenas como meio, como membro. O clássico não me perturba – afeta-me apenas indiretamente, através de mim mesmo – Não está aí para mim como clássico, se eu não o ponho como um tal, que não me afetaria se eu não me determinasse – me tocasse – eu mesmo à produção dele para mim, se eu não destacasse um pedaço de mim mesmo e deixasse desenvolver- se esse germe de um modo peculiar perante meus olhos – um desenvolvimento que freqüentemente só precisa de um momento – e coincide com a percepção sensorial do objeto – de modo que vejo perante a mim um objeto, no qual o objeto comum e o ideal, mutuamente interpenetrados, formam um único prodigioso indivíduo.

Molnár vê Novalis expandindo a visão de Fichte, avançando além da doutrina da ciência, ao armar um “esquema básico” em que o eu é igual ao mundo e o mundo, igual ao eu. Esse esquema sustenta seus trabalhos poéticos.

Além da filosofia de Fichte, com que trabalha nos Fichte-Studien, Platão e Hemsterhuis são suas referências filosóficas. A relação com Sofia, a mulher amada, enquanto viva e depois de sua perda, é um processo formativo que muda a relação de Novalis com o mundo e permite uma visão poética, uma visão em que objetos e acontecimentos atingem um sentido que não pode ser reduzido a preocupações pragmáticas.

Para Novalis, o poeta tem que passar por um processo formativo, através do qual atinge um nível de humanidade superior, em que encontra a visão poética – uma autoformação do eu. O artista é transcendental no sentido do que diz o fragmento:

A suprema tarefa da formação é – apoderar-se de seu si-mesmo transcendental – ser ao mesmo tempo o eu de seu eu. Tanto menos estranhável é a falta de sentido e entendimento completos para outros. Sem auto entendimento perfeito e acabado nunca se aprenderá a entender verdadeiramente a outros.

É esse processo formativo o que acontece em Heinrich von Ofterdingen, um romance sobre a poesia, que conta a formação de um poeta. Como diz Novalis num outro fragmento:

Anos de aprendizado são para o novato poético – anos acadêmicos para o filosófico. [...] Anos de aprendizado no sentido eminente são os anos de aprendizado de viver. Através de ensaios planejadamente ordenados aprende-se a conhecer os princípios dessa arte e adquire-se a destreza de proceder segundo esses princípios ao bel-prazer.

A poesia é tanto uma questão de linguagem quanto de autonomia moral do poeta. Compreender isso, segundo Molnár, pode impedir que a leitura contemporânea de Novalis caia no que chama de “a prisão da linguagem”. O trabalho poético é o caminho de um desenvolvimento pelo qual o eu ganha consciência de uma liberdade inerente. Quando essa consciência cresce, os antagonismos entre eu e mundo, e entre espírito e natureza, diminuem, e sua identidade fundamental começa a se tornar aparente, o que constitui a visão poética. A poesia de Novalis é caracterizada por essas visões de identidade eu/mundo: em Os Discípulos de Saís, a natureza deixa cair o véu frente aos que seguem o verdadeiro caminho, nos Hinos à noite, o não do mundo, i.e., a certeza da morte, perde seu poder sobre os que são guiados pelo amor e em Ofterdingen a progressão ao encontro do mundo é também progressão ao encontro de si mesmo.

Molnár vai ver isto se dando no romance inacabado, escrito por Novalis aos 27 anos, dois anos antes de morrer em 1801, e cujo tema é a transformação interna pela qual o indivíduo precisa passar para pôr o mundo e o eu numa relação que não é congelada num estado de oposição permanente. Pode-se compará-lo ao Meister de Goethe, o Bildungsroman, que os primeiro românticos consideravam fundamental, mas também criticado por Novalis.

Novalis trabalha numa via negativa, próxima de uma teologia negativa vinda dos místicos alemães como Eckart e Böehme, que marcaram o idealismo alemão. Negação significa usar o que já se sabe para formular uma questão, o que é equivalente a nos fazer receptivos para uma eventual resposta. Sem essa atitude questionadora, essa prontidão para receber, poderíamos ser expostos a todos os tipos de experiência, mas seríamos incapazes de absorvê-las.

Como a trama do romance é a do desenvolvimento interno, ele não descreve os ambientes com detalhes realistas e seus personagens são descarnados, embora Ofterdingen e Klingsohr tenham existido como trovadores medievais. Novalis queria expor suas idéias, com isso o romance é uma interpolação de narrativa, “contos simbólicos”, diálogos e poemas, atualizando o que Klingsohr afirma da poesia, “em toda poesia é preciso que o caos transpareça sob o véu regular da ordem”. O romance contém sua própria teoria.

O percurso de Heinrich vai mostrar uma mudança de perspectiva: um mundo transformado a partir de uma relação transformada com ele. No início, vive com os pais e o mundo pragmático não lhe é suficiente. O pai diz que sonho é mentira e em vez de se tornar um artista como prometia na juventude (ele também sonhara com a flor azul), torna-se um artesão. No final da narrativa, Heinrich encontra o médico Silvestre, que tinha aparecido como mineiro e este lhe conta sobre seu pai:

Eu discernia nele os signos anunciadores do grande artista plástico. Seu olho estava todo animado do desejo de se tornar um olho verdadeiro, um instrumento de criação. Seu rosto exprimia a firmeza interior e a aplicação. Mas o mundo presente tinha já criado raízes profundas demais em sua alma. Ele não queria escutar o chamado de sua natureza mais íntima [...]. Ele se tornou um artesão hábil e o entusiasmo não era mais do que loucura a seus olhos.

Tudo começa para Heinrich com o sonho em que vê a flor azul. A partir dele e do encontro com comerciantes narradores decide partir de sua cidade. Assim, com a conscientização do desejo pela flor, muda sua relação com o mundo. Quando alcança o máximo de consciência, apenas vai ser possível comunicar sua situação singular tornando-se poeta. E a chegada a Augsburg vai ser decisiva nessa descoberta da poesia. Encontra Matilde, a filha do poeta Klingsohr, que vai amar e depois perder. Quando mais tarde, melancólico, abandonado e infeliz, tem uma visão em que ela lhe fala, então toma a lira e compõe.

O sonho tem um papel preponderante na história, no sentido de revelação de uma realidade mais verdadeira. Nele, as imagens, fruto de uma imagi nação livre, podem revelar o eu, sua natureza verdadeira, atualizando a revolução copernicana de Kant. Segundo Molnár:

O sonhador executa de novo a revolução copernicana de Kant, mostrando que não há objetos como coisas em si, às quais a realidade experimental se refere. Coisas não são em si, mas fenômenos, o que significa que a imediaticidade das imagens do sonho se referem à criatividade do eu em formá-las e não a uma imagem externa do dado; expressam a ação livre do eu dando forma ao mundo.

No final o sonhador se vê como uma força ativa, construindo o mundo, dentro do qual esse eu objetificado toma seu lugar como um objeto entre outros.

Enquanto o eu procura a realização da lei moral, o mundo pode manifestar a mesma lei, lhe apresentando uma face humana. Quando Heinrich encontra a flor azul, suas pétalas se mudam numa face que ele mais tarde vai reconhecer como a de sua amada. Eros forja o laço que une o eu ao mundo e o mundo ao eu. A lenda que conta o personagem Klingsohr, o mestre, é um comentário do poder liberador do espírito da poesia. Eros, ajudado por Fábula, o espírito da poesia, tem a tarefa de dispersar o gelo sobre o mundo estranho e revelar a identidade escondida do eu com o mundo. Quando Heinrich encontra Silvestre, no final, diz algo que lembra a declaração do poeta Paul Celan, na Carta a Hans Bender , de que poesia pode ser um aperto de mão, ligando assim poesia à experiência e ao gesto moralmente livre:

Pois o verdadeiro espírito da fábula é um amável disfarce do espírito da virtude, e o objeto verdadeiro da poesia que lhe é subordinado, é a atividade de nosso eu a mais alta e mais pessoal! Há uma espantosa identidade entre um canto sincero e uma nobre ação.

Heinrich segue um caminho exterior que tem sua contrapartida interior e cada avanço numa direção registra um progresso na outra. São vários encontros: com alguns comerciantes, com um eremita, com um mineiro, com uma mulher oriental, todos simbólicos de atitudes no mundo. E todos são narradores, contam histórias reveladoras para Heinrich. Assim, uma vez que o eu se conhece de um modo não baseado na oposição ao mundo, o mundo cessa de se opor a ele. A dicotomia entre eu e mundo entra em colapso quando o eu assume a perspectiva da liberdade que ocupa em todos os processos de conscientização. O mundo não é mais um fator de oposição, mas “o mundo se torna sonho e o sonho se torna mundo”. O mundo sensível é uma ilusão, o mundo real, uma feérie do espírito. Nesse sentido pode-se entender o fragmento de Pólen que diz depender de nossos órgãos não vermos o mundo feérico. Em cada ato moralmente livre, o princípio de oposição eu/mundo é suspenso. O poeta dá sentido ao mundo, ou descobre seu sentido. Na lenda que Klingsohr conta, a Atlântida permanece escondida sob a superfície do mundo, o véu do estranhamento nos impede de reconhecê-la no outro e no texto da natureza. A utopia de uma revolução por um novo modo de pensar aparece, sempre em diálogo, também nas palavras do personagem Silvestre:

– Quando, diz Heinrich, não haverá mais necessidade de terror, de sofrimentos, de angústia e de mal no universo?
– Quando não houver mais que uma só força, a força da consciência; quando a natureza for disciplinada e moralizada. Há apenas uma única causa do mal: a mediocridade universal e esta fraqueza não é outra coisa senão uma insuficiência de sensibilidade moral e a ausência do poder estimulante da liberdade.

Contra o perigo do esteticismo e de atribuição de valor aos objetos, ao desejo e ao orgulho, o desapego do eu torna possível uma relação poética com o mundo, i.e, uma relação produtora. O poeta fala a linguagem que ouve, a língua original da humanidade. O que lembra Vico. Essa consciência da língua original faz o poeta. O poeta não fala o mundo, mas ouve o mundo falar, fala a linguagem que ouve, essa língua original, uma dimensão não dita que está em toda linguagem. Molnár diz que o uso poético da linguagem para Novalis abre uma nova dimensão que supera a realidade da existência humana, mas é inclusiva dessa realidade. Aqui está a crítica ao esteticismo. No romance o personagem de uma das histórias contadas, o rei tende a ver a dimensão poética como uma dimensão exclusiva. No entanto

A linguagem poética faz o familiar parecer estranho para tornar o estranho familiar, não para absolutizar o momento esotérico e constituir uma esfera autônoma na qual a arte substitui o mundo, mas para revelar o fundamento comum de nossa identidade como seres humanos com referência ao qual o mundo assume realidade para nós e nós assumimos realidade nele.

Conhecimento, arte e princípio de valor moral se inter-relacionam. O cientista não é um cientista a não ser que também aprecie as artes poéticas e o amante da poesia ama apenas a si próprio no objeto de arte se não for capaz de identificar seu ser com todos os seres humanos. Em um momento Klingsohr, já na chegada a Augsburg, parte decisiva na descoberta da poesia, diz, identificando poesia a ficção, no sentido que Rancière a vê, como procedimento próprio do espírito humano:

É uma pena que a poesia tenha um nome particular e que os poetas formem uma corporação à parte. A poesia não é coisa à parte. Ela é o modo de atividade próprio ao espírito humano. Todo homem não está a cada minuto de sua vida a fabular e a inventar?

O personagem do mineiro, trazendo o ouro que está escondido no uso prosaico da linguagem, dá uma demonstração de como qualquer ofício deve ser conduzido. Todo empreendimento pragmático é prosaico, mas tem dimensões sociais comunitárias, que equivalem à liberdade moral e sua manifestação comunitária é poesia. Não só o verdadeiro cientista se torna poeta, mas o verdadeiro historiador também, ao ler e falar a linguagem original. A história pressupõe um contexto humano de interpretação. O historiador tem que ter o sentido poético da adivinhação. Diz o eremita:

Quando examino tudo isso atentamente me parece necessário que um historiador seja também poeta, pois só os poetas se entendem nessa arte de encadear os acontecimentos de modo satisfatório. Nas suas narrativas e fábulas observei com um prazer secreto o sentimento delicado que têm do misterioso princípio da vida. Há mais verdade nos seus contos do que nas crônicas eruditas.

Na caverna do eremita, Heinrich encontra o livro de sua vida escrito em provençal, a linguagem dos trovadores. Quando aprender a linguagem dos poetas, Heinrich vai ser capaz de ler o texto e se descobrir como seu autor.

O movimento que tentamos mostrar em Novalis de uma revolução no pensamento, é mostrado num ensaio de Karl Heinz Bohrer “Metáfora e heresia, a desfiguração romântica do espírito”, que discute o poema de Novalis, Os hinos à noite e a relação entre religião e estética, mostrando como os primeiros românticos estranham, desfiguram o mito cristão e o transformam. O poema enfatiza o não-profano, mas estranhando as categorias teológicas centrais. Novalis seria herético enquanto a heresia é irmã da imaginação. Bohrer procura entender o que diz Schlegel quando fala de criar uma nova mitologia, em Conversa sobre a poesia, como uma desestabilização heréticosubversiva da tradição.

Os Hinos à noite são – diferentemente dos Night thoughts de Edward Young (1742/ 43), como um todo, uma homenagem ao lado noturno e inconsciente dos homens e seus meios: erotismo, sono e morte. Essa homenagem vale como uma noite, que no modo do sono é caracterizada como “mensagem silente de segredos infinitos”.

Bohrer mostra como uma semântica subjetiva da imaginação dissolve os dados objetivos de um discurso teológico histórico-filosófico previamente dado na sua temática: a tentativa de ler os Hinos à noite como uma mística autobiográfica, inspirada pela morte de Sofia e seguidora da mística de Boehme, ou seja, como uma religião privada conduzida de forma pietista, oculta o que aqui acontece em cadeias de imagens metafóricas. Também o texto de Novalis está marcado pela filosofia, especialmente pela discussão concentrada sobre a doutrina da ciência de Fichte. A proeminência do ato transcendental, como o caracterizam os aforismos teórico-especulativos de Novalis, atravessa os Hinos à noite: com isso evita-se que surja um mito no sentido tradicional, o que seria possível por meio da idéia básica da dicotomia entre noite e dia, num sentido quase arcaico.
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*VERA LINS, Doutora em Letras pela UFRJ em 1995, é Professora de Teoria Literária e Literatura Comparada do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Faculdade de Letras da UFRJ. É autora de Gonzaga Duque, a estratégia do franco-atirador (Tempo Brasileiro, 1991) e Novos Pierrôs, velhos saltimbancos (Secretaria de Cultura do Paraná, 1998).

Fontes:
http://www.ciencialit.letras.ufrj.br/
Pintura = http://www.portais.org

Dicionário de Folclore (Letra G)



GAGAU. Nome dado a um antigo jogo de dados no qual o dois e o ás eram os pontos maiores. Tomar gagau era como se dizia quando um rapaz ou uma moça estavam perdidamente apaixonados. Gagau também é o mingau das crianças.
GAGUEIRA. É a maneira sincopada de falar, própria de pessoas que têm essa deficiência, isto é, que são gagas. Para a pessoa ficar curada da gagueira, nada como se bater três vezes, na cabeça do gago, com uma colher de pau.
GAITA. 1. Sanfona, gaita-de-fole, realejo, fole, acordeon; 2. Gaita também é dinheiro, porque quem tem dinheiro anda sempre alegre, bem humorado, como quem toca gaita.
GALINHA. 1. É a fêmea do galo; 2. Mulher muito volúvel que se entrega aos homens com facilidade; 3. Pessoa covarde, medrosa; 4. Na linguagem popular a galinha também se faz presente: 1. Dormir-com-as-galinhas é dormir cedo, como as galinhas; 2. Quando-as-galinhas-criarem-dentes, nunca, jamais, porque as galinhas nunca criarão dentes; 3. Galinha-choca é a pessoa irrequieta, que não pára um instante; 4. Galinha-d'água é o descendente de holandês com brasileiro, aloirado, de olhos azuis.
GALINHA-GORDA. É uma brincadeira de meninos durante o banho de mar, de açude, de rio. Um dos meninos pega uma pedra, diz: "Galinha gorda! Gorda é ela! Vamos comê-la? Vamos a ela!" Em seguida atira a pedra dentro d'água e todos vão procurá-la.
GALINHA-MORTA. 1. Diz-se quando uma mercadoria é barata, é uma pechincha; 2. Coisa fácil de aprender, de ser feita; 3. Certa cantiga executada à viola ou ao violão (RS), e a dança que acompanha essa cantiga.
GALINHEIRO. 1. É o lugar onde dormem as galinhas; 2. É também, nos teatros, o poleiro, as torrinhas, onde a pessoa paga ingresso mais barato.
GALO-DA-MADRUGADA. O bloco carnavalesco Galo-da-Madrugada foi fundado por foliões residentes no bairro de São José, da cidade do Recife, em 1978. Todos os anos, acompanhado por uma multidão de milhares de pessoas, o bloco desfila no centro da cidade pela manhã do Sábado Gordo. Este bloco entrou para o livro dos recordes mundiais.
GANZÁ. O ganzá, ou canzá, caracaxá, é um cilindro feito de flandres, fechado, com um cabo. No seu interior são colocados grãos ou pequenos seixos que soam quando o ganzá é agitado, sacudido, movimentado.
GARAPA. 1. É o nome que se dá às diversas bebidas servidas geladas, feitas com água, açúcar e o suco de frutas geralmente como o tamarindo, o limão (limonada), o caju (cajuada); 2. No Sertão, garapa é o caldo de cana tirado das moendas; 3. Garapa é tudo que é fácil de ser adquirido, coisa de pouca importância. Também é uma coisa boa, supimpa; 4. É, também, água misturada com açúcar, que se dá para beber quando uma pessoa está nervosa ou quando leva um susto.
GATO. O gato, o bichano, é o animal doméstico encontrado em quase todas as casas, usado para pegar ratos e baratas. Sobre o gato existem muitas crendices e curiosidades: 1. Gato-preto: para algumas pessoas o gato preto dá sorte e para outras traz infelicidade; 2. Quem pisa no rabo de um gato não casa no ano, só nos anos seguintes; 3. Dizem que o gato não gosta de seus donos e sim da casa onde ele vive. Assim, quando uma pessoa muda de residência, deve levar o gato dentro de um saco e passar azeite no focinho dele para que ele perca o faro e não volte à antiga casa; 4. O melhor couro para se fazer uma tamborim é o couro do gato, segundo os entendidos no assunto; 5. Dizem que o gato é o animal mais difícil de morrer, porque tem sete fôlegos; 6. Quem mata um gato tem sete anos de azar. Os gatos estão nas estórias de Trancoso, como no Gato de botas, e no desenho animado, como no Gato Félix. Os homens aprenderam com os gatos a fazer fossas, vendo-os cavar um pequeno buraco, para fazerem cocô e cobri-lo com terra.
GEMADA. A gemada é uma bebida feita com gema de ovo, açúcar e leite quente, tudo misturado e bem batido, muito boa como fortificante capaz de restaurar as forças perdidas. Algumas pessoas costumam substituir o leite por conhaque ou vinho do Porto.
GÊMEOS. Para que a mulher não tenha filho gêmeos deve evitar comer frutas gêmeas. As crianças gêmeas são dotadas de qualidades singulares e tudo o que fazem têm mais poder, mais valor, até mesmo quando rezam. No Brasil, o gêmeo que atirar farinha para o ar em dia de nevoeiro acabará com a neblina. Dizem que menino gêmeo nunca morre afogado, nem se perde nos caminhos desconhecidos. Na Igreja Católica vamos encontrar alguns santos gêmeos: São Cosme e Damião, São Crispim e São Crispiniano, São Gervásio e São Protásio. O povo diz que quando um dos gêmeos sente uma dor, o outro também sente; quando um adoece, o outro fica triste, quase doente. Os gêmeos são sempre muito unidos.
GILBERTO FREYRE nasceu no dia 15 de março de 1900, na cidade do Recife, PE. Seus estudos iniciais foram feitos com professores particulares, entre os quais o inglês Mr. William, a francesa Madame Meunier, seu próprio pai, que lhe ensinou latim e português, e Telles Júnior que foi seu professor de desenho. Fez o curso secundário no Colégio Americano Gilreath, do Recife, seguindo para os Estados Unidos, onde se bacharelou em Ciências Políticas e Sociais pela Universidade de Baylor, fazendo, em seguida, o mestrado e doutorado de Ciências Políticas, Jurídicas e Sociais na Universidade de Colúmbia onde teve como mestres o antropólogo Franz Boas, o sociólogo Giddings, o economista Selingman, o jurista John Bassett Moore e outros. Em sua tese universitária - Social life in Brasil in the middle of the nineteenth century – publicada em inglês, sustenta que a situação do escravo no Brasil patriarcal fora superior à do operário europeu no começo do século XIX. Teve os graus de Bacharel, Mestre, Doutor em Letras, Doutor e Professor. No governo de Estácio Coimbra, Gilberto Freyre foi Chefe de Gabinete, merecendo daquele Chefe de Estado, extraordinária confiança. Foi fundador da cadeira de Sociologia Educacional na antiga Escola Normal de Pernambuco, inaugurando, pioneiramente, com a colaboração de suas alunas, não só no Brasil como na América Latina, trabalhos de campo cujos resultados de sentido social foram aproveitados pelo então Prefeito do Recife, criando playgrounds com o propósito de afastar as crianças dos perigos da rua. Em 1933 publicou Casa-Grande & Senzala, obra básica da história social brasileira, para, em seguida, publicar Sobrados e Mucambos (1936), Nordeste (1937), Açúcar (1939), Aventura e Rotina (1953), Assombrações do Recife Velho (1955), Sociologia da Medicina (1967) e dezenas de outros trabalhos que honram a cultura brasileira. Preso, por seu profundo amor, ao Recife, daqui nunca se ausentou, a não ser temporariamente, a ponto de recusar ministérios, cátedras em Universidades brasileiras, americanas e européias. Foi uma lei de sua autoria, quando deputado federal – eleito pelos estudantes pernambucanos - que criou o Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, hoje Fundação Joaquim Nabuco, nunca deixando de presidir seu Conselho Diretor. Gilberto Freyre colaborou em revistas especializadas em jornais nacionais e internacionais, participou, como membro efetivo, do Conselho Estadual e do Conselho Federal de Cultura. Faleceu, no dia 18 de julho de 1987, na cidade do Recife, PE.
GIRASSOL. O girassol é uma flor de bom tamanho, de cor amarela, que acompanha sempre a direção do sol, razão pela qual tem este nome. Serve para a alimentação dos pássaros e seu óleo está sendo usado na culinária brasileira.
GOGÓ-DE-SOLA. Trata-se de um pequeno animal que vive no Acre e que tem o pescoço da cor de ferrugem. Apesar de seu pequeno tamanho, é muito agressivo.
GONÇALVES FERNANDES nasceu em 1909,na cidade do Recife, PE. Diplomado em Medicina (1937) pela Universidade de Pernambuco, sempre foi conhecido como psiquiatra, antropólogo e folclorista especializado na faixa das superstições e da religiosidade popular. Foi professor da Faculdade de Ciências Médicas do Recife, da Faculdade de Direito do Recife e da Universidade do Brasil. Dedicado ao estudo e à pesquisa dos problemas humanos e sociais, encarados, de modo particular em seus aspectos religiosos e psiquiátricos sob critério e métodos da Antropologia e Folclore, fez vários cursos de especialização antropológica, neuropsiquiátrica e sociológica, estagiando, também, nos principais centros culturais da Bélgica, Holanda, Suíça, Itália, França, Portugal, Espanha e Argentina, especialmente convidado, pronunciando conferências sobre assuntos de interesse luso-brasileiro em diversos institutos científicos. Esteve no exercício de diversos cargos ligados à Medicina, de modo especial à Psiquiatria, à Psicanálise e à Antropologia Cultural. Assumiu, durante algum tempo, a direção do Departamento de Psicologia Social do então Instituto Joaquim Nabuco de Ciências Sociais, hoje Fundação Joaquim Nabuco, onde coordenou várias pesquisas. É autor de diversos livros na especialidade a que se dedicou, entre os quais Xangôs no Nordeste (1937), O folclore mágico do Nordeste (1938), As religiões no Brasil (1939), Seitas afro-brasileiras (1940) e O sincretismo religioso no Brasil (1941). Faleceu em 1986, na cidade do Recife, PE.
GONGUÊ. Também conhecido como chama, porque chama os dançarinos. O gonguê é um pequeno tambor usado no zambê, no bambelô. Seu som é surdo e seco (RN).
GOTEIRA. É o nome que os maçons dão aos que não são maçons. Na linguagem da cantoria, goteira é o cantador que não canta bem.
GRILO. Quando a pessoa está com o problema de retenção de urina, nada como tomar um chá de grilo, que é feito da seguinte maneira: pega-se um grilo e cozinha-se uma terça parte. É um remédio de efeito indiscutível. Pode-se, também, fazer o chá com 1/3 do grilo torrado na chapa do fogão.
GRITADOR. O gritador, também chamado de Zé-Capiongo, é da região do Vale do São Francisco. Tem este nome porque passa a noite gritando. Dizem que o gritador é alma de um vaqueiro que, desrespeitando a Sexta-Feira da Paixão, saiu para trabalhar e ninguém mais deu notícia dele. Ele grita tanto de noite como até mesmo durante o dia. Na Sexta-Feira da Paixão ouve-se até o barulho dos cascos de seu cavalo.
GRUDE. 1. É uma cola feita com goma e água; 2. É um bolo feito com goma ou massa de mandioca, embrulhado em folha de bananeira e, depois, assado, muito conhecido no Nordeste. Diz-se dos namorados que ficam agarrados o tempo todo, como um grude. Grude também é a sujeira dos que não tomam banho.
GUAIAMUM. É um caranguejo terrestre, de cor azulada, também conhecido por outros nomes: guaiamu, goiamum, fumbaba, gaiamum. O guaiamum vive em buracos nos mangues, e deixa sua casa no tempo de trovoada. Quando o povo quer pegar guaiamum fora do tempo de trovoada, aproxima uma lata qualquer da boca do buraco e bate nela com uma pedrinha. O guaiamum pensa que é trovoada e sai da sua toca. Na medicina popular, comer guaiamum é bom para quem tem coqueluche.
GUASCA ou GAÚCHO. Como é conhecida toda pessoa que nasce no Rio Grande do Sul. Gaúcho é a denominação mais conhecida.
GUDE. É um jogo infantil, com bolinhas de vidro, de massa ou com rolimãs de automóveis e que consiste em fazê-las entrar em três buracos, ganhando o jogador que acertar mais vezes. Há várias modalidades de se jogar o gude, entre as quais a barca.
GUERREIROS. Pertencendo ao ciclo do reisado, guerreiros é uma manifestação folclórica muito conhecida em Alagoas. Os guerreiros têm, como figurantes, o rei, a rainha dos guerreiros e rainha das moças, mestre e contramestre, primeiro e segundo embaixadores, o índio Peri, a lira, o general, a sereia, dois palhaços, dois Mateus, num total de 30 a 45 figurantes, incluindo as damas, os guerreiros, etc. Usando chapéus imitando catedrais, coroas, tiaras, mitras, espelhos, aljôfares, miçangas, fitas prateadas, os guerreiros têm uma coreografia (dança) pobre, animada apenas por sanfonas e pandeiros.
GURIATÃ. É uma ave da orla marítima e da zona da mata, de canto imitando outros pássaros. Também é conhecida como gurinhatã, guriatã-de-coqueiro.

Fontes:
LÓSSIO, Rúbia. Dicionário de Folclore para Estudantes. Ed. Fundação Joaquim Nabuco
Imagem = http://www.terracapixaba.com.br/

terça-feira, 24 de março de 2009

Graciliano Ramos (Auto-Retrato)

Retrato de Graciliano, por
Cândido Portinari

Nasceu em 1892, em Quebrangulo, Alagoas.
Casado duas vezes, tem sete filhos.
Altura 1,75.
Sapato n.º 41.
Colarinho n.º 39.
Prefere não andar.
Não gosta de vizinhos.
Detesta rádio, telefone e campainhas.
Tem horror às pessoas que falam alto.
Usa óculos. Meio calvo.
Não tem preferência por nenhuma comida.
Não gosta de frutas nem de doces.
Indiferente à música.
Sua leitura predileta: a Bíblia.
Escreveu "Caetés" com 34 anos de idade.
Não dá preferência a nenhum dos seus livros publicados.
Gosta de beber aguardente.
É ateu. Indiferente à Academia.
Odeia a burguesia. Adora crianças.
Romancistas brasileiros que mais lhe agradam: Manoel Antônio de Almeida, Machado de Assis, Jorge Amado, José Lins do Rego e Rachel de Queiroz.
Gosta de palavrões escritos e falados.
Deseja a morte do capitalismo.
Escreveu seus livros pela manhã.
Fuma cigarros "Selma" (três maços por dia).
É inspetor de ensino, trabalha no "Correio do Manhã".
Apesar de o acharem pessimista, discorda de tudo.
Só tem cinco ternos de roupa, estragados.
Refaz seus romances várias vezes.
Esteve preso duas vezes.
É-Ihe indiferente estar preso ou solto.
Escreve à mão.
Seus maiores amigos: Capitão Lobo, Cubano, José Lins do Rego e José Olympio.
Tem poucas dívidas.
Quando prefeito de uma cidade do interior, soltava os presos para construírem estradas.
Espera morrer com 57 anos.

Fonte:
http://www.graciliano.com.br/