domingo, 27 de dezembro de 2009

Jerônimo Mendes (História da Poesia Universal – Breve Relato ) Parte VI



Henrique Heine é considerado o segundo maior poeta alemão do século passado e o maior poeta judeu de língua alemã, em qualquer tempo. O primeiro, naturalmente, é Goethe, que, de resto, velho e consagrado, não deu a mínima atenção ao seu conterrâneo.

Sua origem criou alguns problemas para Hitler, mas não para Ezra Pound, que o admirava e traduziu, neste século finalizante. Foi contemporâneo de Byron 1 e, pode-se dizer, byroniano, pelo cinismo anti-romântico e pelas posições políticas rebeldes e revolucionárias, mas superou-o pela finura e precisão de sua arte poética. Converteu-se ao catolicismo e ao protestantismo, seguindo conveniências; foi amigo de Karl Marx, criou o famoso slogan “A religião é o ópio do povo “, encontrou abrigo na Paris das lutas republicanas, expulso da Alemanha pela política prussiana.

Sua prosa narrativa de viagens e suas canções tornaram-no famoso antes dos trinta anos, bastando dizer que o seu livro de canções teve treze edições enquanto ainda era vivo, canções essas que foram musicadas por Schubert e Schumann, entre outros.

Em 1848, data de publicação do Manifesto Comunista , em visita ao Museu Louvre, em Paris, sofreu um desmaio diante da Vênus de Milo: era a sífilis medular que o mandou para a cama durante oito anos, enquanto duas mulheres se picavam ao seu redor, pela grande fama e pequena fortuna, por conta de seus poemas românticos, como a jóia que coletamos de sua obra :

Violeta - brilho dos olhos
Lírio - brilho das mãos
Rosa - brilho das faces
Violeta, rosa, lírio :
Flores do coração secas.

Jean-Nicolas Arthur Rimbaud é o demoníaco anjo loiro da poesia ocidental moderna e um dos maiores mestres da poesia de todos os tempos (Décio Pignatari, p.130). Amigo de Baudelaire, foi um nômade que rompeu as convenções poéticas, estéticas e sexuais de sua época.

Nascido em Charleville, pequena cidade do interior da França, nas Ardenas, fugiu de casa pela primeira vez, aos dezessete anos; nessa e em muitas outras ocasiões, nos rolos que apresentava em suas andanças, resgatado pela mãe (por quem, de resto, não nutria estima qualquer). Em 1862 ingressou no Collège Charleville e em 1870 fez amizade com seu professor de retórica George Izambard. Em 1871 escreveu ao amigo Paul Demeny a “ Carta do Vidente “, seu manifesto poético e existencial. Rebelde, ateu, antimonarquista, não tardou a mandar-se para Paris, novamente, a Paris da Comuna, à qual aderiu, embora estivesse em Charleville, quando os communards foram esmagados.

Como que entediado, escreveu suas primeiras obras-primas com dezessete anos, tais como Ma bohème e Cabaret vert. Como se isso fosse pouco, pouco antes de completar dezoito anos compôs Le bateau ivre (O Barco Bêbado), um de seus poemas mais surpreendentes e famosos, ao lado do poema em prosa, Une saison en enfer (Uma Temporada no Inferno), que compôs e publicou às suas custas.

Em 1872 fugiu para a Bélgica com seu amigo poeta Verlaine, dez anos mais velho e que abandonou a mulher grávida e saiu pelo mundo, seduzido pelo anjo loiro. Em seguida partem para a Inglaterra onde, juntos, levaram uma vida miserável, entre disputas, discussões, tiros e cacetadas. Em Paris, dois tiros, um fere-lhe a mão : dois anos de cadeia mais multa. Em 1875, viveu em Stuttgart, na Alemanha, onde escreveu seus manuscritos famosos de Illuminations. Depois de viajar pela Áustria e Holanda, retornou, retornou à Alemanha e trabalhou como intérprete do Circo Loisset, excursionando pela Suécia e Dinamarca.

Rimbaud é um grande entre grandes, os grandes eram todos simbolistas e levavam o nome de Baudelaire, Mallarmè, Corbière, Verlaine. Em sua vida nômade, conheceu Alexandria, trabalhou no Chipre e visitou o Oriente Médio. Realizou expedições, comercializou peles, marfim e chegou a traficar armas e escravos na África. Segundo Rodrigo Garcia Lopes (1996 : 164), a poesia do trajeto de Rimbaud reflete a velocidade e pressa de ver e viver tudo ao mesmo tempo :

“ ... suas idas e vindas a Londres, suas vadiagens por Paris, Bruxelas, Stuttgart, no período de redação de suas famosas Iluminuras, acabaram fazendo com que o dinamismo também se revelasse a nível textual. O poeta insistia na Ação; ler, escrever e pensar caminhando, incorporando ou coletando os dados tal como acontecem durante o trajeto embriagado pelas ruas em que se “caça crônicas” como se fosse um “cavaleiro selvagem ”.

Rimbaud morreu em dezembro de 1891, vítima de um tumor cancerígeno no joelho direito agravado por uma antiga sífilis e depois de ter uma das pernas amputada. Há um século o poeta vêm apaixonando e alimentando diversas gerações de leitores sendo capaz de influenciar escritores tão diferentes com Proust, Ezra Pound, Samuel Beckett e Jim Morrison. Um pouco de sua obra, hoje parte integrante e fundamental na poesia universal :

MARINHA

As carroças de cobre e prata -
as proas de prata e aço -
Espalmas espumas, -
esgarçam macos de sarças.
As correntezas da roça,
E os sulcos imensos do refluxo,
fluem em círculos rumo a leste,
rumo às hastes da floresta, -
rumo aos fustes do quebramar,
cujo ângulo é ferido por turbilhões de luz .

Aos 33 anos estava de cabelos brancos. Aos vinte, não era mais poeta. Nesta década corrente, no centenário de sua morte, foi lembrado e muito comemorado, onde quer e por quem que tivesse interesse real pela poesia do planeta Terra. Rimbaud foi um dos seus melhores representantes.

Ralph Waldo Emerson, ensaísta, professor e poeta, foi um dos grandes expoentes da literatura norte-americana do século XIX. Depois de abandonar o trabalho como prelado da igreja unitarista, passou a residir em Concord, Massachussetts, onde se tornou figura central entre os transcendentalistas.

O verdadeiro evangelho do grupo, apresentado em seu ensaio Nature (1836), mereceu pouca atenção, mas com os discursos O Erudito Americano (1837) e O Endereço da Escola Divin (1838), despertou muita polêmica. A publicação dos primeiros volumes de Ensaios (1841) e Poemas (1847), e de Homens Representativos (1850), resultou em grande prestígio dentro e fora dos Estados Unidos. Emerson foi o maior pensador do chamado “renascentismo americano” de meados do século XIX.

Em seus Ensaios sobre Auconfiança, História, Leis Espirituais e Amizade entre outros, Emerson despeja toda sabedoria de um homem consciente dos valores da vida e maturidade suficiente para orientar uma multidão de pessoas. Todos eles são iniciados por um poema de maior profundidade que o outro e em simples há muito mais verdades que nas centenas de páginas restantes, tal como o abertura do ensaio Prudência, que transcrevemos a seguir:

“ Nenhum poeta cantou de bom grado um tema
caro aos velhos e infame aos jovens,
nas desdenhes o amor pelas vozes na melodia
nem os objetos das artes.
A grandeza da perfeita esfera celeste
deve-se aos átomos que juntos se mantêm”.

O sensível polonês Guillaume-Albert-Wladimir-Alexandre-Apollinaire–Kostrowitzky é o maior poeta francês do Século XX, ao lado de Paulo Valéry, que representa a sensibilidade antiga, simbolista e pós-simbolista. Imerso nas vanguardas artísticas do início do século, tais como cubismo, futurismo e orfismo, é um poeta confluente e defluente. Confluem Mallarmé (ideografia) e Rimbaud (dessemantização); defluem muitos, a partir de dada e o surrealismo, incluindo brasileiros de gerações literárias várias, como Mário de Andrade, Vinícius de Moraes, Oswald de Andrade.

Segundo Décio Pignatari (1996 : 132), talvez o projeto mais revolucionário de Apollinaire esteja menos nos seus caligramas, mesmo ambiciosos, como o de Lettre Océan, do que na paratatização sistemática, que ele chamava de simplificação sintática, cujo melhor exemplo é o de As Janelas, inspirado num quadro pioneiro do abstracionismo geométrico, da autoria de Robert Delaunay.

Filho de uma aventureira e de um padre, viveu na França estranhas e tumultuadas peripécias, que incluem involuntária receptação de estatuetas roubadas do Louvre, composição de anônimas obras pornográficas e reiterados casos de amor conflituosos, o mais célebre dos quais com uma aristocrática quarentona hunguenote, Louise de Coligny-Châtillon, a Lou (loup = lobo) de seus poemas ( repelido, engaja-se no exército francês, como artilheiro, e vai para a guerra; a moça, patrioticamente tocada pelo seu gesto, vai ao seu encontro, mas o namoro dura poucas semanas: apavorada com a truculência erótico - amorosa do poeta, rompe e foge). Naturalizou-se francês, foi ferido na cabeça, condecorado, passou por uma trepanação, apanhou uma pneumonia e deu-se bem, mas não escapou da gripe espanhola, que o matou a poucos dias do armistício. Foi dos primeiros poetas a registrar poemas em disco. Retratado por Picasso, o Douanier Rousseau, Marie Laurencin (também sua namorada) e Vlaminck.

Seus poemas, escritos sem pontuação, revelam uma clara tentativa de vanguardismo, tanto na forma quanto no conteúdo, a exemplo do que transcrevemos a seguir , em seus Versos a Lou :
[ . . . ]
Os ramos que se agitam são seus olhos que tremem
Vejo você em toda parte você tão bela tão terna
Os pregos dos meus sapatos brilham como os seus olhos
A vulva das jumentas é rosada como a sua
E nossas armas engraxadas são como quando você me quer
A doçura da minha vida é como quando você me ama . . .

Outro poeta de maior importância no desenvolvimento da poesia foi o norte-americano Thomas Stearns Eliot , nascido em 1888, naturalizado cidadão britânico e morto em 1965 e, seguramente, a mais potente influência moderna dos domínios da crítica da poesia e talvez o mais discutido e comentado poeta da modernidade.

T. S. Eliot trouxe ao espírito a idéia de Henry James, procurando na Inglaterra uma tradição que não encontrou na América, a preferência pela ilha. Tal tradição, que ele iria investigar nos clássicos greco-latinos e nos pilares da literatura inglesa; desde Chaucer e Milton, Dryden e Coleridge, ele trouxe para a sua própria poesia, toda ela eminentemente alusiva. Por outro lado, criou a idéia da “poesia dos poetas” chegando a certas obscuridades - como as que se encontram em The Waste Land (A Terra abandonada), o poema mais influente do século.

A elite cultural freqüentemente considera a possibilidade de que seus versos resistirão mais ao tempo que os de Ezra Pound, também criptógrafo de sua poesia. É que perpassa pela poesia de Eliot um sopro às vezes mais liberto e espontâneo que a atmosfera freqüentemente irrespirável do Pound dos Cantos.

Os ensaios de Eliot são verdadeiros clássicos da modernidade, deles derivando inúmeras expressões e conceitos que balizaram grande parte da crítica e da teoria literárias desde então. Eliot também tentou também um revival do drama em verso.

O pequeno trecho do poema A Canção de Amor de J. L. Prufrock que aqui transcrevemos foi aquele com que se lançou na poesia - já estribado em uma epígrafe de um poeta que marcaria muito os seus passos - Dante (Referimo-nos aqui ao poeta italiano Dante Alighieri, pelo qual Eliot tinha grande admiração e que terminou por influenciar todo seu pensamento poético) - o que desde já reflete um recurso freqüente na técnica eliotiana, ou seja, a mesclagem do coloquial e do elevado, que tanto o caracterizou :

Vamos, pois, você e eu,
quando o entardecer se expande contra o céu
como um paciente anestesiado na mesa;
vamos por certas ruas quase sem passantes,
os refúgios murmurantes
de inquietas noites nos hotéis baratos de uma só dormida
E restaurantes cheios de serragem
que as conchas de ostra vai unida :
ruas que seguem como debates tediosos
com objetivos insidiosos
de levá-lo a uma pergunta esmagadora . . .
Oh, não diga “qual, essa questão esquisita ?”
Continuemos, façamos nossa visita.

Seu poema A Terra Devastada, enigmático e dividido em cinco partes, reflete a experiência fragmentada do homem urbano do século XX . A obra tornou-se um marco do modernismo e fez de Eliot um porta-voz de uma geração secularizada e desiludida. A partir de 1925, reuniu um grupo de poetas, inclusive Auden, Spencer e Pound, que representou a principal corrente do moderno movimento poético.

Eliot exerceu grande influência como crítico e poeta. Entre seus vários livros de crítica está O Bosque Sagrado: Ensaios sobre Poesia e Crítica (1920). Recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em 1948. Entre os grandes mestres da literatura universal e mais influentes na língua portuguesa destacamos Fernando Antonio Nogueira Pessoa. Filho de família burguesa, foi criado na África do Sul, fazendo do inglês sua segunda língua. De volta a Lisboa, abandonou os estudos universitários para tornar-se autodidata. Ganhava a vida como correspondente de casas comerciais, até que em 1912 publicou os primeiros ensaios de crítica da moderna poesia portuguesa, na revista A Águia.

O ano de 1914 foi decisivo para a evolução literária de Fernando Pessoa; nesta data nasceram os três principais heterônimos, personalidades distintas a quem o poeta atribuiu a autoria de suas poesias, em estilos bastante diferentes, mas que apresentam a unidade no que diz respeito à natureza psicológica enigmática de cada um. São eles : Alberto Caeiro , observador irônico, autor dos ciclos O Guardador de Rebanhos e Poemas Inconjuntos ;Álvaro de Campos, influenciado por Walt Whitman (Poeta norte-americano do século passado que exerceu grande influência na poesia de seu país liberando seus seguidores das convenções formais), canta a cidade moderna e a técnica em Tabacaria, Ode Triunfal e Ode Marítima ; Ricardo Reis compõe odes bucólicas e elegíacas. As poesias assinadas com o próprio nome são mais simples e cheias de emoção, como O Último Sortilégio e Autopsicografia. Seus poemas apareceram nas revistas Orfeu, Portugal Futurista e Presença, das quais participava com o círculo de amigos.

Apenas com a publicação das Obras Completas, em 1943, teve início a sua influência sobre as novas gerações de poetas, inclusive no Brasil. Fernando Pessoa é tido como o maior poeta português desde Camões. Duílio Colombini foi um dos maiores especialistas brasileiros em Fernando Pessoa e, durante vinte anos, lecionou em diversas faculdades e universidades, entre elas a USP, divulgando a obra e vida de poeta.

A seguir transcrevemos um pequeno poema minimalista de Pessoa, inserido na compilação de sua obra pelo estudioso e de grande profundidade :

Ah, tudo é símbolo e analogia !
O vento que passa, a noite que esfria,
São outra coisa que a noite e o vento -
Sombras de vida e de pensamento.
Tudo o que vemos é outra coisa.
A maré vasta, a maré ansiosa,
É o eco de outra maré que está
Onde é real o mundo que há.
Tudo o que temos é esquecimento.
A noite fria, o passar do vento,
São sombras de mãos, cujos gestos são
A realidade desta ilusão.


Outros poetas de nome internacional deveriam ser citados nesta monografia pela sua importância no mundo da poesia, mas não podemos encerrar este capítulo sem mencionar alguns poetas brasileiros que hoje gozam de todas as glórias do mundo da literatura, grandes pela coragem exercida no seu tempo, grande pelas mensagens perpetuadas nos poemas.

No Brasil, Gregório de Matos Guerra, O Boca do Inferno, é com certeza um dos autores mais controversos do período colonial e da literatura em seus primórdios. Nascido na Bahia a 20 de dezembro de 1623 (A data não é precisa, alguns historiadores datam o nascimento no ano de 1636), filho de família abastada, estudou no colégio dos Jesuítas de Salvador. Em 1650 viajou para Lisboa com o objetivo de dar continuidade à sua formação intelectual, onde se matriculou na Universidade de Coimbra, tornando-se Bacharel.

Seu prestígio literário sempre sofreu apreciáveis oscilações, e ainda hoje o consenso crítico sobre sua obra e importância no processo global da nossa formação literária não foi estabelecido. As reações em torno da sua produção variam, ao longo do tempo, e em função de vários fatores, da apologia e adesão gritante, à críticas insubstanciais, passando por avaliações insustentáveis. Gregório de Matos foi, sem dúvida, um dos maiores representantes da literatura barroca nacional. A parte mais significativa de sua obra é lírica, de caráter sacro, porém ficou mais conhecido pela sátira à nobreza e ao clero, o que lhe valeu um sem-número de desafetos.

Hoje, porém, há quase um consenso de que foi ele o iniciador da literatura brasileira, apesar do caráter esparso de sua obra, escrita na Bahia, em Coimbra, em Angola e no Recife, lugares onde estudou e ocupou cargos públicos de destaque. Gregório de Matos se constitui num problema literário de amplas proporções, e as diversas formulações em torno de sua obra e de sua validade estética e cultural trazem embutidas matrizes e paradigmas de compreensão e avaliação da tradição e da cultura brasileira.

Para muitos é o nosso primeiro grande autor propriamente nacional, aquele que começou estabelecer o diálogo permanente - do qual se alimenta a cultura brasileira - entre o dado local e as matrizes externas; para outros não passa deu poeta de relevo e importância relativas. Independente dessas divergências conceituais e críticas é inegável que ele está incorporado de uma forma ou de outra à cultura letrada brasileira, e continua despertando interesse pelos mais variados motivos.

Como se sabe sua obra poética é basicamente dividida em dois eixos principais : a produção lírica e a satírica. A primeira foi nitidamente marcada pela temática amorosa, ou pela temática religiosa, em meio as quais repontam sempre temáticas seiscentistas por excelência.

Já a segunda oscila entre a sátira social e a sátira política, de maior ou menor abrangência, indo do geral ao particular, do dado individual às estruturas coletivas.

Seu conjunto de poemas dá bem a dimensão da produção poética e do comportamento intelectual, e mesmo pessoal, que lhe valeu o qualificativo de Boca do Inferno. Neles é possível apreciar diversas facetas do autor, e avaliar um conjunto de comportamentos e valores culturais particulares ao século XVII que gravitam em torno da questão da sexualidade, e que ainda têm razoável circulação no nosso imaginário.

Ao mesmo tempo documento histórico e obras literárias autônomas, independentemente da perspectiva pela qual forem avaliadas, os poemas têm um valor cultural e antropológico indiscutível 1, motivo pelo qual não deixamos de transcrever um trecho da sua preciosidade, enviado a umas freiras que mandaram perguntar por ociosidade, ao poeta, a definição de príapo, e ele mandou a definição em décimas :

Ei-lo, vai desenfreado,
que quebrou na briga o freio,
todo vai de sangue cheio,
todo vai ensangüentado.
Meteu-se na briga armado,
como quem nada receia
foi dar um golpe na veia,
deu outro também em si,
bem merece estar assi
quem se mete em casa alheia.

Em 1969, James Amado publicou todos os escritos que se atribuem ao poeta, em sete volumes e muito do que escreveu chegou fragmentado aos dias de hoje, mas, sem dúvida, Gregório de Matos não será ignorado jamais. Para não alongarmos demais a monografia, optamos pela inclusão da vida e obra de Gregório de Matos Guerra e, sem menosprezar os demais importantes poetas (principalmente os da fase romântica, como Gonçalves Dias, Castro Alves, Casimiro de Abreu e Gonçalves de Magalhães entre outros).

Incluímos também aquele que, talvez pela maior proximidade com ele neste século, vêm provocando ao longo de cinqüenta anos um gosto maior pela poesia e literatura nacional, digno das mais tresloucadas críticas e também dos mais sinceros e honestos elogios : Carlos Drummond de Andrade, mineiro de Itabira. Drummond, como ficou conhecido no mundo todo, teve seus poemas traduzidos para mais de 25 países. Poeta e prosador, em 1930, junto com outros companheiros, fundou A Revista, que teve vida curta mas considerável influência no movimento modernista.

Seus primeiros livros, Alguma Poesia (1931), Brejo das Almas (1934) e Sentimento do Mundo (1940) mostraram o impasse entre o artista e o mundo. Em A Rosa do Povo (1945) apresentou uma poesia de certa forma engajada. A partir de Claro Enigma (1951) registro o vazio da vida humana e o absurdo do mundo, e enriqueceu a pesquisa de novas formas da utilização das palavras. Em 1928, seu poema No Meio do Caminho, publicado em São Paulo na Revista Antropofagia, se transformou no maior escândalo literário da época :

No meio do caminho tinha uma pedra / tinha uma pedra no meio do caminho / tinha uma pedra / no meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento / na vida de minhas retinas tão fatigadas. / Nunca me esquecerei que no meio do caminho / tinha uma pedra / tinha uma pedra no meio do caminho / no meio do caminho tinha uma pedra.


Drummond foi um dos maiores poetas brasileiros contemporâneos e exerceu grande influência nas gerações que se seguiram. Tem sido traduzido para vários idiomas e consta de inúmeras antologias estrangeiras, principalmente o poema O Mundo é Grande :

O mundo é grande e cabe
nesta janela sobre o mar.
O mar é grande e cabe
na cama e no colchão de amar.
O amor é grande e cabe
no breve espaço de beijar.

Depois de estudar todos esses poetas, pergunto a mim mesmo : Quem foi o maior poeta dos últimos tempos ? Quem é o maior de todos ? Todos são maiores ?

Felizmente, pela mais simples e humilde interpretação, não posso julgar esse ou aquele como maior ou melhor de todos. Como já disse anteriormente, cada um teve sua importância em sua respectiva época e minha alegria maior foi saber que todos tiveram foram brilhantes à sua maneira.

A poesia universal não foi generosa com todos os poetas, mas, com toda deficiência, reconheceu tardiamente alguns e outros ainda penam no anonimato. Deixamos de citar vários nomes de grande influência no meio literário e que, certamente, poderíamos discorrer sobre eles com o amplo e farto material que tivemos ao nosso alcance.

Milton, Hartcrane, W.B. Yeats, D.H.Lawrence, Brodski, Pound, Michelangelo, Byron, Petrarca, Burns, Cecília Meireles, Fagundes Varella, Cecília Meireles, Oswald de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Thiago de Mello, a lista parece interminável, mas, em verdade, é limitada, pois são mentes privilegiadas, amadas pelos seus povos e seguidores.

Os alemães continuam amando Heine e Goethe; os ingleses, Shakespeare e Auden; os franceses, Rimbaud e Baudelaire; os norteamericanos, Emerson e Eliot; os portugueses, Camões e Fernando Pessoa; os chilenos amando Neruda e nós, brasileiros, seguiremos amando Castro Alves, Augusto dos Anjos, Drummond, Thiago de Mello . . .

Fonte:
Monografia feita pelo autor em Curitiba / PR , março de 2001

sábado, 26 de dezembro de 2009

Trova XCIV - Élbea Priscila de Souza e Silva (Caçapava/SP)

Olavo Bilac (Velho Conto – Voz do Sangue)


Velho conto

Nicolau, varão casado
Porém de sorte mofina,
Porque não tem descendência,
Resolve, desesperado,
Ir até a Palestina,
Para fazer penitência.
Parte, enceta a romaria,
Em casa a esposa deixando,
Sozinha, nos tristes lares,
E, piedoso, dia a dia,
Passa três anos rezando
Pelos Sagrados Lugares.
Pede ao Senhor que consagre,
Pelos gemidos que solta,
Esse desejo que o abrasa;
— E efetua-se o milagre,
Pois Nicolau, quando volta,
Acha três filhos em casa...

Voz do sangue

Matou Conrado a paixão
Que o trazia sucumbido,
Entregando o coração
A Alexandrina Balão,
Que o recebeu por marido.
Depois de um bom par de meses,
De pensar e mais pensar,
E discutir muitas vezes,
Os referidos fregueses
Abalaram do lugar.
Não os viu Deus com bom olho,
Pois se um filho rechonchudo
Deu-lhes, era o tal pimpolho,
Além de tudo, caolho
E mudo, acima de tudo.
Conrado, que o filho adora,
Nina-o, beija-o, mexe, vira,
Debalde suspira e chora:
Palavra não sai p'ra fora,
Palavra alguma lhe tira.
Volta ao lugar do casório
E logo das nuvens cai,
Pois ao ver no consistório
Da igreja, o padre Libório,
Diz a criança: PAPAI!
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Fonte:
R. Magalhães Jr. (organizador). Antologia do Humorismo e Sátira. RJ: Civilização Brasileira, 1957.

Pedro Nava (Ventania)


Pro Mário

O vento veio maluco lá do alto do Bonfim
e veio chorando da tristura do cemitério.

Zuniu na praça do mercado
assuviou as mulatas avenida do comércio
e mexeu na saia delas.
Arrancou folha das árvores
poeira sungou do chão
depois virou
Soprou
correu
danou
e entrou feito uma carga na avenida Afonso Pena,

O obelisco cortou ele pelo meio
mas ele foi avuando
e os fios da C.E.V.U. como cordas de viola
vibraram dum som longo
que cobriu Belo Horizonte feito um lamento.

O vento passou desmandado no Cruzeiro
saiu pro campo dobrou a mata
mas de repente
sua disparada pára na parede Serra do Curral
e o bicho stopa mas sapeca no morro um sopapo
que estrala que nem ginipapo
que mão raivosa
chispasse num muro curo..

Co-nhe-ceu papudo?
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Fontes:
“Revista Verde”. MG: Cataguases , ano 1, nº 3, novembro 1927.
Imagem = http://www.fiocruz.br/

Pedro Nava (Como escrevo?)



“Eu procuro seguir um sistema, que é o seguinte: de manhã, que é a hora em que eu me sinto com menor capacidade criativa, procuro escrever minhas cartas, o que é sempre mais leve do que o trabalho literário propriamente dito, ou organizar o meu arquivo, que nunca está em ordem. Sou um vagatônico, e os vagatônicos sofrem de manhã, a manhã não é agradável para eles, bom mesmo é a noite afora. À tarde eu crio, de meia dúzia de linhas, uma página, até no máximo oito, nove páginas datilografadas – que eu escrevo diretamente a máquina. A produção varia, conforme a dificuldade do assunto. A noite eu deixo pra fazer a revisão, pra corrigir. Na minha idade, o sujeito deve estar pronto pra tudo: quero deixar um texto pelo menos revisto por mim... A meia dúzia de linha que estou tentando escrever do novo livro já apresenta correções, você pode ver o número de chamadas e correções que eu faço. Se você me faz agora uma revelação que interesse às minhas memórias, ao desenvolver do meu trabalho, se me conta alguma coisa lá do Ceará, geralmente eu tomo nota, saio sempre com um papel no bolso pra tomar uma notinha ou outra, às vezes até de uma palavra só – dessas que nascem como uma flor, são bonitas em si. Há palavras assim, quem mexe com as letras sabe disso. Você conhece de repente e é uma revelação – ou a maneira como ela foi dita, como foi pronunciada. Tomo nota das coisas que me importam, numa série de cadernos. Depois eu corto aquilo como fichas – tenho o cuidado de escrever só de um lado da folha, para depois cortar”.

Fonte:
CAMINHA, Edmilson. Palavra de escritor. Brasília: Thesaurus, 1995.

Pedro Nava (1903 – 1984)



Pedro da Silva Nava (Juiz de Fora, 5 de junho de 1903 — Rio de Janeiro, 13 de maio de 1984) foi um médico e escritor brasileiro.
Antes de formar-se em medicina pela Universidade de Minas Gerais, em 1927, já fazia parte de grupos interessados pela literatura, como o “Estrela” e “A Revista” (1923), publicação modernista que contava com Carlos Drummond de Andrade, Martins de Almeida, João Alphonsus e Gregoriano Canedo. Formou-se em Medicina na Universidade Federal de Minas Gerais em 1927. Em 1924, encontrou-se com a caravana modernista, que mostrava o Brasil ao poeta francês Blaise Cendrars, da qual participavam Mário e Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral. Trocou, durante muito tempo, correspondências com o poeta Manuel Bandeira. Como escritor tornou-se o maior memorialista da literatura brasileira, autor de seis livros.

Depois de passar algum tempo no interior de São Paulo, após a Revolução de 1930, muda-se em 1933 para o Rio de Janeiro e trabalha em vários hospitais. Produz obras sobre história da medicina, entre elas Território de Epidauro - Crônicas e Histórias da História da Medicina (1947) e Capítulos da História da Medicina no Brasil (1948).

O primeiro foi Baú de Ossos. É o primeiro volume das memórias do médico e escritor mineiro Pedro Nava. A obra foi lançada em 1972, a obra resgata histórias dos antepassados de Nava em Aracati, no Ceará, Rio de Janeiro e Juiz de Fora, em Minas Gerais, além das primeiras lembranças do escritor.

Comentando a obra de estréia do amigo, Carlos Drummond de Andrade escreveu: "Pedro Nava surpreende, assusta, diverte, comove, embala, inebria, fascina o leitor com suas memórias da infância, a que deu o título de Baú de Ossos". Ricardo Ramos lembra que antes “a memória servia à ficção. Até que surgiu Pedro Nava. Hoje temos com ele o gênero em plenitude, a memorialística feita reconstituição de uma realidade e ensaio ao seu redor, povoada de tipos, de experiências, lembranças, depoimento e reflexão”. O sucesso de público obtido com este lançamento e o espanto causado no meio literário, animou-o a dar continuidade em sua obra


Depois deste vieram ainda Balão Cativo, Chão de Ferro, Beira Mar, Galo das Trevas e, por último, O Círio Perfeito. Pedro Nava traçou nestas obras um completo painel da cultura brasileira no século XX, além dos costumes familiares e sua cultura popular.

Suas páginas sobre a medicina figuram como das maiores que se tenham escrito na literatura brasileira. A Belo Horizonte de seus anos vinte e o Rio Antigo passeiam em suas narrativas como uma força poética e uma profundidade observacional que muitas vezes se transformam em pura poesia, levando o leitor a um mundo mágico. No dizer de Carlos Drummond de Andrade: "... possuía essa capacidade meio demoníaca, meio angélica, de transformar em palavras o mundo feito de acontecimentos." Nava também possuía grande talento de pintor, e só não o foi profissionalmente por opção.

Em 1973, recebeu, no Rio de Janeiro (RJ), o Prêmio Luísa Cláudio de Sousa, concedido pelo Pen Club, e o Prêmio Personalidade Global - Setor Literatura, concedido pela Rede Globo de Televisão e pelo jornal O Globo. No ano de 1974 recebeu o Prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte – São Paulo (SP).

Em 13 de maio de 1984, menos de dois meses após ser ovacionado em São Paulo, num domingo à noite, Nava sai de casa sem dizer nada a sua mulher e se dirige discretamente a uma praça ao lado da Rua da Glória, onde morava no Rio de Janeiro. Ali sacou seu revólver, deve ter dado uma olhada para os lados, pois não queria incomodar ninguém, e comete suicídio. Dá fim aos 81 anos de vida, dos quais uma boa parte de êxitos na medicina (Criou o primeiro Serviço de Reumatologia no Rio e a primeira Cadeira de Reumatologia na América) e a parte final dedicada a literatura

No dia seguinte, A Folha de São Paulo deu a seguinte notícia: “A literatura brasileira perdeu na noite de domingo um de seus mais importantes nomes, o memorialista Pedro Nava. Ele foi encontrado morto com um tiro na cabeça, na rua da Glória no Rio, perto de onde morava. Segundo a polícia, foi suicídio. Completaria 81 anos de idade em junho. Seu sepultamento será hoje, às 10 horas, no Cemitério de São Francisco Xavier, no Rio de Janeiro. Mineiro, médico, companheiro de Carlos Drummond de Andrade na vanguarda modernista, amigo dos mais importantes personagens do mundo cultural do País, até 1972 Nava só havia publicado poemas esparsos. Naquele ano, editou seu primeiro livro ("Baú de Ossos"), ao qual se seguiram mais cinco volumes. Sua sétima obra ("Cera das Almas") já estava praticamente concluída. Foi possível recompor os últimos passos de Nava. Na noite de domingo, em seu apartamento na rua da Glória, ele terminou de escrever o discurso que deveria pronunciar na Assembléia Legislativa do Rio, no dia 23, quando receberia o título de Cidadão Fluminense. Mostrou o discurso à sua mulher, da.Atonieta, e jantou normalmente. Por volta das 20 horas, o telefone tocou e dª. Antonieta atendeu, uma voz de homem perguntava por Pedro Nava. Este ouviu em silêncio o que a voz lhe dizia e depois desligou. À mulher, ele informou apenas tratar-se de um trote de mau gosto. Às 22 horas, da. Antonieta foi ao banheiro. Nava então saiu, sem avisá-la . Mas tarde, foi visto sentado à calçada, parecendo abatido em meio ao movimento de prostitutas e travestis. às 23h30, o tiro, disparado de um velho revólver calibre 32, do próprio Nava. Em entrevista concedida à "Folha" em junho do ano passado, em seu 80° aniversario, ele dissera ter pensado várias vezes no suicídio, mas que o fato de ser médico o protegera, até ali, contra o ato

Hoje cogita-se que Nava vinha sendo chantageado por um garoto de programa, informação encoberta pela imprensa à época.

Fontes:
– Wikipedia
http://www.algosobre.com.br/biografias/pedro-nava.html
http://www.tirodeletra.com.br/biografia/PedroNava.htm

Lygia Fagundes Telles (Que se chama solidão)


Chão da infância. Algumas lembranças me parecem fixadas nesse chão movediço, as minhas pajens. Minha mãe fazendo seus cálculos na ponta do lápis ou mexendo o tacho de goiabada ou ao piano; tocando suas valsas. E tia Laura, a viúva eterna que foi morar na nossa casa e que repetia que meu pai era um homem instável. Eu não sabia o que queria dizer instável mas sabia que ele gostava de fumar charutos e gostava de jogar. A tia um dia explicou, esse tipo de homem não consegue parar muito tempo no mesmo lugar e por isso estava sempre sendo removido de uma cidade para outra como promotor. Ou delegado. Então minha mãe fazia os tais cálculos de futuro, dava aquele suspiro e ia tocar piano. E depois, arrumar as malas.

— Escutei que a gente vai se mudar outra vez, vai mesmo? perguntou minha pajem Maricota. Estávamos no quintal chupando os gomos de cana que ela ia descascando. Não respondi e ela fez outra pergunta: Sua tia vive falando que agora é tarde porque a Inês é morta, quem é essa tal de Inês?

Sacudi a cabeça, não sabia. Você é burra, Maricota resmungou cuspinhando o bagaço. Fiquei olhando meu pé amarrado com uma tira de pano, tinha sempre um pé machucado (corte, espinho) onde ela pingava tintura de iodo (ai, ai!) e depois amarrava aquele pano. No outro pé, a sandália pesada de lama. Essa pajem era uma órfã que minha mãe recolhera, tive sempre uma pajem que me dava banho, me penteava (papelotes nas festas) e me contava histórias até que chegasse o tempo da escola. Maricota era preta e magra, a carapinha repartida em trancinhas com uma fita amarrada na ponta de cada trancinha. Não sei da Inês mas sei do seu namorado, tive vontade de responder. Ele tem feição de cavalo e é trapezista no circo do leão desdentado. Estava sabendo também que quando ela ia encontrar o trapezista, soltava as trancinhas e escovava o cabelo até vê-lo abrir-se em leque como um sol negro. Fiquei quieta. Tinha procissão no sábado e era bom lembrar que eu ia de anjo com asas de penas brancas (meu primeiro impulso de soberba) enquanto que as asas dos outros anjos eram de papel crepom.

— Corta mais cana, pedi e ela levantou-se enfurecida: Pensa que sou sua escrava, pensa? A escravidão já acabou!, ficou resmungando enquanto começou a procurar em redor, estava sempre procurando alguma coisa e eu saía atrás procurando também, a diferença é que ela sabia o que estava procurando, uma manga madura? Jabuticaba? Eu já tinha perguntado ao meu pai o que era isso, escravidão. Mas ele soprou a fumaça para o céu (dessa vez fumava um cigarro de palha) e começou a recitar uma poesia que falava num navio cheio de negros presos em correntes e que ficavam chamando por Deus. Deus, eu repeti quando ele parou de recitar. Fiz que sim com a cabeça e fui saindo, Agora já sei.

— Sábado tem procissão, eu lembrei. Vai me fazer papelote?

— Vamos ver, ela disse enquanto juntava os bagaços da cana no avental. Foi até a lata de lixo. E de repente riu sacudindo o avental: Depressa, até a casa da Juana Louca, quem chegar por último vira um sapo! Eram as pazes. Levantei-me e saí correndo atrás dela, sabia que ia perder mas ainda assim apostava.

Quando não aparecia nada melhor a gente ia até o campo para colher flores que Maricota enfeixava num ramo e, com cara de santa, oferecia à Madrinha, chamava minha mãe de Madrinha. Às vezes, ela desenhava com carvão no muro as partes dos meninos e mostrava, É isto que fica no meio das pernas, está vendo? É isto! Mas logo passava um trapo no muro e fazia a ameaça, Se você contar você me paga!

Depois do jantar era a hora das histórias fantásticas. Na escada que dava para a horta, instalavam-se as crianças com a cachorrada, eram tantos os cachorros que a gente não sabia que nome dar ao filhote da última ninhada da Keite, acabou sendo chamado de Hominho, era um macho. Foi nessa época que apareceu a Filó, uma gata meio doida que acabou amamentando os cachorrinhos porque a Keite estava com crise e rejeitou todos. Cachorro também tem crise, avisou tia Laura olhando pensativa para a Keite que dava mordidas no filhote que vinha procurar suas tetas.

As histórias apavorantes das noites na escada. Eu fechava os olhos-ouvidos nos piores pedaços e o pior de todos era mesmo aquele, quando os ossos da alma penada iam caindo diante do viajante que se abrigou no casarão abandonado. Noite de tempestade, vinha o vento uivante e apagava a vela e a alma penada ameaçando cair, Eu caio! Eu caio! — gemia a Maricota com a voz fanhosa das caveiras. Pode cair! ordenava o valente viajante olhando para o teto. Então caía um pé ou uma perna descarnada, ossos cadentes pulando e se buscando no chão até formar o esqueleto. Em redor, a cachorrada latindo, Quer parar com isso? gritava a Maricota sacudindo e jogando longe o cachorro mais exaltado. Nessas horas sempre aparecia um dos grandes na janela (tia Laura, tio Garibaldi?) para impor o respeito.

Quando Maricota fugiu com o trapezista eu chorei tanto que minha mãe ficou preocupada: Menina mais ingrata aquela! Acho cachorro muito melhor do que gente, ela disse ao meu pai enquanto ia arrancando os carrapichos do pêlo do Volpi que já chegava gemendo, ele sofria com antecedência a dor da retirada de carrapichos e bernes.

A pajem seguinte também era órfã mas branca. Falava pouco e também não sabia ler mas ouvi minha mãe prometer (como prometeu à outra), Eu vou te ensinar. Chamava-se Leocádia. Quando minha mãe tocava piano ela parava de fazer o que estava fazendo e vinha escutar: Madrinha, por favor, toca "O sonho de Lili"!

Leocádia não sabia contar histórias mas sabia cantar, aprendi com ela a cantiga de roda que cantarolava enquanto lavava roupa:

Nesta rua nesta rua tem um bosque
Que se chama que se chama Solidão.
Dentro dele dentro dele mora um Anjo
Que roubou que roubou meu coração.

— Menina afinada, tem voz de soprano, disse tia Laura batendo com o leque na mesa, estava sempre se abanando com o leque. Soprano, soprano! fiquei repetindo e correndo em redor de Leocádia que ria aquele riso de dentes fortes e perguntava o que era soprano e eu também não sabia mas gostava das palavras desconhecidas, Soprano, soprano!

— Vem brincar, Leocádia! eu chamava e ela ria e dava um adeusinho, Depois eu vou! Fiquei sondando, e o namorado? Da Maricota eu descobri tudo mas dessa não descobri nada.

Morávamos agora em Apiaí, depois da mudança tão comprida, com o piano no gemente carro-de-boi. Isso sem falar nos vasos de plantas e na cachorrada que veio no caminhão com a Leocádia e mais a Custódia, uma cozinheira meio velha que mascava fumo e sabia fazer o peru de Natal. Meu pai, a tia e minha mãe comigo no colo, todos amontados no tal fordeco meio escangalhado que meu pai ganhou numa rifa. Com o carcereiro guiando, era o único que sabia guiar.

Apiaí e a escola das freirinhas. Quando nessa tarde voltei da escola, encontrei todo mundo de olho arregalado e falando baixo. No quintal, os cachorros se engalfinhando. Por que a Leocádia não foi me buscar? E cadê minha mãe? Tia Laura baixou a cabeça, cruzou o xale no peito, fechou o leque e foi saindo meio de lado, andava desse jeito quando aconteciam coisas. Fechou-se no quarto. Custódia soprou o braseiro do fogão e avisou que ia estourar pipoca. A Leocádia fugiu?, perguntei. Ela começou a debulhar o milho, Isso não é conversa de criança.

Então entrou minha mãe. Fez um sinal para a Custódia, sinal que eu conhecia (depois a gente se fala), acariciou minha cabeça e foi para o quarto de tia Laura. Disfarcei com o prato de pipoca na mão, banzei um pouco e fui escutar detrás da porta da tia. Contei que meu marido estava viajando (era a voz da minha mãe) e que a gente não sabe lidar com isso. Uma tragédia, Laura, uma tragédia! Então o médico disse (minha mãe parou para se assoar) que ela pode ficar na enfermaria até o fim, vai morrer, Laura! Enfiou a agulha de tricô lá no fundo, meu Deus!... - A voz sumiu e logo voltou mais forte: Grávida de quatro meses e eu sem desconfiar de nada, era gordinha e agora engordou mais, foi o que pensei. Hoje ela me reconheceu e fez aquela carinha alegre, Ô! Madrinha. Era tão inteligente, queria tanto aprender a ler, queria até aprender música. Tia Laura demorou para falar: Agora é tarde!, gemeu. Mas não tocou na Inês.

Em dezembro tinha quermesse. Minha mãe e tia Laura foram na frente porque eram as barraqueiras, eu iria mais tarde com a Custódia que ficou preparando o peru. Quando passei pelo jasmineiro no quintal (anoitecia) vi o vulto esbranquiçado por entre os galhos. Parei. A cara úmida de Leocádia abriu-se num sorriso.

— A quermesse, Leocádia! Vamos?, eu convidei e ela recuou um pouco.

— Não posso ir, eu estou morta.

Keite apareceu de repente e começou com aquele latido desesperado. Antes que viessem os outros, tomei-a no colo, Fica quieta, quieta! ordenei baixinho na sua orelha. E o latido virou um gemido de sofrimento. Quieta! Aquela é a Leocádia, você não se lembra da Leocádia? Comecei a tremer. É a Leocádia! repeti e apertei a Keite contra o peito e ela também tremia. Soltei-a: Pode ir mas não chame os outros, escutou isso?

Keite saiu correndo e desapareceu no fundo do quintal. Quando olhei na direção do jasmineiro não vi mais nada, só a folhagem com as florinhas brancas no feitio de estrelas.

Entrei na cozinha. Que cara é essa? estranhou a Custódia. Encolhi os ombros e ajudei a embrulhar o peru no papel-manteiga. Vamos depressa que a gente está atrasada, ela resmungou me pegando pelo braço. Parou um pouco para me examinar melhor.

— Mas o que aconteceu, você está chorando? Enxuguei a cara na barra da saia.

— Me deu uma pontada no dente.

— Foi naquele que o dentista chumbou? Quer a Cera do Doutor Lustosa?

— Deu só uma pontada, já parou de doer.

— Pegue o meu lenço, ela disse abrindo a sacola. Ofereceu-me o lenço de algodão branco, bem dobrado. Na calçada deserta ela ainda parou um pouco para prender a fivela no cabelo. O peru era meio velho mas acho que ficou bom.

Enxuguei os olhos com raiva e cruzei os braços contra o peito, outra vez o tremor? Fomos andando lado a lado e em silêncio.

Fonte:
TELLES, Lygia Fagundes. Invenção e Memória. RJ: Rocco, 2000.
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Fernando Sabino (No Quarto da Valdirene)



Mal ele entrou em casa, a mulher o tomou pelas mãos, ansiosa:

- Estava aflita para você chegar.

E sussurrou, apontando dramaticamente para os lados da cozinha:

- Tem um homem no quarto da Valdirene.

Sacudiu a cabeça com irritação:

- Desde o primeiro dia eu achei que essa menina não era boa coisa. Ela nunca me enganou.

Valdirene, a jovem empregada, uma mulata de olhos grandes, não faria feio num palco.

- Como e que você sabe? - perguntou ele, para ganhar tempo. Não partilhava da opinião da mulher: desde o primeiro dia achou que a Valdirene era ótima.

- Sei porque vi. Escutei um ruído qualquer ai fora no corredor, olhei pelo olho mágico, e vi quando ela punha ele para dentro pela porta de serviço.

- Ele quem?

- O homem. Não sei quem é, só sei que é um homem. Deve ser o namorado dela, ou o amante, tanto faz. O certo e que os dois estão trancados lá no quarto faz um tempão.

- Vai ver que já saiu.

- Não saiu não, que eu não sou boba, fiquei de olho. Esta lá dentro com ela até agora.

- E o que e que você quer que eu faça?

- Quero que bote ele pra fora, essa e boa.

- Por quê?

Ela botou as mãos na cintura:

- Por quê? Você ainda pergunta por que? Então tem cabimento a gente deixar que a empregada receba homens no quarto dela? O que e que essa menina está pensando que minha casa é? Um motel? Se você não for lá, eu mesma vou.

- Espera ai, vamos com calma, mulher. Você tem razão, mas deixa a gente raciocinar um pouco. Não podemos é perder a cabeça. Pode ser perigoso. Como é que ele é?

- Não cheguei a ver direito. Só vi que era um homem. Para mim, basta.

- Não posso ir lá no quarto dela sem mais nem menos. Quem sabe é algum parente? Um irmão, talvez...

- Um irmão, talvez... Você tem cada uma! Pior ainda: que é que um irmão tem de ficar fazendo trancado no quarto com a irmã como eles dois estão? Você tem de pôr esse homem pra fora.

- E se estiver armado? Ele pode muito bem estar armado.

- Já que você está com medo...

- Não estou com medo. Só que temos de agir com calma. Vamos ver como a gente sai dessa. Deixa comigo.

Ele respirou fundo e se meteu pela cozinha, ganhou a área de serviço, ficou à escuta. Nada, tudo quieto e às escuras no quarto da Valdirene. Bateu de leve na porta:

- Valdirene.

Via-se pelas frestas da veneziana na própria porta que o quarto continuava no escuro. Ele bateu de novo:

- Valdirene, está me ouvindo? Valdirene!

Escutou alguém se mexendo lá dentro e a voz estremunhada da moça:

- Senhor?

- Tem alguém com você ai dentro, Valdirene?

- Tem não senhor.

- Abra um instante, por favor.

Em pouco ela abria a porta, furtivamente, e o encarava sem piscar. Vestia um baby-doll pequenino e transparente que, sob a luz mortiça vinda da área, deixava quase todo seu corpo à mostra.

- Acenda essa luz, minha filha.

Mais para vê-la melhor do que para olhar o quarto, pois mesmo no escuro podia-se verificar que ali dentro não havia mais ninguém. Luz acesa, ela se protegia discretamente com os braços, enquanto ele dava uma olhada rápida por cima do seu ombro:

- Tudo bem. Desculpe o incômodo. Boa noite.

Voltou para a sala, onde a mulher o aguardava, tensa de expectativa. - E então?

- Não tem ninguém.

- Como não tem ninguém? Pois se eu vi o homem entrando!

- Se viu entrando, não viu saindo. O certo é que não tem ninguém no quarto da Valdirene, além dela própria. Vamos dormir.

- Como é que eu posso ir dormir sabendo que tem um estranho dentro de casa? Você vai voltar lá e olhar direito.

- Eu olhei direito. Se não acredita, vai lá e olha você.

- Quem e o homem nesta casa? Se você não for olhar eu não fico aqui dentro nem mais um minuto. Vou direto à polícia.

Ele ergueu os braços e os deixou cair, com um suspiro resignado:

- Essa mulher, meu Deus. Agora é você que está com medo. Direto à polícia. Como se fosse um crime... Tudo bem, eu vou lá olhar direito.

Voltou a bater na porta da empregada:

- Valdirene.

Desta vez ela respondeu logo:

- Senhor?

- Abra ai um instante, por favor.

- Sim senhor.

Ela abriu e foi logo acendendo a luz. Estimulado pela nova oportunidade de vê-la tão de perto, ele perdeu a cerimônia e entrou no quarto. Sempre de olho nela e ouvido atento à mulher lá na sala. Ali dentro só cabia a cama e o armariozinho com uma cortina, atrás da qual ninguém poderia se esconder. Ainda assim ergueu o pano para se certificar. Satisfeito, voltou-se para a moça que, ao sentir seus olhos tão próximos, abaixara modestamente os dela:

- Desculpe, minha filha. É que minha mulher, você sabe, quando ela cisma uma coisa... Mas pode dormir sossegada. Boa noite.

Na sala, a mulher voltou a questioná-lo:

- Você olhou direito desta vez?

- Não há como olhar errado. Um quarto deste tamaninho! Olhei o que tinha para olhar: a Valdirene e a cama.

- A Valdirene e a cama? O que você quer dizer com isso?

- Não quero dizer coisa nenhuma. É que ali dentro não cabe mais nada além da Valdirene e da cama.

- Não é isso que parece estar insinuando, com essa sua cara.

- Que é que tem minha cara? Você é que insinuou que tinha um homem lá dentro, não fui eu. Não me admiraria nada. Mas acontece que não tem. Só faltou olhar debaixo da cama.

- Não admiraria nada - ela o imitou, com um trejeito. E ordenou, braço estendido:

- Pois então vai olhar debaixo da cama.

- Essa não! - relutou ele: - Já disse que não cabe ninguém...

Mas acabou indo. Pobre da menina, de novo importunada:

- Me desculpe, Valdirene, mas é preciso que você abra aí outra vez. '

Ela acendeu a luz, abriu a porta e deu-lhe passagem. Seus olhos o acompanharam impassíveis, quando ele entrou e se agachou para olhar debaixo da cama. De quatro, sentindo-se ridículo naquela postura, ele baixou a cabeça até que a ponta do queixo tocasse o chão, e enfiou-a sob o estrado. Seu nariz esbarrou de cheio em algo branco e macio - era nada menos que o traseiro de um homem.

- Oi - assustou-se, recuando.

- Oi - fez o homem, como um eco, encolhendo-se ainda mais.

Ele se ergueu. perturbado, limpou a garganta, procurando dar firmeza à voz:

- O senhor tem um minuto pra sair deste quarto.

Um último olhar para Valdirene, como a dizer que sentia muito mas não podia deixar de cumprir o seu dever, e foi ter com a mulher na sala:

- Tinha sim. Tinha um homem debaixo da cama. Está satisfeita?

- Eu não disse? E o que é que você fez?

- Mandei que ele se pusesse pra fora. É o tempo de se vestir.

- Meu Deus, ele estava nu?

- Que é que você queria? Não sei é como ele pôde caber lá debaixo. Imagino o susto dele. E o da Valdirene, coitadinha.

No dia seguinte, mal amanheceu, ela despedia a Valdirene, coitadinha.

Fontes:
SABINO, Fernando. O Gato Sou Eu. RJ: Record, 1983.
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Jean-Pierre Bayard (História das Lendas) Parte XXV


IV. — Gata Borralheira e Pele de Burro

1. — Motivos

a) Esses dois contos têm grande analogia. Loys Brueyre (Contes populaires de la Grande-Bretagne) observa duas tradições nas quais se confundem. O anel e o chinelo desempenham o mesmo papel e Miss Mariam Roalfe Cox estuda as suas trinta versões (Cinderella, Londres, 1893).

b) Pele de Burro — O rei promete à rainha moribunda só desposar uma mulher mais bela do que ela (Perrault) ou aquela em cujo dedo servisse o anel da rainha (Sicília, 159, 186; Rússia, 171, 172; Noruega, 181; Portugal, 184); ou que pudesse vestir os mesmos vestidos (Grécia, 176; escocês, 151) ou os sapatos (italianos, 134, 150). Ora, só a filha do rei preenche as condições. Para fugir a essa união criminosa, a princesa formula três desejos que o rei consegue satisfazer. Disfarçada, foge e serve miseravelmente em casa de um príncipe que descobre quem é a pretensa serva e esposa-a.

c) Gata Borralheira — Tratada por suas irmãs como uma empregada, Gata Borralheira, por uma ajuda exterior — fada, animais — consegue ir três vezes ao baile onde encontra o príncipe; mas terminando o encantamento numa hora definida, a heroína, na fuga, perde seu sapatinho que permite ao príncipe encontrá-la e esposá-la.

2. — Variantes

a) Pele de Burro — O incesto forma o ponto de partida desse conto. Por esse motivo Deulin pensa em Prajapati, senhor da criação, que violentou sua filha Uchar. Em 1550, com Straparole (primeira noite, conto IV), o príncipe Thibaut quer desposar sua filha Doralice. Na Histoire de Sainte Dipne (História de Santa Dipne) (Ribardeneira, Fleur des vies de saints, 1616) (Flor das vidas de santos), o rei pagão da Irlanda tenta desposar sua filha Dipne e finalmente mata a fugitiva; é Pele de Burro sem seu maravilhoso. Se Luzel (5o. relatório das Missões Científicas), Schleicher (Litaüische Màrchen), relatam lendas semelhantes, Deulin cita outras variantes tais como a Belle Hélène de Constantinople (Bela Helena de Constantinopla), onde o suposto parto de animais lembra o Chevalier au cygne (Cavaleiro do cisne).

Num conto hindu (Le trône enchanté) (O trono encantado), a princesa casa com um burro que se metamorfoseia em príncipe. Pernette, conforme Bonaventure de Perriers (Nouvelles Récréations et Joyeux Devies) veste uma pele de burro para enojar um amigo. Se Pétriosa (O Pentameron) se transforma em ursa, Noel du Fail (1547) e Grimm aproveitam a idéia (La reine dos abeilles) (A rainha das abelhas), La gardeuse d’oies (A guardadora de gansos), La vrai fiancée (A verdadeira noiva). Enfim a extraordinária cozinheira enegrecida com sebo de Peau de toutes les bêtes (Pele de todas as feras) (Grimm), que casa com o príncipe depois de aparições que se assemelham às de Roberto, o Diabo.

b) Gata Borralheira — A sandália da cortesã Rodopis foi levada por uma águia e caiu subitamente diante do faraó admirado; Rodopis descansa agora sob a terceira pirâmide (Estrabão, liv. XVII). Ellen (Histoires diverses, XIII) reproduz essa anedota para glória do rei Psametico. Cosquin regista dois contos anamitas nos quais gralhas levam os sapatos dourados da Gata Borralheira ao palácio real. Mas geralmente a heroína perde os sapatos fugindo. Lembramo-nos de Penélope, de Berta dos pés grandes (Henry Pourrat, Marie Cendron, t. I). Ei-la num conto malgaxe (Ferrand, 1893, n.o 35), mas depois de Finette Cendron, Landes relata contos anamitas (Saigon, 1886) e Leclêre, versões tjame e cambodgeana. Se Miss Cox anotou essas variantes, Cosquin firmou algumas versões cabilas, silesianas, islandesas (Contos Populares, t. II). Realmente esse ensaio do sapatinho constituiria o rito da eleição, a posse de um novo lar. Temos um exemplo em Rute (IV, 7-10) no qual Booz recebe dessa maneira Rute, a Moabita.

3. — Interpretações

a) Para Gubernatis, a aurora, perseguida por seu pai, veste o casaco da noite; para H. Husson, Ch. Ploix, a aurora se oculta sob a bruma a fim de se entregar ao sol levante. Conforme versões nórdicas, Loys Brueyre vê nessas versões, o casamento ritual do ano com o novo sol. Saintyves pensa na evocação do carnaval, liturgia primaveril na qual as duas heroínas vestem os trajes e os atributos de uso.

b) O traje — Esse revestimento de peles de animais consta do Gênese (III, 21). “E Deus fez para o Homem e para a Mulher roupas de peles e com elas os vestiu”; ora, conforme o esoterismo, toda matéria universal é viva. Esse disfarce que muda a personalidade assemelha-se ao fenômeno da reencarnação que encontramos na Índia. Se Gata Borralheira usa vestidos que se assemelham às estações ou ao tempo (Rússia 153; Grécia 176), Miss Frère refere-se a um conto hindu no qual uma jovem disfarça-se em mendiga (retomado no conto toscano 285). No folclore italiano as virgens encerram-se em estátuas de velhas e algumas vezes em sua pele (Cosquin). O sapatinho de veiros denota a pureza e a beleza. Encontramos essa transformação em Riquet à la Houppe. c) O nome de Gata Borralheira — Mine d’Aulnoy e Perrault referem-se às cinzas da lareira e o Pentameron à Gata das Cinzas. Saintyves, ao estudar essas variantes, é de opinião que as cinzas desempenham papel degradante; é a humilhação, a penitência. Ulisses, humilhado por Areté e Alcínoo, senta-se nas cinzas; os hebraicos cobrem a cabeça com cinzas em sinal de luto. Para Loeffler-Delachaux, Gata Borralheira é uma vestal presa ao culto do Sol, da Luz e do Fogo; ora, o fogo é o símbolo da Vida e do Amor.

d) A madrasta — Freqüentemente a madrasta é representada por uma feiticeira (Cox Bulgária 127; Irlanda 9 e 10; anamita 68 e 69); às vezes por uma mágica (Cox Eslováquia 33; Grécia 17; Noruega 67, 110, 70); Luzel (Contes de Basse-Bretagne,- III (Contos da Baixa-Bretanha); Le chat noir (O gato negro) e Saintyves — confundem-na com o ano velho.

e) As ajudas — As ajudas que vêm socorrer são fadas, animais — muitas vezes pássaros — e até a defunta mãe (Cox, Contos dinamarqueses 38, 43, 64; norueguês, 87; Grimm 2); algumas vezes cultuam-se os ossos dos animais protetores (contos tjames 69). Desparmet (Contes populaires) menciona ajudas semelhantes.

f) As carruagens — Passeiam os deuses no Olimpo e conduzem as fadas aos batizados. Os coches são os veículos das forças cósmicas e da alma durante o decorrer. da reencarnação (Arjuma no Bagavad-Gita). — Os animais têm significação alegórica; Loeffler-Delachaux diz que o carro do sol é puxado por cavalos brancos e que as fadas podem ter carruagens de paz ou de cólera (La biche au bois de Perrault). Na Finlândia, a carruagem é substituída pelo trenó; o garanhão representa a energia sexual libertada; esses raptos de mulheres figuram na Calevala, Le joyeux Lemmikaïgen. Os corcéis não podem ser emprestados (Gracieuse et Percinet de Perrault, La gardeuse d’oies de Grimm.; o Pentameron.

g) Objeto denunciador — Gata Borralheira e Pele de Burro são reconhecidos graças a um objeto perdido (sapatinho), ou dado como penhor (anel, colar, alfinete, relógio, chave). O anel sem começo nem fim, liame mágico da vida, talismã, como a pulseira ou o colar, simboliza ritualmente o encadeamento de duas vidas. É encontrado numa iguaria e permite o descobrimento da heroína disfarçada.
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continua...
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Fonte:
BAYARD, Jean-Pierre. História das Lendas. (Tradução: Jeanne Marillier). Ed. Ridendo Castigat Mores

sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

Trova XCIII - Osvaldo Reis (Maringá/PR)

Vinicius de Moraes (Poema de Natal)


Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos —
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.
Assim será nossa vida:
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos —
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.
Não há muito o que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez de amor
Uma prece por quem se vai —
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.
Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte —
De repente nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente.

Fernando A. Cavazzoni Junior (O Encontro com o Menino)



Um Conto De Natal Escrito Para Refletir E Meditar

- Olá! Faz tempo que você está aí?

- Faz. Já faz algum tempo sim, por quê?

- Eu estou indo de um dos meus pastos para outro, mas não pude deixar de notar aquela “muvuca” na estalagem ali embaixo, está vendo?

- Aquele “tropé” ali? - apontando com o dedo indicador – Estou, sim. Por coincidência estava olhando para lá também...

- É mesmo? E você sabe o que está acontecendo lá?

- Sei...

- E... você pode me contar?

- Você não sabe de nada, não é?

- Saber o que? Era para eu saber alguma coisa?

- De fato, não era não...

- Então, vou-me embora... você não vai me contar mesmo, vai?

- Não tem muita coisa para ser dita...

- Já sei! Estou te atrapalhando, não é? Vou embora então...

- Oh, não! Sente-se aqui comigo. Não vai me atrapalhar em nada. A propósito, como você se chama?

- Meu nome é Leigo, e você? Quem é?

- Eu sou Lú Scífer.

- Muito prazer – respondeu estendendo a mão para o cumprimento.

- Ah! O prazer é todo meu! Vejo que já se acomodou...

- Sim...

- Então, vou te contar o que vi até agora. Você está vendo aquele casal; ele na porta da estalagem e ela montada no jumento?

- Sim, estou vendo. Ele parece preocupado...

- Ah, não está não!

- Por quê? Como você sabe?

- Veja bem: eles saíram de Nazaré e vieram à Belém para o recenseamento. Você está sabendo, não está?

- Do recenseamento?

- Claro, meu jovem Leigo!

- Oh! Sim estou! Todos estão, na verdade. Esses romanos vivem contando a gente para ver se podem pegar mais dinheiro de nós...

- É verdade, mas sabe, as populações crescem... não é bom que cresçam muito... você sabe... daí vai faltar comida, casa para todos, é uma dificuldade só...

- O senhor trabalha para o governo?

- Trabalhar? Eu? Não, não... só estava pensando alto...

- Então, mas e o casal lá embaixo? Olha só, agora várias pessoas saíram da estalagem e estão indo para o estábulo, me parece.

- É... que será que vão fazer? Eu ia dizendo que eles vieram a Belém por conta do recenseamento, mas a moça, coitada, está grávida!

- É mesmo! Que legal!

- Legal? É sério? Imagina só! Ele a trouxe até aqui grávida! Deviam ter esperado a criança nascer. Seria muito mais humano para com a mulher, não acha?

- Ah... não sei... é... talvez. Viajar nesse estado deve ser difícil para Ela... vai ver... sei lá o que eles têm para fazer aqui? Talvez seja importante, não sei...

- Importante? O que pode justificar um homem pegar sua mulher grávida, e dizem por aí que nem são casados, e partir por estradas sombrias, de dia e de noite... com tantos perigos...

- Eu vivo por aqui e digo que não é tão perigoso assim... O senhor é daqui?

- Eu? Bem, eu diria que... sou do mundo... uma hora aqui, outra ali...

- Olha! Estão ajudando o homem a limpar o estábulo... acho que eles vão ficar instalados ali...

- É! Olha só... o homem trás a família na ultima hora e quer achar lugar na melhor estalagem da região... é o fim da picada mesmo!

- Será que não tem mais lugar por aí?

- Claro que não! Já estão tudo lotado e...

- Acho que vou até lá... a moça está grávida e eu tenho um quarto para hospedes na minha casa... vou levá-los para lá e dar...

- Você está louco, meu jovem?

- Eu? Por quê?

- Ora, você nem os conhece! Vai dar guarida para gente de fora, que você nunca viu antes? Está louco? O que os outros vão pensar?

- Puxa, mas eles parecem tão bons... não vejo nada estranho...

- Deixe que aqueles forasteiros cuidem deles... já estão lá mesmo!

O jovem Leigo interrompe dizendo em voz alta: - Olha só! Veja aquela...

- O que? O que? – responde Lú Scífer apressadamente.

- Aquela senhora saindo da casa grande, com água e panos nas mãos... acho que a Criança vai nascer agora! Vamos lá ver? É tão legal ver uma Criancinha recém nascida...

- Eu até gostaria de ir com você, mas... olha só... Está um nojo ali perto... tem coco de tudo que é tipo no chão... vamos sair de lá fedendo...

- Bem, tem um pouco de coco aqui e ali, mas é uma região de pastoreio, então tem que ter um pouco de coco por aí...

- Meu jovem; vejo que você está ficando empolgado com essa história, não está?

- Bem, eu queria ver o Neném nascer... é legal ver um nascimento... e veja que estrela linda no céu... está quase claro como dia... vai dar para ver tudo direitinho...

- É mesmo, não tinha notado a estrela... talvez se fossemos para o alto da colina pudéssemos ver melhor, que acha?

- Ir para o alto da colina? Mas aí vamos ficar mais longe. Como vamos ver melhor?

- Não, não... de lá de cima podemos ver mais e melhor... dá um ângulo melhor das coisas...

Enquanto Lú Scífer falava, o jovem Leigo não tirava os olhos da cena. Sem se dar conta do que havia sido dito, o jovem irrompe na conversa:

- Puxa! Veja quanta gente por perto, chegando... está juntando cada vez mais pessoas... Esse casal deve ser de gente importante, não acha?

- Importante! Que nada! É só mais um casal de gente pobre, perdida nesse mundo e incomodando as pessoas... E vai incomodar mais quando Aquela Criança nascer! Você vai ver...

- Então eu vou lá ver! Vamos?

- De jeito nenhum!

- Vamos! É só uma Criança nascendo...

Antes do jovem terminar a frase ouve-se o badalar de sinos – de sinos afinados e numa melodia empolgante, alegre, cheia de esperança.

- Você está ouvindo isso? – pergunta o jovem Leigo.

- O que?

- Esse som de sinos...

- Ah, isso? Estou... E daí?

- Bom, para começar, de onde vem?

- Que importa... vai acordar todo mundo...

- Meus amigos pastores devem estar acordados ainda. De certo estão ouvindo e virão para cá...

- Mais gente!

- É! E daí? Você se incomoda!

- Um pouco...

- Acho que vou até lá então...

- Não! Espera aí! Agora que ia te fazer um convite...

- Convite? Para que?

- Você é pastor, não é?

- Sou.

- Você disse que ia de um pasto seu para outro, certo?

- Certo. Muito observador de sua parte...

- Então você deve estar, digamos, bem na vida, não está?

- Como assim?

- Eu digo, deve ter um outro bicho para fazer um churrasco, não tem?

- Tenho, sim, alguns.

- Então meu caro! Eu queria te convidar para fazermos um churrasco! Que tal! Subimos o morro, vamos até seu pasto e eu mato um novilho enquanto você chama seus amigos... Faremos uma festa! Que tal?

- Legal, mas já é meio tarde e... olha só...

- O que?

- Meus amigos já estão lá embaixo!

- É mesmo?

- É! Só nós estamos aqui...

- Ótimo! Aqui nós estamos a salvo!

- A salvo? A salvo do que?

Lú Scífer vira a cara para o lado e diz em voz baixa: - ...é de quem, seu palerma!

- O que? Que foi que você disse?

- Deixa “prá” lá... Vamos fazer o churrasco ou não?

- Seria legal, mas tenho que ir andando...

- Você não vai lá embaixo, vai?

- Acho que sim. Estou vendo todos os meus amigos lá...

- Eu sou seu amigo e não estou lá...

O jovem Leigo pensa consigo: “que sujeito atrevido! Sinto que preciso ir embora mas ele está sempre me convencendo a ficar. Até que ele tem umas idéias boas, mas eu preciso sair...”

Enquanto o jovem pensava, outra pessoa se aproxima e diz:

- Olá vocês aí! Tudo bem?

Lú Scífer toma um susto e permanece calado. O Jovem responde:

- Tudo bem, obrigado. Você está vindo lá de baixo?

- Na verdade estava indo para lá e vi vocês aqui.

Lú Scífer se intromete, dizendo: - Pode ir então. Eu e meu amigo estamos bem aqui.

O jovem pergunta: - Vocês já se conhecem?

Eles respondem simultaneamente: - Já!

Então o jovem leigo pergunta ao que acaba de chegar: - Qual é seu nome, senhor?

- Eu me chamo Miguel.

- Muito prazer – responde o jovem estendendo a mão para cumprimentá-lo e emenda uma pergunta: - você sabe o que está acontecendo lá embaixo?

- Sei sim - responde Miguel, e continua – e ele também sabe.

- Quem? O Lú Scífer?

- Ele mesmo.

- Bem, isso já não importa mais. Preciso ir andando e não sei direito o que fazer.

Miguel toma a frente no dialogo: - O que você tem para fazer?

- Não sei se vou até lá embaixo ver aquela Criança ou procuro meus amigos para fazer um churrasco.

- Seus amigos estão lá embaixo...

- Parece que estão todos tão felizes naquele estábulo... Sinto uma vontade enorme de ir lá. Não sei por que, mas acho que vou para lá...

Lú Scífer solta um grito e sai correndo pelo campo.

- Puxa! Que sujeito estranho, não é Miguel?

- “Deixa ele pra lá”, mas cuidado! Ele volta qualquer hora dessas.

- Espero não vê-lo mais por aqui...

- Se você vai lá para baixo, eu te faço companhia.

- Ahm... eh... está bem, vou sim...

- Ótimo!

- Você disse que estava indo para lá, não é?

- Na verdade estou sim...

- Você conhece aquele casal?

- Conheço. Eles se chamam Maria e José. Maria acaba de dar a luz a um Menino, que se chama Jesus.

- Puxa! Você sabe tudo, heim!

- Sei muito mais! Vamos indo que te conto tudo no caminho.

- Beleza! Vamos nessa!

Fonte:
http://www.mesadoeditor.com.br/

quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Parceria Penguin Books e Companhia das Letras


Enquanto se divulga a notícia de que editoras brasileiras correm atrás da digitalização – por força da grande aceitação do Kindle nos Estados Unidos –, a Companhia das Letras se acautela, igualmente, em outra direção: segue apostando nos pocket books.

Reforçando sua entrada nesse mercado, em 2010 a editora de Luiz Schwarcz lança os primeiros volumes em associação com a clássica Penguin Books. Se a britânica se consagrou no mundo todo, por popularizar edições de clássicos a preços convidativos, agora a brasileira poderá desfrutar desse catálogo, brindando o leitor do português brasileiro com grandes traduções. Neste final de ano, a Companhia das Letras distribuiu um teaser do que será o projeto em algumas semanas. Trata-se de uma edição limitada com dois ensaios de Italo Calvino, retirados de Por que ler os clássicos – igualmente um clássico que a própria editora lançou em seu selo Companhia de Bolso. Em capa dura, o volume é todo preto, com exceção de uma bela foto ilustrativa, uma faixa branca, com o tradicional “logotipo do pinguim” e as palavras “Penguim” e “Companhia”, acima de “Clássicos”. O projeto gráfico, que moderniza o original, é do warrakloureiro.

A expectativa, agora, é pelo preço. Se Luiz Schwarcz conseguir argumentar, como Steve Jobs, que adquirir um produto bem acabado é muito mais recompensador do que descolar um “genérico”, através da internet, esta nova iniciativa deve prosperar. O risco, talvez, é a coleção nova, de clássicos, “canibalizar” a coleção, não tão nova, de livros de bolso. Mas os estrategistas da Companhia das Letras devem estar preparados.

O Kindle e a Amazon, por um lado, e o Google (com seu Google Books), por outro, acenam com uma digitalização sem limites, de obras clássicas na história da humanidade. A primeira disponibilizando o acervo da maior livraria do mundo e o segundo, os acervos das principais bibliotecas dos Estados Unidos. Vai chegar o dia em que teremos tudo o que já caiu em domínio público no alcance da mão, a Companhia das Letras e a Penguim, contudo, apostam que esse dia está mais longe de chegar do que parece – ou mesmo, se chegar, que o futuro permitirá a coexistência de edições de papel e eletrônicas.

Fonte:
Companhia das Letras

Jerônimo Mendes (História da Poesia Universal – Breve Relato ) Parte V



4. OS GRANDES POETAS

Apesar da livre opção e vontade própria de incluir um capítulo sobre os grandes poetas que surgiram desde a antigüidade até os dias de hoje, seria prematuro e arriscado de minha parte afirmar que a humanidade teve um ou outro de maior importância que os demais.

O envolvimento com a poesia durante a execução da monografia já me permite afirmar que os poetas, mesmo citados em enciclopédias e livros de história como Grandes para um ou outro autor, foram para seu tempo e sua época e, portanto, devem ser avaliados sob diferentes pontos de vista, a começar pela obra de cada um em particular.

Píndaro, Sófocles e Temístocles foram importantíssimos para o povo da Grécia antiga assim com Virgílo, Alighieri, Petrarca e Ovídio foram para os italianos. Se perguntarmos aos americanos qual o poeta mais importante da humanidade é muito provável que elejam Ezra Pound ou Emerson, os alemães dirão Goethe e os britânicos não hesitarão em apontar Shakespeare como o maior de todos os tempos.

Verdade pura, todos tiveram sua importância no desenvolvimento da história e da literatura universal. Não pretendo, na minha humilde capacidade de analogia dos poemas estudados, fazer juízo de qualquer autor que seja, pelo simples fato de saber que a humanidade conhece a todos e a eles dedica todo o respeito que lhes cabe.

A bem da verdade, o mais importante é saber que todos os nomes atualmente registrados na história, por acaso ou pela influência exercida em cada época, se perpetuaram por uma razão única : ter se distinguido da filosofia e dos costumes tradicionais.

Na maioria dos poetas pesquisados, todos os casos encontrados sobressaíram-se no seu tempo por algum motivo contrário à ordem ou tradição, aos costumes ou à lei, por rebeldia, melancolia, utopia ou mesmo por um romantismo mais acentuado. Sob o ponto de vista didático e em razão do farto material disponível nas bibliotecas, concentrei minha pesquisa nos autores de maior conhecimento do público, quer pelo amplo número de livros publicados, quer pela influência exercida pela mídia sobre determinados autores, quer também pela propaganda cultural de determinadas classes literárias que estabelecem uma espécie de cânone da literatura mundial, a exemplo do que fez o crítico e estudioso norteamericano Harold Bloom.

Meu objetivo no capítulo não se restringe a eleger os melhores e sim demonstrar a importância da obra de cada um dos escolhidos sob o nosso cânone, a fim de enriquecer o trabalho e defender meu ponto de vista sobre a importância da poesia no decorrer da história. Conforme discorrido anteriormente, Homero foi um dos mais importantes poetas da antiga literatura grega, não somente pelo fato de ter produzido toda sua obra mesmo cego, mas também pelo fato de ter relatado acontecimentos de caráter histórico e informativo de sua época, através dos seus dois maiores poemas, considerados por muitos historiadores os maiores épicos da antigüidade: Ilíada e Odisséia.

Homero é para a Grécia o que Shakespeare é para a Inglaterra. Não se pode ignorar a importância do poeta hoje, decorridos quase 3.000 anos do seu tempo, pois permanece objeto de estudo em universidades, escolas poéticas e causa o mesmo fascínio de antes. Livros são escritos sobre a sua obra e as interpretações são mais diferentes possíveis. As obras do poeta, como conhecemos atualmente, apresentam uma unidade impressionante, apesar de serem muito longas. Do ponto de vista histórico, Ilíada e Odisséia são de extrema importância pela simples razão de ajudarem a reconstruir a antiga história da Grécia.

Mais adiante, Horácio, Virgílio e Ovídio exerceram influência suficiente para registro de seus nomes nos anais da história da literatura universal.

Horácio, que viveu de 65 a 8 a.C., tinha uma personalidade áspera e autodepreciativa, comprovada através de seus poemas Sátiras e Epístolas. Seus quatro volume de Odes são ainda mais notáveis, escritos em versos que mostram da melhor maneira a concisão latina, abrangendo grande variedade de assuntos, com predomínio do amor, da política, da filosofia, da poesia e da amizade.

Filho de um esclarecido escravo liberto, nasceu na região de Venosa e contou sempre com o apoio do pai em todos os momentos de sua formação. Estudou em Roma e Atenas. Republicano convicto, tomou o partido de Bruto e não hesitou em confessar, candidamente, que abandonara as armas no campo de batalha de Filipos, onde Otávio derrotara as forças de Brutus e Cássius. Juntamente com Virgílio e Catulo, Horácio forma a tríade maior da poesia latina clássica. Seus mestres foram os poetas gregos - não os mais próximos, os alexandrinos, mas os recuados, os fundadores da lírica helênica : Arquíloco, Safo e Alceu.

Sua obra chegou-nos praticamente completa; são sátiras, epodos, epístolas e, principalmente, odes (em quatro livros), estudadas, esmiuçadas e traduzidas em inumeráveis línguas, tanto no Ocidente como no Oriente, ao longo desses dois milênios, como o pequeno fragmento que transcrevemos a seguir :

Pobre vida a da moça que não pode
namorar (vigilância)
nem se permite um gole
para afogar as mágoas (e as más línguas?)

Admirado, traduzido e imitado há dois milênios, Caio Valério Catulo (82-52 a.C.), pode ser considerado o maior lírico da poesia latina. Segundo Décio Pignatari em seu 31 Poetas 214 Poemas (1996 : 118),

“ . . . sua lírica, não raro atravessada por laivos epigramáticos irônicos, jocosos ou satíricos, é louvada pela sua inovadora simplicidade direta - escorada, porém, por uma sábia estrutura que não se exibe - e pela inflamada crispação interna que a paixão amorosa provoca ”.

Nascido em Verona, de pais abastados e muito bem relacionados, viveu na Roma de Júlio César e Cícero; o primeiro era hóspede freqüente de seu pai (que não impediu algumas farpas do filho); o segundo está ligado a ele pelos dois pont os que mais poderiam tocá-lo : sua poesia e sua amada-amante. Quanto ao primeiro, o orador criticava em Catulo e seus jovens amigos poetas as liberdades métricas, a irreverência, os coloquialismos familiares e populares e o pouco apreço que tinham pelos severos mestres do passado, Ênio em especial; chamava-os neoteroi , inovadores, em grego, de propósito, pelo que tinham de imitar poesia grega, tanto a lírica arcaica e pioneira de Arquíloco e Safo como a mais recente, a alexandrina. Segundo ponto : Chegou a referir-se a Clódia, esposa de um cônsul romano, como “meretriz barata”, em pleno fórum, além de insinuar que ela mantinha relações incestuosas com o irmão. Contudo, suas odes tornaram-se famosas e foram traduzidas em diversas línguas nos últimos dois mil anos, como a que podemos ler a seguir :

Tordo, prazer da minha namorada,
brinquedo vivo que ela leva ao seio
e que incita a bicadas doídas,
com a ponta do dedo, quando quer
- Ó, meu bem, minha luz, meu bem-querer -
distrair-se com algo divertido,
para acalmar a dor, quem sabe ? de uma
paixão voraz - pudesse eu brincar
com você, como o faz a sua dona,
pra amortecer as dores do meu peito !

Marco Valério Marcial, nascido no ano 40 d.C. na hoje província de Saragoça, Espanha, foi para Roma em 64, retornando depois de 30 anos à terra natal, onde morreu, no ano de 104, presumivelmente. Viveu a vida típica de um cliente , homem supostamente livre, que vive de badalações e de prestar serviço aos poderosos, a começar pelo bestial Domiciano (Irmão e sucessor de Tito no império romano).

O poeta foi um cronista social obsceno e pornográfico de seu tempo, por isso mesmo criticado, quando não desdenhado e desprezado. Seus epigramas - mais de um milhar -, distribuídos em doze livros, vêm atravessando os séculos, influenciando muitos escritores e poetas, entre os quais Rabelais, Quevedo, Gregório de Matos e Bocage.

Com o poeta Juvenal, também espanhol e seu amigo, formaram a maior dupla satírica latina, descontando-se, logicamente, Horácio, que operou em outro registro. Marcial deixou a marca de seu talento também em muitas passagens como a do “ plátano de César “ e a do “ rol das coisas boas da vida “ . Muito censurado, só encontrou as primeiras traduções sem travas nos anos 60 e 70, especialmente graças ao trabalho pioneiro do historiador Guido Ceronetti, do qual muito os historiadores atuais se valem, descontando suas excessivas liberdades formais. Sua obra, porém, continha poemas mais suaves, a despeito de toda sua fama de satírico e pornográfico, embora recheada de metáforas picantes :

Para embrulhar atuns não faltem capas,
Não fiquem sem cartucho as azeitonas,
E nem padeça a traça a fome vil.
Vá, papiro do Egito, é o que possuo :
O inverno ébrio quer novas piadas.
Eu jogo dados de papel, não dardos,
E tanto faz um crepe como um seis.
Lanço cubos de um copo-pergaminho:
Lucros nem perdas não me traz o acaso.

Entre a elite bem-dotada da China do Século VIII estavam dois dos maiores poetas da história : Li Po e Tu Fu.

Li Po nasceu em 701, em algum lugar da Ásia Central, onde sua gente viveu por mais de um século antes de retornar e se instalar em Sichuan, por volta de 705. A família talvez estivesse envolvida com o comércio, visto como uma ocupação inferior pela corte, o que talvez explique porque a carreira de Li Po no serviço público definhara. Recusou-se a prestar concurso público e assumiu sua nômade pobreza. De qualquer forma, ele era um rebelde e um andarilho por natureza, um romântico, místico e libertino, viciado em vinho, amor e poesia.

Li Po é o grande poeta da China, inventor e mestre. Dizem que tinha muito de não-chinês, que era da Ásia Central e que aprendeu muito com as apreciadas dançarinas e cantoras do Turquestão, nos cabarés de suas andanças. Bêbado iluminado (Tu Fu o considerava um mago), crêem os espíritos taoístas, em lenda célebre, que Li Po morreu afogado ao se debruçar de um barco para beijar o reflexo da lua na água; os confucianos, dizem que de pneumonia. Seu poema “ Bebendo sozinho com a lua “ demonstra a notabilidade, audácia e o lirismo dos principais poetas Tang :

De um cântaro de vinho entre flores
eu bebia sozinho. Ninguém comigo -
E então, erguendo minha taça, pedi à clara lua
que trouxesse minha sombra e fizesse de nós, três.
E minha sombra pendeu de mim ociosamente.
Ainda assim, por momentos tive amigos
para me animar no fim da primavera ( . . . )
Cantei. A Lua me estimulou.
Dancei. Minha sombra cambaleou atrás.
Tanto quanto soube, fomos joviais companheiros.
Depois fiquei bêbado, e nos perdemos.

Tu Fu, amigo do Li Po, nascido em 712, era um homem sério, estudioso, profundamente comprometido com o humanismo confucionista e com o serviço público, muito valorizado na China. Tendo prestado concurso, Tu Fu foi reprovado e contentou-se com posições subalternas de extranumerário. Com freqüência, usava a poesia como protesto político, atacando a injustiça social, assumindo a voz de um soldado camponês e colocando-se em algum passado distante. No final da vida, Tu Fu testemunhou a rebelião contra o imperador Hsuan-tsung e escreveu sobre a fome e desordem que tomaram conta da China e seus poemas era tão apreciados quanto os de Li Po. Vejamos um pedaço de sua obra através da Canção do Mar do Sul :

Vindo do mar do Sul,
Disse o Hóspede-Enigma :
“ É de sereia. Aceite
Esta pequena lágrima” .
Era uma estranha pérola
com laivos e sinais,
que tentei decifrar
com leituras banais.
Mas, quando abri o escrínio,
que mudança funesta :
um coágulo de sangue
- É tudo o que me resta !

Homens como esses participaram de uma explosão gloriosa da literatura e das artes e não podem ser ignorados jamais, pois somente o fato de hoje termos uma pequena mostra de sua obra, 1300 anos depois, revela a importância e o impacto forte de sua poesia no período em que viveram. Dante Alighieri, poeta italiano do século XIII, nasceu e passou metade da vida em Florença até que os acontecimentos políticos o obrigaram ao exílio, procurando refúgio em uma corte após outra.

Os anos de Florença foram marcados por sua paixão por Beatriz Portinari, que morreu em 1290, com menos de 20 anos, e que permaneceu fonte de inspiração e devoção para o poeta até o fim de sua vida. Este amor trágico inspirou belos poemas líricos em Vida Nova, no ano de 1293. No exílio, escreveu dois tratados latinos : Sobre a Língua do Povo, da maior relevância ao colocar o italiano como idioma literário, e No Governo do Mundo, que apoiava o Sacro Império Romano contra as reivindicações do papa.

A Divina Comédia, sua obra mais conhecida, foi iniciada em 1308, mas concluída somente ao final da vida. Trata-se de um poema em três partes, Inferno, Purgatório e Paraíso, que descreve a jornada de Dante para encontrar Deus, acompanhado de Virgílio, até o ponto em que Beatriz (a graça divina) deve guiá-lo.

A obra é uma cosmografia (Descrição astronômica do mundo) completa do conhecimento medieval e uma profunda recapitulação da doutrina cristã da queda e da redenção, colocada em versos de sublime e majestosa beleza, especialmente na criação de imagens. Representa o pináculo da poesia italiana.

Não menos importante, Luís Vaz de Camões, poeta português do XVI, por volta de 1542, já com pendores literários, frequentava a nobreza, mas suas posições políticas levaram-no ao exílio em Ribatejo.

Nada talvez seja mais obscuro do que a biografia de Camões. A maioria dos fatos relevantes e importantes ligados a sua trajetória pessoal estão envolvidos numa névoa espessa que a passagem do tempo não consegue dissipar ”.

Com essas palavras, o pesquisador José Emílio de Major Neto (1993 : 6) expõe a vida conturbada de Camões. Quase tudo que sabemos são informações truncadas, incompletas e muitas vezes contraditórias, a maioria não passível de informação documental. Sabe-se que desde antes do fim da adolescência o poeta já se encontrava em Lisboa, e neste ano prestou serviços militares na África, onde perdeu um dos olhos, numa batalha ou acidente.

Apesar da precariedade dos dados históricos de sua vida e obra, a vida de Camões foi turbulenta e instável, repleta de vicissitudes, marcada por enormes dificuldades, pela pobreza e pela miséria, e com certeza pela inimizade e perseguição por parte de forças poderosas suas contemporâneas. Contudo, Camões é uma das figuras de maior relevo da tradição literária em língua portuguesa e, sem dúvida alguma, um dos maiores poetas do seu tempo. Sua obra é a base para a compreensão do complexo cultural que envolve o século XVI e o fenômeno histórico e estético chamado Renascimento. Os ecos de seus temas, procedimentos formais e estilísticos são facilmente detectáveis ao longo dos últimos quatro séculos de cultura literária, quer em Portugal, quer no Brasil.

Camões ocupa assim um lugar de destaque, quer entre os mais prestigiados autores de seu tempo, quer como o mais ilustre representante de toda uma cultura e tradição literária no seio das modernas literaturas européias. Sua obra mais famosa, Os Lusíadas, foi escrito quase integralmente no exílio e, atualmente, é objeto de estudo e qualquer lugar do mundo. O centro temático mais relevante da obra de Camões é o amor e suas implicações profundas em relação à condição humana, tal como no soneto
LXXIII apresentado a seguir :

Amor é fogo que arde sem se ver,
é ferida que dói e não se sente,
é um contentamento descontente,
é dor que desatina sem doer.
É um não querer mais que bem querer,
é solitário andar por entre a gente,
é não contentar-se de contente,
é cuidar que se ganha em se perder.
É um estar-se preso por vontade,
é servir, a quem vence, o vencedor,
é um ter com quem nos mata lealdade.
Mas como causar pode o seu favor
nos mortais corações conformidade,
sendo a si tão contrário o mesmo amor ?

Miguel de Cervantes, romancista, dramaturgo e poeta espanhol do século XVI, criou personagens universalmente conhecidos, como D. Quixote, o cavaleiro errante, e seu criado Sancho Pancho. Escreveu principalmente nos doze últimos anos de vida, depois de uma carreira como soldado, quando foi até prisioneiro de piratas e preso na Espanha sob acusação de mal uso do dinheiro público.

O longo poema Viagem a Parnaso (1614) obteve pouco sucesso, mas seu fracasso relativo foi seguido pela aclamação da sua paródia do romance de cavalaria As Aventuras de Quixote (1605-15), motivo pelo qual Cervantes é admirado e estudado até os dias de hoje.

Minha pesquisa não teria valido a pena se não tivesse esperado ansiosamente pelo estudo e inclusão da vida e obra do dramaturgo e maior poeta inglês de todos os tempos : Wiliam Shakespeare.

Para a grande maioria, artistas, jovens, velhos, poetas, escritores ou não, Shakespeare é considerado o maior poeta de todos os tempos. Seus versos são declamados repetitivamente nos teatros cênicos, nos principais meios de comunicação, em novelas, peças teatrais e nas escolas. Suas obras, traduzidas e apresentadas em todas as partes do mundo, tornaram-no o mais célebre dos escritores. Sabe-se que já trabalhava no teatro londrino em torno de 1592, porém nada se conhece a respeito de sua educação ou profissão anteriores.

Como autor e ator, trabalhou para a Companhia de Lord Chamberlain, conhecida a partir de 1603 como Companhia Real, o grupo mais importante a ocupar, desde 1599, o Globe Theatre, do qual era sócio. Shakespeare é autor de 38 peças conhecidas, que dividem sua carreira em aproximadamente quatro períodos. No primeiro, compreendido até 1594, escreveu diferentes tipos de comédia, tais como O Esforço do Amor Perdido, a Comédia dos Erros e A Megera Domada.

A abordagem da história da Inglaterra, por ele elaborada em suas obras, teve início com primeira tetralogia, que compreende Henrique IV e Ricardo III. A sangrenta Titus Andronicus é sua primeira tragédia. Entre 1594 e 1599, permaneceu concentrando-se em comédias e peças históricas. As comédias deste período - Sonho de Uma Noite de Verão, As Alegres Comadres de Windsor, O Mercador de Veneza - são produto de sua melhor inspiração romântica, enquanto o domínio completo da Narrativa aparece na segunda tetralogia : Ricardo III, Henrique IV e Henrique V. Na terceira fase, entre 1599 e 1608, o poeta abandonou a comédia romântica e a história inglesa, passando a produzir tragédias, peças de humor negro ou episódicas, como Medida por Medida, Tudo Está Bem quando Acaba Bem e Troilus e Criseida.

De um modo geral, Rei Lear, Macbeth, Hamlet e Otelo são consideradas suas quatro maiores tragédias, embora um segundo grupo de peças romanas se caracterize por presenças igualmente notáveis, como Antonio e Cleópatra, Júlio César e Coriolano. A esta fase também pertence Timon de Atenas, possivelmente escrita em parceria com Thomas Middleton 1.

A fase final da produção shakespeariana corresponde ao período entre 1608 e 1613 e é dominada por um novo estilo de comédia, que aborda temas como a perda e a reconciliação : Péricles, Cimbelina, Conto de Inverno e A Tempestade, conhecidas como seus últimos trabalhos românticos.

A consagração de Shakespeare deve-se a seus notáveis e complexos personagens, à dinâmica de suas peças, obtida através de alternância de cenas curtas e rápidas e, acima de tudo, à sutil e extraordinária riqueza de seus versos brancos, que apresentam metáfora profunda e retórica elaborada.

A juventude de Shakespeare se deu num tempo em que o povo inglês era persistente com relação aos entretenimentos dramáticos. A corte se ofendia facilmente com as alusões políticas e tentava suprimi-los. Os puritanos, um grupo crescente e enérgico, sendo os religiosos em meio ao da Igreja Anglicana, teriam suprimido os entretenimentos, mas o povo os desejava, certamente.

O poeta levava a sua poderosa execução aos mínimos detalhes, até a perfeição. Ele tinha o poder de criar uma pintura. O seu poder lírico está no gênio da peça escrita. Os sonetos, são tão inimitáveis quanto os últimos.

Shakespeare é o único biógrafo de Shakespeare; e até mesmo ele nada pode dizer, exceto para o Shakespeare em nós; a saber, em nosso momento mais perceptivo e simpático” (Ralph Waldo Emerson)

É fácil perceber que o que é melhor escrito ou feito pelo gênio no mundo não foi trabalho de um homem, mas surgiu de uma ampla obra social, quando mil pessoas produziam como uma, compartilhando o mesmo impulso. Shakespeare era um homem do povo e com eles teve uma perfeita relação de amor e respeito, dando ao povo o que o povo queria : emoção. Seus poemas, sonetos, peças ou tragédias são a expressão da consciência humana, no seu grau mais profundo de reflexão e martírio. Talvez por este motivo, Shakespeare está tão perto de nós, a tilintar nossos cérebros e tenha condenado toda humanidade a conviver com sua obra e jogar-se a seus pés, involuntariamente.

No poema A Graça do Perdão, inserido na peça O Mercador de Veneza, que transcrevemos a seguir, Shakespeare coloca-nos em choque conosco mesmo, forçando-nos à reflexão pura e simples, desprovida de um esforço maior, pela simples leitura de suas linhas :

A graça do perdão não é forçada;
Desce dos céus como uma chuva fina
Sobre o solo: abençoada duplamente,
Abençoa a quem dá e a quem recebe;
É mais forte que a força: ele guarnece
O monarca melhor que uma coroa;
O cetro mostra a força temporal,
atributo de orgulho e majestade,
onde assenta o temor devido aos reis;
Mas o perdão supera essa imponência :
É um atributo que pertence a Deus,
E o terreno poder se faz divino
Quando, à piedade, curva-se à justiça.

Sobre Shakespeare não cabe mais nada. Difícil interpretá-lo, fácil admirá-lo. Os artistas sabem do que estamos falando, ao suarem e permaneceram noites acordados tentando a incorporação e a melhor interpretação de seus personagens e do espírito shakespeareano. Para fazer Shakespeare é preciso estudá-lo, conhecer sua obra como a palma da mão, colocar-se no seu tempo e pensar como ele, sob pena de admirá-lo em vão, sem qualquer efeito. Talvez seja esse o motivo que nos leve a carregá-lo na memória, na alma e por toda eternidade, sem sombra de dúvida. Charles Baudelaire , poeta francês do início do século XIX, foi pouco apreciado enquanto viveu, mas é hoje considerado um dos expoentes da literatura francesa. A coletânea de poemas As Flores do Mal, quando publicada em 1857, provocou um processo no qual o poeta foi acusado de atentar contra a moral pública.

Em As Flores do Mal, Baudelaire apresenta os contrastes entre as aspirações ideais de um homem e a desilusão experimentada na sua existência cotidiana. Buscando a beleza não em abstrações, mas na sórdida realidade da vida parisiense, especialmente em Quadros Parisienses, o poeta descobre reflexos do além em toda a criação.

No entanto, vencido pelo desgosto, se rebela contra Deus e busca a liberdade oferecida pela morte, que lhe permitirá observar o mundo atrás da fachada da existência. Os poemas nos quais exibe mestria no controle da rima e do ritmo apresentam um colorido exótico herdado do romantismo, ainda que baseados em observação da vida real e executados numa forma perfeita que antecipa as características dos parnasianos.

Ao longo dos séculos, dois alemães se destacaram pela importância de sua obra poética, coincidentemente, ambos nascidos no século XVIII. Johann Wolfgang von Goethe , poeta, dramaturgo, novelista e filósofo alemão, é considerado um dos maiores poetas de língua alemã. Nascido no ano de 1809, Goethe produziu uma obra que abrange desde o subjetivismo do movimento Sturm and Drang ( Tempestade e Ímpeto) até a consciência harmônica do classicismo. Sua obra inclui poesia lírica, épica e baladas, romances, contos e obras autobiográficas. A publicação de Götz von Berlichingen (1771), uma peça no estilo da tradição de Shakespeare, retratando um herói destruído pela degeneração da idade, firmou seu conceito no meio literário. No ano seguinte, o poeta apareceu com Os Sofrimentos do jovem Werher, romance epistolar sobre um forasteiro muito sensível sem lugar no mundo.

Sua obra-prima é Fausto, um drama em duas partes, do qual se ocupou de 1770 até 1831. O trabalho reflete o desenvolvimento das observações colhidas ao longo de toda uma vida marcada por sofrimento, tragédia, humor e ironia.

Goethe, um homem com um centena de braços, olhos de Argus, capaz e feliz de poder, com essa giratória miscelânea de fatos e ciências e, por sua própria versatilidade, capas de delas dispor facilmente; uma mente masculina, desembaraçada pela variedade de casacos da convenção com que a visa se incrustou, facilmente capaz, por sua sutileza, de penetrá-la e retirar a sua força da natureza, com a qual ele vivia em perfeita comunhão". (Ralph W. Emerson)

Faz um grande diferença para a força de qualquer sentença saber se há um homem atrás dela ou não. Goethe é o tipo da cultura, o amador de todas as artes, ciências e acontecimentos ; artístico, mas não artista; espiritual, mas não espiritualista. O que também é estranho e nos chamou atenção durante a pesquisa sobre sua vida, é que ele vivia numa cidadezinha , num estado insignificante, num estado derrotado, num tempo em que a Alemanha não representava um país tão importante nos negócios do mundo a ponto de inchar o peito de seus filhos com qualquer orgulho metropolitano, como o que devia alegrar um gênio francês, inglês ou, antes, um romano ou ático. No entanto, não há traço algum de limitação provinciana em sua musa. Ele não é um devedor de sua posição, mas nasceu com um gênio livre e controlador.

Helena, ou a segunda parte de seu poema Fausto , é uma filosofia da literatura em poesia. A maravilha do poema está na inteligência superior do poeta. Assim, ele é um poeta de um laurel mais orgulhoso do que qualquer um dos contemporâneos.

O que distingue Goethe dos leitores franceses e ingleses é uma propriedade que ele compartilha com a sua nação - uma referência habitual à verdade interior. Na Inglaterra e na América há respeito pelo seu talento e em todos os países em que sua obra foi traduzida, os homens de talento escrevem com o talento.

Talento apenas não faz um escritor. Deve haver algum homem por trás do livro; uma personalidade que, pelo nascimento e por suas qualidades, está empenhada nas doutrinas ali descritas e que existe para ver e declarar coisas assim e não de outro modo ” (Ralph W. Emerson)

Goethe, a cabeça e o corpo da nação alemão, segundo seus biógrafos e estudiosos, não fala do talento, mas a verdade brilha através dele. Ele é bastante sábio, embora seu talento freqüentemente cubra a sabedoria. Ele é o tipo da cultura, o amador de todas as artes, ciências e acontecimentos, motivo pelo qual permanece vivo no coração da classe literária mundial, incapaz de não consultar os seus escritos para encher-se de sabedoria e conhecimento da filosofia.

A sua autobiografia, sob o título de Poesia e Verdade da Minha Vida, é a expressão da idéia, agora familiar ao mundo através da mente alemã, mas uma novidade para outros países quando o livro apareceu, a de que um homem existe para cultura , não para aquilo que ele pode executar, mas pelo que pode ser executado nele. A reação das coisas sobre o homem é o único resultado digno de nota.

Fonte:
Monografia feita pelo autor em Curitiba / PR , março de 2001

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Trova XCII - Cristiane Borges Brotto (Curitiba/PR)

Montagem da trova sobre desenho criado por Rico. http://www.ricostudios.com.br

Claudia Lage (Porque é)

Andou com pressa sem hora marcada para nada. Virou as esquinas pensando em como era bom virar alguma coisa. Tropeçou num treco qualquer no meio do caminho e só depois viu não se tratar de uma pedra. Os jornais que embrulhavam a pessoa deitada anunciavam uma liquidação imperdível. Ótimo. Tinha mesmo que comprar presentes. Corra, corra, não perca! Imediatamente, correu, embora não soubesse o endereço. Passou por uma mulher linda, um homem lindo, uma criança linda. Pensou: o mundo é bom. E a cidade cintilava com as luzes extras sem nenhuma beleza nem economia.

No meio da multidão, esbarrou em alguém que conhecia. Rapidamente, não se cumprimentaram. Na esquina, desejou felicidades à mocinha que lhe vendeu um sanduíche. Depois, sentiu, de repente, uma alegria. Mal podia esperar a noite. Gostava da comilança, da família reunida. Nessa hora, cresceu um buraco em seu peito que o fez logo pensar em doenças. Em seguida, imaginou curas. É o susto do tempo. De tudo parecer a mesma coisa. E é também a dor desse susto. São as horas corridas que se adiantam tanto, e para quê? Para todos os anos caírem sempre no mesmo dia. Era o que pensava. Só esperava que, se alguma vez morresse, fosse quando estivesse muito, mas muito doente, pois achava morrer saudável um verdadeiro desperdício. Calculava, no futuro, que seria capaz de saborear cada instante. Em pequenas ambições, vislumbrava roçar a carne vida.

Olhando assim, é uma pessoa como outra qualquer. Carregando um desejo como qualquer outro. Arrastando e alimentando o desejo. Deixando ele crescer. Invadir o peito, arrepiar os pêlos, subir à cabeça, desfiar os cabelos. É um perigo querer tanto assim. Talvez seja a época do ano. Você sabe. Aquela que nos faz gastar o dobro do dinheiro que temos. Aquela que nos faz pensar neles. No homem que morreu na cruz e no que anda pelo mundo inteiro, por incrível que pareça, de trenó. Um teve, no peso de sua dor, a dor de todos. O outro, velhinho, vive até hoje num lugar muito longe e frio. Coitados. E ainda têm que aguentar os teus pedidos. Esses desejos que vocês carregam, arrastam, alimentam. Vejam só:

Carregar - Ato de levar ou conduzir uma carga. Tornar sombrio, triste. Tornar mais intenso, mais forte. Exercer pressão sobre.
Arrastar - Ato de levar à força. Mover com dificuldade. Rastejar. Falar morosamente. Atrair, trazer atrás de si.
Alimentar - Dar alimento a. Nutrir, sustentar, conservar. Incitar, incrementar. Manter, prover.

Então o homem carregou os presentes até em casa, a mulher deixou mais forte o tempero da comida, o avô moveu com dificuldade a própria perna, a avó alimentou as crianças, e a menina comeu tudo, nutrindo a expectativa de enfim, naquele dia, ganhar um presente impossível porque era Natal.

Então o avô conseguiu sustentar com o próprio corpo o peso dos anos, a mulher falou morosamente com o marido, o homem exerceu pressão sobre a esposa, trazendo-a atrás de si até o quarto, a avó rastejou a história mais comprida para as crianças, e o menino deu alimento a cada palavra, achando que naquele dia tudo em casa estava mais calmo e bonito porque era Natal.

Então a menina sustentou que Papai Noel não existia, o menino incrementou achando que aquela barba de algodão era mesmo patética e ridícula, o avô tornou-se sombrio porque perguntava e ninguém respondia, a avó incitou a filha a cuidar dos filhos e da cozinha, a mulher entristeceu, pois ela e o marido às vezes não se entendiam, o homem carregou o medo de perder tudo aquilo que nem tinha tanta certeza assim de que tinha, e todos prometeram evitar discussões naquele dia porque era Natal.

A pele brilhava. Perfeita. Se a levantasse apenas um pouquinho, encontraria a carne branca e macia. Igualmente perfeita. Nesse momento, a boca certamente já estaria transbordando de água. Água de fome e vontade. Uma faca grande e bem afiada faria o corte preciso. Com muita calma, penetraria nela o garfo de enormes dentes e a deitaria languidamente no prato. Ao seu lado, para breve companhia, um pouco de arroz, farofa e maionese. Pronto, perfeito. Agora, a boca aberta já estaria à espera, assim como todas as glândulas e todos os dentes. Se houver sorte e dinheiro, 32 inteiros ou consertados. Mas, antes, outro corte. Menor, mais delicado, mais sensível. Enfim, o garfo, o pequeno, espetaria a sua pressa na carne. E a boca ávida, como em nenhum outro dia, engoliria tudo. Ao seu lado, em silêncio, a sua mulher fazia o mesmo. Ao lado dela, fazia o mesmo a sua filha. E o filho. Na outra ponta, o seu pai, mãe, e pai e mãe dela. Na casa vizinha, dava para ouvir o mesmo. E o mesmo, o mesmo. Alguém riu, todos riram. Alguém disse Feliz Natal, todos repetiram. Alguém estendeu um presente, todos estenderam. Alguém anunciou que ia dormir, dormiram. E o céu deste mundo brilhava, sem reluzir nenhuma estrela.
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Sobre a Autora

Claudia Lage é carioca, se formou em Literatura e dedicou muito tempo ao teatro, como autora e atriz. Mas sua verdadeira vocação se manifestou repentinamente, num domingo, quando em apenas um dia ela escreveu o conto A hora do galo que ganhou o concurso Stanislaw Ponte Preta de contos, da Rio Arte, em 1996. Este e outros doze contos formam seu livro de estreia, que publicou em 2000, pela Editora Record – A pequena morte e outras naturezas.

Claudia também tem contos em algumas antologias:
- Recontando Machado (Editora Record)
- 25 mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira (Editora Record), organizado por Luiz Ruffato
- Todos os sentidos – contos eróticos de mulheres (CL Edições Autorais), organizado por Cyana Leahy
- Ficções Fraternas (Editora Record), organizado por Livia Garcia-Roza

Em 2009, a autora se lança como romancista, trabalhando ficcionalmente a biografia de Eufrásia Teixeira Leite, com o livro Mundos de Eufrásia.

Claudia Lage mantém o blog A pequena morte e é colunista do Jornal Rascunho.


Fontes:
http://www.paralerepensar.com.br/
http://sobrecapa.wordpress.com/autores/claudia-lage/
Imagem = http://oescunchador.wordpress.com/