terça-feira, 26 de maio de 2009

James Joyce (Arábia)


A Rua North Richmond, uma rua sem saída, era muito tranqüila, exceto na hora em que a Christian Brother's School liberava os alunos. Uma casa de dois andares, desabitada e isolada de ambos os lados, bloqueava-lhe uma das extremidades. As outras residências, cônscias das vidas decentes que abrigavam, fitavam-se com imperturbáveis fachadas escuras.

O antigo inquilino de nossa casa, um sacerdote, havia morrido na sala dos fundos. Nos cômodos longamente fechados flutuava um odor de mofo e o quarto de despejo, atrás da cozinha, estava abarrotado de papéis velhos. Entre eles encontrei algumas brochuras com as páginas úmidas e onduladas: O Abade, de

Walter Scott, O Devoto Comungante e as Memórias de Vidocq. Gostei mais deste último por causa de suas folhas amareladas. O quintal abandonado, atrás da casa, tinha no centro uma macieira e alguns arbustos esparsos, sob um dos quais encontrei a bomba enferrujada da bicicleta do antigo morador. Tinha sido um padre muito piedoso e, no testamento, deixara todo seu dinheiro para instituições de caridade e a mobília da casa para a irmã.

Ao chegarem os curtos dias de inverno, o crepúsculo caía antes que tivéssemos terminado o jantar. Quando saíamos à rua, as casas se encontravam mergulhadas na sombra. O pedaço de céu sobre nós era de um violeta cambiante, contra o qual os postes erguiam a pálida luz de suas lanternas. Aguilhoados pelo vento gélido, brincávamos até nos esbrasearmos e nossos gritos ecoavam na rua silenciosa. O curso dos brinquedos conduzia-nos às vielas escuras e lamacentas atrás de nossas casas, onde desafiávamos os rudes moradores dos barracos, aventurando-nos até os portões de quintais sombrios e úmidos, impregnados do cheiro fétido das fossas, ou aproximando-nos de estábulos escuros e odorosos, onde, às vezes, um cocheiro escovava e lustrava seu cavalo ou fazia tilintar os arreios de fivelas metálicas. Ao retornarmos à nossa rua, a luz das cozinhas projetava-se através das janelas, nos pequenos terraços. Se percebíamos meu tio virando a esquina, ocultávamo-nos num lugar escuro até termos certeza de que entrara em casa. E se a irmã de Mangan vinha à porta chamá-lo para o chá, continuávamos escondidos, observando-a perscrutar a rua, para ver se desistia. Se não tornava a entrar, deixávamos o esconderijo e, resignadamente, dirigíamo-nos à escada da casa de Mangan, no alto da qual ela nos esperava. A silhueta de seu corpo recortava-se na luz da porta entreaberta. Mangan relutava sempre antes de obedecer e eu ficava junto à balaustrada, contemplando-a. O vestido rodava quando ela movia o corpo e a macia trança de seus cabelos saltava de um ombro para outro.

Todas as manhãs, sentava-me no assoalho da sala da frente para vigiar a porta da sua casa. Levantava a cortina apenas alguns centímetros a fim de que ninguém pudesse me descobrir. Meu coração disparava ao vê-la surgir à porta. Corria para o vestíbulo, apanhava meus livros e seguia-a. Conservava sua figura morena sempre à vista e, ao nos aproximarmos do ponto em que nossos caminhos divergiam, apressava o andar e passava à sua frente. Isto repetia-se todas as manhãs. Nunca havia falado com ela, a não ser algumas frases ocasionais e, no entanto, para o meu sangue inebriado seu nome era um apelo irresistível.

Sua imagem acompanhava-me mesmo nos lugares menos românticos. Nas noites de sábado, quando minha tia ia fazer compras no mercado, eu a acompanhava para ajudar com os pacotes. Caminhávamos pelas ruas iluminadas, acotovelando-nos com os bêbados e as mulheres que pechinchavam, em meio às imprecações dos trabalhadores, aos gritos dos garotos que montavam guarda às barricas cheias de cabeças de porco e à voz fanhosa dos cantores de rua, que interpretavam uma canção popular sobre O'Donovan Rossa ou uma balada a respeito dos problemas do país. Todos esses ruídos convergiam numa única sensação vital para mim: imaginava conduzir meu cálice incólume, através de uma multidão, de inimigos. Certos momentos, seu nome brotava-me dos lábios em estranhas preces e rogos que eu mesmo não compreendia. Meus olhos enchiam-se de lágrimas (não saberia dizer a razão) e, às vezes, uma torrente parecia transbordar meu coração e inundar-me o peito. Pouco me preocupava o futuro. Não sabia se falaria ou não com ela e, se o fizesse, de que modo revelaria minha tímida adoração. Meu corpo, porém, era uma harpa cujas cordas vibravam às suas palavras e gestos.

Certa noite, fui à sala dos fundos onde o padre havia morrido. Era uma noite chuvosa e a casa estava em completo silêncio. Através de uma vidraça quebrada, eu ouvia a chuva bater contra a terra, as finas e incessantes agulhas de água tamborilando nos canteiros encharcados. Bem longe, brilhava uma luz ou janela iluminada. Agradava-me enxergar tão pouco. Os meus sentidos todos pareciam embotar-se e, a ponto de desfalecer, apertei as mãos até meus braços começarem a tremer, murmurando: Ó amor! Ó amor!

Afinal, ela falou comigo. Às suas primeiras frases, fiquei tão encabulado que não soube o que responder. Perguntou-me se eu pretendia ir ao Arábia. Não me recordo se respondi ou não. Ela disse que adoraria ir, pois devia ser uma esplêndida quermesse.

— E por que não vai? — perguntei.

Enquanto falava, ela fazia girar um bracelete de prata. Não poderia ir porque seu colégio faria retiro naquela semana. Nesse momento, seu irmão e dois outros meninos brigavam por causa dos bonés e encontrava-me sozinho junto à balaustrada. Ela se apoiara numa das barras e inclinava o corpo em minha direção. A luz do poste diante de nossas casas roçava a curva nívea de seu pescoço, inflamando-lhe os cabelos. Alcançava, mais embaixo, sua mão sobre a grade e revelava, ao tocar-lhe o vestido, a ponta do saiote que se deixava entrever em sua lânguida postura.

— Você é que devia ir — afirmou ela.

— Se eu for — prometi — trarei uma lembrança para você.

Acordado ou sonhando que loucas e intermináveis fantasias consumiram meus pensamentos a partir dessa noite! Queria suprimir os fastidiosos dias de espera. Os deveres da escola irritavam-me. À noite, no quarto, durante o dia, na aula, sua imagem interpunha-se entre meus olhos e a página que me esforçava em ler. No silêncio em que minha alma vagava luxuriosamente, as sílabas da palavra Arábia atiravam-me num encanto oriental. Pedi permissão para ir à quermesse no sábado à noite. Minha tia surpreendeu-se e disse esperar não se tratasse de uma reunião da franco-maçonaria. Na aula, quase não respondia às questões. De amável, o olhar do professor tornava-se severo. "Espero que não esteja ficando preguiçoso", disse ele. Não conseguia, ordenar meus pensamentos errantes. Quase não tinha paciência para suportar os deveres cotidianos que, interpondo-se entre mim e meu desejo, pareciam brinquedos de criança, brinquedos desagradáveis e monótonos.

Na manhã de sábado lembrei a meu tio que desejava ir à quermesse. Se atarefava-se junto ao porta-chapéus, procurando a escova e respondeu rispidamente:

— Já sei menino, já sei.

Como ele se encontrava no vestíbulo, não pude ir à sala da frente postar-me à janela. Senti que o mau humor imperava na casa e fui desanimado para a escola. Fazia um frio implacável e meu coração já se mostrava receoso. Meu tio não havia chegado, quando voltei para o jantar. Ainda era cedo, Sentei-me e fiquei olhando para o relógio, mas seu tique-taque acabou por me irritar e sai da sala. Subi a escada e ganhei o andar superior da casa. Os cômodos frios, desertos e escuros aliviaram-me a tensão. Atravessei-os cantando. Da janela da frente, vi meus companheiros brincando na rua lá embaixo. Seus gritos chegavam-me amortecidos e confusos. Apertando a testa contra o vidro gélido, olhei para a casa de tijolos escuros em que ela morava. Devo ter ficado, ali quase uma hora, vendo apenas, retida na memória, sua imagem num vestido marrom, tocada de leve pela luz na curva do pescoço, na mão sobre a grade, na barra do vestido.

Ao descer, encontrei a senhora Mercer sentada junto à lareira. Era uma velha mexeriqueira, viúva de um usurário, que colecionava selos usados com um objetivo piedoso qualquer. Tive de suportar sua tagarelice durante o chá. O lanche prolongou-se por mais de uma hora e meu tio não chegava. A senhora Mercer levantou-se para ir embora. Sentia não poder esperar mais, disse ela, mas passava das oito e não gostava de estar fora de casa até muito tarde, pois o frio fazia-lhe mal. Quando saiu, comecei a andar pela sala com os punhos cerrados.

— Talvez tenha de desistir da quermesse por esta noite de Nosso Senhor — prenunciou minha tia.

Às nove horas, ouvi o ruído da chave de meu tio na porta de entrada. Escutei-o resmungar e o porta-chapéus balançar ao peso do seu casaco. Sabia interpretar esses sinais. Na metade do jantar, pedi-lhe que me desse o dinheiro para ir à quermesse. Ele havia esquecido.

— Todo mundo já está na cama e no segundo sono — disse ele.

Não ri. Minha tia interveio enérgica:

— Por que não dá logo o dinheiro e o deixa ir? Já o fez esperar muito tempo.

Meu tio declarou sentir muito ter se esquecido. Disse que acreditava no velho ditado: "Só trabalho e nenhum prazer é que faz de Jack um triste rapaz". Indagou-me aonde ia e quando tornei a explicar, perguntou-me se conhecia O Adeus do Árabe ao seu Corcel. Quando eu saía pela cozinha, ele começava a recitar os primeiros versos do poema para minha tia.

Apertando na mão o florim que recebera, desci a rua Buckingham. As calçadas iluminadas e repletas de compradores que deixavam as lojas deram novo alento ao propósito de minha viagem. Acomodei-me num vagão de terceira classe no trem deserto. Após insuportável demora, o trem se moveu vagarosamente. Arrastou-se entre casas em ruínas e sobre o rio cintilante. Na estação de Westland Row, a multidão comprimiu-se contra as portas do vagão, mas os fiscais fizeram-na recuar, dizendo que aquele era um trem especial para a quermesse. Permaneci sozinho no vagão. Minutos depois o trem parou diante de uma plataforma improvisada. Ao descer, vi no mostrador iluminado de um relógio que faltavam dez minutos para as dez. Diante de mim estava o imenso edifício, ostentando o mágico nome.

Não encontrei nenhum guichê de seis pence e, com medo de que a quermesse fosse fechar, passei rapidamente por uma das borboletas, pagando um xelim ao porteiro de ar fatigado.

Ingressei num vasto saguão, circundado à meia altura por uma galeria. Quase todas as barracas estavam fechadas e parte do saguão achava-se às escuras. Reinava ali o silêncio de um templo vazio. Caminhei timidamente para o centro do edifício. Algumas pessoas estavam reunidas diante das barracas ainda abertas. À frente de uma cortina, sobre a qual se desenhava em lâmpadas coloridas o nome Café Chantant, dois homens contavam dinheiro numa bandeja. Eu ouvia o tilintar das moedas caindo.

Recordando com dificuldade o motivo que me trouxera, aproximei-me de uma das barracas e examinei alguns vasos de porcelana e aparelhos de chá ornados de flores. Na porta da barraca uma jovem conversava e ria com dois rapazes. Notei-lhes o sotaque britânico e ouvi imprecisamente o que diziam:

— Ó, eu nunca disse isso!

— Ó, disse sim!

— Não disse!

— Ela não disse?

— Sim, eu ouvi.

— Ó, que mentiroso!

Percebendo minha presença, a jovem aproximou-se e perguntou-me se desejava comprar alguma coisa. O tom de sua voz não era encorajador. Parecia ter falado comigo por obrigação. Olhei humildemente para dois grandes jarros que, como sentinelas orientais, postavam-se à sombria entrada da barraca e murmurei:

— Não, obrigado.

A jovem mudou a posição de um dos vasos e retornou aos rapazes. Voltaram à discussão anterior. A jovem olhou-me uma ou duas vezes por sobre o ombro. Embora soubesse que era uma atitude inútil, permaneci algum tempo diante da barraca, para acentuar a impressão de que estava realmente interessado naqueles objetos. Finalmente, voltei-me e caminhei devagar para o meio do saguão. Soltava as moedas dentro do bolso, fazendo-as bater uma na outra. No fundo da galeria, alguém gritou que a luz fora desligada. A parte superior do saguão estava agora completamente apagada.

Fitando a escuridão, eu me vi como uma criatura tangida e ludibriada por quimeras. Meus olhos queimavam de angústia e ódio.

Fontes:
JOYCE, James. Dublinenses. SP: Biblioteca Folha, 2003. (Tradução de Hamilton Trevisan).

I Expozine de Itu (SP) foi um Sucesso!


A Biblioteca Comunitária Waldir de Souza Lima em Itu – SP, foi o espaço da I Expozine de Itu (Exposição de Fanzines). O evento que aconteceu no último dia 24 de maio (sábado) foi um grande sucesso, pois foram várias as atividades e atraiu um grande público interessado nesse movimento, que já existe há décadas. Vários fanzineiros estiveram presentes no evento, mas o principal destaque foi a presença do cartunista e roteirista paulista Júlio Maga. Além da oficina de fanzines coordenada por Paulo Ernesto, teve também uma sensacional palestra com o Professor da USP, Gazy Andraus e exposição de fanzines de várias partes do país. Na ocasião foi aberto um espaço na biblioteca com o nome de Gibiteca Moacir Torres, uma homenagem feita pelos organizadores ao cartunista Indaiatubano. Agradecimentos especiais a Paulo Ernesto Aranha e José Renato Galvão pelo importante evento e também pela grande homenagem

Veja mais sobre o evento em http://singrandohorizontes.blogspot.com/2009/05/ponto-de-leitura-de-itu-realiza-amanha.html

Fonte:
Biblioteca Comunitária Waldir de Souza Lima

José Renato M. Galvão (Mas afinal o que é “Fanzine?”)



Em cerca de um mês de divulgação do evento, temos nos deparado com muitas pessoas perguntando: “o que é na verdade um FANZINE? Já ouvi falar nessa palavra mas até hoje não sei o que significa.“

Não foram poucas as pessoas que fizeram esse questionamento e na minha opinião isso se explica facilmente: pelo simples fato de que o FANZINE, ou ZINE, como carinhosamente é chamado pelos seus fazedores, é uma publicação independente que praticamente não conta com nenhuma divulgação além da que é feita pelos seus editores e amantes do gênero.

A literatura sobre o tema é escassa, iremos apresentar alguns livros na EXPOZINE, mas na verdade o material bibliográfico para estudo dos ZINES acabam sendo as próprias publicações.

A mídia gorda (como escreve Mylton Severiano) não tem nenhum interesse em propagar a cultura dos ZINES, afinal pela sua própria essência o ZINE é a anti-imprensa corporativa, empresarial, cartelista, comercial, banal, corrupta, sensacionalista e golpista.

Os ZINES assumem-se como imprensa parcial, ou seja, deixam bem claro que são publicações de fãs e amantes de uma ou várias manifestações culturais. A própria origem da palavra vem dos termos ingleses FAN(FANATIC = fã) e ZINE (MAGAZINE = revista). Não buscam a tão valorizada imparcialidade ou neutralidade da imprensa, que via de regra esconde uma posição bem definida em prol das elites midiáticas que comandam o país, vide Globo, Veja, Época, Folha, Estadão, Band, Record e outras.

O FANZINE segue o conceito do-it-yourself (faça você mesmo) propagado pelo movimento punk na década de 1970. É algo que incentiva a criatividade e insere grande quantidade de indivíduos, principalmente jovens, no processo de disseminação da informação e da cultura. É um exercício de democracia, cidadania e liberdade de expressão.

Infelizmente o fator econômico é o maior percalço para os editores, impedindo grandes tiragens, o que torna essas publicações conhecidas somente na sua região ou município e ainda assim apenas entre o público fiel à temática proposta.

Entretanto os zineiros, com sua grande capacidade de comunicação e articulação, promovem uma extensa rede alternativa de contatos e divulgação, antecipando o conceito de links utilizado pela web. Dificilmente se encontra um zine que não tenha uma seção dedicada à divulgação dos amigos.

Talvez esse seja o maior diferencial dos FANZINES para com a imprensa comercial: a cooperação, a camaradagem, a amizade, ao invés da competição, individualismo e egoísmo tão presentes na mídia corporativista. Mesmo no caso dos ZINES que são vendidos, seus editores sempre encontram um jeitinho para descolar um exemplar para quem não tem grana no momento, muitas vezes cobrindo até os custos de postagem.

Podemos fazer uma analogia dos ZINES com relação á mídia gorda. É como se compararmos um mercado de bairro ou uma venda a uma rede de hipermercados. No primeiro caso a relação é mais humana e cordial, sabemos quem é o dono do comércio e negociamos diretamente com ele; no segundo caso a relação é impessoal, geralmente feita com uma máquina ou com uma pessoa que age como máquina.

Outra característica importante dos ZINES é sua diversidade. Chega mesmo a ser um trabalho artesanal, onde o editor domina todas (ou quase todas) as etapas do processo de produção. Podemos afirmar até que é uma atividade desalienante, se analisarmos pela ótica marxista. É uma explosão de tamanhos, formatos e cores (e preços também…). É uma atividade que visa o prazer em primeiro lugar; o lucro, se vier, é consequência.

Nos anos 1970 e 80 a maior parte das publicações independentes utilizava a máquina de escrever e o mimeógrafo para sua confecção; atualmente utiliza-se a internet, a editoração eletrônica, a reprografia e a impressão a laser e off-set. Mas o mais admirável é sabermos que a qualquer momento podemos ver um ZINE no formato mais artesanal e utópico possível. Frequentemente somos surpreendidos com a criatividade de inventores que insistem em ser independentes, alternativos e LIVRES, investindo tempo e dinheiro nessa atividade genial e maravilhosa de montar um FANZINE.

Esses editores talvez nem saibam mas acabam invertendo e subvertendo a principal equação do capitalismo moderno, na qual TEMPO = DINHEIRO.

Fontes:
=> Artigo de José Renato M. Galvão, da Biblioteca Comunitária Waldir de Souza Lima, em 08/05/2009. Disponível em http://bibliotecacomunitaria.wordpress.com/2009/05/08/1ª-expozine-de-itu-mas-afinal-o-que-e-fanzine/
=> Imagem = montagem de José Feldman

João Guimarães Rosa (Sagarana) (Parte II)


Artigo do prof. Teotônio Marques Filhos
Parte I = http://singrandohorizontes.blogspot.com/2009/05/joao-guimaraes-rosa-sagarana-parte-i.html
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5. Técnica Narrativa

Com relação à técnica narrativa de Guimarães Rosa, empregada em Sagarana, vamos destacar alguns itens:

A) Sintaxe Pontilhista

De um modo geral, as descrições de Guimarães (principalmente as descrições) são entrecortadas por frases curtas e rápidas, dando especial atenção à frase nominal. Trata-se de uma sintaxe telegráfica, ou, na expressão de David Hayman, “uma espécie de estenografia literária”.

Destaquemos aqui um exemplo:
Uma porteira. Mais porteira. Os currais. Vultos de vacas, debandando. A varanda grande. Luzes. Chegamos. Apear”. (182).

A passagem acima é de “Minha Gente” e exemplifica, com clareza, essa sintaxe pontilhista ou telegráfica, freqüente no estilo de Guimarães. É como se o escritor estivesse tomando nota para redigir depois.

Outro exemplo expressivo é este de “Conversa de Bois”, onde a repetição do verbo “passar” no pretérito perfeito, e depois o uso do verbo sumir, sugere a distância em que foram ficando os carreiros que encontram Seo Agenor Soronho:
Passam. Passaram. Sumiram. O carro aqui rechina mais forte, outra vez” (292).

B) História Entrecortada

Trata-se de um aspecto do estilo de Guimarães decorrente da sua espantosa capacidade de fabulação de que já tratamos em item anterior. Tal técnica parece conferir maior espontaneidade e autenticidade à oralidade que perpassa os seus casos. Um bom exemplo é aquele de “O Burrinho Pedrês”, onde Raymundão, ao mesmo tempo que vai tangendo as reses, conta para Badu, outro vaqueiro, a história trágica do boi Calundu. Volta e meia, Raymundão entrecorta o caso, para cuidar do rebanho ou de uma rês que quer fugir.

C) Reticências

As reticências denotam interrupção do pensamento ou hesitação em enunciá-lo. É recurso muito usado em Sagarana, o que confere ao texto maior autenticidade e expressividade oral. Vejamos um exemplo de “Volta do Marido Pródigo”, na cena final em que o Major Anacleto, chefe político do interior, ficou sem saber o que fazer e o que falar diante das ilustres personalidades que o visitaram inesperadamente.

“- Ah, que honra, mas que minha honra, senhor Doutor Secretário do Interior... Entrar nesta cafua, que menos merece e mais recebe... Esteja à vontade! Se execute! Aqui o senhor é vós... Já jantaram/ ô diacho... Um instantinho, senhor Doutor, se abanquem... Aqui dentro, mando eu - com suas licenças -: mando o Governo se sentar... P’ra um repouso, o café, um licor... O mano Laudônio vai relatar! Ah, mas Suas Excelências fizeram boa viagem?...” (113 e 114).

Também, para interromper e continuar o fio de uma história Guimarães usa as reticências.

Estrutura do Livro

Sagarana (composto de saga + rana) é um livro constituído de nove contos. Muito deles, entretanto, fogem às características do conto, apresentando estrutura ora do romance (cf. “O Burrinho Pedrês”), ora da novela (cf. “A Volta do Marido Pródigo)”.

A Seguir, vamos fazer a apresentação do enredo de cada um deles, comentando o seu conteúdo temático.

1. “O Burrinho Pedrês”

O burrinho Sete-de-Ouros, decrépito, torna-se uma cavalgadura de emergência para um dos vaqueiros do Major Saulo, os quais tinham que transportar uma boiada (quatrocentos e oitenta reses) até uma cidade, donde deverá ser transportada por trem.

Durante a viagem chove muito. Os vaqueiros relatam casos do seu mundo: o caso do boi Calundu que, inexplicavelmente, mata Vadico, filho do Seu Neco Borges; e o caso de Leôncio Madureira, homem herodes, que vendia o gado e depois mandava cercar os boiadeiros na estrada, para matar e tornar a tomar os bois - A conseqüência dessas malvadezas foi que, “quando ele morreu, e os parentes estavam fazendo quarto ao corpo, as vacas de leite começaram a berrar feio, de repente, no curral. Coisa que o garrote preto urrava:

- Madurêra!... Madurêra!...

E as vacas respondiam, caminhando:

- Foi p’r’os infernos!... Foi pr’r’os infernos...!”
(pág. 44)

Chegam ao destino. Põem a boiada no trem e retornam sob o comando de Francolim, posto o major ter permanecido na cidade. Uma tragédia paira sobre as cabeças: Silvino quer matar Badu; a escuridão trevosa envolve a noite; a enchente embarga a travessia. Os vaqueiros enfrentam as trevas, com exceção de João Manico e Juca, sendo tragados pela fúria das águas daquela noite sinistra.

Apenas de salvam o Francolim e Badu, o primeiro agarrado à cauda de Sete-de-Ouros, o segundo à crina do prestimoso burrinho que, alquebrado, decrépito, desacreditado, salvara duas vidas humanas.

Em “O Burrinho Pedrês”, primeiro dos nove contos, Guimarães procura mostrar, tendo como pano de fundo o mundo dos vaqueiros, que todos têm a sua hora e sua vez de ser útil. É o caso do burrinho Sete-de-Ouros: “a gente segue a esperteza mansa do bicho, a sua finura de instinto e inteligência que o faz poupar-se, furtar-se a choques e maus pisos e, por fim, orientar-se e salvar-se numa cheia onde os cavalos afogam, carregando um bêbado às costas e ainda outro náufrago enclavinhado no rabo” - ressalta Oscar Lopes.

E observe-se que tudo é colocado como coisa do Destino, acontecida por acaso, dentro do espaço de um dia:

Mas nada disso vale fala, porque a estória de um burrinho, como a história de um homem grande, é bem dada no resumo de um só dia de sua vida. E a existência de Sete-de-Ouros cresceu toda em algumas horas - seis da manhã à meia-noite - nos meados do mês de janeiro de um ano de grandes chuvas, no vale do Rio das Velhas, no centro de Minas Gerais.” (pág. 4).

E veja-se que as outras histórias contadas no decorrer do conto estão também neste sentido: os caprichos inexplicáveis do Destino que esmaga o homem.

Dentro desse Fatalismo sobressai a hora e vez de Sete-de-Ouros, apenas um burro.

2. A Volta do Marido Prodígio

O marido pródigo é Lalino Salãthiel - Eulálio de Souza Salãthiel, por completo. É homem de muito riso, de muita graça e pouco trabalho:

Mulatinho levado! Entendo um assim, por ser divertido. E não é de adulador, mais sei que não é covarde. Agrada a gente, porque é alegre e quer ver todo-o-mundo alegre, perto de si. Isso, que remoça. Isso é reger o viver.” (pág. 78).

Mas o que o Lalino queria mesmo era (des)venturar por este mundo, pelo Rio de Janeiro. Deixou a mulher, Maria Rita, entregue (ou vendida) ao Ramiro, um espanhol que há muito a perseguia. Lalino foi. O espanhol ficou. Maria Rita chorou e... depois se acomodou ao espanhol.

No Rio, o marido pródigo logo se enfara da beleza e das beldades: volta o marido pródigo:

“- Quero só ver a cara daquela gente, quando eles me enxergarem!...” (87)

Espanto pasmagórico. Olhos que se arregalam e enregelam. Lalino, o que vendera a mulher, voltara.

Entra na política do Major Anacleto. Faz o diabo. Tudo dentro dos conformes e da paz. Lalino tinha tino e tirocínio. Tinha diplomacia, sim senhor, tinha: “E falando nisso, que magnífico, o senhor Eulálio! Divertira-os! o Major sabia escolher os seus homens. Sim, em tudo o Major estava de parabéns...” (114) - é elogio graúdo. De altas personalidades. Gente do governo.

Final feliz.

Maria Rita volta. O Major aceita. O dia afoita. Falece a (des)ventura. De Lalino. De Maria Rita: “Então, o Major voltou a aparecer na varanda, seguro e satisfeito, como quem cresce e acontece, colaborando, sem o saber, com a direção escondida-de-todas-as­-coisas-que-devem-depressa-acontecer”. (115).

As eleições estavam ganhas com a volta do marido pródigo: “no brejo - friíssimo e em festa - os sapos continuavam a exultar” (116).

- “A Volta do Marido Pródigo” apresenta também, de forma picaresca, os caprichos do Destino: Lalino, o marido pródigo, dá voltas e desvoltas pela vida, e acaba tudo bem. Com a mulher. Com a política. Consigo mesmo:

No alto, com broto de brilhos e asterismos tremidos, o jogo de destinos esteve completo. Então, o Major voltou a aparecer na varanda, seguro e satisfeito, como quem cresce e acontece, colaborando, sem o saber, com a direção-escondida-de-todas-as-coisas-que-devem-depressa-acontecer.” (pág. 115). O que tem que acontecer, acontece.

3. “Sarapalha

A ação de “Sarapalha” se desenvolve sobre um monte de ruínas causadas pela maleita: “Ela veio de longe (...) matando muita gente” (117).

E o resultado da calamidade foi a morte e tristeza dos moradores: “os primeiros para o cemitério, os outros por aí afora, por este mundão de Deus” (117).

Numa fazenda em ruínas, “perto do vau da Sarapalha”, Primo Ribeiro, ora em diálogo, ora em monólogo, vai reconstituindo, alquebrado e decrépito pela maleita, a sua história ao Primo Argemiro, uma das poucas pessoas que lhe restaram. Trágica e triste história a do Primo Ribeiro: Luisa, a sua mulher, fugira com outro, deixando-o só com sua maleita: “- P’ra que é que há-de haver mulher no mundo, meu Deus?...” (130) - pondera Primo Argemiro.

Mas ao saber que o Primo Argemiro pretendia-lhe a mulher também, Primo Ribeiro enxota-o da sua presença, e Argemiro dos Anjos sai por aí, perambulando por entre malei­tas e belezas, buscando um lugar para cair e morrer:

“- Mas, meu Deus, como isto é bonito! Que lugar bonito p’ra gente deitar no chão e se acabar” (137).

- “Sarapalha” é de linha trágica, o que contrasta com o conto anterior. Mostra não só um mundo em ruínas, ainda fumegando os efeitos da Malária, como a infidelidade feminina com o conceito de honra do sertanejo. São dois mundos em ruínas: a população vitimada pela maleita e o primo Ribeiro sucumbido pela mulher infiel: “a maleita era uma mulher de muita lindeza” (132)

4. O Duelo

O duelo, que não houve propriamente, foi entre Turíbio Todo e Cassiano Gomes. Motivo d’honra: Turíbio encontra, certa vez, voltando a casa “sem contra-aviso”, a mulher “em pleno adultério” com o Cassiano Gomes. O marido chifrado não fez nada. Preferiu agir traiçoeiramente e assim procurou dar finalmência ao desonrador, “baleando-o bem na nuca.”

Quanto à esposa, Dona Silvana, o narrador escreve irônica e humoristicamente:

Nem por sonhos pensou em exterminar a esposa (Dona Silvana tinha grandes olhos bonitos, de cabra tonta), porque era um cavalheiro, incapaz da covardia de maltratar uma senhora, e porque basta, de sobra, o sangue de uma criatura, para lavar, enxaguar e enxugar a honra mais exigente.” (pág. 142)

Mas enganara-se o Turíbio Todo: “eliminara não o Cassiano Gomes, mas sim o Levindo Gomes, irmão daquele”. Foi exatamente esse engano “que veio pôr dois bons sujeitos, pacatíssimos e pacíficos, num jogo dos demônios, numa comprida complicação”.

Trava-se um comprido duelo: Turíbio fugindo e o outro atrás. E nessa desavença passaram-se muitos meses: “E continuou o longo duelo, e com isso já durava cinco ou cinco meses e meio a correria, monótona e sem desfecho” (148).

Mas, “porque um homem é um homem e não é de ferro, e o seu vício cardíaco começara a dar sinal de si”, Cassiano Gomes voltou para o sossego do arraial e da mulher do Turíbio. Agrava-se o seu mal quando viajava para capturar o assassino que fora para São Paulo. Acaba morrendo nas boas amizades de um tal Antônio, apelidado de Timpim e Vinte-e-Um, “p’r’a-mór-de que nem que a minha mãe teve vinte e um filhos, e eu fui o derradeiro...” (159)

Sabedor da morte do Cassiano, volta, saudoso, Turíbio, todo civilizado e cheio de noves-fora. Espera-o, um pouco além da estação férrea, a garrucha do Timpim. Vinte-e-Um chamado:

“- Seu Turíbio! Se apeie e reza, que agora eu vou lhe matar!” (167)

E mata.

A causa do “duelo” foi também a infidelidade amorosa cuja honra o marido queria lavar com sangue (“se o sangue lavasse alguma coisa neste mundo...”). Aqui também entra um pouco de Fatalismo: Voltas e desvoltas e o marido, que matara a pessoa errada, acaba sendo morto por um sujeitinho “caguincho”, incapaz de matar uma galinha: todos têm a sua hora e a sua vez.

Outra temática desenvolvida no conto é a saga dos valentões.

5. Minha gente

A técnica narrativa de “Minha Gente” é a primeira pessoa.

Ao longo do caminho, até a fazenda do tio Emilio, o narrador se perde em descrições várias do mundo que o cerca, ao mesmo tempo que joga xadrez com Santana. São guiados pelo José Malvino, vaqueiro do tio Emilio.

Chegam.

Na fazenda, no convívio de sua gente, o tio Emilio e a prima Maria Irma, o narrador vai contando pormenores da política do tio Emilio, ao mesmo tempo que desenvolve o seu romance-melhor dito idílio - com Maria Irma.

No decorrer dos seus passeios na fazenda, demonstra uma grande admiração pelo homem do campo:

“- Mas, como é que você pode saber isso tudo, José?” (177)

Mas, misturado com a política e com a natureza, o conto concentra-se mesmo é no romance dos dois primos: Maria Irma cada vez mais arredia e arrisca, o narrador cada vez mais apaixonado.

Como em “A Volta do Marido Pródigo”, o desfecho de “Minha Gente” é um autêntico “happy end”: o tio Emílio ganha a política e o destino se incumbe de casar o primo com Armanda, noiva de Ramiro, que, por sua vez, casa-se com Maria lima:

E foi assim que fiquei noivo de Armanda, com quem me casei, no mês de maio, ainda antes do matrimônio da minha prima Maria Irma com o moço Ramiro Gouvêia, dos Gouvêias da fazenda da Brejaúba, no Todo-Fim-E-Bom.” (pág. 219)

“Minha Gente” apresenta uma temática semelhante à de “A Volta do Marido Pródigo”: tudo acaba bem, apesar das voltas que o Destino dá.

Muitas temáticas são desenvolvidas:

a) a saga da política no interior (tio Emilio);
b) a honra sertaneja (morte do Bento Porfírio);
c) os caprichos do Destino (casamento de Armanda com o narrador).

Aliás, esse último aspecto é desenvolvido também num conhecido poema de Drummond:

João amava Teresa que amava Raimundo que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili que não amava ninguém. João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento, Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para a tia, Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes que não tinha entrado na história
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continua = última parte
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Fonte:
http://www.portrasdasletras.com.br/pdtl2/sub.php?op=resumos/docs/sagarana

Herberto Sales (A Emboscada)



Os dois homens começaram a descer a encosta. O velho Patuá vinha na frente. Era um cabra de ombros estreitos, grande bigode e pernas em arco, muito firmes ainda para a sua idade. O negro Guido seguia-o de perto, sustendo na mão esquerda a capanga de munição. Na semiobscuridade da madrugada, o vale esboçava amplos paredões hirtos, encaixotando funebremente o rio. Os dois homens saltavam de uma pedra para a outra, desciam pelos lajedões talhados quase a pique, subiam por íngremes atalhos, e logo reapareciam atrás de uma touça de malva ou de velame, com uma agilidade de cabritos monteses. Agora, porém, tinham eles conseguido alcançar um trecho melhor do caminho, e andavam num passo regular, encolhidos nos capotes surrados.

O ar era frio e úmido.

- Será que ele passa hoje? - perguntou Guido.

- Tem de passar - respondeu o outro homem. - Não é possível que o santo dele seja tão forte.

- Olhe que já faz dois dias que nós esperamos por ele...

- É assim mesmo. Tem emboscadas que dão muito trabalho. Você ainda não viu nada.

- De qualquer maneira, confesso que isso já está me amolando disse o outro.

O velho Patuá sacou do bolso do paletó de brim mescla um pedaço de fumo de corda e, com uma dentada, arrancou um naco para mascar. Era um antigo hábito seu, do qual trazia mascas nos longos caninos encardidos.

- Quanto mais se você tivesse ajudado a gente a matar o Major Cavalcanti! - disse.

- O que foi que teve?

- Nós esperamos por ele na emboscada oito dias seguidos.

- Oito dias? Ah, eu não era capaz de ter tanta paciência. Juro. - Será que nunca lhe aconteceu uma coisa dessas?

- A mim? Deus me livre!

Andando sempre, os dois homens contornaram uma grande rocha, e atravessaram em seguida uma moita de capim-gordura. O negro Guido olhou: amanhecia. A aurora barrava o horizonte de vermelho, e os píncaros lembravam massas carbonizadas em meio a um espantoso incêndio. Então o velho Patuá, que usava chapéu de couro e trazia as calças arregaçadas, disse de repente:

- Pois pode preparar o dedo, companheiro, que de hoje ele não passa. - Como é que você pode saber disso? - indagou o outro homem, meio intrigado.

- Como eu posso saber? Bem... Isso não lhe interessa. Sobre certas coisas é melhor a gente não fazer perguntas.

O negro era muito supersticioso e revelava uma espécie de místico respeito pelo seu companheiro. Disse com hesitação:

Eu l'iempre ouvi dizer que você era um mestre em rezas bravas...

Na verdade, eu estou aqui faz somente um mês. Mas em minha terra me contaram muitos casos que aconteceram com você.

- Não lhe disseram que eu tinha parte com o diabo? – perguntou sardonicamente o velho.

E o outro, olhando-o de lado:

- Você sabe que o povo fala muita coisa... Ouvi dizer que você tinha reza para amarrar rastro, e até para fazer uma pessoa desaparecer. O velho Patuá assumiu um ar de mistério:

- Você fala demais, Guido.

- Eu não falei por mal... - disse o outro homem, arrancando uma haste de capim com larga mão de palma musculosa. - Se você não gosta de perguntas, acabou-se. Eu só quero é que ele não deixe passar hoje.

- Pois fique calado e espere.

Os dois homens subiram uma rampa, entraram por um atalho, e pararam defronte de uma pequena caverna. Em tomo a vegetação era rude e agressiva. Instalaram-se atrás de uma pedra, como já vinham fazendo havia dois dias, e o velho Patuá observou:

- Este lugar é o melhor possível. Daqui a gente pode atirar nele à vontade.

Estavam instalados na crista de um precipício que dominava a estrada íngreme e pedregosa da serra. O rio escachoava adiante, no fundo do vale rasgado entre selvagens e imponentes escarpas. No céu, um tom róseo substituía agora o vermelho sangüíneo de antes. Pássaros-pretos cantavam.

- Quer fazer uma combinação, Patuá? - perguntou o negro Guido.

- Qual é?

- Como você tem melhor pontaria, atira na cabeça dele.

- E você?

- Bem... Eu atiro nas costas. É mais fácil.

O velho Patuá teve um risinho sarcástico:

- Não pensei que você fosse tão nervoso, Guido.

O outro homem guardou silêncio, demonstrando não ter gostado da observação do companheiro. De repente, atentando na pedra que ficava à entrada da caverna, foi empolgado pela certeza de estar bem protegido. "Caso ele reaja" - pensou - "toda a vantagem é minha, pois estou numa boa trincheira." Depois desembainhou a sua longa e afiada faca de dez polegadas e começou a cortar fumo para um cigarro.

Nisso o velho Patuá levantou-se (tinha uma expressão cruel e concentrada) para inspecionar mais uma vez o local. Completando de maneira magnífica as virtudes do esconderijo, alastrava-se por toda a crista um imbezeiro, ocultando inteiramente a entrada da caverna. Olhando através da folhagem, que descia em cortina, o velho Patuá viu a estrada coberta de seixos, àquela hora deserta, por onde o homem teria de passar.

- Vai ser uma pontaria bonita - disse. - Ele não vai nem gemer. O chão da caverna era coberto de capim - tufos verdes, amarela dos, macios - e o velho Patuá sentou-se. Depois pegou o clavinote e o pôs sobre as pernas, retirando da capanga a munição para a carga.

- Agora vou carregar, Guido. E você vai ficar de vigia - disse. Sentado como estou, não posso enxergar a estrada. A pedra não deixa. Ficando de joelhos, você domina a estrada toda. É só um instante, Guido. Eu carrego a arma depressa.

- Está certo - concordou o outro homem.

- Está enxergando bem? - perguntou ainda o velho.

- Estou.

De joelhos como se achava, Guido dominava realmente toda a estrada. A pedra lhe dava na altura do peito, e as folhas do imbezeiro ocultavam-lhe a cabeça. Nessa posição, acendeu um cigarro, tendo o cuidado de soltar as baforadas para dentro da caverna, o que fez por duas vezes. Mas, logo depois, atinando com a inconveniência de estar fumando ali, pois a fumaça poderia denunciar sua presença no local, apagou imediatamente o cigarro, esmagando-o na ponta de uma pedra. Depois soprou com força, para expelir o resto de fumaça que tinha na boca.

- Cadê a rolimã? - perguntou o velho Patuá.

- Você vai carregar com ela? - disse Guido, sem desviar os olhos da estrada.

- Vou. Você não quer que eu atire na cabeça dele? Portanto, vou precisar de uma carga possante. E ande depressa. Porque antes das sete horas ele deve estar passando por aqui.

Guido revolveu a capanga para procurar a rolimã, que, em sua terra, lhe dera um ferreiro que trabalhara numa garagem. Seus dedos tocaram em cartuchos de pólvora, barbantes, buchas, latas de chumbo meão e espoletas, e trouxeram afinal a esfera de aço que devia servir de bala. Tinha ela um brilho frio e sólido, e era do tamanho de um caroço de pitanga.

- Tome - disse, passando-a ao companheiro.

O velho Patuá tomou a rolimã entre os dedos e a examinou por um momento, como se estivesse avaliando o estrago que ela iria produzir na cabeça do homem a ser morto. Com ela carregou a arma, juntando boa dose de pólvora e algum chumbo grosso. Depois socou a bucha e colocou a espoleta.

- Pronto? - perguntou Guido.

- Pronto - respondeu o velho, limpando nas calças a mão suja de pólvora.

E depois de mais uma vez examinar a arma:

- Agora você carregue a sua, que eu fico de vigia.

Mais que depressa, o negro Guido trocou de lugar com o companheiro e tratou de carregar o seu clavinote. Notando, porém, ao retirar a munição da capanga, que a carga talvez não ficasse bastante forte, perguntou ao velho:

- Você não tem aí um chumbo mais grosso do que este meu?

- Tenho - respondeu o outro homem. - Tenho este chumbo cabeça-de-macaco, que serve bem; é chumbo para matar onça. Tome.

E passou a lata de chumbo ao negro.

- Mas eu acho bom você botar estes pregos também - acrescentou. - Reforça mais.

O negro Guido recebeu o chumbo e os pregos, e socou, bem socada, a carga do seu clavinote.

- Não bote chumbo demais não - observou o velho Patuá.

- Você está pilheriando? - respondeu Guido, guardando na capanga o pedaço de chifre que lhe servia de depósito de pólvora.

- Pilheriando?

- Sim, companheiro. Será que você acha que eu não sei carregar uma arma?

- Estou avisando por avisar.

- Fique sossegado. A carga foi bem calculada.

O velho Patuá voltou-se rapidamente para o companheiro e, vendo que este já havia carregado a arma, disse:

- Bem. Passe o resto de meu chumbo para cá. E agora fique aqui junto de mim.

O negro devolveu o chumbo restante, que o velho guardou apressadamente na capanga e entrincheirou-se atrás da pedra.

- Eu não estou enxergando bem daqui, não - disse, espiando por entre as folhas do imbezeiro. - Acho melhor eu ficar atrás da ponta da pedra.

- Então, fique - concordou o outro homem. - E você já sabe: só atire quando eu mandar.

- Está certo - respondeu Guido. - Mas eu acho que a gente só deve atirar quando ele entrar naquela curva.

E com o dedo apontou o local.

Era o trecho mais estratégico da estrada, porque ali a vítima poderia ser colhida pelas costas.

- O tiro vai ser seguro - garantiu Guido.

O velho Patuá parecia não estar disposto a aceitar nenhuma sugestão do companheiro. Como jagunço que tomara parte em várias emboscadas, tinha, de resto, as suas vaidades. Respondeu secamente:

- Deixe isso comigo. Na hora de atirar eu lhe digo.

Entretanto, o negro Guido não deixou de mudar de posição, colocando-se atrás da ponta da pedra. O velho Patuá continuou ajoelhado na parte mais alta da caverna, sobre tufos de capim, apoiando o clavinote contra a pedra. O lugar que escolhera proporcionava uma visibilidade perfeita.

- Eu dava tudo para tomar uma cachaça agora - confessou Guido.

- É. Mas a garrafa esvaziou desde ontem - respondeu o velho Patuá. - Não tem mais nem um pingo.
- Se ele não tivesse se atrasado ~ disse o outro homem - eu não estava agora com a garganta seca. Nós trouxemos bastante cachaça.

No fundo, também o velho Patuá sentia falta da bebida. Entretanto, mordaz, com o intuito de rebaixar o companheiro, perguntou:

- Será que você precisa beber para criar coragem?

Mas já o negro Guido não o escutava:

- Está ouvindo, Patuá? Está ouvindo?

O outro homem estava ouvindo. E identificou o ruído como sendo o dos cascos de um animal que vinha subindo a serra.

- É. Talvez seja ele - disse. - Vamos nos preparar para fazer fogo.

Os dois clavinotes estavam apontados em direção à estrada. Os canos tinham sido apoiados sobre a pedra, e os dois homens se entreolharam. A essa altura, já o sol faiscava nos lajeados, e o ar, embora frio, era reconfortante e seco. Um sabiá veio pousar perto da caverna, mas logo esvoaçou, ao pressentir os dois homens. Houve em seguida um rumor de folhas, provocado por uma lagartixa em fuga.

- Já vem bem perto - disse o negro Guido, com o dedo no gatilho da arma.

O tropel fazia-se ouvir cada vez mais próximo. De repente, surgiu, no topo do atalho, a cabeça de um cavalo. O velho Patuá estava calmo, ao passo que o outro dava visíveis mostras de excitação. À vista da cabeça do cavalo, seus lábios chegaram mesmo a embranquecer, como se uma sede atroz o tivesse assaltado.

- Será ele mesmo? - perguntou.

Foi quando o cavaleiro apareceu. Subia a estrada descuidado, assobiando. Guido logo reconheceu o fazendeiro Pedro Neves. Então, o que havia de incerteza no seu espírito transformou-se imediatamente numa sensação de alívio, marcada a um só tempo de medo e crueldade. Apontou a arma, fazendo mira, sempre com o dedo no gatilho. Viu o homem parar de assobiar, enxugar o suor do rosto, com um lenço que de novo guardou no bolso, e acender o cigarro.

Foi quando o velho Patuá comandou:

- Fogo!

O negro procurava fazer um bom alvo, na pontaria contra o paletó de brim cáqui, onde havia manchas de suor.

- Fogo! - repetiu o velho Patuá num tom de irritação.

E, com o clavinote apontado para a nuca do homem, apertou o gatilho. O negro Guido acompanhou-o. Dois tiros estrondaram, ao mesmo tempo que a caverna se enchia de fumaça. Como se uma invisível mão os enxotasse, os pássaros voaram. Um desabrido tropel foi então ouvido: era o cavalo do fazendeiro, que fugia com os arreios vazios. Espantado, corria doidamente estrada abaixo - as caçambas batendo como sinos. Como sinos roucos. Estranhamente roucos.

Fonte:
SALES, Herberto (org.). Antologia escolar de contos Brasileiros. 2.ed. SP: Ediouro, 2005.
Capa do Livro = Foto de José Feldman.

Dicionário do Folclore (Letra L)



LABATUT. É um monstro que tem forma humana e que vive na região do Apodi, fronteira do Ceará com o Rio Grande do Norte. É um bicho pior que o lobisomem, pior que a caipora e o cão coxo. Ele mora no fim do mundo e, todas as noites, percorre a cidade procurando o que comer. Seus pés são redondos, as mãos são compridas, os cabelos são longos e assanhados, seu corpo é cabeludo, só tem um olho na testa e seus dentes são como os do elefante. O nome do monstro é uma lembrança das violências e brutalidades do General Pedro Labatut, que esteve no Ceará (1832-1833) para combater a insurreição de Joaquim Pinto Madeira, e que terminou se rendendo com 1690 homens em armas. O monstro Labatut preferia comer as crianças por terem a carne mais mole.

LADAINHAS. São orações de Nossa Senhora, do Sagrado Coração de Jesus e de todos os Santos, rezadas durante as novenas e os terços.

LAGO ENCANTADO DO GRONGONZO. O morro do Grongonzo fica situado no município de São Bento, Pernambuco. No morro, que é arredondado, diz a lenda que aparece e desaparece, sem deixar vestígios, um grande lago que guarda, no fundo de suas águas, riquezas incalculáveis. Quem viu o lago uma vez não verá mais.

LAMA-DE-POTE. É o lodo formado nas paredes do lado de fora dos potes e das quartinhas (bilhas) de barro. Misturado com cinza e suco de limão é um remédio popular bastante usado pelas pessoas que estão com papeira (cachumba).

LAMPIÃO. Virgulino Ferreira da Silva, mais conhecido como Lampião, nasceu em Floresta do Navio, Pernambuco, no dia 4 de junho de 1898. Com três anos de escola aprendeu a ler e escrever. Antes de tornar-se assassino, com 17 anos de idade, Lampião era vaqueiro, amansador de cavalos e burros. Nas horas vagas, fazia obras de couro (selas, arreios, etc.) e tocava sanfona de oito baixos. Quando seu pai faleceu, Lampião já havia assassinado algumas pessoas e assaltado muitas fazendas e pequenas cidades. Lampião não entrou no cangaço por vingança. Conhecedor da região, Lampião sabia se esconder, em companhia de seu bando, das forças policiais de quatro Estados que andavam à sua procura, combatendo-o em batalhas das quais ele conseguia sempre escapar. Ninguém sabe quantas pessoas Lampião matou. Considerado violento, sádico, estuprador, incendiário, Lampião escreveu uma das páginas mais sangrentas da história dos sertões nordestinos. Rezava, tocava sanfona, gostava de ler e de ser fotografado, fazia versos, era temido e respeitado durante os anos que dominou o sertão. Apesar de cego de um olho (leucoma), tinha uma boa pontaria para matar os soldados que lhe davam combate. Depois de muitas lutas, cercos, fugas, Lampião foi abatido com um tiro de fuzil, na cabeça, pelo soldado Antônio Honorato da Silva, da Força Policial Alagoana, sob o comando do Capitão João Bezerra da Silva, que era pernambucano. Maria Bonita, que era sua amante e vivia no grupo, caiu morta ao seu lado, em companhia de mais nove cangaceiros. Com a morte de Lampião, a paz recomeçou a reinar nos sertões nordestinos. Veja COITEIROS, XAXADO.

LAPINHA. É o nome que o povo dá ao pastoril, sem a inclusão de danças e cantos estranhos aos assuntos natalinos, substituídos pela manjedoura, o menino Jesus, Nossa Senhora, São José e os Reis Magos com seus presentes, bem como os animais, em forma de pequenas imagens dos santos e miniatura de animais da manjedoura. Na Noite de Reis, retiradas as imagens dos santos e as estátuas dos animais, a lapinha é queimada. Veja PASTORIL e QUEIMA.

LARANJINHA. 1. Cachaça em cuja garrafa são colocados pedaços de laranja; 2. Também era, nos carnavais antigos, bolas de cera cheias de água perfumada, que eram jogadas nos foliões, também conhecida como lima-de-cheiro ou limão-de-cheiro dos carnavais cariocas. A laranjinha desapareceu depois que surgiu o lança-perfume.

LARANJO. O laranjo é como se chama, no interior da Bahia, Pernambuco e Piauí, o homem ruivo de olhos azuis. Talvez seja o resultado do casamento de brasileiros com holandeses e franceses, quando andaram pela região.

LAURA DELLA MONICA nasceu no dia 21 de novembro de 1922, na cidade de São Paulo, SP. Licenciada em Música - pelo Conservatório Dramático e Musical de São Paulo (1947), em Pedagogia – pela Faculdade de Educação e Ciências Humanas "Prof. Laerte de Carvalho" (1978) e em Educação Artística – pela Faculdade de Ciências e Letras de Araras – SP (1980), Pós-Graduação, em nível de Especialização em Percepção Musical – pela Escola Nacional de Música do Rio de Janeiro (1972), em Didática do Ensino Superior – pela Faculdade São Judas Tadeu, em Museologia – pelo Instituto de Museologia de São Paulo e Pós-Graduação em nível de Mestrado – pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (1992), Pós-Graduação em nível de Doutorado – curso de Ciências da Comunicação – Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, além de vários outros cursos, seminários e jornadas sobre Folclore, Turismo, Lazer, etc., e estágios em diversas entidades culturais, Laura Della Mônica que muito tem divulgado o Folclore brasileiro nos países que tem visitado tomando parte em congressos e seminários além de vários ensaios publicados em revistas especializadas e muitos artigos na imprensa brasileira, nos deu Folclore paulista (1965), Rosa Amarela (1967), Manual do Folclore (1976), Folclore brasileiro (1976), Acorda povo! (1988), Festas populares (1991), Folclore e taologia (1992), A influência indígena na formação cultural brasileira (1993), A influência francesa no cancioneiro infantil do Brasil (1994) e Os três santos do mês de junho (1995) e outros.

LAVAGEM-DE-IGREJA. Dizem os historiadores que a lavagem das igrejas é uma tradição que tem mais de duzentos anos e consiste na promessa que as pessoas fazem de varrer, lavar e enfeitar as igrejas. É uma tradição que vem dos tempos imperiais, quando uma princesa varria a Igreja de Petrópolis, como uma simples empregada. Em Salvador é que a tradição se mantém viva até hoje. A lavagem da Igreja do Senhor do Bonfim na quinta-feira de oitava não é de origem africana, de vez que já existia em Portugal. Quem introduziu a lavagem da igreja do Senhor do Bonfim foi um português que combateu na Guerra do Paraguai e fez uma promessa de lavar o átrio da referida igreja se voltasse vivo. Hoje, entretanto, a cerimônia se transformou numa festa tradicional.

LAVANDEIRA. É um pássaro de cor branco-creme com asas pretas, também conhecida como lavandeira de nossa senhora. Quem matar uma lavandeira ofende Nossa Senhora porque a ave ajudou a lavar as roupinhas do Menino Jesus.

LAZARINA. A lazarina é uma espingarda de carregar pela boca, usando chumbo fino e médio, muito amiga dos homens do campo que, aos domingos, saem para caçar. Seu nome teve origem em 1651, quando o milanês Lázaro Caminazzo começou a fabricar essas espingardas que ganharam seu nome.

LÉGUA-DE-BEIÇO. Para o nosso matuto, acostumado a andar a pé, todo lugar fica perto. Quando perguntado onde fica a fazenda ou sítio de um agricultor, ele, estendendo o lábio inferior, diz: - "É ali...". Acontece que o sítio ou fazenda ficam a algumas léguas de distância. Daí a expressão légua-de-beiço, geralmente léguas muito grandes, muito compridas.

LENÇO. É muito comum presentear uma pessoa com uma caixa de lenços. Mas o povo acredita que não é bom receber lenços de presente porque eles chamam lágrimas, isto é, fazem com que morra alguém da família. Quando uma pessoa recebe lenços de presente é bom dar logo outro presente à pessoa que lhe deu; assim fazendo, nada acontecerá.

LENDA. A lenda é um episódio heróico ou sentimental com elemento maravilhoso ou sobre-humano, transmitida na tradição oral popular, conservadas as quatro características do conto popular: ambigüidade, persistência, oralidade e anonimato. Muitas são as lendas existentes no Brasil e em todos os países do mundo: a lenda da Mãe-D'água, a lenda de Santo Antônio, a lenda do Barba-Ruiva.

LEONARDO ANTÔNIO DANTAS SILVA nasceu em 1945, na cidade do Recife, PE. Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Católica de Pernambuco (1969), dedicou-se, desde jovem, ao jornalismo, tendo começado na revisão e posteriormente exercido as funções de redator do Jornal do Commercio (1965-1975) e do Diario de Pernambuco (1974-1988). Diretor do Departamento Estadual de Cultura (1975-1979), criador da Fundação de Cultura Cidade do Recife (1979-1983), Diretor de Assuntos Culturais da Fundarpe (1983-1987), atualmente exerce as funções de Diretor da Editora Massangana da Fundação Joaquim Nabuco. Além de produtor fonográfico e animador cultural, tem publicado inúmeros ensaios e artigos, bem como vários livros dentre os quais destacamos Bandeira de Pernambuco (1972), Recife: uma História de Quatro Séculos (1975), Pequeno Calendário Histórico-Cultural de Pernambuco (1976), Ritmos e Danças-frevo (1977), Cancioneiro Pernambucano (1978), O Piano em Pernambuco (1987), Alguns Documentos para a História da Escravidão (1988), A Imprensa e Abolição (1988), A Abolição em Pernambuco (1988), Estudos sobre a Escravidão Negra 2v. (1988), Nabuco e a República (1990) e A República em Pernambuco (1990), Blocos carnavalescos do Recife (1998) e Bandas musicais de Pernambuco (1998).

LIMÃO. O limão, com que se faz uma deliciosa limonada, muito aconselhável aos que moram nos lugares de clima quente, também afasta os malefícios. Quando a pessoa vai viajar de navio ou de avião, conduzir um limão no bolso ou na bolsa faz com que a pessoa não enjoe. O sumo do limão é um poderoso contraveneno. Na culinária, é bom espremer limão, principalmente em carne de porco. Depois de uma feijoada bem pesada, nada como um cálice de batida-de-limão, feita com água de coco, para equilibrar o estômago.

LÍNGUA. Estirar a língua em quase todos os países do mundo é um insulto. Mas no Tibet é a maneira mais educada de se saudar uma pessoa. Os meninos gostam de estirar a língua, quando estão brabos.

LITERATURA ORAL. A literatura oral é a literatura falada, como a estória, a lenda, as adivinhações, os provérbios, as parlendas, as frases-feitas, os ditos, os trava-línguas, etc., diferente da literatura escrita que compreende o romance, o conto, a crônica, a poesia, etc.

LOBISOMEM. O lobisomem é um mito universal. A imaginação do povo retrata o lobisomem assim: é um homem pálido, magro, de orelhas compridas e nariz levantado. Como é que surge o lobisomem? Nasce o lobisomem quando o filho é resultado de um incesto. É o filho que nasceu de um casal que teve sete filhas. Quando chega aos treze anos, numa terça ou quinta-feira, sai à noite e, quando encontra um lugar onde um jumento se espojou, começa o fado. Daí por diante, todas as terças e sextas-feiras, de meia-noite às duas horas, o lobisomem tem que fazer sua corrida, visitando sete cemitérios, sete partidas do mundo, sete oiteiros, sete encruzilhadas e, ao regressar ao lugar onde o jumento se esponjou, readquire a forma humana. Quem ferir o lobisomem, quebra-lhe o fado; mas a pessoa não deve se sujar com seu sangue porque, se assim acontecer, também se tornará lobisomem. Para desencantar um lobisomem basta feri-lo ou usar uma bala untada com cera de vela acesa durante três missas de domingo ou na Missa do Galo, rezada na meia-noite de Natal.

LONGUINHO. É um santo popular do Nordeste. Quando uma pessoa perde alguma coisa, faz uma promessa a São Longuinho, rezando, assim: "Meu São Longuinho, se eu achar o que eu perdi, dou três saltos, três gritos e três assobios". Achando a coisa perdida a pessoa paga a promessa feita, dando três pulos, três gritos e três assobios.

LORDE. A palavra lord em inglês significa senhor e o vocábulo se popularizou com o intercâmbio comercial do Brasil com a Inglaterra, começado em 1810. Ainda hoje o povo usa este termo quando acha que uma pessoa está alinhada, bem vestida. A pessoa está, assim, lorde.

LOURENÇO. Lourenço foi um santo que morreu queimado vivo numa grelha, por perseguição do Imperador Valeriano, em Roma, no século I I I . O povo diz que São Lourenço é o guardião dos ventos, governador dos ventos. Quando os meninos nordestinos querem soltar papagaio (pipa) e não tem vento, eles costumam gritar: - "São Lourenço, São Lourenço! Abra a porta do vento!" E o vento num instante chega, fazendo com que os papagaios ganhem as alturas.

LOUVA-A-DEUS. É um pequeno inseto também conhecido por põe-mesa. Parecido com um grilo muito magro, traz sempre as mãos postas, juntas, os joelhos dobrados e os olhos voltados para o céu, como se estivesse rezando, razão pela qual é chamado louva-a-deus.

LUA. A Lua é considerada como a mãe das plantas, presidindo seu crescimento. O povo crê que cabelo cortado em noite de Lua Nova cresce rápido e afina. Se a mulher grávida dormir banhada pela claridade da Lua, o filho nasce débil mental, aluado. É bom mostrar dinheiro à Lua Nova para que ele se multiplique, cresça. Nas noites de Lua, as mães embalam seus filhos cantando: - "A bênção, Dindinha Lua,/Me dê pão com farinha,/ Para eu dar à minha galinha,/ Que está presa na cozinha!/ Xô, galinha! Vai pra tua camarinha!". A Lua tem muito significado para as pessoas que se amam. É nas noites de Lua Cheia que são feitas as serenatas, as serestas, ao som de violões e clarinetes, quando os rapazes enaltecem a beleza da mulher amada, declarando seu amor. O cancioneiro popular é rico tendo a Lua como tema, principalmente valsas. A Lua sempre foi e continuará sendo a inspiração dos poetas, nos seus sonetos e poemas.

LUÍS DA CÂMARA CASCUDO nasceu em 1898, na cidade do Natal, RN. Começou a estudar medicina em Salvador, mas teve que desistir em virtude das dificuldades financeiras de sua família. Estreou no jornalismo aos vinte anos de idade, publicando seus primeiros artigos em A IMPRENSA, jornal de propriedade de seu pai. Concluiu o curso de Direito na Faculdade de Direito do Recife em 1928. Publicou seu primeiro livro aos vinte e três anos, Alma Patrícia, reunindo artigos sobre escritores de sua terra. Professor de Direito Internacional Público da Faculdade de Direito, e de Etnologia Geral da Faculdade de Filosofia do Natal, Cascudo foi um homem culto e simples, havendo publicado mais de cem livros e ninguém sabe quantos artigos em jornais e revistas nacionais e internacionais. Considerado por suas pesquisas, seu saber e seus trabalhos na área de sua predileção como o Papa do Folclore Brasileiro, publicou dentre outros os seguintes livros: Vaqueiros e Cantadores (1952), Geografia do Mito Brasileiro (1947), Literatura Oral (1952), Dicionário do Folclore Brasileiro (1954), Geografia do Brasil Holandês (1956), Jangada (1957), A Vaquejada Nordestina (1974), Antologia da Alimentação no Brasil (1977). Faleceu na cidade do Natal, onde viveu toda a sua vida no seio de seu povo, que ele tanto amou, em 1986.

LUMINÁRIAS. Os indígenas brasileiros descobriram o fogo friccionando, pacientemente, uma haste de madeira, seca, na cavidade de um tronco de árvore. Logo que esse atrito continuado produzia chama, fogueiras eram feitas para adorar seus deuses, moquear a carne da caça abatida, proteger a taba dos animais ferozes e iluminar suas noites. Já os colonizadores sabiam dominar o fogo e fabricavam suas luminárias de pequenas panelas de barro contendo azeite de mamona, de coco ou de baleia, com uma torcida de algodão e começaram a ser usadas no Brasil a partir do século XVI, recomendadas por Cartas Régias. O querosene só apareceu em 1850. Somente depois de 1870 é que os candeeiros passaram a iluminar as casas, e as cidades tiveram suas ruas iluminadas por lampiões. Algum tempo depois começaram a chegar da Europa bonitos candeeiros de vidro, coloridos com flores e pássaros, de diversos tamanhos, com mangas medidas por linhas, enfeitando as salas dos senhores de engenho, dos comerciantes e das famílias abastadas. Os funileiros da zona rural, aproveitando as latas de manteiga, de compotas, de óleo lubrificante e de outros produtos industrializados, começaram a fabricar seus fifós, de mesa ou de parede, ainda hoje usados nas casas humildes. As famílias ricas iluminavam suas salas com artísticos lustres de cristal a carboreto, novidade trazida para o Nordeste pelos trens da Great Western. Ainda hoje vamos encontrar no interior, durante as festas de Natal, de Ano Novo, de Reis ou da padroeira do lugar, toscos bicos de carboreto iluminando os taboleiros de confeito, mata-fome ou cocada e as toldas de sorvete raspa-raspa. Os velhos funileiros do interior, no seu artesanato, matam a saudade do tempo passado fazendo seus fifós até mesmo de lâmpadas elétricas inutilizadas.

LUNÁRIO PERPÉTUO. Durante cerca de duzentos anos o Lunário Perpétuo foi o livro mais lido do Nordeste brasileiro. Nele, as pessoas encontravam as informações mais diferentes como horóscopos, remédios populares, fazes da lua, o tempo certo de serem plantados o milho, o feijão, etc. A primeira edição do livro data de 1703, feita pela casa de Miguel Menescal, em Lisboa. Hoje o Lunário é uma preciosidade só encontrada na biblioteca dos estudiosos ou bibliófilos.

LUNDU. Conhecido também como lundum, landu, londu, o lundu foi uma música e dança trazidas pelos escravos africanos. Outros gêneros musicais surgiram do lundu, como aconteceu com a chula, o tango brasileiro e o fado. Era um bailado muito erótico.

LUZ. A luz, combatendo a escuridão noturna, afugenta os fantasmas, as almas penadas, o espírito dos mortos recentes que ainda acham que estão vivos. É crença do povo que criança pagã, mulher de resguardo, doente grave, não devem dormir no escuro. O diabo, os morcegos e as feras noturnas não gostam e têm medo da luz.

LUZIA. Santa Luzia nasceu (281) e faleceu (304) em Siracusa. Foi perseguida pelo Imperador romano Diocesano que mandou arrancar seus olhos, colocando-os numa bandeja e enviando de presente, a quem havia elogiado sua beleza. No dia de Santa Luzia, comemorado no dia 13 de dezembro, não se caça, não se pesca, não se costura. Quando cai um argueiro no olho de uma pessoa, o melhor remédio que o povo usa é recitar, esfregando o dedo no olho, dizendo as seguintes palavras: - "Corre, corre, cavaleiro,/ Vai à porta de São Pedro,/ Dizer a Santa Luzia/ Que me dê uma pontinha do lenço/ Pra tirar esse argueiro!". A Experiência de Santa Luzia, pra saber se o inverno vai ser bom, é feita da seguinte maneira: Colocam-se doze pedras de sal enfileiradas, no sereno. Cada pedra representa um mês do ano. No dia seguinte, as pedras que estiverem derretidas são os meses de chuva e as outras, que não se derreteram, são os meses secos, sem chuva. Luzia também era o nome que o povo dava ao Partido Liberal no Segundo Império, depois que Caxias derrotou a insurreição em Minas Gerais. Depois da Revolução Praieira de 1848, os liberais pernambucanos eram conhecidos por Luzias.
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O Dicionário completo pode ser obtido em http://sites.google.com/site/pavilhaoliterario/dicionario-de-folclore
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Fontes:
LÓSSIO, Rúbia. Dicionário de Folclore para Estudantes. Ed. Fundação Joaquim Nabuco
Imagem = http://www.terracapixaba.com.br/

Palavras e Expressões mais Usuais do Latim e de outras linguas) Letra G-H


Genus irritabile vatum
Latim – Raça irritadiça dos poetas. É como Horácio traduz a idéia de que poetas e escritores são temperamentais.

Gloria Patri

Latim – Glória ao Pai. Relativo apalavras iniciais do versículo que se canta ou reza no fim dos salmos e de outras orações da Igreja.

Gloriae et virtutis invidia est comes

Latim – A inveja é a companheira da glória e da virtude. A inveja procura destruir a virtude e o mérito alheio.

God save the king ou the queen
Inglês – Deus salve o rei (ou) a rainha. Frase inicial do hino nacional inglês.

Gold point
Inglês – Ponto de ouro. Situação cambial equilibrada nos países de moeda-ouro.

Graecum est, non legitur
Latim – É grego, não se lê. Axioma medieval que mostra o desprestígio do grego entre os eruditos.

Grammatici certant
Latim – Os gramáticos discutem. Empregada para significar que uma questão não se resolverá facilmente.

Grande mortalis aevi spatium

Latim – Grande espaço da vida de um mortal. Assim descreve Tácito os quinze anos em que reinou Domiciano.

Grand-prix
Francês – Grande prêmio. Diz-se do maior prêmio concedido em exposições, concursos, corridas etc.

Gratia argumentandi
Latim – Pelo prazer de argumentar. Emprega-se quando se quer usar um argumento do adversário considerado inconsistente.

Gratis pro Deo
Latim – De graça, para Deus. Sem remuneração.

Gravis testis
Latim – Testemunha grave. Testemunha digna; testemunha de peso.

Graviter facere
Latim – Agir com prudência, com moderação, com gravidade.

Grosso modo
Latim – De modo geral. Por alto, sem penetrar no âmago da questão.

Gutta cavat lapidem
Latim – A gota de água cava a pedra. Traduz a idéia do provérbio: Água mole em pedra dura tanto dá até que fura.

Habeas corpus
Latim – Direito = Que tenhas o corpo. Meio extraordinário de garantir e proteger com presteza todo aquele que sofre violência ou ameaça de constrangimento ilegal na sua liberdade de locomoção, por parte de qualquer autoridade legítima.

Habemus confitentem reum
Latim – Temos o réu que se confessa. Frase da oração em que Cícero defende Ligário, partidário de Pompeu.

Habent sua fata libelli
Latim – Os livros têm o seu destino. Aforismo de Terenciano Mauro, cuja obra permaneceu obscura durante muito tempo.

Happy end
Inglês – Fim feliz. Indica o desfecho feliz nas peças teatrais e cinematográficas.

Hasta la vista
Espanhol – Até a vista.

Hic et nunc
Latim – Aqui e agora. Imediatamente; neste instante.

High fidelity
Inglês – Alta fidelidade. Alta qualidade, grande pureza de som obtida nos aparelhos eletrônicos.

Hic jacet
Latim – Aqui jaz. Expressão consagrada nas inscrições de lápides mortuárias.

Hic jacet lepus
Latim – Aqui está a lebre; esta é a dificuldade.

Hoc caverat mens provida Reguli
Latim – A mente previdente de Régulo previra isto. Aplica-se nos casos em que alguém diz ter previsto um acontecimento depois dele realizado.

Hoc erat in votis
Latim – Isto estava nos votos. Aplica-se quando se obtém algo muito desejado.

Hoc opus, hic labor est
Latim – Aí é que está a dificuldade. Sentença de Virgílio que se aplica no sentido literal.

Hoc volo, sic jubeo; sit pro ratione voluntas
Latim – Quero isto, ordeno isto, que a vontade sirva de razão. Frase de Juvenal que condena a arbitrariedade.

Hodie mihi, cras tibi
Latim – Hoje para mim, amanhã para ti. Usada nas inscrições tumulares e quando se deseja o mesmo mal a quem o causou.

Home fleet

Inglês – Esquadra da casa. Nome que se dá à Armada Inglesa, referindo à parte dela que permanece na Grã-Bretanha.

Homo faber
Latim – O homem artífice. Locução empregada por Henri Bergson para designar o homem primitivo ante a necessidade de forjar ele próprio os utensílios indispensáveis à manutenção da vida.

Homo homini lupus
Latim – O homem é lobo para o homem. Pensamento de Plauto, aceito por alguns e praticado por muitos.

Homo sapiens
Latim – O homem sábio. 1 Nome da espécie homem na nomenclatura de Lineu. 2 Expressão usada por Henri Bergson para indicar o homem, único animal inteligente em face aos demais.

Homo sum et nihil humani a me alienum
Latim – Sou homem e nada do que é humano me é estranho. Terêncio advoga a solidariedade humana.

Honni soit qui mal y pense
Francês – Envergonhe-se quem pensar mal disto. Divisa da ordem da jarreteira na Inglaterra.

Honoris causa
Latim – Por causa da honra. Título honorífico concedido a pessoas ilustres.

Honos alit artes
Latim – A honra alimenta as artes. Máxima de Cícero que explica a necessidade de aplausos como incentivo aos artistas.

Horresco referens
Latim – Tremo ao referir. Palavras de Enéias ao narrar o episódio da morte de Laocoonte.

Horribile dictu
Latim – Horrível de se dizer. Locução interjetiva.

Hors ligne

Francês – Fora da linha; bem acima do normal.

Hospes hostis
Latim – Estrangeiro, inimigo. Máxima antiga que traduz o sentimento de desconfiança e hostilidade para com os estrangeiros.
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As outras letras:
LETRA A
http://singrandohorizontes.blogspot.com/2008/10/palavras-e-expresses-mais-usuais-do.html
LETRA B
http://singrandohorizontes.blogspot.com/2008/10/palavras-e-expresses-mais-usuais-do_07.html
LETRA C
http://singrandohorizontes.blogspot.com/2008/10/palavras-e-expresses-mais-usuais-do_21.html
LETRA D
http://singrandohorizontes.blogspot.com/2008/11/palavras-e-expresses-mais-usuais-do.html
LETRA E
http://singrandohorizontes.blogspot.com/2008/11/palavras-e-expresses-mais-usuais-do_28.html
LETRA F
http://singrandohorizontes.blogspot.com/2009/01/palavras-e-expressoes-mais-usuais-do.html


Fonte:
http://www.portrasdasletras.com.br/pdtl2/sub.php?op=gramatica/docs/expressoeslatinas

domingo, 24 de maio de 2009

Trova VII

Montagem em cima de imagem do blog http://blogmaria.blogspot.com

Miriam Panighel Carvalho (O Poeta)



Assim como o ator interpreta
uma peça com emoção,
assim também verseja o poeta
que escreve com seu coração.

Faz poemas com sentimento
A emoção não consegue ocultar
Não tem hora, não tem momento
Para o bardo o amor decantar

O poeta jamais "faz de conta"
Ele conta e -ah! - como encanta!
Abre a alma e jamais desaponta
Não escreve - o vate - ele canta.

De espírito super sensível
Na verdade é incompreendido
Mas nos olhos deixa visível
Vestígios de um amor perdido...
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Lygia Fagundes Telles (As Cerejas)



Aquela gente teria mesmo existido? Madrinha tecendo a cortina de crochê com um anjinho a esvoaçar por entre rosas, a pobre Madrinha sempre afobada, piscando os olhinhos estrábicos, vocês não viram onde deixei meus óculos? A preta Dionísia a bater as claras de ovos em ponto de neve, a voz ácida contrastando com a doçura dos cremes, esta receita é nova... Tia Olívia enfastiada e lânguida, abanando-se com uma ventarola chinesa, a voz pesada indo e vindo ao embalo da rede, fico exausta no calor... Marcelo muito louro - por que não me lembro da voz dele? - agarrado à crina do cavalo, agarrado à cabeleira de tia Olívia, os dois tombando lividamente azuis sobre o divã. Você levou as velas à tia Olívia? , perguntou Madrinha lá embaixo. O relâmpago apagou-se. E no escuro que se fez, veio como resposta o ruído das cerejas se despencando no chão.

A casa em meio do arvoredo, o rio, as tardes como que suspensas na poeira do ar - desapareceu tudo sem deixar vestígios. Ficaram as cerejas, só elas resistiram com sua vermelhidão de loucura. Basta abrir a gaveta: algumas foram roídas por alguma barata e nessas o algodão estoura, empelotado, não, tia Olívia, não eram de cera, eram de algodão suas cerejas vermelhas.

Ela chegou inesperadamente. Um cavaleiro trouxe o recado do chefe da estação pedindo a charrete para a visita que acabara de desembarcar.

- É Olívia! - exclamou Madrinha. - É a prima! Alberto escreveu dizendo que ela viria, mas não disse quando, ficou de avisar. Eu ia mudar as cortinas, bordar umas fronhas e agora!... Justo Olívia. Vocês não podem fazer idéia, ela é de tanto luxo e a casa aqui é tão simples, não estou preparada, meus céus! O que é que eu faço, Dionísia, me diga agora o que é que eu faço!
Dionísia folheava tranqüilamente um livro de receitas. Tirou um lápis da carapinha tosada e marcou a página com uma cruz.

- Como se já não bastasse esse menino que também chegou sem aviso...

O menino era Marcelo. Tinha apenas dois anos mais do que eu mas era tão alto e parecia tão adulto com suas belas roupas de montaria, que tive vontade de entrar debaixo do armário quando o vi pela primeira vez.

- Um calor na viagem! - gemeu tia Olívia em meio de uma onda de perfumes e malas. - E quem é este rapazinho?

- Pois este é o Marcelo, filho do Romeu - disse Madrinha. - Você não se lembra do Romeu? Primo-irmão do Alberto...

Tia Olívia desprendeu do chapeuzinho preto dois grandes alfinetes de pérola em formado de pêra. O galho de cerejas estremeceu no vértice do decote da blusa transparente. Desabotoou o casaco.

- Ah, minha querida, Alberto tem tantos parentes, uma família enorme! Imagine se vou me lembrar de todos com esta minha memória. Ele veio passar as férias aqui?
Por um breve instante Marcelo deteve em tia Olívia o olhar frio. Chegou a esboçar um sorriso, aquele mesmo sorriso que tivera quando Madrinha, na sua ingênua excitação, nos apresentou a ambos, pronto, Marcelo, aí está sua priminha, agora vocês poderão brincar juntos . Ele então apertou um pouco os olhos. E sorriu.

- Não estranhe, Olívia, que ele é por demais arisco - segredou Madrinha ao ver que Marcelo saía abruptamente da sala. - Se trocou comigo meia dúzia de palavras, foi muito. Aliás, toda a gente de Romeu é assim mesmo, são todos muito esquisitos. Esquisitíssimos!

Tia Olívia ajeitou com as mãos em concha o farto coque preso na nuca. Umedeceu os lábios com a ponta da língua.

- Tem charme...

Aproximei-me fascinada. Nunca tinha visto ninguém como tia Olívia, ninguém com aqueles olhos pintados de verde e com aquele decote assim fundo.

- É de cera? - perguntei tocando-lhe uma das cerejas.

Ela acariciou-me a cabeça com um gesto distraído. Senti bem de perto seu perfume.

- Acho que sim, querida. Por quê? Você nunca viu cerejas?

- Só na folhinha.

Ela teve um risinho cascateante. No rosto muito branco a boca parecia um largo talho aberto, com o mesmo brilho das cerejas.

- Na Europa são tão carnudas, tão frescas.

Marcelo também tinha estado na Europa com o avô. Seria isso? Seria isso que os fazia infinitamente superiores a nós? Pareciam feitos de outra carne e pertencer a um outro mundo tão acima do nosso, ah! como éramos pobres e feios. Diante de Marcelo e tia Olívia, só diante dos dois é que eu pude avaliar como éramos pequenos: eu, de unhas roídas e vestidos feitos por Dionísia, vestidos que pareciam as camisolas das bonecas de jornal que Simão recortava com a tesoura do jardim. Madrinha, completamente estrábica e tonta em meio das suas rendas e crochês. Dionísia, tão preta quanto enfatuada com as tais receitas secretas.

- Não quero é dar trabalho - murmurou tia Olívia dirigindo-se ao quarto. Falava devagar, andava devagar. Sua voz foi se afastando com a mansidão de um gato subindo a escada. - Cansei-me muito, querida. Preciso apenas de um pouco de sossego...

Agora só se ouvia a voz de Madrinha que tagarelava sem parar: a chácara era modesta, modestíssima, mas ela haveria de gostar, por que não? O clima era uma maravilha e o pomar nessa época do ano estava coalhado de mangas. Ela não gostava de mangas? Não?... Tinha também bons cavalos se quisesse montar, Marcelo poderia acompanhá-la, era um ótimo cavaleiro, vivia galopando dia e noite. Ah, o médico proibira? Bem, os passeios a pé também eram lindos, havia no fim do caminho dos bambus um lugar ideal para piqueniques, ela não achava graça num piquenique?
Fui para a varanda e fiquei vendo as estrelas por entre a folhagem da paineira. Tia Olívia devia estar sorrindo, a umedecer com a ponta da língua os lábios brilhantes. Na Europa eram tão carnudas... Na Europa.

Abri a caixa de sabonete escondida sob o tufo de samambaia. O escorpião foi saindo penosamente de dentro. Deixei-o caminhar um bom pedaço e só quando ele atingiu o centro da varanda é que me decidi a despejar a gasolina. Acendi o fósforo. As chamas azuis subiram num círculo fechado. O escorpião rodou sobre si mesmo, erguendo-se nas patas traseiras, procurando uma saída. A cauda contraiu-se desesperadamente. Encolheu-se. Investiu e recuou em meio das chamas que se apertavam mais.

- Será que você não se envergonha de fazer uma maldade dessas?

Voltei-me. Marcelo cravou em mim o olhar feroz. Em seguida, avançando para o fogo, esmagou o escorpião no tacão da bota.

- Diz que ele se suicida, Marcelo...

- Era capaz mesmo quando descobrisse que o mundo está cheio de gente como você.

Tive vontade de atirar-lhe a gasolina na cara. Tapei o vidro.

- E não adianta ficar furiosa, vamos, olhe para mim! Sua boba. Pare de chorar e prometa que não vai mais judiar dos bichos.

Encarei-o. Através das lágrimas ele pareceu-me naquele instante tão belo quanto um deus, um deus de cabelos dourados e botas, todo banhado de luar. Fechei os olhos. Já não me envergonhava das lágrimas, já não me envergonhava de mais nada. Um dia ele iria embora do mesmo modo imprevisto como chegara, um dia ele sairia sem se despedir e desapareceria para sempre. Mas isso também já não tinha importância. Marcelo, Marcelo! chamei. E só meu coração ouviu.

Quando ele me tomou pelo braço e entrou comigo na sala, parecia completamente esquecido do escorpião e do meu pranto. Voltou-lhe o sorriso.

- Então é essa a famosa tia Olívia? Ah, ah, ah.

Enxuguei depressa os olhos na barra da saia.

- Ela é bonita, não?

Ele bocejou.

- Usa um perfume muito forte. E aquele galho de cerejas dependurado no peito. Tão vulgar.

- Vulgar?

Fiquei chocada. E contestei mas em meio da paixão com que a defendi, senti uma obscura alegria ao perceber que estava sendo derrotada.

- E, além do mais, não é meu tipo - concluiu ele voltando o olhar indiferente para o trabalho de crochê que Madrinha deixara desdobrado na cadeira. Apontou para o anjinho esvoaçando entre grinaldas. - Um anjinho cego.

- Por que cego? - protestou Madrinha descendo a escada. Foi nessa noite que perdeu os óculos. - Cada idéia, Marcelo!

Ele debruçara-se na janela e parecia agora pensar em outra coisa.

- Tem dois buracos em lugar dos olhos.

- Mas crochê é assim mesmo, menino! No lugar de cada olho deve ficar uma casa vazia - esclareceu ela sem muita convicção. Examinou o trabalho. E voltou-se nervosamente para mim. - Por que não vai buscar o dominó para vocês jogarem uma partida? E vê se encontra meus óculos que deixei por aí.

Quando voltei com o dominó, Marcelo já não estava na sala. Fiz um castelo com as pedras. E soprei-o com força. Perdia-o sempre, sempre. Passava as manhãs galopando como louco. Almoçava rapidamente e mal terminava o almoço, fechava-se no quarto e só reaparecia no lanche, pronto para sair outra vez. Restava-me correr ao alpendre para vê-lo seguir em direção à estrada, cavalo e cavaleiro tão colados um ao outro que pareciam formar um corpo só.

Como um só corpo os dois tombaram no divã, tão rápido o relâmpago e tão longa a imagem, ele tão grande, tão poderoso, com aquela mesma expressão com que galopava como que agarrado à crina do cavalo, arfando doloridamente na reta final.

Foram dias de calor atroz os que antecederam à tempestade. A ansiedade estava no ar. Dionísia ficou mais casmurra. Madrinha ficou mais falante, procurando disfarçadamente os óculos nas latas de biscoitos ou nos potes de folhagens, esgotada a busca em gavetas e armários. Marcelo pareceu-me mais esquivo, mais crispado. Só tia Olívia continuava igual, sonolenta e lânguida no seu negligê branco. Estendia-se na rede. Desatava a cabeleira. E com um movimento brando ia se abanando com a ventarola. Às vezes vinha com as cerejas que se esparramavam no colo polvilhado de talco. Uma ou outra cereja resvalava por entre o rego dos seios e era então engolida pelo decote.

- Sofro tanto com o calor...

Madrinha tentava animá-la.

- Chovendo, Olívia, chovendo você verá como vai refrescar.

Ela sorria umedecendo os lábios com a ponta da língua.

- Você acha que vai chover?

- Mas claro, as nuvens estão baixando, a chuva já está aí. E vai ser um temporal daqueles, só tenho medo é que apanhe esse menino lá fora. Você já viu menino mais esquisito, Olívia? Tão fechado, não? E sempre com aquele arzinho de desprezo.

- É da idade, querida. É da idade.

- Parecido com o pai. Romeu também tinha essa mesma mania com cavalo.

- Ele monta tão bem. Tão elegante.

Defendia-o sempre enquanto ele a atacava, mordaz, implacável: É afetada, esnobe. E como representa, parece que está sempre no palco . Eu contestava, mas de tal forma que o incitava a prosseguir atacando.

Lembro-me de que as primeiras gotas de chuva caíram ao entardecer, mas a tempestade continuava ainda em suspenso, fazendo com que o jantar se desenrolasse numa atmosfera abafada. Densa. Pretextando dor de cabeça, tia Olívia recolheu-se mais cedo. Marcelo, silencioso como de costume, comeu de cabeça baixa. Duas vezes deixou cair o garfo.

- Vou ler um pouco - despediu-se assim que nos levantamos.

Fui com Madrinha para a saleta. Um raio estalou de repente. Como se esperasse por esse sinal, a casa ficou completamente às escuras enquanto a tempestade desabava.

- Queimou o fusível! - gemeu Madrinha. - Vai, filha, vai depressa buscar o maço de velas, mas leva primeiro ao quarto de tia Olívia. E fósforos, não esqueça os fósforos!
Subi a escada. A escuridão era tão viscosa, que se eu estendesse a mão poderia senti-la amoitada como um bicho por entre os degraus. Tentei acender a vela mas o vento me envolveu. Escancarou-se a porta do quarto. E em meio do relâmpago que rasgou a treva, vi os dois corpos completamente azuis, tombando enlaçados no divã.

Afastei-me cambaleando. Agora as cerejas se despencavam sonoras como enormes bagos de chuva caindo de uma goteira. Fechei os olhos. Mas a casa continuava a rodopiar desgrenhada e lívida com os dois corpos rolando na ventania.

- Levou as velas para a tia Olívia? - perguntou Madrinha.

Desabei num canto, fugindo da luz do castiçal aceso em cima da mesa.

- Ninguém respondeu, ela deve estar dormindo.

- E Marcelo?

- Não sei, deve estar dormindo também.

Madrinha aproximou-se com o castiçal.

- Mas que é que você tem, menina? Está doente? Não está com febre? Hem?! Sua testa está queimando... Dionísia, traga uma aspirina, esta menina está com um febrão, olha aí!

Até hoje não sei quantos dias me debati esbraseada, a cara vermelha, os olhos vermelhos, escondendo-me debaixo das cobertas para não ver por entre clarões de fogo milhares de cerejas e escorpiões em brasa, estourando no chão.

- Foi um sarampo tão forte - disse Madrinha ao entrar certa manhã no quarto. - E como você chorava, dava pena ver como você chorava! Nunca vi um sarampo doer tanto assim.

Sentei-me na cama e fiquei olhando uma borboleta branca pousada no pote de avencas da janela. Voltei-me em seguida para o céu limpo. Havia um passarinho cantando na paineira. Madrinha então disse:

- Marcelo foi-se embora ontem à noite, quando vi, já estava de mala pronta, sabe como ele é. Veio até aqui se despedir, mas você estava dormindo tão profundamente.

Dois dias depois, tia Olívia partia também. Trazia o costume preto e o chapeuzinho com os alfinetes de pérola espetados no feltro. Na blusa branca, bem no vértice do decote, o galho de cerejas.

Sentou-se na beirada da minha cama.

- Que susto você nos deu, querida - começou com sua voz pesada. - Pensei que fosse alguma doença grave. Agora está boazinha, não está?

Prendi a respiração para não sentir seu perfume.

- Estou.

- Ótimo! Não te beijo porque ainda não tive sarampo - disse ela calçando as luvas. Riu o risinho cascateante. - E tem graça eu pegar nesta altura doença de criança?

Cravei o olhar nas cerejas que se entrechocavam sonoras, rindo também entre os seios. Ela desprendeu-as rapidamente.

- Já vi que você gosta, pronto, uma lembrança minha.

- Mas ficam tão lindas aí - lamentou Madrinha. - Ela nem vai poder usar, bobagem, Olívia, leve suas cerejas!

- Comprarei outras.

Durante o dia seu perfume ainda pairou pelo quarto. Ao anoitecer, Dionísia abriu as janelas. E só ficou o perfume delicado da noite.

- Tão encantadora a Olívia - suspirou Madrinha sentando-se ao meu lado com sua cesta de costura. - Vou sentir falta dela, um encanto de criatura. O mesmo já não posso dizer daquele menino. Romeu também era assim mesmo, o filho saiu igual. E só às voltas com cavalos, montando em pêlo, feito índio. Eu quase tinha um enfarte quando via ele galopar.

Exatamente um ano depois ela repetiria, num outro tom, esse mesmo comentário ao receber a carta onde Romeu comunicava que Marcelo tinha morrido de uma queda de cavalo.

- Anjinho cego, que idéia! - prosseguiu ela desdobrando o crochê nos joelhos. - Já estou com saudades de Olívia, mas dele?

Sorriu alisando o crochê com as pontas dos dedos. Tinha encontrado os óculos.

Fonte:
TELLES, Lygia Fagundes. As Cerejas. Ed. Atual, 1993.