quinta-feira, 2 de julho de 2009

Roberto Gomes (A Casa Fechada)


ATO ÚNICO

(Uma rua tristonha, numa cidade do interior. Uma lagoa reluz ao longe. Ao fundo, à extrema direita, uma casinha de duas janelas, separada da rua por um pequeno jardim. A casa está completamente fechada. No primeiro plano, à esquerda, a entrada do Correio. Perto da porta, um banco. No centro, ao fundo, um lampião perfila-se diante de uma árvore raquítica. A rua é vista em diagonal. Seis horas da tarde.)

CENA 1

(Dona Sinfonia, Joaquim Aguaceiro, Mendigo,Pescador.)
(Dona Sinfonia, à janela da agência, faz crochê e olha de vez em quando para a casa fechada. O Mendigo está sentado, imóvel, debaixo do lampião. Entra o Pescador com uma carta na mão e atravessa o palco. Quando ele vai penetrar no Correio, topa com Joaquim Aguaceiro, que, em pé, no solar, contempla a casa, ao longe.)

O PESCADOR
(Cumprimentando) Boa tarde, patrão.

JOAQUIM AGUACEIRO
Boa tarde, Candonga. (O Pescador entra, depois de cumprimentar Dona Sinfonia, e sai, logo após, sem a carta.) Está metido a escritor, agora?

O PESCADOR
Foi a carta que mandei pro filho.

JOAQUIM AGUACEIRO
Está sempre trabalhando na cidade?

O PESCADOR
Sim, patrão. Há muito que não sei dele. Então, como estava me dando saudade, pedi ao Anfilóquio para escrever uma carta.

JOAQUIM AGUACEIRO
Quem sabe se ele não anda doente?

O PESCADOR
A última vez que tive notícias, ele estava bem forte e saudável. Mas lá na cidade os homens caem depressa. Ah! Patrão! Criança é o castigo da gente! (Olha para Dona Sinfonia, que concorda com a cabeça.)

JOAQUIM AGUACEIRO
Aqui ele já era meio extravagante. Ficava a jogar bilhar até as dez horas.

O PESCADOR
Eu, na idade dele, era um bicho... era um bicho para tudo. Tinham medo, tão bravo que eu era no trabalho.

JOAQUIM AGUACEIRO
Hoje ainda.

O PESCADOR
Qual! Tenho andado doente. Foi uma resfriadela que apanhei. (Olha para o céu.) O tempo não está bom para reumatismo... Está assim cozinhando... Mas vamos ter chuva. (Olha ao longe.) A lagoa está brilhando.

JOAQUIM AGUACEIRO
Trabalhou muito hoje?

O PESCADOR
Assim. A pesca não foi lá das melhores. E, para atravessar a lagoa, meu bote só pega três pessoas. A gente precisa suar muito para ganhar pouco. Ah! Se eu tivesse todo o dinheiro que perdi, já estava remediado.

JOAQUIM AGUACEIRO
Agora vai pra casa?

O PESCADOR
Vou sim, patrão. (Pausa. Ele não se move.) Vou, sim... (Permanece imóvel. Afinal, dá um passo e pára. Mostrando a casa ao longe, com a cabeça:) Ainda estão lá dentro?

DONA SINFONIA
Estão, sim. Há mais de uma hora.

JOAQUIM AGUACEIRO
Ele é capaz de descobrir a coisa.

O PESCADOR
Ah! Com o Dr. Aprígio ninguém escapa. Moleque feio tem de entrar nela.

DONA SINFONIA
Não se ouve nada.

O PESCADOR
Nada. Está tudo fechado. Parece que estão a velar um defunto.

DONA SINFONIA
Desde a manhã, ninguém saiu.


CENA II

(Os mesmos, o Boticário) (O Boticário, chegando pausadamente, aperta a mão de Joaquim Aguaceiro, cumprimenta cerimoniosamente Dona Sinfonia, e, de alto, o Pescador.)

O BOTICÁRIO
Boas tardes, senhor aguaceiro.

JOAQUIM AGUACEIRO
Como passa, Sr. Simplício?

O BOTICÁRIO
Sempre bem. Deixei um instantinho a botica para comprar uns selos. Dona Eudóxia está?

JOAQUIM AGUACEIRO
Está. Ela anda um pouco atarefada. Desde manhã cedo teve gente como quê.

O BOTICÁRIO
Dona Sinfonia não largou a janela.

DONA SINFONIA
Estou com dor de cabeça... Preciso respirar.

O BOTICÁRIO
Tenho um bom remédio para dor de cabeça.

DONA SINFONIA
(Continuando, sem responder) Preciso respirar. Não posso ficar trancada.

JOAQUIM AGUACEIRO
(Olhando para a casa e piscando) Trancados estão eles.

O BOTICÁRIO
Já devem estar cheirando a mofo. (Pausa) Que estarão fazendo? Ouviu alguma coisa, Dona Sinfonia?

DONA SINFONIA
Não ouvi nada, Sr. Simplício. Não costumo meter-me na vida dos outros.

O PESCADOR
Quem viu foi o Geraldino.

DONA SINFONIA
(Largando o crochê) Ah! Ele viu?

O BOTICÁRIO
(Sem afetação) Viu?

O PESCADOR
Viu, sim. Ele ficou de me procurar depois do serviço pra me contar a coisa. O doutor delegado já conversou com ele.

DONA SINFONIA
Ah! Conversou?

O PESCADOR
(Importante) Conversou, sim. E agora está lá dentro com eles todos. Ah! Com aquele homem é preciso andar na linha. Senão, está tudo à toa.

DONA SINFONIA
(Olhando para a casa) À-toa é ela. Santa Bárbara!


CENA III

(Os mesmos, Dona Eudóxia, a Agente do Correio) (Dona Eudóxia aparece à porta do Correio. Joaquim Aguaceiro, com indiferença afetada, vai se aproximando da casa fechada e passa lentamente rente às janelas.)

O BOTICÁRIO
Como tem passado, Dona Eudóxia?

DONA EUDÓXIA
Vou indo, Sr. Simplício. Dona Quintanilha está boa?

O BOTICÁRIO
Está, obrigado.

DONA EUDÓXIA
Deseja alguma coisa?

O BOTICÁRIO
Preciso de uns selos. Mas não há pressa... não há pressa...

DONA EUDÓXIA
Não quer entrar um pouquinho?

O BOTICÁRIO
Prefiro ficar aqui mesmo.

DONA EUDÓXIA
Então, não quer sentar-se?

O BOTICÁRIO
Aceito o seu convite, Dona Eudóxia. Sinto-me cansado.

JOAQUIM AGUACEIRO
Foram as emoções desta noite.

DONA SINFONIA
Ah! Cruzes!

DONA EUDÓXIA
Deixe lá o seu crochê, Dona Sinfonia. A esta hora, vai estragar a vista. (Falando para dentro) Moleque! Traga uma cadeira!

(O Moleque Jenipapo aparece com uma cadeira. O Boticário senta-se nela; os outros no banco. O Pescador fica em pé. Aproxima-se Joaquim Aguaceiro.)

O BOTICÁRIO
Por onde anda, seu compadre?

DONA SINFONIA
Ouviu alguma coisa?

JOAQUIM AGUACEIRO
Nada. Está tudo calado.

O BOTICÁRIO
Não é como esta noite.

DONA SINFONIA
Ah! Que barulheira!

O BOTICÁRIO
A Quintanilha até chorou de susto.

DONA EUDOXIA
Ah!

O BOTICÁRIO
Tive de lhe dar água de flor de laranja com umas gotas e... Urna composição minha. (Pausa.)

DONA EUDÓXIA
(Voltando-se para a casa ao longe) Dizem que “ela” embarca no trem das sete.

O PESCADOR
Das sete.

DONA SINFONIA
Ela terá de passar por aqui.

JOAQUIM AGUACEIRO
Decerto.

O BOTICÁRIO
Homem! Já que vim até cá, estou quase a me demorar um pouco.

DONA SINFONIA
Até as sete.

JOAQUIM AGUACEIRO
Quero ver o seu jeito, quando ela passar.

DONA EUDÓXIA
Quem havia de dizer? Urna mulher assim tão direita!

O BOTICÁRIO
Oh! Eu sempre desconfiei... Essa gente calada...

DONA SINFONIA
E velha que ela é!

DONA EUDÓXIA
Velha, não!

DONA SINFONIA
Como não?

JOAQUIM AGUACEIRO
(Ao Pescador) Que idade tem ela? (Aos outros) Candonga sabe.

O PESCADOR
Ela ,já deve estar capinando os seus trinta e cinco.

DONA SINFONIA
(De mãos postas) Trinta e cinco!

O BOTICÁRIO
E três filhos.

JOAQUIM AGUACEIRO
O Julinho já anda pelos seus quinze.

DONA EUDÓXIA
Coitado!

DONA SINFONIA
Pois eu também vou esperar para vê-la passar... Ia agora para casa, mas como todos ficam...

DONA EUDÓXIA
Não querem tomar café?

O BOTICÁRIO
Aceito, Dona Eudóxia.

JOAQUIM AGUACEIRO
Não vale a pena.

O BOTICÁRIO
Bem que vale.

DONA EUDÓXIA
Já está feito, Sr. Joaquim. E só trazer. Vou chamar o Jenipapo. (Chamando) Moleque! Moleque! (Olhando para dentro) Onde se meteu esse moleque? (O Moleque Jenipapo entra correndo pelo fundo. Ele esteve atrás da casa fechada.) Ah! Ele tinha ido espiar! (Ao Moleque) Traga o café, depressa.

O BOTICÁRIO
(Fazendo-o parar) Viste alguma coisa, moleque?

O MOLEQUE JENIPAPO
Não, senhor, senhor não. A casa está toda escura. (Sai.)

DONA EUDÓXIA
Uma casa que parecia tão feliz! Lembra-se, Sr. Joaquim? Havia sempre flores às janelas.

JOAQUIM AGUACEIRO
Parece que esta noite ele arrebentou até as flores.

O PESCADOR
Viu que estava desgraçado. Então foi desgraçando tudo.

DONA EUDÓXIA
É isso mesmo... Oh!

DONA SINFONIA
Que é?

DONA EUDÓXIA
Acendeu!

TODOS
Acendeu?

DONA EUDÓXIA
Vejam. (Todos olham para a casa fechada. Com efeito, unia réstia de luz filtra pelas venezianas. Longo silêncio, durante o qual eles contemplam, imóveis, aquele feixe luminoso.)

O BOTICÁRIO
(Murmura.) Que será?

DONA SINFONIA
Não ouvem nada? (Todos escutam. Pausa.)

JOAQUIM AGUACEIRO
Nada. (Pausa.)

DONA EUDÓXIA
Eu também preciso acender. (Entra, acende o interior da casa e volta a ter com os outros.)

DONA SINFONIA
Vê-se ainda. (A uma senhora que chega) Oh! Ritoca! Há quanto tempo não a encontrava!


CENA IV
(Os mesmos, Ritoca)

DONA RITOCA
(Saudando a todos e abraçando Dona Sinfonia) Como vai sua obrigação?

DONA SINFONIA
Estou boa. E você?

DONA RITOCA
Não estou passando muito bem.

JOAQUIM AGUACEIRO
Pois não parece. Quando atravessava o largo, há pouco, estava dengosa como seriema no capim.

O BOTICÁRIO
Se não está boa, eu recebi da cidade uma pílulas que curam num instante. ~ só pedir.

DONA RITOCA
(Abraçando Dona Eudóxia) Vim até cá para ver se não havia cartas à minha espera.

DONA EUDÓXIA
Bem sabe que, quando há, sempre lhe mando levar. Não precisava incomodar-se. (Entra o Moleque com uma bandeja.) Toma café conosco?

DONA RITOCA
Não sei se tenho tempo... (Mais baixo, rapidamente) Ela já saiu?

DONA EUDÓXIA
Não. Vai pelo trem das sete.

DONA RITOCA
Ah! (Alto) Pois aceito... Uma canequinha.

DONA SINFONIA
Café nunca se recusa.

DONA EUDÓXIA
(Ao Moleque, que acaba de servir o café) Uma cadeira! Depressa. (Ele traz a cadeira e dirige-se, depois, para o lado da casa fechada, atrás da qual desaparece. Todos bebem o café aos goles.)

DONA RITOCA
Estavam falando da Maria das Dores?

JOAQUIM AGUACEIRO
Estávamos. Quem havia de dizer?

DONA RITOCA
Eu não sei ao certo o que houve. Que foi, heim, Sr. Aguaceiro?

O BOTICÁRIO
(A Dona Eudóxia) Ela já deve saber de cor. Desde manhã cedinho que se agarra a toda a gente para que lhe contem.

DONA SINFONIA
Quem conhece bem o caso é o Geraldino.

DONA RITOCA
O barbeiro?

O PESCADOR
Sim, senhora, Dona Ritoca. Tanto que ele ficou de me procurar, depois do serviço... Ele viu tudo, e já conversou com o doutor delegado. (Passa ao fundo uma criança arrastando um papagaio. Quando chega diante da casa fechada, ergue-se na ponta dos pés e procura espiar. Depois, segue o caminho.)

JOAQUIM AGUACEIRO
Não sei como é que ele não apareceu.

O PESCADOR
Ainda não acabou o serviço. (Pausa.)

DONA RITOCA
(Olhando para a casa) E ele? Não se sabe afinal quem é?

O BOTICÁRIO
Ela não quis dizer... Por nada. Ao senhor delegado talvez...

DONA SINFONIA
Parece até impossível.

DONA RITOCA
Não valia a pena fazer tanto xodó para acabar assim!

DONA EUDÓXIA
Que pena, meu Deus! Que pena!

DONA RITOCA
Lembra-se, Dona Sinfonia? Quando o coronel Fulgêncio passou uma tarde por aqui... Papai tinha preparado em casa um café de estalar a língua... Toda a gente à espera. Pois fizeram tanta intriga que o coronel acabou indo tomar café em casa da Maria das Dores.

DONA SINFONIA
Uma mulher que nem punha chapéu pra missa das dez!

JOAQUIM AGUACEIRO
Sim. O Matias está hoje desfalcado; mas já teve alguma coisa; e a Maria das Dores ainda hoje tem ar assim de gente grossa.

DONA EUDÓXIA
Quando ela entrava na igreja com seu grande xale preto, lembrava uma princesa...

O BOTICÁRIO
Pois está fresca, a princesa!

DONA RITOCA
Papai nunca perdoou o café do coronel. (Pausa.)

JOAQUIM AGUACEIRO
(Olhando para a casa) E nada...?

O BOTICÁRIO
Até agora, nada. (Silêncio.)

DONA SINFONIA
Que vai ser dela, sozinha, na capital?

DONA RITOCA
Ora!

O BOTICÁRIO
Com o perdão da palavra, vai cair na malandragem.

O PESCADOR
Ela tem umas primas por lá.

DONA EUDÓXIA
Coitada da Maria das Dores!

DONA SINFONIA
Coitada quê, Dona Eudóxia? Coitado do Matias!

DONA EUDÓXIA
Ele era muito bruto.

JOAQUIM AGUACEIRO
Qual bruto qual nada! Mulher precisa é andar na linha.

O BOTICÁRIO
Pancada traz amor.

DONA EUDÓXIA
(Apontando o Mendigo) O pai Tobias é que vai sentir falta. Acabou-se a janta.

O BOTICÁRIO
Onde vais comer agora, heim, pai Tobias?

O MENDIGO
(Fita-os sem responder, e, após um silêncio, gravemente) Deus é que sabe! (Pausa.)

O BOTICÁRIO
Antes não comer que comer o pão do pecado.

O PESCADOR
Ah! Isso também não!

DONA SINFONIA
(De repente) Oh! (Todos olham. Vê-se entreabrir a porta da casa, donde sai o delegado seguido pelo escrivão. O Moleque Jenipapo, que espiava, escondido, atravessa a rua correndo. Todos calam, cumprimentam o delegado. Este toca de leve o chapéu e sai.)

O PESCADOR
Ele saiu.

DONA EUDÓXIA
Que terá havido, meu Deus!

DONA RITOCA
Mais logo vamos saber.

DONA SINFONIA
Está começando a esfriar, não acham?

DONA EUDÓXIA
Podemos entrar.

DONA RITOCA
Estamos muito bem aqui.

O BOTICÁRIO
Estamos, sim.

JOAQUIM AGUACEIRO
(Puxando o relógio) Pouco falta para as sete.

DONA SINFONIA
E a estação fica tão perto!

OPESCADOR
Aí vem o Geraldino!

TODOS
Ah!

DONA RITOCA
Afinal!

CENA V
(Os mesmos, Geraldino)

JOAQUIM AGUACEIRO
Então, Geraldino? Teve serviço até agora?

GERALDINO
Fui até a estação. (Cumprimenta a todos.) Boas tardes!

O BOTICÁRIO
Já se pode dar boa-noite.

(Geraldino saúda com a mão o Pescador, que corresponde.)

DONA EUDÓXIA
Há muita gente na estação?

GERALDINO
Está cheia... Assim... Todos querem ver.

DONA SINFONIA
Que gente bisbilhoteira!

DONA RITOCA
Eu é que não me mexo.

GERALDINO
Também, ela tem de passar por aqui.

O BOTICÁRIO
Ela irá mesmo?

GERALDINO
Vai, pois não. Só se ela quiser dizer quem foi.

DONA EUDOXIA
O senhor delegado saiu agora mesmo.

GERALDINO
(Importante) Sei. Já estive com ele hoje à tarde. (Todos olham para o Geraldino, esperando que ele fale.)

O PESCADOR
Mas você viu mesmo tudo, seu Dino?

GERALDINO
Vi, decerto.

DONA SINFONIA
Tudo?

GERALDINO
Tudo, tudo, não.

DONA RITOCA
Oh! Conte... Conte...

GERALDINO
Mas vosmecê já me ouviu contar hoje duas vezes. (Todos se riem.)

O BOTICÁRIO
(A Dona Eudóxia) Está vendo?

DONA RITOCA
(Zangada) Eu? Onde? Onde?

GERALDINO
Esta manhã, perto da vacaria, quando eu explicava a coisa ao Zé Menezes; e, antes das duas...

DONA RITOCA
Oh! Eu passava tão depressa... Não ouvi quase nada.

JOAQUIM AGUACEIRO
Não se zangue, Dona Ritoca.

DONA RITOCA
Não. Mas parece assim que sou curiosa!

GERALDINO
(Dispondo-se a contar) Então, vá lá!

JOAQUIM AGUACEIRO
Quer pitar?

GERALDINO
Pois sim.

O BOTICÁRIO
Eu aceitava mais uma canequinha.

DONA EUDÓXIA
Moleque!... Café para o seu Simplício! (Pouco depois entra o Moleque, com o café.)

DONA SINFONIA
Então? Como foi isso?

GERALDINO
Foi assim... Eram onze horas. Eu passava pelo Beco das Formigas.

JOAQUIM AGUACEIRO
Às onze horas pelas ruas, seu malandro...

GERALDINO
Ora, não me interrompa...

O BOTICÁRIO
Deixe falar o Geraldino!

GERALDINO
Vinha da casa do Tinoco... A casa nova...

O PESCADOR
Um sujeito que outro dia mesmo estava arrancando mato, e depois ficou rico tão ligeiro!

GERALDINO
Assim não conto nada!

DONA RITOCA
Ora!

O BOTICÁRIO
Sossega! Gente!

GERALDINO
Está bom. (A Joaquim) Dê cá fogo! (Acende o cigarro, que se apaga.) Passava lá pelos fundos do beco, quando me pareceu ouvir ao longe uma qualquer coisa de especial dentro da casa do Matias. Paro para ouvir. De repente, bate a janela com toda a força, e vejo um vulto a pular.

DONA SINFONIA
A pular?

GERALDINO
Fiquei assim indeciso, sem saber. Pensei a princípio num ladrão. Mas, enquanto estava a cismar, ele desata a correr que nem veado e cai no mato.

DONA EUDÓXIA
Por que não correu atrás?

DONA RITOCA
E não reconheceu?

GIRALDINO
Não pude.Vi só que era um rapaz novo, esperto... Mas não reconheci.

DONA SINFONIA
Novo... Esperto... Quem sabe se não era o Alcino?

O BOTICÁRIO
O Alcino ontem estava de cama. Melhorou com um xarope meu, excelente.

JOAQUIM AGUACEIRO
Quem sabe se o Antônio Ferraz ...

DONA RITOCA
Ah! O António Ferraz!

O PESCADOR
Qual! O Nico bem que andava a rondar a casa do Matias, — não arranjou nada. Ela nem olhava para ele!

DONA RITOCA
(Resmungando) Não olhava... Não olhava...

DONA SEFONIA
Então, a gente nunca há de saber?

GERALDINO
Só se ela disser...

O PESCADOR
(para si) Por que é que ela não diz...?

O BOTICÁRIO
Adiante, Geraldino!

GERALDINO
Fui chegando de mansinho até a janela,que tinha ficado entreaberta, e espiei lá para dentro. Gente! Estava o Matias com os olhos a saltar, agarrado à mulher, torcendo-lhe os braços. E batendo-lhe com a cabeça no chão... (Redobra a atenção de todos)

DONA RITOCA
E ela gritava?

GERALDINO
Nem um pio. Ela não queria acordar os filhos.

DONA RITOCA
Ora veja!

GERALDINO
Parece que todas as noites, quando o Matias estava adormecido, ela ia devagarinho abrindo a porta da casa... Sabem que de dia ela não podia sair...

DONA EUDÓXIA
Que noites terríveis deviam ser aquelas!

O BOTICÁRIO
Ela com os filhos ao lado. Com a certeza de ser um dia apanhada.

DONA RITOCA
Ela não tinha medo de acordá-los?

JOAQUIM AGUACEIRO
Como é que a Maria das Dores, tão sossegada, tão refletida, foi desnortear assim, depois de velha?

DONA SINFONIA
Isso não se explica.

GERALDINO
São coisas!

JOAQUIM AGUACEIRO
Mas por quê?

DONA EUDÓXIA
(Timidamente) A gente, às vezes, sente-se tão só!

DONA RITOCA
Só... com um marido e três filhos!

DONA EUDÓXIA
(Viva mente) Não foi isso que eu quis dizer

O BOTICÁRIO
Que foi que a senhora quis dizer, Dona Eudóxia?
(Silêncio.)

DONA EUDÓXIA
(Depois de hesitar) Quis... (Pára um instante.) Eu bem sinto cá dentro, mas não sei explicar... Não sei... (Olham para Dona Eudóxia. Pausa.)

DONA SINFONIA
Uma grande sonsa é o que ela era.

JOAQUIM AGUACEIRO
Não tem desculpa o que ela fez.

DONA RITOCA
Que acha o Sr. Simplício?

O BOTICÁRIO
Uma desavergonhada... Pior que uma cadela.

DONA SINFONIA
E fingindo-se de boa! Quando penso, senhor aguaceiro, que, o mês passado, ela foi tratar da minha Ruth, na ocasião da tal epidemia! Eu também estava doente. Seis noites que ela passou na cabeceira da pequena, maculando com seu contato impuro aquele anjinho de inocência! Quando penso nessa desgraça...

DONA EUDÓXIA
Mas a menina salvou-se.

DONA SINFONIA
Graças à Divina Providência.

DONA RITOCA
Com certeza, ao sair, ela ia se encontrar com o tal rapaz.

O BOTICÁRIO
Ora se ia!

JOAQUIM AGUACEIRO
O tratamento era o pretexto.

DONA SINFONIA
Ah! Aquela mulher é um monstro. Não é, Sr. Geraldino?

GERALDINO
Decerto.

O BOTICÁRIO
Forca é o que ela merece. (Nesse momento, o velho mendigo deixa cair o cajado. Joaquim Aguaceiro volta-se para ele ao ouvir o ruído e exclama:)

JOAQUIM AGUACEIRO
E você, pai Tobias, que acha disso tudo?

O MENDIGO
(Olhando-os, lentamente, depois de apanhar o cajado) Essas coisas cá da terra a gente nunca
pode explicar.., nem julgar... Deus é que sabe... (Silêncio.)

DONA RITOCA
(Ao Barbeiro) E depois?

GERALDINO
Depois...? Ele puxava-lhe os cabelos, torcia-lhe os braços, sacudindo-a e repetindo sempre com raiva: “Diga o nome... Diga o nome..."

O PESCADOR
(Consigo mesmo) Mas por que é que ela não disse?

O BOTICÁRIO
Pudera! Se o Matias pegasse o rapazinho, esborrachava-o com um soco.

GERALDINO
(Prosseguindo) Então, corno ela não queria falar, ele apanhou à parede um grande chicote de couro e começou a bater-lhe, a bater-lhe até mais não poder. A princípio ela gemia baixinho, mas depois pegou a gritar, a gritar que era um gosto. Ele só repetia: “Diga o nome... Diga o nome...” E ela nada... Até que o sangue começou a pingar.

DONA RITOCA
O sangue?

DONA EUDÓXIA
Cruzes! (Todos se aproximam do Geraldino, ofegantes. Os peitos arfam, os olhos brilham no crepúsculo.)

GERALDINO
Sim. A cada chibatada, aparecia uma fitinha vermelha que ia escorrendo pelo corpo. Não sei se o Matias tinha dó, mas ele chorava também. E continuava, de chicote em punho, a dizer, chorando: “O nome... O nome... Diga o nome... Ela torcia-se no chão, feito cobra. Arrastava-se, agarrava-se a ele, gritando:“ Tem pena! Tem pena! Matias, eu te amei também!...” Quando o Julinho entrou no quarto, ela estava toda encharcada...

DONA SINFONIA
Encharcada?

GERALDINO
O assoalho estava vermelho, como se tivessem amassado goiaba... (Nesse momento, Dona Ritoca desanda a rir nervosamente. Todos olham, estupefatos. Geraldino interrompe-se. Mas a risada continua, cada vez mais nervosa, mais estridente.)

O BOTICÁRIO
Que é, Dona Ritoca?

DONA EUDÓXIA
Está incomodada?

DONA SINFONIA
Quer ir lá pra dentro?

DONA RITOCA
(Insistindo, e continuando a rir-se, diz, com palavras entrecortadas e ofegantes:) Não... Não... Mas... Eu imaginava a Maria das Dores, oferecendo chá ao coronel, com seus ares de princesa.., e ontem... o chicote... e o sangue... (E ri-se, ri-se sem parar. Todos entreolham-se, em silêncio, com certo constrangimento. Longa pausa.)

DONA SINFONIA
Coitada da Ritoca! ~ tão sensível!... (A Dona Eudóxia) Não tem um pouco de vinagre?

DONA EUDÓXIA
Sim. (Entra e volta com o vinagre, que faz respirar a Dona Ritoca, enquanto a conversa recomeça.)

JOAQUIM AGUACEIRO
Foi só o Julinho que entrou?

GERALDINO
As pequenas também. Elas estavam com medo, mas o Matias arrastou-as até o quarto e disse à mulher: “Olha bem, pela última vez... Se não queres dizer o nome, amanhã tu sais desta casa para sempre, e nunca mais verás teus filhos... Nunca..."

O BOTICÁRIO
E ela não disse?

GERALDINO
Não.

O PESCADOR
(Meditando) Mas por quê?

DONA SINFONIA
Que mãe sem entranhas!

DONA EUDÓXIA
No entanto, bem extremosa que ela era!

O PESCADOR
Era, sim. E ela vai deixar os filhos para sempre.

DONA SINFONIA
Disfarce!

DONA EUDÓXIA
Mas, Sr. Geraldino, por que é que o senhor não entrou no quarto quando viu isso?

GERALDINO
Oh! Dona Eudóxia... Eu não me meto nas brigas de casais... Não me casei, foi para não brigar.

DONA EUDÓXIA
Que noite horrorosa! Fui acordada em sobressalto pelo Julinho.

DONA RITOCA
Ah! O Julinho esteve aqui?

DONA EUDÓXIA
Veio pedir-me um remédio para a mãe, que não podia mais...

O BOTICÁRIO
Em vez de ir à botica... E a senhora deu?

DONA EUDÓXIA
Pois não.

O BOTICÁRIO
Não posso deixar de estranhar essa atitude, Dona Eudóxia! A senhora... uma funcionária exemplar, de vida tão correta, pretender aliviar o castigo de uma criminosa!...

DONA EUDÓXIA
Desculpe, Sr. Simplício. Não tive em vista desgostá-lo. Mas, quando uma criatura sofre, acho que é sempre digna de piedade.

O BOTICÁRIO
São idéias subversivas, Dona Eudóxia. Ai de nós se todos assim pensassem!

DONA EUDÓXIA
Tanto mais que o Matias era longe de ser um marido exemplar. É um homem...

O BOTICÁRIO
E um homem. E o dono. Tem todos os direitos.

JOAQUIM AGUACEIRO
Isso tem.

DONA EUDÓXIA
E possível. Não sei. Não sei me exprimir... Mas isso assim não está direito.

DONA SINFONIA
Não acha justo o castigo?

DONA EUDÓXIA
Não sei. Mas a Maria das Dores, que foi, durante tantos anos, tão boa mãe, tão boa esposa, tão boa para todos... Como é que perde tudo assim, num dia só... Isso não é justo... Não é justo...

O BOTICÁRIO
Pois eu acho que ele foi até bem bom. Não é? (Volta-se para Joaquim Aguaceiro, que aprova com a cabeça.)

GERALDINO
Eu matava.

DONA EUDÓXIA
Oh! Sr. Geraldino!

JOAQUIM AGUACEIRO
(Ao Pescador) E você, Candonga? Que diz?

O PESCADOR
(Começando a falar, sem responder) Lá pelo sertão de Minas, morava um primo meu, o Xicão. Estava casado com uma mulher linda... Eu a conheci... Uma noite, ele ouve barulho dentro de casa... Levanta-se, pega a garrucha e vai ter até o sótão. (Cospe.) Lá, ele topa com a mulher nos braços dum rapaz, um desses cometas vagabundos que andam a correr pelas estradas.

DONA SINFONIA
Matou os dois?

DONA RITOCA
(Pegando-lhe o braço, súplice) Oh! Deixe falar...

O PESCADOR
Ele atracou o rapaz. Era um valente, o Xicão, e forte, como o Matias. Amarrou o homem aos pés da cama, enterrou-lhe um lenço na boca para que não pegasse a gritar...

DONA SINFONIA
E depois...?

O PESCADOR
Depois?... Fez esquentar um ferro na trempe. Quando esteve em brasa, deu-o à mulher, mostrou-lhe o rapaz amarrado e disse: “Vai... Espeta!”

DONA EUDÓXIA
Ah! Que horror!

DONA RITOCA
E ela?

O PESCADOR
Ela a princípio não queria. Ele então encostou-lhe a garrucha na testa e disse: “Espeta ou eu atiro!...” (Pausa.) Então ela espetou.

DONA EUDÓXIA
Oh!

O PESCADOR
Espetou a noite inteira. O Xicão não tinha pressa... Ele dizia: “Espeta aqui... estes braços que te abraçaram... aqui esta boca que te beijou... Espeta!” De vez em quando ele mandava parar, pra esticar... Quando o rapaz desfalecia... ele deixava que acordasse para continuar... A carne cheirava... De madrugada, furou-lhe os olhos...

DONA EUDÓXIA
Oh!

O PESCADOR
(Calmo) Ele tinha deixado os olhos pro fim... Até que o outro morreu. Já nem parecia gente.

DONA RITOCA
E a mulher?

O PESCADOR
O Xicão matou-a logo em seguida. Enterrou-a na fazenda. Mas o corpo do rapaz ficou pros urubus.

O BOTICÁRIO
Ah! O Xicão era um homem.

O PESCADOR
Um sujeito às direitas.

JOAQUIM AGUACEIRO
Vêem que o Matias ainda foi bem manso.

O BOTICÁRIO
(Puxando o relógio) Já são quase horas do trem...

DONA SINFONIA
Ela é capaz de não ir.

GERALDINO
Vai, sim.

DONA EUDÓXIA
E se ela disser o nome?

GERALDINO
Não diz, não. Mulher quando bate o pé... (O Pescador faz um gesto de quem não compreende.)

CENA VI

(Os mesmos, o Acendedor de Lampiões) (Ele vai entrando devagar e acende lentamente o lampião.)

JOAQUIM AGUACEIRO
Oh! Velho Aprígio!

O ACENDEDOR DE LAMPIÕES
Boas noites!

O BOTICÁRIO
Acenda bem, Aprígio... que nós precisamos ver direito...

O ACENDEDOR DE LAMPIÕES
(Acendendo) Pronto.

JOAQUIM AGUACEIRO
Que luz desgraçada!

GERALDINO
Qual, meu velho! Sua luz não presta!

O PESCADOR
Não se vê nada.

O ACENDEDOR DE LAMPIÕES
Minha luz é muito boa... Vocês é que não sabem ver.

O PESCADOR
Está bom... Não se zangue... Pare um tiquinho conosco para apreciar uma coisa bonita!

O ACENDEDOR DE LAMPIÕES
Não posso parar. Tenho que seguir caminho... Há muita gente no escuro que espera pela luz...

O PESCADOR
Então, boa noite!

O ACENDEDOR DE LAMPIÕES
(Saindo) Boa noite!

CENA VII

(Os mesmos, menos o Acendedor de Lampiões, depois, o Filho)
O BOTICÁRIO
(Murmura) Velho maluco! (Ouve-se o sino da estação e, ao longe, o arfar surdo do trem.)

DONA RITOCA
O trem vai chegar!

DONA SINFONIA
E ela não embarca!

O BOTICÁRIO
Embarcará, sim, à última hora... correndo...

JOAQUIM AGUACEIRO
De vergonha...

DONA SINFONIA
Eu nem hei de olhar para ela!

DONA RITOCA
(A Dona Eudóxia) Dê-me o seu xale, Dona Eudóxia. Estou sentindo frio... (Dona Eudóxia).
vai buscar o xale, que estava numa mesa perto da porta. Dona Ritoca entra com ela.).

GERALDINO
(De repente) Ela está saindo! (Aponta para a casa. Com efeito, a porta abriu-se. Todos olham com ânsia. Mas quem sai da casa é um rapazinho em mangas de camisa. Desce lentamente os degraus da porta e, sem olhar para ninguém, vai encostar-se ao muro que separa o jardim da rua, com a cabeça descansando nos braços.)

DONA SINFONIA
(Baixo) É o Julinho.

O BOTICÁRIO
O Julinho, sim. (Sussurro geral.)

DONA SINFONIA
Que é que ele veio fazer?

O MOLEQUE JENIPAPO
(Surgindo de repente) Ela já vem! Ela já vem! (Movimento de todos.)

JOAQUIM AGUACEIRO
Você viu?

O MOLEQUE JENIPAPO
Espiei, sim. Ela acabou de preparar a trouxa. Vai sair.

DONA SINFONIA
(Gritando para dentro) Ritoca! Ritoca! Ela vai passar! (Aparecem Dona Ritoca e Dona Eudóxia, em seguida.)

GERALDINO
Quer sentar, Dona Ritoca?

DONA RITOCA
Em pé vê-se melhor. (Ouve-se o silvo do trem que está chegando.)

O BOTICÁRIO
Ela é capaz de perder o trem.

DONA EUDÓXIA
Qual! Esses trens... a gente nunca perde...

DONA SINFONIA
(Chamando) Venha aqui, Ritoca!

DONA EUDÓXIA
E ela não verá mais os filhos?

O BOTICÁRIO
Nunca!

O PESCADOR
(Só para si) Mas por que é que ela não disse o nome?

TODOS
Oh! Oh! Oh!

CENA VIII
(Os mesmos, Maria das Dores).
(Abre-se de novo a porta, e, destacando-se, no fundo luminoso da sala, aparece no limiar o vulto de Maria das Dores. Um grande xale preto cobre-lhe a cabeça e cai até os joelhos. Na mão, uma pequena trouxa. Ela começa a caminhar, rígida, de rosto fechado, sem olhar para ninguém. Ouve-se um sussurro no grupo. Mas alguém faz “Pst” e o silêncio torna-se geral. Todas as personagens estão na penumbra. Só o velho mendigo iluminado pela luz do lampião. Quando Maria das Dores passa por ele, ele ergue-se e tira o chapéu. Então, no meio do silêncio mortal, ouve-se um soluço abafado e desesperado. E o filho que está chorando, encostado ao muro. Ela tem um longo estremecer do corpo todo. Atrasa insensivelmente o passo um segundo, mas continua a caminhar sem um gesto e sem se voltar. Todos a acompanham com os olhos. Ouve-se novamente o silvo da locomotiva. Então, a voz do velho mendigo eleva-se na noite, grave e lenta.)

O MENDIGO
Deus é que sabe... Deus é que sabe...
FIM

Fonte:
GOMES, Roberto. A Casa Fechada. In: Teatro da Juventude. Ano IV, nº. 26. Governo do Estado de São Paulo. Secretaria de Cultura. São Paulo: Imprensa Oficial, 1999.

quarta-feira, 1 de julho de 2009

Alerta


Hoje não haverão postagens. Estou enviando por e-mail o índice das postagens de junho, com acesso direto pelo documento anexo.
Caso queira receber todo início de mês o índice do mês anterior, envie e-mail para pavilhaoliterario@gmail.com
Breve estarei fazendo o índice de todas os textos postados (até o momento 2515).
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Obrigado

José Feldman

terça-feira, 30 de junho de 2009

Trova XXXIII

Inglês de Sousa (A Quadrilha de Jacob Patacho )

Palavras negritadas veja vocabulário ao final do texto
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Eram sete horas, a noite estava escura, e o céu ameaçava chuva.

Terminara a ceia, composta de cebola cozida e pirarucu assado, o velho Salvaterra dera graças a Deus pelos favores recebidos; a sora Maria dos Prazeres tomava pontos em umas velhas meias de algodão muito remendadas; a Anica enfiava umas contas destinadas a formar um par de braceletes, e os dois rapazes, espreguiçando-se, conversavam em voz baixa sobre a última caçada. Alumiava as paredes negras da sala uma candeia de azeite, reinava um ar tépido de tranqüilidade e sossego, convidativo do sono. Só se ouviam o murmúrio brando do Tapajós e o ciciar do vento nas folhas das pacoveiras. De repente, a Anica inclinou a linda cabeça, e pôs-se a escutar um ruído surdo que se aproximava lentamente.

- Ouvem? - perguntou.

O pai e os irmãos escutaram também por alguns instantes, mas logo concordaram, com a segurança dos habitantes de lugares ermos:

- É uma canoa que sobe o rio.

- Quem há de ser?

- A estas horas, - opinou a sora Maria dos Prazeres, - não pode ser gente de bem.

- E por que não, mulher? - repreendeu o marido, - isto é alguém que segue para Irituia.

- Mas quem viaja a estas horas? - insistiu a timorata mulher.

- Vem pedir-nos agasalho, redargüiu. - A chuva não tarda, e esses cristãos hão de querer abrigar-se.

A sora Maria continuou a mostrar-se apreensiva. Muito se falava então nas façanhas de Jacob Patacho, nos assassinatos que a miúdo cometia; casos estupendos se contavam de um horror indizível: incêndios de casas depois de pregadas as portas e janelas para que não escapassem à morte os moradores. Enchia as narrativas populares a personalidade do terrível Saraiva, o tenente da quadrilha cujo nome não se pronunciava sem fazer arrepiar as carnes aos pacíficos habitantes do Amazonas. Félix Salvaterra tinha fama de rico e era português, duas qualidades perigosas em tempo de cabanagem. O sítio era muito isolado e grande a audácia dos bandidos. E a mulher tinha lágrimas na voz lembrando estes fatos ao marido.

Mas o ruído do bater dos remos n'água cessou, denotando que a canoa abicara ao porto do sítio. Ergueu-se Salvaterra, mas a mulher agarrou-o com ambas as mãos:

- Onde vais, ó Felix?

Os rapazes lançaram vistas cheias de confiança às suas espingardas, penduradas na parede e carregadas com bom chumbo, segundo o hábito de precaução naqueles tempos infelizes; e seguiram o movimento, do pai. A Anica, silenciosa, olhava alternativamente para o pai e para os irmãos.

Ouviram-se passos pesados no terreiro, e o cão ladrou fortemente. Salvaterra desprendeu-se dos braços da mulher e abriu a porta. A escuridão da noite não deixava ver coisa alguma, mas uma voz rústica saiu das trevas.

- Boa-noite, meu branco.

Quem está aí? - indagou o português. - Se é de paz, entre com Deus.

Então dois caboclos apareceram no círculo de luz projetado fora da porta pela candeia de azeite. Trajavam calças e camisa de riscado e traziam na cabeça grande chapéu de palha. O seu aspecto nada oferecia de peculiar e distinto dos habitantes dos sítios do Tapajós.

Tranqüilo, o português afastou-se para dar entrada nos noturnos visitantes. Ofereceu-lhes da sua modesta ceia, perguntou-lhes donde vinham e para onde iam.

Vinham de Santarém, e iam a Irituia, à casa do tenente Prestes levar uma carga de fazendas e molhados por conta do negociante Joaquim Pinto; tinham largado do sítio de Avintes às quatro horas da tarde, contando amanhecer em Irituia, mas o tempo se transtornara à boca da noite, e eles, receando a escuridão e a pouca prática que tinham daquela parte do rio, haviam deliberado parar no sítio de Salvaterra, e pedir-lhe agasalho por uma noite. Se a chuva não desse, ou passasse com saída da lua para a meia-noite, continuariam a sua viagem.

Os dois homens falavam serenamente, arrastando as palavras no compasso preguiçoso do caboclo que parece não ter pressa de acabar de dizer. O seu aspecto nada oferecia de extraordinário. Um, alto e magro, tinha a aparência doentia; o outro reforçado, baixo, e de cara bexigosa, não era simpático à dona da casa, mas afora o olhar de lascívia torpe que dirigia a Anica, quando julgava que o não viam, parecia a criatura mais inofensiva deste mundo.

Depois que a sora Maria mostrou ter perdido os seus receios, e que a Anica serviu aos caboclos os restos da ceia frugal daquela honrada família, Salvaterra disse que eram horas de dormir. O dia seguinte era de trabalho e convinha levantar cedo para ir em busca da pequena e mais da malhada, duas vacas que lhe haviam desaparecido naquele dia. Então um dos tapuios, o alto, a quem o companheiro chamava cerimoniosamente - seu João - levantou-se e declarou que iria dormir na canoa, a qual posto que muito carregada, dava acomodação a uma pessoa, pois era uma galeota grande. Salvaterra e os filhos tentaram dissuadi-lo do projeto, fazendo ver que a noite estava má e que a chuva não tardava, mas o tapuio, apoiado pelo companheiro, insistiu. Nada, que as fazendas não eram dele e seu Pinto era um branco muito rusguento, e sabia lá Deus o que podia acontecer; os tempos não andavam bons, havia muito tapuio ladrão aí por esse, acrescentava como um riso alvar, e de mais ele embirrava com esta história de dormir dentro de uma gaiola. Quanto à chuva pouco se importava, queria segurança e agasalho para as fazendas: ele tinha o couro duro e um excelente japá na tolda da galeota.

No fundo quadrava perfeitamente à sora Maria a resolução do seu João, não só porque pensava que mais vale um hóspede do que dois, como também por lhe ser difícil acomodar os dois viajantes na sua modesta casinha. Assim não duvidou aplaudir a lembrança, dizendo ao marido:

- Deixa lá, homem, cada um sabe de si e Deus de todos.

O caboclo abriu a porta e saiu acompanhado pelo cão de guarda, cuja cabeça amimava, convidando-o para lhe fazer companhia, por via das dúvidas. A noite continuava escura como breu. Lufadas de um vento quente, prenúncio de tempestade, açoutavam nuvens negras que corriam para o sul como fantasmas em disparada. As árvores da beirada soluçavam, vergadas pelo vento, e grossas gotas de águas começavam a cair sobre o chão ressequido, de onde subia um cheiro ativo de barro molhado.

- Agasalhe-se bem, patrício, - gritou o português ao caboclo que saía. E, fechando a porta com a tranca de pau, veio ter com a família.

Logo depois desejavam boa-noite uns aos outros; o hóspede que deu o nome de Manuel, afundou-se numa rede, que lhe armaram na sala, e ainda não havia meia hora que saíra seu João, já a sora Maria, o marido e os filhos dormiam o sono reparador das fadigas do dia, acalentado pela calma de uma consciência honesta.

A Anica depois de rezar à Virgem das Dores, sua padroeira, não pudera fechar os olhos. Impressionara-a muito o desaparecimento da pequena e da malhada, que acreditava filho de um roubo, e sem querer associava na sua mente a esse fato as histórias terríveis que lhe lembrara a mãe pouco antes, sobre os crimes diariamente praticados pela quadrilha de Jacob Patacho. Eram donzelas raptadas para saciar as paixões dos tapuios; pais de família assassinados barbaramente; crianças atiradas ao rio com uma pedra ao pescoço, herdades incendiadas, um quatro interminável de atrocidades inauditas que lhe dançava diante dos olhos, e parecia reproduzido nas sombras fugitivas projetadas nas paredes de barro escuro do seu quartinho pela luz vacilante da candeia de azeite de mamona.

E por uma singularidade, que a rapariga não sabia explicar, em todos aqueles dramas de sangue e de fogo havia uma figura saliente, o chefe, o matador, o incendiário, demônio vivo que tripudiava sobre os cadáveres quentes das vítimas, no meio das chamas dos incêndios, e, produto de um cérebro enfermo, agitado pela vigília, as feições desse monstro eram as do pacífico tapuio que ela ouvia roncar placidamente no fundo da rede na sala vizinha. Mas por maiores esforços que a moça fizesse para apagar da sua imaginação a figura baixa e bexigosa do hóspede, rindo nervosamente da sua loucura, mal fechava os olhos, lá lhe apareciam as cenas de desolação e de morte, no meio das quais progrediam os olhos ardentes, o nariz chato e a boca desdentada do tapuio, cuja figura, entretanto, desenrolava-se inteira na sua mente espavorida, absorvendo-lhe a atenção e resumindo a tragédia feroz que o cérebro imaginava.

Pouco a pouco, procurando provar a si mesma que o hóspede nada tinha de comum com o personagem que sonhara, e que a sua aparência era toda pacífica, de um pobre tapuio honrado e inofensivo, examinando-lhe mentalmente uma a uma as feições, foi-lhe chegando a convicção de que não fora aquela noite a primeira vez que o vira, convicção que se arraigava no seu espírito, à medida que se lhe esclarecia a memória. Sim, era aquele mesmo; não era a primeira vez que via aquele nariz roído de bexigas, aquela boca imunda e servil, a cor azinhavrada, a estatura baixa e vigorosa, sobretudo aquele olhar indigno, desaforado, torpe que a incomodara tanto na sala, queimando-lhe os seios. Já uma vez fora insultada por aquele olhar. Onde? Como? Não podia lembrar-se, mas com certeza não era a primeira vez que o sentia. Invocava as suas reminiscências. No Funchal não podia ser; no sítio também não fora; seria no Pará quando chegara com a mãe, ainda menina, e acomodaram-se em uma casinha da rua das Mercês? Não; era mais recente, muito mais recente. Bem; parecia recordar-se agora. Fora em Santarém, havia coisa de dois anos ou três, quando ali estivera com o pai para assistir a uma festa popular, o sahiré. Hospedara-se então na casa do negociante Joaquim Pinto, patrício e protetor de seu pai, e foi ali, em uma noite de festa, quando se achava em companhia de outras raparigas sentada à porta da rua, a ver passar a gente que voltava de igreja, que se sentiu atormentada por aquele olhar lascivo e tenaz, a ponto de retirar-se para a cozinha trêmula e chorosa. Sim, nenhuma dúvida mais podia haver, o homem era um agregado de Joaquim Pinto, um camarada antigo da casa, por sinal que, segundo lhe disseram as mucamas da mulher do Pinto, era de Cametá e se chamava Manuel Saraiva.

Neste ponto de suas reminiscências, a Anica foi assaltada por uma idéia medonha que lhe fez correr um frio glacial pela espinha dorsal, ressecou-lhe a garganta, e inundou-lhe de suor a fronte. Saraiva! Mas era este o nome do famigerado tenente de Jacob Patacho, cuja reputação de malvadez chegara aos recônditos sertões do Amazonas, e cuja atroz e brutal lascívia excedia em horror aos cruéis tormentos que o chefe da quadrilha inflingia às suas vítimas. Seria aquele tapuio de cara bexigosa e ar pacífico o mesmo salteador da baía do Sol e das águas dos Amazonas, o bárbaro violador de virgens indefesas, o bandido, cujo nome mal se pronunciava nos serões das famílias pobres e honradas, tal o medo que incutia? Seria aquele homem de maneiras sossegadas e corteses, de falar arrastado e humilde o herói dos estupros e dos incêndios, a fera em cujo coração de bronze jamais pudera germinar o sentimento da piedade?

A idéia da identidade do tapuio que dormia na sala vizinha com o tenente de Jacob Patacho, gelou-a de terror. Perdeu os movimentos e ficou por algum tempo fria, com a cabeça inclinada para trás, a boca entreaberta e os olhos arregalados, fixos na porta da sala; mas de repente o clarão de um pensamento salvador iluminou-lhe o cérebro; convinha não perder tempo, avisar o pai e os irmãos, dar o grito de alarma; eram todos homens possantes e decididos, tinham boas espingardas; os bandidos eram dois apenas, seriam prevenidos, presos antes de poderem oferecer séria resistência. Em todo o caso, fossem ou não fossem assassinos e ladrões, mais valia estarem os de casa avisados, passarem uma noite em claro do que correrem o risco de serem assassinados a dormir. Saltou da cama, enfiou as saias e correu para a porta, mas a reflexão fê-la estacar cheia de desânimo. Como prevenir o pai, sem correr a eventualidade de acordar o tapuio? A sala em que este se aboletara interpunha-se entre o seu quarto e o de seus pais; para chegar ao dormitório dos velhos era forçoso passar por baixo da rede do caboclo, que não podia deixar de acordar, principalmente ao ruído dos gonzos enferrujados da porta que, por exceção e natural recato da moça, se fechara aquela noite. E se acordasse seria ela talvez a primeira vítima, sem que o sacrifício pudesse aproveitar à sua família.

Um silvo agudo, imitante do canto do urutaí, arrancou-a a estas reflexões, e pondo os ouvidos à escuta, pareceu-lhe que o tapuio da sala vizinha cessara de ressonar. Não havia tempo a perder, se queria salvar os seus. Lembrou-se então de saltar pela janela, rodear a casa e ir bater à janela do quarto do pai. Já ia realizar esse plano quando cogitou de estar o outro tapuio, o seu João, perto da casa para responder ao sinal do companheiro, e entreabriu com toda precaução a janela, espreitando pelo vão.

A noite estava belíssima.

O vento forte afugentara as nuvens para o sul, e a lua subia lentamente no firmamento, prateando as águas do rio e as clareiras da floresta. A chuva cessara inteiramente, e do chão molhado subia uma evaporação de umidade, que, misturada ao cheiro ativo das laranjeiras em flor, dava aos sentidos uma sensação de odorosa frescura.

A princípio a rapariga, deslumbrada pelo luar, nada viu, mas afirmando a vista percebeu umas sombras que se esgueiravam por entre as árvores do porto, e logo depois distinguiu vultos de tapuios cobertos de grandes chapéus de palha, e armados de terçados, que se dirigiam para a casa.

Eram quinze ou vinte, mas à rapariga de susto pareceu uma centena, porque de cada tronco de árvore a sua imaginação fazia um homem.

Não havia que duvidar. Era a quadrilha de Jacob Patacho que assaltava o sítio.

Todo o desespero da situação em que se achava apresentou-se claramente à inteligência da rapariga. Saltar pela janela e fugir, além de impossível, porque a claridade da lua a denunciaria aos bandidos, seria abandonar seus pais e irmãos, cuja existência preciosa seria cortada pelo punhal dos sicários de Patacho durante o sono, e sem que pudessem defender-se ao menos. Ir acordá-los seria entregar-se às mãos do feroz Saraiva, e sucumbir aos seus golpes antes de realizar o intento salvador. Que fazer? A donzela ficou algum tempo indecisa, gelada de terror, com o olhar fixo nas árvores do porto, abrigo dos bandidos, mas de súbito, tomando uma resolução heróica, resumindo todas as forças em um supremo esforço, fechou rapidamente a janela e gritou com todo o vigor dos seus pulmões juvenis:

- Aqui d'el-rei! Os de Jacob Patacho!

A sua voz nervosa repercutiu como um brado de suprema angústia pela modesta casinha, e o eco foi perder-se dolorosamente, ao longe, na outra margem do rio, dominando o ruído da corrente e os murmúrios noturnos da floresta. Súbito rumor fez-se na casa até então silenciosa, rumor de espanto e de sobressalto em que se denunciava a voz rouca e mal segura de pessoas arrancadas violentamente a um sono pacífico; a rapariga voltou-se para o lado da porta da sala, mas sentiu-se presa por braços de ferro, ao passo que um asqueroso beijo, mordedura de réptil antes do que humana carícia, tapou-lhe a boca. O tapuio bexigoso, Saraiva, sem que a moça o pudesse explicar, entrara sorrateiramente no quarto, e se aproximara dela sem ser pressentido.

A indignação do pudor ofendido e a repugnância indizível que se apoderou da moça ao sentir o contato dos lábios e do corpo do bandido, determinaram uma resistência que o seu físico delicado parecia não poder admitir. Uma luta incrível se travou entre aquela branca e rosada criatura seminua e o tapuio que a enlaçava com os braços cor de cobre, dobrando-lhe o talhe flexível sob a ameaça de novo contato de sua boca desdentada e negra, e procurando atirá-la ao chão. Mas a rapariga segurara-se ao pescoço do homem com as mãos crispadas pelo esforço espantoso do pudor e do asco, e o tapuio, que julgara fácil a vitória, e tinha as mãos ocupadas em apertar-lhe a cintura em um círculo de ferro, sentiu faltar-lhe o ar, opresso pelos desejos brutais que tanto o afogavam quanto a pressão dos dedos nervosos e afilados da vítima.

Mas se a sensualidade feroz do Saraiva, unida à audácia que lhe inspirara a consciência de terror causado por sua presença lhe fazia esquecer a prudência que tanto o distinguia antes do ataque, o brado de alarma solto pela rapariga dera aos quadrilheiros de Patacho um momento de indecisão. Ignorando o que se passava na casa, e as circunstâncias em que se achava o tenente comandante da expedição, cederam a um movimento de reserva, da índole do caboclo, e voltaram a esconder-se por detrás dos troncos de árvores que ensombravam a ribanceira. A moça ia cair exausta de forças, mas teve ainda ânimo para gritar com suprema energia:

- Acudam, acudam, que me matam!

Bruscamente o Saraiva largou a mão da Anica, e atirou-se para a janela, naturalmente para abri-la, e chamar os companheiros, percebendo que era tempo de agir com resolução, mas a moça advertindo-se do intento, atravessou-se no caminho, com inaudita coragem, opondo-lhe com o corpo um obstáculo que de fácil remoção seria para o tapuio, se nesse momento, abrindo-se de par em par, a porta da sala não desse entrada a Félix Salvaterra, seguido por dois filhos, todos armados de espingardas. Antes que o tenente de Jacob Patacho tivesse podido defender-se, caía banhado em sangue com uma valente pancada no crânio que lhe deu o velho com a coronha da arma.

O português e os filhos mal despertos do sono, com as roupas em desalinho, não se deixaram tomar do susto e da surpresa, expressa em dolorosos gemidos pela sora Maria dos Prazeres, que abraçada à filha, cobria-a de lágrimas quentes. Pai e filhos compreenderam perfeitamente a gravidade da situação em que se achavam; o silêncio e ausência do cão de guarda, sem dúvida morto à traição, e a audácia do tapuio bexigoso, mais ainda do que o primeiro grito da filha, do qual apenas haviam ouvido ao despertar o nome do terrível pirata paraense, os convenceram de que não haviam vencido o último inimigo, e enquanto um dos moços apontava a espingarda ao peito do tapuio que banhado em sangue tinha gravados na moça os olhos ardentes de volúpia, Salvaterra e o outro filho voltaram à sala, com o fim de guardar a porta de entrada. Esta porta tinha sido aberta, achava-se apenas cerrada apesar de havê-la trancado o dono da casa quando despediu o caboclo alto. Foram os dois homens para pôr-lhe novamente a tranca, mas já era tarde.

Seu João, o companheiro de Saraiva mais afoito do que os outros tapuios, chegara à casa, e percebendo que o seu chefe corria grande perigo, assobiou de um modo peculiar, e em seguida, voltando-se para os homens que se destacavam das árvores do porto, como visões de febre, emitiu na voz cultural do caboclo o brado que depois se tornou o grito de guerra da cabanagem:

- Mata marinheiro! Mata! Mata!

Os bandidos correram e penetraram na casa. Travou-se então uma luta horrível entre aqueles tapuios armados de terçados e de grandes cacetes quinados de massaranduba, e os três portugueses que heroicamente defendiam o seu lar, valendo-se das espingardas de caça, que, depois de descarregados, serviram-lhes de formidáveis maças.

O Saraiva recebeu um tiro à queima-roupa, o primeiro tiro, pois que o rapaz que o ameaçava, sentindo entrarem na sala os tapuios, procurara livrar-se logo do pior deles, ainda que por terra e ferido: mas não foi longo o combate; enquanto mãe e filha, agarradas uma à outra, se lamentavam desesperada e ruidosamente, o pai e os filhos caíam banhados em sangue, e nos seus brancos cadáveres a quadrilha de Jacob Patacho vingava a morte de seu feroz tenente, mutilando-os de um modo selvagem.

Quando passei com meu tio Antônio em junho de 1932 pelo sítio de Félix Salveterra, o lúgubre aspecto da habitação abandonada, sob cuja cumeeira um bando de urubus secava as asas ao sol, chamou-me a atenção; uma curiosidade doentia fez-me saltar em terra e entrei na casa. Ainda estavam bem recentes os vestígios da luta. A tranqüila morada do bom português tinha um ar sinistro. Aberta, despida de todos os modestos trastes que a ornavam outrora, denotava que fora vítima do saque unido ao instinto selvagem da destruição. Sobre o chão úmido da sala principal, os restos de cinco ou seis cadáveres, quase totalmente devorados pelos urubus, enchiam a atmosfera de emanações deletérias. Era medonho de ver-se.

Só muito tempo depois conheci os pormenores desta horrível tragédia, tão comum, aliás, naqueles tempos da desgraça.

A sora Maria dos Prazeres e a Anica haviam sido levadas pelos bandidos, depois do saque de sua casa. A Anica tocara em partilha a Jacob Patacho, e ainda o ano passado, a velha Ana, lavadeira de Santarém, contava, estremecendo de horror, os cruéis tormentos que sofrera em sua atribulada existência.
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Vocabulário
Sora – senhora
Alumiava – iluminava
Ciciar – sibilar, sussurrar
Pacoveira – bananeira
Cabanagem – violência, selvageria
Galeota – canoa provida de toldo onde se fazem comércio itinerante
Japá – esteira tecida de folhas de palmeira, que serve como toldo em pequenas embarcações, para cobrir barracas, alpendres etc. ou para fechar portas e janelas
Herdades – fazendas; quintas
Azinhavrada – coberto de azinhavre, camada esverdeada que se forma em objetos de cobre ou latão devido à umidade.
Mucama – no Brasil e na África portuguesa, escrava ou criada negra, ger. jovem, que vivia mais próxima dos senhores, ajudava nos serviços caseiros e acompanhava sua senhora em passeios; ama de leite dos filhos dos seus senhores.
Aboletara – acomodara-se, instalara-se
Cumeeira – parte mais elevada de um telhado.
Deletéria – insalubre, nociva

Fonte:
SOUZA, Inglês de. Contos Amazônicos. São Paulo: Martin Claret, 2006.

Antônio Cândido da Silva (Bar do Zizi)

Pintura de Talles Cabral
A última telha importada de Marselha
Virou pó na dureza do cimento.
Resta somente o espaço, o pó e o tempo
levando tudo para o esquecimento.

E a tristeza nos arquivos da memória
guarda mais um registro de saudade
misturada com indignação
e o sentimento de impotência
diante de que tem nas mãos
a força do poder.

Levanta do silêncio Guapindaia,
Doutor Tanajura, Mario Monteiro
e Bohemundo Álvares Afonso.
Protesta Professor Carlos Mendonça,
Doutor Celso Pinheiro
e Rui Brasil Cantanhede
que o prédio finalmente concluiu.

Venham ver o que fizeram do mercado
e da luta de vocês que foi em vão.
Ninguém se levantou pra defender
o pedaço de nossa história
que teimava em não cair.
Segismundo se calou, nem Zé Catraka
botou "Lenha na Fogueira" e se apagou.
Zizi, nosso velho Zizi, tombou cansado depois de tanto tempo resistir.

A última telha de Marselha virou pó.
Guarde a sua lembrança com carinho
pois o passado perdeu a realeza.
Só nos resta mandar nossa saudade
convocar Ernesto Melo
pra cantar nossa tristeza.

Do livro inédito: "Passarela de Emoções"
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Antônio Cândido da Silva (5 Novembro 1941)



Nasceu no dia 5 de novembro de 1941, na cidade Amazonense de Humaitá. Filho de Artur Elpídio da Silva e Raimunda Cândida da Silva. Veio para Porto Velho em 10 de maio de 1945.

Iniciou seus estudos no Colégio Dom Bosco e passou pela Escola Normal Carmela Dutra. Em 1980 concluiu o 2º Grau no Colégio Dom Bosco.

Como o próprio autor auto-biografa-se, alguém escreveu:
“Antônio Cândido nasceu num seringal meio perdido lá para as bandas do “Igarapé dos Botos” no Município de Humaitá – AM, mudando-se para Porto Velho ainda criança, onde fixou residência e permanece até hoje.

Sua primeira experiência artística foi no teatro, com apenas 10 anos de idade. Logo em seguida mergulhou pela poesia e dela nunca emergiu. Tornou-se a própria.

Considerado o poeta de Porto Velho, tanto nas suas colaborações literárias publicadas no jornal Alto Madeira, como no seu livro “Marcas do Tempo”, Antônio Cândido canta Porto Velho com seus bairros, ruas, travessas, vielas e outros logradouros.

Antônio Cândido criou a bandeira e o brasão do município de Porto Velho; a bandeira e hino do município de Costa Marques e os hinos dos municípios de Jarú e Cerejeiras.
Recebeu homenagens da Câmara Municipal com o Título – Amigo de Porto Velho, e a comenda José do Patrocínio, alusiva aos 100 anos da Abolição da Escravatura.

Intelectual com rara capacidade de percepção, bem antes de a Ecologia “entrar na moda”, o poeta, nas rodas de amigos, já defendia o meio ambiente”.
Sua grande paixão pela cidade de Porto Velho é demonstrada no poema que tem seu nome, além da história da legendária Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, toda contada em poesia, no livro “Madeira-Mamoré – O Vagão dos Esquecidos”.

É membro efetivo da Academia de Letras de Rondônia.

Além de inúmeros trabalhos publicados nos jornais literários, escreveu os livros "Marcas do Tempo" e "Madeira-Mamoré – O Vagão dos Esquecidos" (1ª Edição, 1998; 2ª Edição, 2000).

Fonte:
Academia de Letras de Rondônia

Samuel Castiel Jr. (Flor Tropical)


Flor tropical, soberba e encantadora
Que cresce e floresce em terrenos hostis
Como guardiã desafiadora
Do belo nativo e essências sutis!...

Como brisa que soprou todas as vidas
Nascestes bela, livre e agreste,
Repartindo-te em pétalas coloridas
Invejam-te o crisântemo e o cipreste...

Não queiras nunca te tornar rainha
Pois sempre foste à preferida minha!
Fascinam-me teu porte, tua cor...

Quero- te sempre assim bela e formosa
Como um livro escrito em verso e prosa
Como a mulher que me ensinou o amor!
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Samuel Castiel Jr. (Reflexões Noturnas)

Altas horas, madrugada em curso! Noite cálida de um verão tórrido e abrasador, aqui, abaixo dos trópicos! Só, da sacada de meu apartamento, espreito o silêncio desta madrugada, quebrado vez por outra pelo ronco e os faróis de um carro que passa....A brisa úmida que começa soprar levanta folhas secas e papéis que dormiam atirados ao solo. Um cachorro vem de longe, sem latir, sozinho, e desaparece no final da rua. A cidade inteira parece adormecida! Milhares de lâmpadas piscam em todas as direções. O céu estrelado completa essa harmonia silente!

São nessas horas mortas que a insônia me leva a refletir sobre a origem e objetivos da vida, sobre o destino e a trajetória dos seres humanos. Nada mais patético! Logo mais, ao amanhecer, todos estarão em mais um dia de rotina, fazendo sempre as mesmas coisas, desafiando e sendo desafiados a novas conquistas, numa competitividade cada vez mais acirrada, sem fim. Logo, alguns vão morrer, vão se matar ou serem mortos, tendo conquistado ou não seus objetivos, acumulados de conquistas, vitórias e derrotas. E daí surge mais uma elocubração: e no pós-morte tudo se acaba, vira pó, ou entramos em uma outra dimensão, outro mundo melhor (ou pior)?. Em outras palavras: vai dar Allan Kardec ou Sir Charles Darwin! Infelizmente esta questão não é tão simplória assim, não se pode “pagar-pra-ver” como no pôquer. Não podemos blefar! Em nenhuma das teorias tanto no espiritismo como na seleção natural, jamais poderemos saber quem foi o vencedor. Até porque não vão restar nem vencidos nem vencedores. Para este mundo todos estaremos mortos!...

No início da rua surge o vulto de um homem, que vem a passos lentos, com se estivesse cansado. Aproxima-se cada vez mais, então, pára e bate a porta do Colégio Dom Bosco. São batidas insistentes, fortes, quase incomodativas. Sob a luz do poste poderia ver o seu rosto, não fosse o boné que usava. Sua roupa bastante amarrotada, como se viesse de sua rotina de trabalho que terminara àquela hora. As batidas à porta daquele estabelecimento não tiveram nenhuma resposta, e seus ecos ficaram reverberando nos meus ouvidos. O homem então, solitário, parte desaparecendo no final da rua, na escuridão!

Fico então a pensar que aquele homem sou eu, em busca de tantas respostas que jamais obterei. As portas não se abriram e mesmo que tivessem se aberto, não teria eu as respostas para meus enigmas e fantasmas.

Fecho então a minha sacada e volto para tentar conciliar o sono perdido, com a mesma angústia que aflige todo ser humano que se debruça sobre a vida e a morte! Apago a luz!
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Samuel Castiel Jr.

Médico Radiologista
Membro das Academias de Letras e Medicina de Rondônia

Fontes:
Academia de Letras de Rondônia
Imagem = Estrela Guia NF

Cláudio Batista Feitosa (12 Agosto 1933)



Cláudio Batista Feitosa é amazonense, nascido na cidade de Porto Velho no dia 12 de agosto de 1933.

Ainda muito jovem, participou ativamente dos movimentos culturais promovidos pelo Colégio Dom Bosco em Porto Velho, onde fez o Primeiro Grau em 1949, concluindo o Segundo Grau em Fortaleza/CE onde residiu por alguns anos, seguindo dali para São Paulo, retornando em 1956 para Porto Velho à partir de quando exerceu diversas atividades nos setores público e privado, tendo participado de inúmeras atividades comunitárias com destaque para o Movimento Brasileiro de Alfabetização - MOBRAL como presidente da Comissão Municipal de Porto Velho, no período de agosto de 1971 até abril de 1976, época em que o Movimento conseguiu alfabetizar de mais dez mil pessoas.

É de sua autoria a Canção da Brigada Príncipe da Beira (17ªBrigada de Infantaria de Selva) com sede em Porto Velho (1982), homologada pela Portaria nº63 de 14/09/1982 da Chefia/E.M.E. ; o Hino do Município de Porto Velho (1983), homologado pela Câmara Municipal de Porto Velho; as Canções da Base Aérea de Porto Velho (1986) e da Polícia Militar do Estado de Rondônia (1994), assim como o Brasão do Grande Oriente Estadual de Rondônia -GOER.

O dia 12 de agosto de 1994 marcou sua participação definitiva no campo literário (prosa) com a publicação de um pequeno ensaio do que considerava “anedotário” de Porto Velho sob o título de “O Bloco da Cobra” e o “O Bote da Boiuna, Primeiro e Último”, incluídos na Antologia Da Prosa E Do Verso Rondoniense (pgs.19 a 30) lançada naquela data pela FUNCER- Fundação Cultural do Estado de Rondônia, após compilar os melhores textos de um Concurso Literário que promoveu em 1993.

Na Antologia Da Prosa E Do Verso Rondoniense -Vol.II - FUNCER/Set-94, Cláudio está também presente (pgs.13 a 24) com o conto intitulado “ O Enterro do Balbino”.
Registre-se também sua co-autoria do livro Porto Velho Em Prosa E Verso lançado pela Secretaria Municipal de Cultura, Esporte e Turismo-SEMCE da Prefeitura do Município de Porto Velho, em 25/11/1998; co-autoria do livro Escritos De Rondônia lançado pela Secretaria de Estado de Esportes, Cultura e Lazer - SECEL - Ano 2000 - (pg. 170);
co-autoria do livro Gente De Rondônia-Personagens Da Nossa História - (coletânea) lançado pela SECEL e Instituto Histórico e Geográfico de Rondônia – Ano 2001 (pg. 88).

É de sua autoria o livro Gente Da Gente lançado, no dia 7 de agosto de 2005.

Cláudio Batista Feitosa é Membro da Academia Maçônica De Letras Do Estado De Rondônia - AML, ocupando a cadeira Nº 12 e também Membro da Academia De Letras De Rondônia (ACLER), tendo sido eleito para a cadeira nº 26 em 14/10/2003 e solenemente empossado no dia 01 de dezembro de 2003.

Sua atividade principal, atualmente, é a prestação de serviços como Leiloeiro Público Oficial (Matrícula nº 002/92-JUCER), com jurisdição no território do Estado de Rondônia.

Cláudio Batista Feitosa é casado com a guajaramirense Sílvia Carvajal Feitosa, havendo nascido, do enlace, os seguintes filhos: Ricardo (Eng.Eletricista), Sérgio (Geólogo), Sílvio (Arquiteto) e Cláudia (Médica). É, também, avô de Diego, Daniel, Eduardo, Amanda, Julius, Hector e Katharina.

O Acadêmico Cláudio Batista Feitosa foi eleito, no dia 04 de janeiro de 2008, compondo a nova Diretoria da Academia -biênio 2008/2009 - para o cargo de Diretor Financeiro.
É, portanto, o Acadêmico responsável pelas finanças da Academia.

Fonte:
Academia de Letras de Rondônia

segunda-feira, 29 de junho de 2009

Trova XXXII

Otto Melander (A Mulher e o Cachorro)


O alemão Melander (1571 - 1640) sabia latim tão bem quanto seus colegas italianos e franceses. Protestante, quando podia alfinetava frades e freiras. Ele inclui-se no grupo de humanistas do Renascença, Escrevendo num gênero típico da época, que constituía em coletâneas ao mesmo tempo instrutivas e recreativas, misturando anedotas e fatos curiosos. O conto em questão faz porte de Joco-Seria (Coisas Jocosas e Sérias) e inclui-se dentro da tradição boccaciana.
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Costumava certo fidalgo da Vestefália convidar para o almoço domingueiro o seu presbítero, homem moço, conversador e faceto, conduzido havia pouco ao leme da Igreja.

Um dia teve de viajar para o estrangeiro. Estando já a meia milha de seu castelo, disse ao escudeiro, de repente:

- Lembro-me agora de uma coisa de que faço muita questão que minha esposa seja advertida; para ela também é muito importante. Volta, pois, imediatamente, e adverte-a em meu nome, de modo grave e solene, que não dê ao presbítero, em minha ausência, nem almoço nem jantar; não o deixe entrar em casa durante todo o tempo em que eu não estiver lá; e, principalmente, não ponha os pés em casa dele, e se abstenha de qualquer conversa com ele.

O escudeiro prometeu a seu amo cumprir a ordem, e regressou ao castelo. Mas, apenas se afastara um pouco, pôs-se a meditar e a resmungar: - "Decerto o meu amo assustou-se com a idéia de que esse nosso presbítero novato, cheio de seiva como é natural em um moço, rapaz forte, formoso e lúbrico, se pusesse a assaltar o pudor da senhora.

Deve ser por isso que lhe proibiu toda espécie de familiaridade com ele. Mas eu, por Hércules, conheço os costumes dessas mulherezinhas. Elas praticam de preferência justamente as coisas de que têm ordem de se abster. Portanto, para que em nossa ausência ela não tenha ligações com o tal acólito, nada lhe direi, absolutamente, sobre a ordem do meu amo, mas inventarei algum outro recado por ele dado a mim."

Mal entrara o escudeiro no castelo, já à senhora acudia, e, com lágrimas nos olhos, perguntou-lhe:

- Que significa a tua volta tão apressada? Será que os negócios de meu marido não andam bem?

- Andam, sim, muito bem - respondeu o criado, - Meu senhor mandou-me voltar para, em seu nome, advertir-vos de uma coisa. Quer e manda o meu nobre senhor que em sua ausência não vos ponhais a brincar com aquele nosso grande molosso, acostumado a rédeas, nem o monteis. Teme que aquele cachorro irritável e sempre disposto a morder venha a morder-vos, por acaso.

- Não entendo muito bem esta proibição - respondeu a mulher. - Por Hércules, nunca tive a idéia de acariciar o molosso, ainda menos de montá-lo. Digo mais: não há ninguém no mundo que me haja visto brincar com ele. Por tudo isso, esta recomendação era inteiramente supérflua.

Mas o escudeiro, antes de se ir, insistiu:

- Compreendestes, então, minha senhora, o recado de vosso marido? Ponde, pois, todo o empenho em lhe obedecer.

- Volta a meu marido - respondeu a mulher -, transmite-lhe os meus votos de felicidade, e dize-lhe que fique tranqüilo, não se preocupe comigo, pois farei todo o possível para lhe provar, pelo meu procedimento, quanto lhe estou submissa neste ponto, como em outro qualquer.

Mal o escudeiro tinha virado as costas, eis que a mulher começa a matutar: - "Não posso imaginar por que razão meu marido me proíbe de acariciar o molosso ou montar nele. Deve haver aí algum motivo oculto. Não me lembro, por Castor, de o ter o feito ou mesmo tentado. Bem, de qualquer maneira está certo: morra eu se tocar o cão com um dedo sequer!"

Depois de tais reflexões, vai buscar alguns pedaços de pão e joga-os ao cachorro. Verificando que este os devora avidamente e vem lisonjeá-la depois, traz mais pão e repasta o animal até saciá-lo. Acaba acariciando-o, sem dúvida para experimentar se é tão irritável como pretende o marido. Vendo que o animal suporta bem o tratamento, exclama:

- Vejam só como é tratável o nosso molosso!

Nisto, senta-se no cão, apertando-lhe um tanto as costas com as nádegas. O cachorro se enfurece, arreganha os dentes e crava-os no braço da mulher.

Ensangüentada, agoniada pela dor, ela vê-se forçada a chamar um médico para tratar-lhe da ferida.

Passam-se os dias. Retorna o fidalgo, e encontra a esposa de cama, com ar abatido, muito pálida.

- Que desgraça te aconteceu, minha luz? - pergunta-lhe, alarmado.

- Tudo isto é por tua causa - respondeu ela. - Se não me houvesses recomendado, pelo escudeiro, que não brincasse com o molosso, nunca me haveria atrevido a tocá-lo.

O fidalgo, surpreendido, procura justificar-se por todos os meios e jura por Júpiter não ter mandado dizer pelo escudeiro nada de semelhante; depois, chama-o:

- Então, patife, eu mandei dizer a minha mulher que não acariciasse o molosso?

- Nada disso - responde o criado. - Mandastes-me proibi-la de introduzir o presbítero em vossa casa enquanto estivésseis ausente. Eu, porém, inventei outro recado, por saber do costume que têm as mulheres de fazer precisamente o que se lhes proíbe. Se de fato eu lhe tivesse vedado todo e qualquer contato com o padrezinho, sem nenhuma dúvida ela o haveria introduzido em casa, e agora, em vez de terdes uma esposa honesta, teríeis o vosso lar transformado em hediondo prostíbulo. Foi isso que eu quis evitar, convencido de que a mulher procura sempre o que se lhe proíbe; e podeis ver a prova manifesta disso no fato de ela ter acariciado o cachorro e tê-lo montado, embora eu lho houvesse vedado com a maior insistência.

O fidalgo não deixou de aprovar a atitude do prudente criado, a quem daí em diante teve em melhor conceito, e encerrou o incidente com as palavras:

- Prefiro ver minha mulher mordida pelo cachorro a sabê-la desonrada pelo acólito.

Fontes:
COSTA, Flávio Moreira da (organizador). Os 100 Melhores Contos de Humor da Literatura Universal. 5.ed. RJ: Ediouro, 2001.
Imagem = Revista Virtual de Variedades

Mario Quintana (80 anos de poesia)


A coletânea 80 anos de poesia, é uma antologia publicada pela Editora Globo para homenagear os 80 anos de vida de Mário Quintana. Com organização de Tânia Franco Carvalhal, a obra contém poemas que mostram as várias facetas do poeta.

Apresentados em ordem cronológica, eles atestam a procura de diferentes maneiras de dizer e indicam como o poeta vai optando por uma expressão próxima do coloquialismo, vizinha da prosa. Isto permite ao leitor uma visão geral do percurso poético de Quintana, mestre em estabelecer uma comunicação imediata e efetiva com quem o lê: ao dizer o humano em suas múltiplas facetas, ele fala a todos nós.

São poesias pertencentes ao Segundo Tempo Modernista (1930-1945), onde aparecem temas constantes de suas obras como a infância (que é tratada com certo lirismo), os meninos, as ruas de Porto Alegre e a velhice.

Suas poesias, aparentemente simples, trazem a complexidade de quem viveu intensamente o sentimento de mundo. A vasta percepção possibilita uma engenharia sólida no que toca à compreensão da natureza humana. Convicto com relação à sua capacidade criadora, manteve-se distante dos modismos literários, cultuando forte independência com relação a qualquer tipo de classificação que viesse a rotulá-lo, ou à sua obra. Esse individualismo creditou-lhe um orgulho persistente, haja visto a sua autenticidade, instigando-lhe a dividir grandes lições de vida com o leitor que vier a prestigiá-lo.

Fere de leve a frase... E esquece... Nada
Convém que se repita...
Só em linguagem amorosa agrada
A mesma coisa cem mil vezes dita.

O interessante com relação à obra de Quintana é a sua natureza múltipla. Apesar da postura crítica e da ironia refinada, há uma ternura explícita coexistindo, assim como uma envolvente honestidade conceitual.

Ainda que Mário Quintana inicie muitos de seus versos com uma fina ironia, a densidade de suas questões não permite ocultar que fazer poesia é refugiar-se do incômodo existencial e filosófico que sua extrema sensibilidade insiste em sacudir.

Da primeira vez em que me assassinaram
Perdi um jeito de sorrir que eu tinha...
Depois, de cada vez que me mataram,
Foram levando qualquer coisa minha...

A postura encontrada diante da compreensão da morte, da religião ou da existência divina não deixa dúvidas quanto ao recurso da poesia como uma tentativa de apaziguamento com a ausência de respostas de um ser humano intenso,comprometido e intrigado com a grandeza da vida. Apesar disso, ele luta bravamente para não se considerar diminuído por ela.

Quintanares

Meu Quintana, os teus cantares
Não são, Quintana, cantares:
São, Quintana, quintanares.

Quinta-essência de cantares...
Insólitos, singulares...
Cantares? Não! Quintanares!

Quer livres, quer regulares,
Abrem sempre os teus cantares
Como flor de quintanares.

São cantigas sem esgares.
Onde as lágrimas são mares
De amor, os teus quintanares.

São feitos esses cantares
De um tudo-nada: ao falares,
Luzem estrelas luares.

São para dizer em bares
Como em mansões seculares
Quintana, os teus quintanares.

Sim, em bares, onde os pares
Se beijam sem que repares
Que são casais exemplares.

E quer no pudor dos lares.
Quer no horror dos lupanares.
Cheiram sempre os teus cantares

Ao ar dos melhores ares,
Pois são simples, invulgares.
Quintana, os teus quintanares.

Por isso peço não pares,
Quintana, nos teus cantares...
Perdão! digo quintanares

(BANDEIRA, Manuel)

Das utopias

Se as coisas são inatingíveis... ora!
Não é motivo para não querê-las...
Que tristes os caminhos, se não fora
A mágica presença das estrelas!

Canção da janela aberta

Passa nuvem, passa estrela,
Passa a lua na janela...

Sem mais cuidados na terra,
Preguei meus olhos no Céu.

E o meu quarto, pela noite
Imensa e triste, navega...

Deito-me ao fundo do barco,
Sob os silêncios do Céu.

Adeus, Cidade Maldita,
Que lá se vai o teu Poeta.

Adeus para sempre, Amigos...
Vou sepultar-me no Céu!
---
Fonte:
Todas as poesias selecionadas de Mário Quintana e Manuel Bandeira - In: Coletânea 80 anos de Poesia. Organizada por Tânia Carvalhal. Editora Globo, 1986
Portal de Estudos Passeiweb

Guimarães Rosa (3 contos do Livro Primeiras Histórias)



Sorôco, sua mãe, sua filha

Conto narrado em terceira pessoa, mas com a participação ambígua do narrador como personagem. Isto se dá pelo fato do narrador ser um observador dos fatos, mas também fazer parte do povo: "A gente se esfriou (...)" "A gente estava levando agora o Sorôco (...)" Ou seja, "a gente ", no conto, pode ser a gente, o povo da estação, como também o marcador oral "a gente" enquanto nós.

O conto tem uma temática triste, trabalha com o sentido circular de passar a angústia do personagem Sorôco com sua solidão e desespero ao ter que deixar ir para longe as únicas pessoas que tem no mundo, ficando mais solitário ainda. Tudo gira em torno da separação, da perda, da ausência e da distância.

A grande temática do conto é a solidariedade. Há a compaixão do povo para com Sorôco e sua dor. O povo se solidariza com Sorôco. A irracionalidade entoada na cantiga da mãe e da filha loucas realiza o elo de ligação entre as dores de todos os homens. É uma cantiga compreendida só por aqueles que possuem sentimento, a razão de ser do humano. Esta cantiga metaforiza a união entre os homens por meio da solidariedade.

É possível imaginar o sofrimento de Soroco, o vazio dolorido sentido e a profunda solidão na alma. A solidão só não é absoluta, porque existe a solidariedade do povo acalentando seu coração.

Pode-se observar também as sugestões sonoras oferecidas pelo nome do personagem: Sorôco - só louco; Sorôco - socorro, como compreensão do forte sentido do contexto do texto. Por outro lado, é interessante perceber a gradação do título, sugerindo a união da família como vagões que se engatam no trem da existência e se desengatam no destino. Cada vagão carrega sua própria solidão e dor, mas forma o trem da solidão e da dor coletivas, na metáfora de uma cantiga.

Sorôco é comparado a Jó, personagem da Bíblia, por causa de seu sofrimento. Passado e futuro, ele, no meio. Ele, a terceira margem. A eternidade. E as proporções gigantescas dele lembram as personagens grotescas que são castigadas, eliminadas em outros contos. O padecimento a que foi submetido ao cuidar das duas, no entanto, redimiu-o.

Enredo

O conto inicia com a descrição de um vagão diferente, gradeado, que seria levado pelo “trem do sertão”. A população sabia que ele levaria “duas mulheres, para longe, para sempre”: a mãe e a filha de Sorôco. “A mãe de Sorôco era de idade, com para mais de uns setenta. A filha, ele só tinha aquela. Sorôco era viúvo.” Homem simples e rude, vivia com sua mãe e sua filha:

A mãe de Sorôco era de idade, com para mais de uns setenta. A filha, ele só tinha aquela. Sorôco era viúvo. Afora essas, não se conhecia dele o parente nenhum.

Mãe e filha eram loucas. Sorôco tentou ficar com as duas ao seu lado, mas não foi possível. Tomou a decisão mais difícil de sua existência: interná-las. O governo mandaria o trem para levá-las para Barbacena, longe. "Para o pobre, os lugares são mais longe." Sorôco deveria encaminhá-las à estação, pois "o trem do sertão passava às 12h45m."

Sorôco seguiu para a estação acompanhando as duas, uma de cada lado, “parecia entrada em igreja, num casório.” O povo esperava, protegendo-se do sol. "As pessoas não queriam poder ficar se entristecendo, conversavam (...) Sempre chegava mais povo - o movimento." Alguém avisa que Sorôco aponta da Rua de Baixo, onde mora. Ele vestia a sua melhor roupa para a despedida, que a população acompanhava com pesar – “Todos diziam a ele seus respeitos, de dó.” Diziam palavras que tentavam consolá-lo e ele muito humilde respondia: - "Deus vos pague essa despesa..." Todos compreendiam a atitude de Sorôco, pois não havia outro jeito.Porém todos pensavam que a partida delas seria bom para ele, visto não haver cura para a doença e também pelo fato de elas terem piorado nos últimos 2 anos, a ponto de Sorôco pedir ajuda médica para elas.

Em frente ao trem, a filha de Sorôco começa a cantar uma cantiga que ninguém entende. A mãe de Sorôco começa a cantar também a cantiga entoada pela moça, antes de serem alojadas dentro do trem. Principia o embarque das duas. E o canto ecoa longe. Sorôco não espera o trem desaparecer de vez, nem olha, fica de chapéu na mão calado. "De repente, todos gostavam demais de Sorôco."

O trem partiu e “Sorôco não esperou tudo se sumir. Nem olhou. Só ficou de chapéu na mão, mais de barba quadrada, surdo – o que nele mais espantava.” Todos os presentes ficaram condoídos com o sofrimento do homem. Entretanto, Sorôco pára e “num rompido – ele começou a cantar. Alteado, forte, mas sozinho para si – e era a cantiga, mesma, de desatino, que as duas tanto tinham cantado. Cantava continuando.” E eis que “todos, de uma vez, de dó de Sorôco, principiaram também a acompanhar aquele canto sem razão. E com vozes tão altas! (...) A gente estava levando agora o Sorôco para a casa dele, de verdade. A gente, com ele, ia até aonde que ia aquela cantiga.
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A menina de lá

A menina de lá , conto de Guimarães Rosa, da obra Primeiras estórias, é narrado em terceira pessoa.

Em um momento do texto, o narrador também passa a ser personagem ("Conversávamos, agora"), em outros, funciona como um narrador testemunha dos fatos, ora mais próximo, ora distanciado. Sabe de todos os acontecimentos por presenciá-los e por ouvir falar deles, porém, não diz a revelação que Nininha fez para Tiantônia, quando apareceu o arco-íris. Isso só acontecerá depois da morte da menina.

Semanticamente é possível perceber que a menina não pertence ao cá (terra), mas sim ao lá (céu), pela presença de palavras ligadas ao universo do mundo do lá: lua, estrelinhas, céu, alturas, aves, mortos, saudade, milagre, a mãe não tirava o terço da mão, e a menina mora no "Temor-de-Deus" e principalmente a palavra arco-íris, dentre outras. Arco-íris é a palavra-chave, pois remete ao imaginário coletivo de fazer um pedido ao arco-íris quando este aparece no céu. Pela metonímia "caixão colorido", Nininha pede a morte e metaforicamente, o que ela deseja, acontece. Há, nesse momento, o clímax do conto, pois é o confronto entre os dois mundos: o cá (mundo terreno), de Tiantônia, em que a morte é vista como ruim, repreendendo a menina versus o lá, que para Ninhinha é a alegria , a libertação de um mundo que não é o seu, esperando cumprir o seu destino e realizar o seu desejo de ser "a menina de lá". Desta forma, fecha-se o círculo do universo premonitório traçado pelo conto, calcado no destino fatídico de uma menina que não pertence ao mundo de cá, entretanto possui a magia de um outro mundo encantado: o mundo da criação artística.

É uma menina “com seus nem quatro anos”, franzina, filha de um pai sitiante e de uma mulher que não tirava o terço das mãos para nada, mesmo quando dava bronca nos empregados.. Vivia em Temor-de-Deus, por trás da Serra do Mim. Seu nome era Maria, ou apenas Nininha.

Era muito quieta, ficava sempre sentada em um canto (e ninguém entendia muito bem o que ela dizia).

Nininha (seu nome, o sufixo diminutivo triplicado, reforça sua fragilidade), louca (provavelmente tem hidrocefalia), é sensitiva, dotada de contatos místicos, poderes paranormais: seus desejos, por mais estranhos que fossem sempre se realizavam.

A menina começa a falar mais, e coisas estranhas começam a acontecer. Um dia, em meio à seca, ela diz que gostaria de ver um sapo em sua casa – momentos depois um sapo entra pulando pela porta; outro dia ela comenta que gostaria de comer “pamonhinha de goiaba” – nem meia hora depois chega uma senhora trazendo o doce. Quando sua mãe fica doente, pedem que a faça melhorar, mas a menina simplesmente diz que não pode. No entanto, abraça-a e, coincidência ou não, a cura chega.“O que ela queria, que falava, súbito acontecia.”

A menina era marcada por inventar histórias absurdas e por se calar subitamente em diversos momentos: “Não se importava com os acontecimentos. Tranqüila, mas viçosa em saúde. Ninguém tinha real poder sobre ela, não se sabiam suas preferências. Como puni-la? E, bater-lhe, não ousassem; nem havia motivo. (...) E Nininha gostava de mim.”

Seus poderes começam a dar uma mostra de maior intensidade quando a menina cura a doença de sua mãe e também quando ela atende o pedido de seu pai e faz chover. “Pai e Mãe cochichavam, contentes: que, quando ela crescesse e tomasse juízo, ia poder ajudar muito a eles, conforme à Providência decerto prazia que fosse.”

Pouco tempo depois deseja ver o arco-íris. A chuva chega e, junto, o arco. A visão dele no céu proporciona uma alegria que ela nunca tinha expressado em sua vida. Mas, fica quieta quando recebe uma bronca de Tiantônia, que xinga e repreende a menina, que, a partir daí, volta a ficar quieta. Nininha adoece e morre pouco tempo depois. Tiântonia explica, então, a razão para ter xingado a menina naquele dia em que ela fizera chover: “Nininha tinha falado despropositado desatino, por isso ela ralhara. O que fora: que queria um caixãozinho cor-de-rosa, com enfeites verdes brilhantes.” Os pais discutem se deveriam ou não encomendar o caixão como a filha havia solicitado.

Como explicar para o pessoal do arraial que quem tinha pedido o caixão assim tinha sido Nininha? No meio de uma discussão sobre isso, seus pais percebem que não seria preciso explicar nada para ninguém, pois Nininha queria daquele jeito (e daquele jeito seria). Mas a mãe percebe que “não era preciso encomendar, nem explicar, pois havia de sair bem assim, do jeito, cor-de-rosa com verdes funebrilhos, porque era, tinha de ser! – pelo milagre, o de sua filhinha em glória, Santa Nininha.”

Nota: O que de fato aconteceu: o arco-íris era o aviso de Deus de que Nininha voltaria ao seio d’Ele. E isso já vinha sendo anunciado nas entrelinhas desde o início do conto: o dedinho dela quase alcançava o céu, quando se falava de parentes mortos, ela dizia que ia visitá-los, sem mencionar o próprio título do texto, entre outros elementos. Esses aspectos místicos acabam transforma-a em mais uma milagreira, como tantas crianças que povoam o imaginário popular.
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Os irmãos Dagobé

Análise da obra

Os irmãos Dagobé, conto de Primeiras estórias, obra de Guimarães Rosa, tem narração em primeira pessoa (alguém do arraial, presente no velório e no enterro, que registra suas impressões sobre os irmãos Dagobé e possíveis acontecimentos futuros).

Não há marcação de tempo e espaço (velório e o enterro) e traz a violência como tema.

Seus personagens são: Damastor (morto), Derval (caçula), Dismundo, Doricão e Liojorge.

Em sua linguagem o autor usa aliterações (repetição da letra D nos nomes dos irmãos Dagobé); frases incompletas: “Aquilo era quando as onças.” e aglutinação de palavras: “perguntidade”.

Este conto confirma a idéia popular de que Deus escreve certo por linhas tortas. Damastor Dagobé, bandido extremamente feroz, foi surpreendentemente assassinado por um sujeito aparentemente fraco, Liojorge, pressionado por legítima defesa. É em meio ao velório que o narrador se coloca, para captar mais vivamente a reação das pessoas presentes, todos com inúmeras conjecturas sobre como será a vingança dos irmãos Dagobé.

O mais surpreendente é que chega o recado de Liojorge, querendo deixar claro que havia matado com respeito e que queria estar na presença dos irmãos, para mostrar sua boa vontade. Se isso já deixou todos sobressaltados, muito mais quando se fica sabendo que o bom moço queria ajudar a carregar o caixão de Damastor. Parecia que o medo havia feito do rapaz um maluco.

Surpreendentemente os irmãos Dagobé concordam, mas impõem uma condição: só depois do caixão ser fechado. Os presentes imaginam algum plano malévolo e traiçoeiro dos bandidos. No entanto, a narrativa apresenta frustração após frustração. Liojorge chega e não é assassinado. Conduz o caixão. No caminho, tropeça e quase derruba o féretro. Para os espectadores é um prenúncio de desgraça. E comentam que os irmãos Dagobé estão na realidade realizando o pior dos planos: usar o homem como carregador e no cemitério dar cabo dele.

No entanto, este é outro conto a lidar com anticlímax. Enterrado Damastor, seus irmãos agradecem a atenção dos acompanhantes, mostram compreensão em relação a Liojorge e reconhecem que o falecido, em vida, era mesmo muito ruim. Comunicam que estão de mudança para a cidade, o que indica evolução.

O conto é uma alusão irônica: "Viviam em estreita desunião..." É a imaginação popular versus o real: Liojorge vai sofrer a vingança dos três irmãos mais novos. Todos acreditam nisso. Vitória da justiça: matara em legítima defesa. Damastor que era mau e perverso. Merecia morrer. "Damastor, o grande pior." Alegria dos três irmãos remanescentes, einfim livres do grande pior.

Enredo

O conto inicia com durante o velório de “Damastor Dagobé, o mais velho dos quatro irmãos, absolutamente facínoras. (...) Todos preferiam ficar perto do defunto, todos temiam mais ou menos os três vivos. Demos, os Dagobés, gente que não prestava.” Damastor era tido como o “grande pior, o cabeça, ferrabrás e mestre, que botara na obrigação da ruim fama os mais moços – ‘os meninos', segundo seu rude dizer.” Os outros irmãos eram Derval, Doricão e Dismundo.

Damastor fora morto em legítima defesa por Liojorge, homem pacato e honesto, que fora ameaçado pelo Dagobé. Após o fato, tudo indicava, e todos acreditavam, que os irmãos vivos buscariam imediatamente a vingança. Entretanto, eles iniciam os preparativos para o enterro do irmão. O narrador acentua este sentimento: “Sangue por sangue; mas, por uma noite, umas horas, enquanto honravam o falecido, podiam suspender as armas, no falso fiar. Depois do cemitério, sim, pegavam o Liojorge, com ele terminavam.”

Durante o velório, os irmãos confabulavam em voz baixa. Neste momento chega a informação de que Liojorge gostaria de ir até o velório para provar que seu ato não fora desleal. O narrador expõe a surpresa da notícia: “Viesse: pular da frigideira para as brasas. E em fato até de arrepios – o quanto se sabia – que, presente o matador, torna a botar sangue o matado.” Os irmãos não se opõem a esta idéia.

Após o velório, Liojorge chega e se propõe a carregar o caixão. O narrador nos estimula a idéia de que os irmãos acabariam por se vingar: “E, agora, já se sabia: baixado o caixão na cova, à queima-bucha o matavam.” Damastor é enterrado. Entretanto, Doricão fala a Liojorge: “Moço, o senhor vá, se recolha. Sucede que o meu saudoso irmão é que era um diabo de danado...” Ele ainda agradece a presença de todos antes de dizer o que a família faria: “A gente, vamos'embora, morar em cidade grande...”

Fonte:
Portal de Estudos Passeiweb

Antonio Brás Constante (Uma Feira de Doces para Alimentar o Pensamento)



Todos os anos acontecem em diversas partes do mundo as chamadas feiras do livro. Essas feiras mais parecem feiras de quitutes de vários sabores, que atendem a todos os gostos dos leitores. São iguarias que alimentam o espírito e a mente, sem engordar.

As obras podem ser devoradas a qualquer momento e em qualquer lugar, em dias frios ou noites quentes e vice-versa. Os livros já vêm embalados em belas capas. Para consumi-los, basta adquirir um exemplar e sair provando seu recheio literário, sem se preocupar em sujar os dedos. Suas deliciosas páginas podem passar de mil folhas, fazendo alguns se perguntarem: “será que dou conta de ler tudo isso?”. São dúvidas que desaparecem, quando a magia da leitura acontece.

Cada livro é um doce diferente que guarda um gostinho cheio de novidades a espera de olhares ávidos pelos mistérios e encantos de suas páginas. Podemos degustar sem pressa, pois o livro não derrete, ao contrário, incendeia nossa imaginação à medida que vamos experimentando o sabor e o saber de suas histórias. A leitura transpassa os nossos olhos, invadindo nossas mentes e alterando nossas percepções sobre o mundo e sobre nós mesmos. Dispõe de características que lhe tornam um tipo de alimento não perecível, desde que se tomem alguns cuidados no seu manuseio e guarda. Cada volume possui um tempero diferente, proveniente de todos os recantos deste gigantesco globo azul. O bom de um livro é que um único exemplar pode saciar a fome literária de várias pessoas, sendo uma fonte de alimento praticamente inesgotável.

As feiras do livro conseguem demonstrar que existem opções para a televisão e o videogame, bastando para isso que as pessoas tirem um pouquinho de seu tempo para sorver o néctar extasiante da leitura, exercitando e excitando suas mentes a cada parágrafo, pois o livro é uma academia de bolso.

Tudo acontece na velocidade de um olhar. Ao tocar em um volume com seus olhos, a pessoa imediatamente deixa de estar onde estava, passando a viver em outro mundo, em outra dimensão, pois a feira do livro é um portal de passagem para múltiplos universos. Lá você alcança o livro e o livro alcança sua alma. Mas do que um amigo imaginário trata-se de um amigo que invade nosso imaginário, com quem passamos a nos relacionar e conviver.

Por isso é importante que seja incutido desde cedo nas crianças o gosto pela leitura, para que depois elas não passem a encarar o livro como quem encara um pedaço de brócolis ou uma salada de beterraba e diga: “eu não gosto disso, eu não vou ler isso” (a propósito, eu gosto de brócolis e adoro beterraba).

A feira do livro é um lugar onde muitas vezes autores e leitores se encontram, ligados por um mesmo elo que é a obra literária ali exposta, fazendo com que suas vidas passem a ficar eternamente ligadas pelos livros que compartilham. Estas feiras são ótimos lugares para alguém se perder e ao mesmo tempo se encontrar, se perdendo em mil histórias e se encontrando no hábito saudável da leitura.

Espero que este texto tenha conseguido abrir seu apetite literário, pois quero encerrar deixando um convite para os leitores prestigiarem as feiras que vão surgindo como jardins floridos de livros pelas cidades e escolas, entre elas a minha jovem e bela cidade de Canoas no Rio Grande do Sul, que está lançando sua 25º feira do livro de 20 de junho a 04 de julho de 2009, a cidade também comemora os 70 anos de sua história, com inúmeras atrações que deixarão muitas recordações. Mas as feiras não param por aí, depois haverá eventos do livro em Porto Alegre, Jaraguá do Sul (julho), em Arroio dos Ratos (outubro) entre outras tantas cidades. Participe de quantas feiras você puder, afinal a sede de leitura não enfastia, e ainda é 100% sadia.

Fontes:
Texto enviado pelo autor.
Imagem = Universus Paralelus