quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Fabio Wentraub em Xeque



Fabio Weintraub nasceu em 1967, em São Paulo. Além de poeta, é editor, produtor cultural e psicólogo. Seu recente livro de poemas "Novo endereço" (Nankin, 2002) recebeu o prêmio Cidade de Juiz de Fora, promovido pela Fundação Cultural Alfredo Ferreira (FUNALFA). É um dos fundadores do grupo Cálamo, que desde 1990 se reúne para discutir, estudar e produzir poesia. Nesta entrevista exclusiva, Fabio fala de sua intenção em realizar um trabalho poético que contenha um lirismo civil, voltado para os dilemas da pólis, e de sua opinião sobre a crítica literária, entre outros assuntos. Abrindo a subjetividade para a crise da realidade urbana contemporânea, Fabio experimenta as cenas e situações das ruas como quem vive um exílio doloroso. Também é autor de "Toda mudez será conquistada" (1992) e "Sistema de erros" (1996). Colabora regularmente com a revista Cult e integra a comissão executiva da revista Rodapé.

WEBLIVROS: Alardeia-se que o discurso da poesia vive um momento de crise, mais especificamente que o discurso lírico estaria condenado à extinção, não apenas pelo choque do século das vanguardas, mas também pelo contexto multimidiático e massificante em que vivemos, que tende justamente para a despersonalização. No entanto, seus poemas são insistentemente líricos, incorporando de modo intenso os estilhaços desse cenário triste e desencantado. A retomada do lirismo, nesse momento, seria uma atitude ousada, mais que um retrocesso? E que proposta de lirismo é essa?

FABIO WEINTRAUB: Penso que é preciso desconfiar um pouco desse alarde sobre a crise da expressão lírica, "ameaçada de extinção" nas condições históricas contemporâneas. Juízos apocalípticos - da mesma forma que os surtos maníacos de otimismo - são o que não falta: basta um pouco de memória e encontraremos desmentidos sucessivos para tão fatais profecias.

Além disso, é bom também lembrar que a exaltação da individualidade e da natureza, que está no cerne da expressão lírica, costuma ser justamente uma forma de reação contra fraturas sociais que colocam em xeque os processos de individuação.

O que você identifica no meu trabalho como uma "retomada do lirismo" parece-me, salvo engano, corresponder a um movimento mais coletivo de alargamento do nosso horizonte expressional pela relativização (quebra de hegemonia) do discurso racional-construtivista herdado de João Cabral e das vanguardas dos anos 50-60. Tal discurso dominou, para o bem e para o mal, a cena poética contemporânea até, digamos, o fim da década de 80. Em nome do rigor e do experimentalismo, catequizaram-nos dentro de uma ideologia da competência artesanal que desqualificava como frouxas, verborrágicas, sem "domínio da linguagem" as poéticas afeitas à expansão da subjetividade. O preço pago pela conquista da exatidão foi, no pior dos casos, uma poesia ascética, desfibrada.

É claro que o fundo autoritário dos slogans de vanguarda ainda subsiste, a julgar pela fé arrogante de alguns epígonos e pelo recurso reiterado às excomunhões. Porém, de uma maneira geral, vivemos um momento de distensão de que dá testemunho a diversidade de procedimentos, temas e preocupações presentes entre os poetas deste começo de século.

No que se refere mais especificamente ao tipo de lirismo por mim "proposto" (a palavra é ruim, pois a intencionalidade em questão não é de tipo programático), sirvo-me desavergonhadamente do que disse a poeta e crítica Priscila Figueiredo na apresentação ao meu mais recente livro, Novo endereço. Ali, ela faz ver de que maneira a intensidade lírica associa-se à reflexão social sob o signo do fracasso, isto é, a subjetividade enlaça a vida popular, abre portas e janelas ao vento do espaço público nutrida pelo "forte sentimento de exclusão e desagregação".

Ver exatamente como ocorre essa associação em cada poema demandaria um tempo de que não dispomos. De qualquer modo, como já declarei em outra ocasião, meu lirismo, que não é só meu, tem ambição civil: busco uma poesia cada vez mais transitiva, porosa às contradições do processo de modernização conservadora tal como se deu no Brasil. Trata-se de um caminho, ao que tudo indica, palmilhado por muitos neste momento. E não me refiro apenas a poetas, mas também a uma certa vertente da nossa prosa de ficção dedicada ao retrato mais brutal das nossas mazelas, por meio de uma escrita muito rente à realidade, aos efeitos da violência globalitária (autores como Marçal Aquino, Fernando Bonassi. Marcelo Mirisola, entre outros). O risco aqui prende-se ao hipermimetismo (Bosi), isto é, a um tipo de figuração que é mais reflexo que reflexão, que imita sem compreender, ou seja, sem a "distância" necessária para a inteligência dos conflitos subjacentes à matéria retratada. Na distância entre a forma conciliada e a realidade não-conciliada, reside o potencial crítico da arte, que é mimese e contradição a um só tempo (Adorno).

Mas tal risco, que talvez apareça com mais nitidez na prosa, também vale para esta poesia em que os espaços público e privado da vida contemporânea se tocam e interpenetram. O risco de concessão superficial ao pitoresco, ou de subestimação dos conflitos - por ímpeto estetizador, pieguismo populista, engessamento de perspectiva, formalização precária - é enorme. Chico Alvim, por exemplo, é um poeta que enfrenta esse risco com maestria porque se abre à fala alheia com uma "simpatia" que não apaga as divisões sociais. Isto é possível graças ao apuro formal, à combinatória de perspectivas, ao minimalismo das elipses de Alvim que, seguindo de certa forma a lição concretista (cabralina, oswaldiana...), lhe deu lastro histórico (Schwarz).

No entanto, outras soluções são possíveis (e necessárias).

WEBLIVROS: Seu novo livro traz algumas vertentes marcantes: há poemas nitidamente autobiográficos; outros que fazem uma apreensão crítica de cenas urbanas; e uma terceira, em que predominam os poemas com forte transfiguração imagética, muito próximos de uma dicção surrealista. Trata-se de caminhos explícitos de sua poética hoje, ou não existe um planejamento em seu trabalho?

FW: É difícil falar em "planejamento" na medida em que as forças em jogo em qualquer trabalho artístico (pulsões infantis, modelos de desempenho formal, variáveis ideológicas etc) sempre operam para muito além dos limites estreitos da consciência.

Quanto às três vertentes que você identifica no livro, aceito a classificação com alguma reserva, mas explico o porquê. Muitos dos poemas que você chama de "nitidamente biográficos" (poemas como "Mãe", "Pombos" e "Pai") são construídos a partir de uma "apreensão crítica de cenas urbanas" (a cidade entendida não apenas como cenário, mas como campo de relação, foco de um certo tipo de sociabilidade).

Igualmente, no grupo de poemas com dicção mais "surrealista", entram alguns elementos biográficos/domésticos bem como o sentimento de exílio, gerado a partir de uma relação agônica com a cidade.

Esse sentimento de perda do "direito à cidade" se impõe de várias maneiras, já desde a epígrafe, extraída do livro A gravidade e a graça, de Simone Weil. Weil nos ensina que entre uma cidade regida por mecanismos de exclusão social e uma cidade totalmente destruída há pouca diferença, pois é difícil sustentar no pensamento a existência autônoma e independente do que não nos pertence. Nesse sentido, uma cidade como Jenin - Ariel Sharon certamente nunca leu nem sequer uma linha de Simone Weil - pode não estar muito longe de São Paulo, ainda que a violência aqui assuma uma forma talvez menos ostensiva e indignante.

Veja que a imagem do exílio retorna na hipógrafe de Martin Buber (como Simone Weil, um autor judeu da primeira metade do século passado), ligando o livro, quem sabe, ao velho tema do judeu errante.

A internação descrita no poema "Mãe" também pode ser lida como a repetição da mesma perda, assim como o poema "Óvni" e todos os poemas com referências ao pé moído na errância pela cidade inviável ("Calcanhar de Vênus", "Tigre", "Montepio", "Pai").

Assim, penso que as diferentes vertentes mencionadas por você se articulam a partir desse núcleo comum.

WEBLIVROS: "Novo endereço" representa uma continuidade em relação a seus livros anteriores - "Todo mudez será conquistada" e "Sistema de erros" - ou você acredita que houve uma ruptura? Como você o relaciona com seus trabalhos anteriores, incluindo as experiências com o grupo Cálamo?

FW: Para mim há uma ruptura muito clara, uma mudança de projeto. Em relação aos livros anteriores houve um rebaixamento considerável no tom, o abandono de certo preciosismo vocabular, de certos jogos imagéticos, de certa dedicação à metalinguagem. Novo endereço é um livro mais machucado, nutrido pela linguagem coloquial e repleto de vários poemas com teor fortemente narrativo.

Mas é também evidente que, se você for pesquisar, encontrará algo nos livros anteriores que de alguma forma prenunciava o que pude alcançar agora, bem como, no livro atual, resíduos de obsessões anteriores. Em Sistema de Erros, por exemplo, um poema como "A rosa púrpura do Cairo", devido ao tom narrativo e à tematização da violência mutiladora contra a mulher, antecipa à sua maneira algumas questões de Novo Endereço. Já o poema "E vice-versa", de Novo endereço, retoma a vertente metalingüística em nova chave, o que só foi possível pela prevalência do erro sobre o sistema; da mobilidade do que é precário sobre a necessidade de organização.

WEBLIVROS: Percebe-se um diálogo cerrado com Manuel Bandeira, crítico-criativo e não meramente reverencial, nos poemas de "Novo endereço", mais até que com Drummond, autores que você admira e estuda. Como você enfrenta suas angústias de influência e como tais angústias se refletem nos seus textos? Como você lida com a tradição?

FW: Influência, angústia, diálogo com a tradição, herança. Eis um terreno verdadeiramente minado, no qual a própria forma de designar possíveis filiações entre autores suscita uma série de problemas.

Vejamos. A lição presente em um texto como "Tradição e talento individual" escrito por Eliot em 1917, encontra-se hoje, ao menos entre os poetas minimamente informados, bastante difundida. A idéia de que devemos ter consciência "não apenas da caducidade do passado, mas de sua presença" (a insistência quanto ao fato de que a obra original não é aquela que volta as costas à tradição, mas a que incorporando-a, reordena o conjunto das obras existentes), tornou-se, por assim dizer, quase um consenso entre os escritores de senso. Poucos são os que, ainda hoje, sentem romanticamente o "borbulhar do gênio", supondo que farão uma obra-prima apenas com o que lhes vai na cachola, sem tomar nada de empréstimo a outrem.

O que há talvez de novo na consciência de débito com a tradição é a metamorfose da idéia de filiação numa espécie de grife ou selo de que os poetas se servem para se autolegitimar. Ou seja, dependendo da maneira como se insira, real ou imaginariamente, na tradição, o poeta alcançará maior ou menor elevação na bolsa de valores literários. Curiosamente, nesses casos, a "angústia de influência" (Bloom), a idéia de que sempre se escreve contra um texto-modelo que nos oprime, transforma-se em "euforia da influência", isto é, em meio para alcançar prestígio e exercer (mais que sofrer) influência.

Assim é comum ver poetas declarando-se herdeiros deste ou daquele autor conforme a conveniência. "Fulano é herdeiro de Drummond..." Mas herdeiro de que forma? De que parte do espólio?

Mesmo a idéia de "diálogo", que não possui a ressonância patrimonial de "herança", é problemática também. Primeiro, porque supõe reciprocidade entre os interlocutores, o que raramente ocorre. Em segundo lugar, porque designa situações muito diversas que vão desde a citação avulsa (a intertextualidade, o pastiche pós-moderno, o servilismo de estilo) até a discussão mais consistente de procedimentos e temas a partir de um conjunto de preocupações comuns.

Da mesma forma, não deixa de ser curioso que, no terreno da crítica, o exame das influências e filiações tenha sido, de certa forma, "inflacionado". Hoje em dia já não nos surpreendemos com resenhas que praticamente se limitam a mapear o campo de interlocução de um autor ou de uma obra, não se aventurando pela análise mais concreta dos poemas nem pela emissão de juízos valorativos.

Outro equívoco usual é incorrer numa concepção meio evolucionista de literatura, ligada à idéia de progressão linear, de certa continuidade entre autores.

Como se a literatura fosse uma corrida de revezamento em que um poeta passa o bastão a outro, que o levará mais longe. Em matéria de arte, situar as transformações em termos de "progresso" e "retrocesso" será mesmo proveitoso? (Octavio Paz: "Técnica y creación, útil y poema son realidades distintas. La técnica es procedimiento y vale en la medida en que es un procedimiento susceptible de aplicación repetida: sua valor dura hasta que surge un novo procedimiento. La técnica es repetición que se perfecciona o se degrada; es herencia y cambio: el fusil reemplaza al arco. La Eneida no substituye a la Odisea").

Bem, voltando ao livro, você tem razão, sim, ao rastrear sinais da humildade terna e do lirismo bandeiriano em Novo endereço, evidente sobretudo, penso eu, nos poemas de família. Mas acho que a melancolia e o gauchismo drummondiano também ecoam de modo muito nítido, assim como a poesia andarilha de Mário de Andrade (veja-se o topos do calcante pede, tão bem destacado na já citada apresentação de Priscila Figueiredo) e, em menor grau, a estrutura dramática à Chico Alvim (em poemas como "Barrabás" e "Por trás").

No entanto, uma coisa que faço sempre questão de lembrar é que, embora os escritores normalmente se sintam mais à vontade para falar de influências literárias, a literatura desempenha um papel limitado no campo de influências a que um poeta está submetido. Às vezes, a posição da janela do quarto em relação à luz, um quadro prolongado de doença na família, sapatos apertados, uma mudança efetiva de endereço desempenham um papel da maior importância na construção de uma obra.

WEBLIVROS: Em que medida uma experiência de pesquisa poética coletiva como a do grupo Cálamo pode contribuir não apenas para o amadurecimento poético dos participantes, mas também para uma reflexão mais ampla sobre a presença da poesia no cenário contemporâneo?

FW: A participação de um grupo de trabalho sistemático com poesia, como é o caso do Cálamo, certamente alimenta a reflexão de seus membros sobre a situação da poesia no mundo contemporâneo, as complexas relações entre literatura e processo social, o exame detido do perfil estilístico de determinado autor ou período etc. No entanto, faço questão de frisar duas coisas. O grupo, apesar de contar com algumas pessoas ligadas à universidade, não se dedica à pesquisa em sentido acadêmico. Trata-se de um grupo no qual a pesquisa serve para instigar os participantes no sentido da criação, ou para fornecer-lhes parâmetros a fim de melhor equacionar os problemas com que se deparam ao longo dessa prática criativa. De modo que o lucro teórico de nossas discussões carece da isenção necessária a um diagnóstico abrangente da "presença da poesia no mundo".

Outro ponto diz respeito ao caráter individual, pessoal e intransferível das "descobertas", pois não se trata de um grupo com plataforma ou atuação programática. Trata-se, mais simplesmente, de um espaço de troca e discussão no qual são desenvolvidos trabalhos de feição muito variada, sem unidade estilística ou ideológica.

WEBLIVROS: Não seria ingênuo, como muitos poetas parecem ainda fazer hoje, reivindicar para a poesia uma atenção igual ou maior que a dispensada para produtos culturais de entretenimento e de fácil consumo?

FW: Minha opinião quanto a isso costuma variar: em alguns poetas vejo ingenuidade, noutros, arrivismo, noutros ainda, uma combinação das duas coisas, tudo temperado por doses cavalares de ressentimento.

Com o desenvolvimento dos meios de comunicação de massa e da indústria do entretenimento, a literatura foi empurrada para uma posição bastante marginal em nossas vidas, desempenhando um papel muito menos relevante na formação da sensibilidade contemporânea. Esse processo é, ao que tudo indica, irreversível: uma leitura pública de poesia jamais contará com um público do mesmo tamanho do que encontramos nas salas de cinema ou num espetáculo de rock.

Muitos dirão que conformar-se com tal situação é adotar uma postura elitista e impedir a formação de leitores de poesia (o que, por seu turno, agrava a situação dos poetas, sem editoras que os publiquem e jornais que divulguem seu trabalho). Seguindo tal linha de raciocínio, entra-se num círculo vicioso: já que poesia não vende, não se investe na circulação (publicação, divulgação, distribuição) dos textos, fazendo com que o público leitor se reduza e o mercado se retraia.

Acho que não é o caso de verificar aqui a validade do argumento, nem de apurar quem são os verdadeiros responsáveis pela situação acima descrita (falar, por exemplo, das políticas públicas com baixíssimo investimento em educação; do despreparo da imprensa; do conservadorismo das editoras etc).

Mas não deixa de ser engraçado, nos poetas que reclamam da pouca visibilidade midiática, a ilusão de que a eventual conquista de mais visibilidade não afetará a "liberdade" de que gozam como "outsiders". Querem ser, ao mesmo tempo, apocalípticos e integrados, para lembrar a feliz expressão de Umberto Eco.

WEBLIVROS: Tornou-se lugar-comum ouvir escritores brasileiros reclamarem da crítica, tanto a acadêmica quanto a jornalística, tidas como conservadora e elitista, a primeira, e superficial e tendenciosa, a segunda. Você edita uma revista dedicada exclusivamente à crítica literária - a Rodapé - cujos autores, em sua maioria, estão ligados ao universo acadêmico. Há mesmo um hiato entre criadores e crítica? Não haveria também uma certa indisposição dos escritores para com a crítica? Como uma revista nos moldes da Rodapé pode interferir nesse processo?

FW: O hiato realmente existe e deveria ser motivo de apreensão, uma vez que "toda crítica que se preza tem a ambição de estar à altura do que lhe é rigorosamente contemporâneo, o que é uma forma de estar à altura do que sucede às nossas vidas" (trecho da enquete com o prof. José Antonio Pasta Jr., parte integrante do próximo número da revista Rodapé).

Mas, com toda sinceridade, acho que, se tal ambição não puder ser satisfeita dentro da universidade, dificilmente o será fora dela. As resenhas de jornal se aproximam cada vez mais dos releases (os jornalistas desempenhando o mero papel de "relações públicas" das editoras), pois o compromisso da imprensa é de outra ordem, não pretende propriamente estar "à altura da vida". Até porque o ritmo de produção que nela vigora impede o estudo contínuo e a aprendizagem renovada, bem como as análises minuciosas, com maior fôlego interpretativo, necessárias para dar conta daquilo que nos é "rigorosamente contemporâneo".

Aos escritores, em contrapartida, falta muita vez isenção para avaliar o trabalho dos pares sem sucumbir ao coorporativismo, ao proselitismo ou ao polemismo estéril. Para não falar da militância anti-intelectual dos que atacam a universidade e pontificam sobre o pretenso conservadorismo da crítica acadêmica sem de fato conhecer (ou conhecendo muito pouco) o que se faz hoje sob essa chancela.

De modo geral, queixam-se os autores novos da instrumentalia inadequada com que os críticos recebem o vinho novo por eles preparado. Os críticos, por seu turno, tacham como inautêntica a novidade, questionam a procedência das uvas e se eximem de limpar o limo das barricas. Considerando a caturrice das partes, o tal vinho, velho ou novo, se converterá no vinagre com que compensaremos a falta de sal do debate.

Uma revista como a Rodapé quer interferir nesse processo, entre outras coisas, mapeando, de modo extensivo, sistemático, a produção literária contemporânea (poesia, prosa de ficção, dramaturgia), entendendo por contemporâneo "um tempo um pouco mais largo que o da indústria cultural"; conforme se lê na apresentação ao primeiro número da revista.

WEBLIVROS: Além de poeta, você também é editor de livros do selo Janela do Caos, da editora Nankin. Qual o prazer de editar poesia, esse projeto editorial inviável economicamente?

FW: O prazer de editar poesia, que você também tem, capitaneando a Weblivros, é correlato ao prazer de ler. Levar adiante a palavra alheia é, de alguma forma, estender e renovar a alegria que tivemos anteriormente, no confronto solitário com o texto.

Além disso, todas as decisões sobre a materialização física do trabalho de outros poetas (a concepção da capa, a escolha do papel, da tipologia, o objeto gráfico como fetiche) costumam ser estimulantes e exigem do editor a capacidade de conciliar (o que nem sempre é fácil), o desejo (às vezes capricho) do autor com o conhecimento das condições objetivas de produção e circulação do livro.

O contato com os autores - que, em muitos casos, tornam-se grandes amigos - também ajuda muitas vezes a iluminar a obra de que nos acercamos, não tanto pelo que eles nos dizem diretamente, mas pelo que observamos em sua maneira de agir: propondo uma diagramação diferente, sugerindo uma imagem para a capa ou comentando o texto escrito para a orelha.

A despeito da "inviabilidade econômica" do gênero, é um trabalho gostoso, viciante. Se pudesse, me dedicaria exclusivamente a isso. Faria passar pela "Janela do caos" - essa pequena fresta, fenda (atente para o logotipo, inspirado nos "rasgos" de Lucio Fontana) - todo o vento da poesia brasileira contemporânea.

Fonte:
Entrevista Por Reynaldo Damazio, para Weblivros. Disponível em http://www.weblivros.com.br/entrevista/fabio-wentraub-7.html

Machado de Assis (Casa, não casa)


Se alguma das minhas leitoras morasse na Rua de S.Pedro da cidade nova, há cousa de quinze anos, e estivesse à janela na noite de 16 de março, entre uma e duas horas, teria ocasião de presenciar um caso extraordinário.

Morava ali, entre a Rua Formosa e a Rua das Flores, uma moça de vinte e dous anos, bonita como todas as heroínas de romances e contos, a qual moça na sobredita noite de 16 de março, entre uma e duas horas, levantou-se da cama e a passo lento foi até à sala com uma luz na mão.

Não estando as janelas fechadas, a leitora, caso morasse defronte, veria a nossa heroína pousar a vela sobre um aparador, abrir um álbum, tirar um retrato, que não saberia se era de homem ou de mulher, mas que eu lhe afirmo ser de mulher.

Tirado o retrato do álbum, pegou a moça na vela, desceu a escada, abriu a porta da rua e saiu. A leitora ficaria naturalmente assombrada com tudo isto; mas que não diria quando a visse seguir pela rua acima, voltar a das Flores, ir até à do Conde, e parar à porta de uma casa? Justamente à janela dessa casa estava um homem, rapaz ainda, vinte e sete anos, olhando para as estrelas e fumando um charuto.

A moça parou.

O moço espantou-se do caso, e vendo que ela parecia querer entrar, desceu a escada, com uma vela acesa e abriu a porta.

A moça entrou.

— Isabel! exclamou o rapaz deixando cair a vela no chão.

Ficaram às escuras no corredor. Felizmente trazia o moço fósforos na algibeira, acendeu outra vez a vela e fitou os olhos na recém-chegada.

Isabel (tal era o seu verdadeiro nome) estendeu o retrato ao rapaz, sem dizer palavra, com os olhos fitos no ar.

O rapaz não pegou logo no retrato.

— Isabel! exclamou ele outra vez mas já com a voz sumida. A moça deixou cair o retrato no chão, voltou as costas e saiu. O dono da casa ainda mais aterrado ficou.
— Que é isto? dizia ele; estará louca? Pôs a vela sobre um degrau da escada, saiu à rua, fechou a porta e seguiu lentamente atrás de Isabel, que foi pelo mesmo caminho até entrar em casa.

O mancebo respirou quando viu Isabel entrar na casa; mas ficou ali alguns instantes, a olhar para a porta, sem nada compreender e ansioso por que chegasse o dia. Todavia era forçoso voltar para a Rua do Conde; lançou um último olhar às janelas da casa e retirou-se.

Ao entrar em casa apanhou o retrato.

— Luísa! disse ele.

Esfregou os olhos como se duvidasse do que via, e ficou parado na escada a olhar largos minutos para o retrato.

Era preciso subir.

Subiu.

— Que quererá isto dizer? disse ele já em voz alta como se falasse a alguém. Que audácia foi essa de Isabel? Como é que uma moça, filha de família, sai assim de noite para... Mas estarei eu sonhando? Examinou o retrato, e viu que tinha nas costas as seguintes linhas: À minha querida amiga Isabel, como lembrança de eterna amizade.

LUÍSA.

Júlio (era o nome do rapaz) não pôde descobrir nada por mais que parafusasse, e parafusou muito tempo, já deitado no sofá da sala, já encostado à janela.

E na verdade quem seria capaz de descobrir o mistério daquela visita a semelhante hora? Tudo parecia antes uma cena de drama ou romance tétrico, do que um ato natural da vida.

O retrato... O retrato tinha certa explicação. Júlio andava quinze dias antes a trocar cartas com o original, a formosa Luísa, moradora no Rocio Pequeno, hoje Praça Onze de Junho.

Todavia, por mais agradável que lhe fosse receber o retrato de Luísa, como admitir a maneira por que lho levaram, e a pessoa, e a hora, e as circunstâncias? — Sonho ou estou doudo! concluiu Júlio depois de longo tempo.

E chegando à janela, acendeu outro charuto.

Nova surpresa o esperava.

Vejamos qual foi ela.

CAPÍTULO II

Não havia fumado ainda uma terça parte do charuto, quando viu dobrar a esquina um vulto de mulher, caminhando lentamente, e parar à porta da casa dele.

— Outra vez! exclamou Júlio. Quis descer logo; mas as pernas começavam a tremer-lhe. Júlio não era tipo de extrema valentia; creio até que se lhe chamarmos medroso não estaremos longe da verdade.

O vulto, entretanto, estava à porta; era forçoso tirá-lo dali, a fim de evitar um escândalo.

"Desta vez, pensou ele pegando na vela, hei de interrogá-la; não a deixo sair sem me dizer o que há. Infeliz. Parece-me que está douda!" Desceu; abriu a porta.

— Luísa! exclamou.

A moça estendeu-lhe um retrato; Júlio pegou nele com ânsia e murmurou consigo: "Isabel!" Era efetivamente o retrato da primeira moça que a segunda lhe trazia.

Não será preciso dizer ou repetir que Júlio namorava também a Isabel, e a leitora compreende facilmente que, tendo ambas descoberto o segredo uma da outra, ambas foram mostrar ao namorado que estavam cientes da sua duplicidade.

Mas por que motivo tais cousas se davam assim revestidas de circunstâncias singulares e tenebrosas? Não era mais natural mandarem-lhe os retratos dentro de uma sobrecarta? Tais eram as reflexões que Júlio fazia, com o retrato numa das mãos e a vela na outra, enquanto já de volta entrava em casa.

Não será preciso dizer que o nosso Júlio não dormiu o resto da noite.

Chegou a ir à cama e a fechar os olhos; tinha o corpo moído e necessidade de sono; mas a imaginação velava, e a madrugada veio achá-lo acordado e aflito.

No dia seguinte foi visitar Isabel; achou-a triste; falou-lhe; mas quando quis dizer-lhe alguma cousa do sucesso, a moça afastou-se dele, talvez porque adivinhasse o que ia ele dizer-lhe, talvez porque já estivesse aborrecida de o ouvir.

Júlio foi a casa de Luísa, achou-a no mesmo estado, as mesmas circunstâncias se deram.

"É claro que descobriram o segredo uma da outra, dizia ele consigo. Não há remédio senão desfazer a má impressão de ambas. Mas como se me não querem ouvir? Ao mesmo tempo desejava explicação do ato atrevido que ontem praticaram, salvo se foi sonho meu, o que é bem possível. Ou então estarei doudo..." Antes de ir adiante, e não será longe porque a história é pequena, convém dizer que este Júlio não tinha paixão real por nenhuma das duas moças. Começou o namoro com Isabel por ocasião de uma ceia de Natal, e travou relações com a família que o recebera muito bem. Isabel correspondeu um pouco ao namoro de Júlio, sem todavia lhe dar grandes esperanças porque então andava também à corda de um oficial do exército que teve de embarcar para o Sul. Só depois que ele embarcou foi que Isabel de todo se voltou para Júlio.

Ora, o nosso Júlio já então lançara as suas baterias contra a outra fortaleza, a formosa Luísa, amiga de Isabel, e que desde princípio aceitou o namoro com ambas as mãos.

Nem por isso rejeitou a corda que lhe dava Isabel; manteve-se entre as duas sem saber qual delas devia preferir. O coração não tinha a este respeito opinião assentada. Júlio não amava, repito; era incapaz de amar... Seu fim era casar com uma moça bonita; ambas o eram, restavalhe saber qual delas lhe convinha mais.

As duas moças, como vimos pelos retratos, eram amigas, mas falavamse de longe em longe, sem que nessas poucas vezes houvessem comunicado os segredos atuais do seu coração. Ocorreria isso agora e seria essa a explicação da cena dos retratos? Júlio pensou efetivamente que elas haviam enfim comunicado o seu namoro com ele; mas custavalhe a crer que tão atrevidas fossem ambas, que saíssem da casa naquela singular noite. À proporção que o tempo se passava, Júlio inclinava-se a crer que o fato não passasse de uma ilusão sua.

Júlio escreveu uma carta a cada uma das duas moças, quase do mesmo teor, pedindo a explicação da frieza que ambas ultimamente lhe mostravam. Cada uma das cartas terminava perguntando "se era tão cruelmente que se devia pagar um amor único e delirante".

Não teve resposta imediatamente como esperava, mas dous dias depois, não do mesmo teor, mas no mesmo sentido.

Ambas lhe diziam que pusesse a mão na consciência.

"Não há dúvida, pensou ele consigo, estou pilhado. Como sairei eu desta situação?" Júlio resolveu atacar verbalmente as duas fortalezas.

— Isto de cartas não é bom recurso para mim, disse ele; encaremos o inimigo; é mais seguro.

Escolheu Isabel em primeiro lugar. Haviam já passado seis ou sete dias depois da cena noturna. Júlio preparou-se mentalmente com todas as armas necessárias ao ataque e à defesa e dirigiu-se para casa de Isabel, que era como sabemos na Rua de S. Pedro.

Foi-lhe difícil achar-se a sós com a moça; porque a moça que das outras vezes era a primeira a buscar ocasião de lhe falar, agora esquivava-se a isso. O rapaz entretanto era teimoso; tanto fez que pôde pilhá-la numa janela, e ali ex abrupto disparou-lhe esta pergunta: — Não me dará a explicação dos seus modos de hoje e da carta com que respondeu à minha última? Isabel calou-se.

Júlio repetiu a pergunta, mas já com um tom que exigia resposta imediata. Isabel fez um gesto de aborrecimento e disse: — Respondo o que lhe disse na carta; ponha a mão na consciência.

— Mas que fiz eu então? Isabel sorriu-se com um ar de lástima.
— O que fez? perguntou ela.
— Sim, o que fiz? — Deveras, ignora? — Quer que lhe jure? — Queria ver isto...
— Isabel, essas palavras!...
— São dum coração ofendido, interrompeu a moça com amargura. O senhor ama a outra.
— Eu?...

Aqui desisto de descrever o gesto de espanto de Júlio; a pena nunca o poderia fazer, nem talvez o pincel. Era o agente mais natural, mais aparentemente espontâneo que ainda se viu neste mundo, a tal ponto que a moça vacilou, e atenuou as suas primeiras palavras com estas: — Pelo menos, parece...

— Mas como? — Vi-o olhar com certo ar para a Luísa, quando outro dia ela aqui esteve...
— Nego.
— Nega? Pois bem; mas negará também que, vendo o retrato dela, no meu álbum, me disse: É tão bonita esta moça! — Pode ser que o dissesse; creio até que o disse... há cousa de oito dias; mas que prova isso? — Não sei se prova muito, mas em todo o caso foi bastante para fazer doer a um coração amante.
— Acredito, observou Júlio; seria porém bastante para o audacioso passo que deu? — Que passo? perguntou Isabel abrindo muito os olhos.

Júlio ia explicar as suas palavras, quando um primo de Isabel se aproximou do grupo e a conversa ficou interrompida.

Não foi porém sem algum resultado o pouco tempo em que falaram, porque, ao despedir-se Júlio no fim da noite, Isabel apertou-lhe a mão com certa força, indício certo de que as pazes estavam feitas.

— Agora a outra, disse ele saindo da casa de Isabel.

CAPÍTULO III

Luísa estava ainda como Isabel, fria e reservada para com ele. Parece, entretanto, que suspirava por lhe falar, foi ela a primeira que procurou uma ocasião de ficar a sós com ele.

— Já estará menos cruel comigo? perguntou Júlio.
— Oh! não.
— Mas que lhe fiz eu? — Pensa então que eu sou cega? perguntou-lhe Luísa com olhos indignados; pensa que eu não vejo as cousas? — Mas que cousas? — O senhor anda de namoro com a Isabel.
— Oh! que idéia! — Original, não é? — Originalíssima! Como descobriu semelhante cousa? Conheço aquela moça há muito tempo, temos intimidade, mas não a namoro nem tal idéia tive, nunca na minha vida.
— É por isso que lhe deita uns olhos tão ternos?...

Júlio levantou os ombros com um ar tão desdenhoso que a moça acreditou logo nele. Não deixou de lhe dizer, como a outra lhe dissera: — Mas para que olhou outro dia com tanta admiração para o retrato dela, dizendo até com um suspiro: Que moça gentil! — É verdade isso, menos o suspiro, respondeu Júlio; mas onde está o mal em achar uma moça bonita, se nenhuma me parece mais bonita que você, e sobretudo nenhuma é capaz de me prender como você? Júlio disse ainda muito mais por este teor velho e gasto, mas de efeito certo; a moça estendeu-lhe a mão dizendo:

— Então era engano meu? — Oh! meu anjo! engano profundo! — Está perdoado... com uma condição.
— Qual? — É que não há de cair em outra.
— Mas se eu não caí nesta! — Jure sempre.
— Pois juro... com uma condição.
— Diga.
— Por que razão não tendo plena certeza de que eu amava a outra (e se a tivesse não me falava mais decerto), por que razão, pergunto eu, foi você naquela noite...
— O chá está na mesa; vamos tomar chá! disse a mãe de Luísa aproximando-se do grupo.

Era forçoso obedecer; e nessa noite não houve mais ocasião de explicar o caso.

Nem por isso Júlio saiu menos contente da casa de Luísa.

"Estão ambas vencidas e convencidas, disse ele consigo; agora é preciso escolher e acabar com isto." Aqui é que estava a dificuldade. Já sabemos que ambas eram igualmente belas, e Júlio não procurava outra condição. Não era fácil escolher entre duas criaturas igualmente dispostas para ele.

Nenhuma delas tinha dinheiro, condição que podia fazer pender a balança posto que Júlio fosse indiferente nesse ponto. Tanto Luísa como Isabel eram filhas de funcionários públicos que apenas lhes deixavam um escasso montepio. Sem uma forte razão que fizesse pender a balança, era difícil a escolha naquela situação.

Alguma leitora dirá que por isso mesmo que eram de igual condição e que ele as não amava de coração, era fácil a escolha. Bastava-lhe fechar os olhos e agarrar a primeira que lhe ficasse à mão.

Erro manifesto.

Júlio podia e era capaz de fazer isso. Mas no mesmo instante que escolhesse Isabel ficava com pena de não ter escolhido Luísa, e viceversa, donde se vê que a situação era para ele intricada.

Mais de uma vez levantou-se ele da cama com a resolução assentada: — Vou pedir a mão da Luísa.

A resolução durava-lhe só até o almoço. Acabado o almoço, ia ver (pela última vez) Isabel e logo afrouxava com pena de a perder.

"Há de ser esta!" pensava ele.

E logo lembrava-se de Luísa e não escolhia nem uma nem outra.

Tal era a situação do nosso Júlio, quando se deu a cena que passo a referir no capítulo seguinte.

CAPÍTULO IV

Três dias depois da conversa de Júlio com Luísa, foi esta passar o dia em casa de Isabel, acompanhada de sua mãe.

A mãe de Luísa era de opinião que a filha era o seu retrato vivo, cousa que ninguém acreditava por mais que ela o repetisse. A mãe de Isabel não ousava ir tão longe mas afirmava que, no tempo de sua mocidade, fora ela muito parecida com Isabel. Esta opinião era recebida com incredulidade pelos rapazes e com resistência pelos velhos. Até o major Soares, que fora o primeiro namorado da mãe de Isabel, insinuava que essa opinião devia ser recebida com extrema reserva.

Oxalá porém fossem as duas moças como suas mães eram, dous corações de pomba, que amavam estremecidamente as filhas, e que eram com justiça dous tipos de austeridade conjugal.

As duas velhas entregaram-se às suas conversas e considerações sobre arranjos de casa ou assuntos de pessoas conhecidas, enquanto as duas moças tratavam de modas, músicas, e um pouco de amores.

— Então o teu tenente não volta do Sul? disse Luísa.
— Eu sei! Parece que não.
— Tens saudades dele? — E terá ele saudades de mim? — Isso é verdade. Todos esses homens são assim, disse Luísa com convicção; muita festa quando se acham presentes, mas ausentes são temíveis... valem tanto como o nome que se escreve na areia: vem a água e lambe tudo.
— Bravo, Luísa! Estás poeta! exclamou Isabel. Já falas em areias do mar! — Pois olha, não namoro nenhum poeta nem homem do mar.
— Quem sabe? — Sei eu.
— É então?...
— Um rapaz que tu conheces! — Já sei, é o Avelar.
— Deus nos acuda! exclamou Luísa. Um homem vesgo.
— O Rocha? — O Rocha anda todo caído pela Josefina.
— Sim? — É uma lástima.
— Nasceram um para o outro.
— Sim, ela é uma moleirona como ele.

As duas moças gastaram assim algum tempo a tasquinhar na pele de pessoas que nós não conhecemos nem precisamos disso, até que voltaram ao assunto capital da conversa.

— Já vejo que não pode adivinhar quem é o meu namorado, disse Luísa.
— Nem você o meu, observou Isabel.
— Bravo! então o tenente...
— O tenente está pagando. É muito natural que as rio-grandenses o tenham encantado. Pois agüente-se...

Enquanto Isabel dizia estas palavras, Luísa ia folheando o álbum de retratos que estava sobre a mesa. Chegando à folha onde sempre vira o seu retrato, a moça estremeceu. Isabel notou-lhe o movimento.

— Que é? disse ela.
— Nada, respondeu Luísa fechando o álbum. Tiraste o meu retrato daqui? — Ah! exclamou Isabel, isso é uma história singular. O retrato foi passar às mãos de terceira pessoa, a qual afirma que fui eu que lho levei alta noite... Ainda não pude descobrir esse mistério... Luísa já ouviu de pé estas palavras. Seus olhos, muito abertos, fitaram-se no rosto da amiga.

— Que é? disse esta.
— Sabes bem o que estás dizendo? — Eu? — Mas isso foi o que me aconteceu também com o teu retrato...

Naturalmente era zombaria comigo e contigo... Essa pessoa...

— Foi o Júlio Simões, o meu namorado...

Aqui devia eu pôr uma linha de pontos para significar o que se não pode pintar, o espanto das duas amigas, as diferentes expressões que tomou a fisionomia de cada uma delas. Não tardaram as explicações; as duas rivais reconheceram que o seu namorado comum era pouco mais ou menos um patife, e que o dever de honra e de coração era tomar dele uma vingança.

— A prova de que ele nos enganava uma à outra, observava Isabel, é que os nossos retratos apareceram lá e foi ele naturalmente quem os tirou.
— Sim, respondeu Luísa, mas é certo que eu sonhei alguma cousa que combina com a cena que ele alega.
— Também eu...
— Sim? Eu sonhei que me haviam falado do namoro dele com você, e que, tirando o retrato do álbum, fora levá-lo à casa dele.
— Não é possível! exclamou Isabel. O meu sonho foi quase assim, ao menos no final. Não me disseram que ele tinha namoro com você; mas eu mesma vi e então fui levar o retrato...

O espanto aqui foi ainda maior que da primeira vez. Nem estavam só espantadas as duas amigas; estavam aterradas. Embalde procuravam explicar a identidade do sonho, e mais que tudo a coincidência dele com a presença dos retratos em casa de Júlio e a narração que este fizera da noturna aventura.

Estavam assim nesta duvidosa e assustadora situação, quando as mães vieram em auxílio delas. As duas moças, estando à janela, ouviram-lhes dizer: — Pois é verdade, minha rica srª Anastácia, estou no mesmo caso da senhora. Creio que a minha filha é sonâmbula, como a sua.

— Tenho uma pena com isto! — E eu então! — Talvez casando-as...
— Sim, pode ser que banhos de igreja...

Informadas assim as duas moças da explicação do caso, ficaram um tanto abaladas; mas a idéia de Júlio e suas travessuras tomou logo o lugar que lhe competia na conversa das duas rivais.

— Que pelintra! exclamavam as duas moças. Que velhaco! que pérfido! O coro de maldições foi ainda mais longe. Mas tudo acaba neste mundo, principalmente um coro de maldições; o jantar interrompeu aquele; as duas moças foram de braço dado para a mesa e afogaram as suas mágoas num prato de sopa.

CAPÍTULO V

Júlio, sabendo da visita, não se atreveu a ir encontrar as duas moças juntas. No pé em que as cousas se achavam era impossível evitar que descobrissem tudo, pensava ele.

No dia seguinte porém foi de tarde à casa de Isabel, que o recebeu com muita alegria e ternura.

"Bom! pensou o namorado, nada contaram uma à outra." — Engana-se, disse Isabel adivinhando pela alegria do rosto dele qual era a reflexão que fazia. Pensa naturalmente que Luísa nada me disse? Disse-me tudo, e eu nada lhe ocultei...

— Mas...
— Não me queixo do senhor, continuou Isabel com indignação; queixome dela que devia ter percebido e percebeu o que entre nós havia, e apesar disso aceitou a sua corte.
— Aceitou, não; posso dizer que fui compelido.
— Sim? — Agora posso falar-lhe com franqueza; a sua amiga Luísa é uma namoradeira desenfreada. Eu sou rapaz; a vaidade, a idéia de passatempo, tudo isso me arrastou, não a namorá-la, porque eu era incapaz de esquecer a minha formosa Isabel; mas a perder algum tempo...
— Ingrato! — Oh! não! nunca, a boa Isabel! Aqui começou uma renovação de protestos da parte do namorado, que declarou amar mais que nunca a filha de D. Anastácia.

Para ele a cousa estava resolvida. Depois da explicação dada e dos termos em que falara da outra, a escolha natural era Isabel.

Sua idéia foi não procurar mais a outra. Não o pôde fazer à vista de um bilhete que no fim de três dias recebeu da moça. Pedia-lhe ela que fosse lá instantemente. Júlio foi. Luísa recebeu-o com um sorriso triste.

Quando puderam falar a sós: — Quero saber da sua boca o meu destino, disse ela. Estarei definitivamente condenada? — Condenada! — Sejamos francos, continuou a moça. Eu e a Isabel falamos no senhor; vim a saber que também a namorava. A sua consciência lhe dirá que praticou um ato indigno. Mas enfim, pode resgatá-lo com um ato de franqueza. A qual de nós escolhe, a mim ou a ela? A pergunta era de atrapalhar o pobre Júlio, nada menos que por duas grandes razões: a primeira era ter de responder em face; a segunda era ter de responder em face de uma moça bonita. Hesitou alguns largos minutos. Luísa insistiu; mas ele não se atrevia a romper o silêncio.

— Bem, disse ela, já sei que me despreza.
— Eu! — Não importa; adeus.

Ia a voltar as costas; Júlio segurou-lhe na mão.

— Oh! não! Pois não vê que este meu silêncio é de comoção e de confusão. Confunde-me realmente que descobrisse uma cousa em que eu pouca culpa tive. Namorei-a por passatempo; não foi Isabel nunca uma rival sua no meu coração. Demais, ela não lhe contou tudo; naturalmente escondeu a parte em que a culpa lhe cabia. E a culpa é também sua...
— Minha? — Sem dúvida. Pois não vê que ela tem interesse em separar-nos?... Se lhe referir, por exemplo, o que se está passando agora entre nós fique certa de que ela há de inventar alguma cousa para de todo separar-nos, contando depois com a sua beleza para cativar o meu coração, como se a beleza de uma Isabel pudesse fazer esquecer a beleza de uma Luísa.

Júlio ficou satisfeito com este pequeno discurso, assaz astuto para enganar a moça. Esta, depois de algum tempo de silêncio, estendeu-lhe a mão: — Jura-me o que está dizendo? — Juro.

— Então será meu? — Unicamente seu.

Assim celebrou Júlio os dous tratados de paz, ficando na mesma situação em que se achava anteriormente. Já sabemos que a sua fatal indecisão era a causa única da crise em que os acontecimentos o puseram. Era forçoso decidir alguma cousa; e a ocasião ofereceu-se-lhe propícia.

Perdeu-a, entretanto; e dado que quisesse casar, e queria, nunca estivera mais longe do casamento.

CAPÍTULO VI

Cerca de seis semanas foram assim correndo sem resultado algum prático.

Um dia, achando-se em conversa com um primo de Isabel, perguntou-lhe se teria gosto em vê-lo na família.

— Muito, respondeu Fernando (era assim o nome do primo).

Júlio não deu explicação da pergunta. Instado respondeu: — Fiz-lhe a pergunta por uma razão que saberá mais tarde.

— Quererá talvez casar com alguma das manas?...
— Não posso dizer nada por ora.
— Olha aqui, Teixeira, disse Fernando, a um terceiro rapaz, primo de Luísa, e que nessa ocasião se achava em casa de D. Anastácia.
— Que é? perguntou Júlio assustado.
— Nada, respondeu Fernando, vou comunicar ao Teixeira a notícia que o senhor me deu.
— Mas eu...
— É nosso amigo, posso ser franco. Teixeira, sabe o que me disse o Júlio? — Que foi? — Disse-me que vai ser meu parente.
— Casando com alguma irmã tua.
— Não sei; mas disse isso. Não te parece motivo de congratulação? — Sem dúvida, concordou Teixeira, é um perfeito cavalheiro.
— São obséquios, interveio Júlio; e se eu alguma vez alcançasse a fortuna de entrar...

Júlio interrompeu-se; lembrou-se que Teixeira podia ir contar tudo à prima Luísa, e fosse inibido de escolher entre ela e Isabel. Os dous quiseram saber o resto; mas Júlio preferiu convidá-los a jogar o solo, e não houve meio de arrancar-lhe palavra.

A situação porém devia acabar.

Era impossível continuar a vacilar entre as duas moças, que ambas lhe queriam muito, e a quem ele queria com perfeita igualdade não sabendo qual delas escolhesse.

"Sejamos homem, disse Júlio consigo. Vejamos: qual delas devo ir pedir? A Isabel. Mas a Luísa é tão bonita! Será a Luísa. Mas é tão formosa a Isabel! Que diabo! Por que razão não há de uma delas ter um olho furado? ou uma perna torta!" E depois de algum tempo: "Vamos, sr. Júlio, dou-lhe três dias para escolher. Não seja tolo. Decida com isto por uma vez." E enfim: "Verdade é que uma delas há de odiar-me. Mas paciência! fui eu mesmo que me meti nesta embrulhada; e o ódio de uma moça não pode doer muito. Avante!" No fim de dous dias ainda ele não tinha escolhido; recebeu porém uma carta de Fernando concebida nestes termos: Meu caro Júlio.

Participo-lhe que brevemente casarei com a prima Isabel; desde já o convido para a festa; se soubesse como estou contente! Venha cá para conversarmos.

Não é preciso dizer que Júlio foi às nuvens. O passo de Isabel simplificava muito a situação dele; todavia, não queria ser assim despedido como um tolo. Exprimiu a sua cólera por meio de alguns murros na mesa; Isabel, por isso mesmo que já não a podia possuir, parecia-lhe agora mais bonita que Luísa.

— Luísa! Pois será Luísa! exclamou ele. Essa sempre me pareceu muito mais sincera que a outra. Até chorou, creio eu, no dia da reconciliação.

Saiu nessa mesma tarde para ir visitar Luísa; no dia seguinte iria pedi-la.

Em casa dela foi recebido como sempre. Teixeira foi o primeiro a dar-lhe um abraço.

— Sabe, disse o primo de Luísa apontando para a moça, sabe que vai ser a minha noiva? Não me atrevo a dizer o que se passou na alma de Júlio; basta dizer que jurou não casar, e que morreu há pouco casado e com cinco filhos.

Fontes:
http://www.dominiopublico.gov.br
Imagem = criação de Mel Gama

Ronaldo Correia de Brito (Entre o Jornalismo e a Academia)



Um editor famoso afirmou que se foi o tempo em que uma crítica desfavorável condenava uma obra literária. Insistiu na irrelevância da crítica na promoção e venda de livros, reforçando o papel do editor e dos mecanismos de mídia e mercado. Ao fazer essa declaração, ele reforçou a imunidade do autor best-seller e a mudança de perfil do consumidor de livros. A crítica literária talvez ocupe, nos dias de hoje, um espaço limitado a um pequeno universo de leitores.

No jornalismo, os espaços reservados à literatura foram ocupados pelas resenhas, um tipo de texto que se afasta do ensaio acadêmico. Os leitores preferem informações ligeiras e superficiais. Ou talvez a literatura tenha perdido o prestígio em relação às outras artes. Há excesso de informação e escassez de tempo para ler.

Certa vez perguntaram a João Cabral de Melo Neto quanto os seus livros vendiam. Mesmo se tratando de um grande poeta, o jornalista procurava associar o valor da obra ao poder de venda. João Cabral citou um número irrisório, mas ressaltou um outro valor não mensurável: mesmo sendo pequena a tiragem de seus livros, o conteúdo se multiplicava pela força inerente à poesia, pela capacidade de transformar e transtornar.

Algumas críticas ficaram tão fortemente ligadas aos textos originais, que fazem parte da história desses livros. Posso citar o ensaio de Sartre sobre O Estrangeiro, de Camus; o de Emerson sobre "Folhas de Relva", de Whitman; e os de Edmund Wilson sobre os simbolistas Yeats, Valéry, Eliot, Proust, Joyce, Gertrude Stein, L'Isle-Adam e Rimbaud. Harold Bloom tornou-se um especialista em Shakespeare e seus estudos podem ser incluídos entre as formas de crítica a que Guimarães Rosa se referia, uma reinvenção ou redescoberta do autor.

Os exemplos de crítica que acabo de citar estão mais próximos do modelo acadêmico: análises minuciosas, profundas, para leitores que curtem literatura. Sartre e Emerson também eram escritores e exerceram a crítica numa perspectiva diferente de Edmund Wilson e Harold Bloom. Mas nada parecido com o atual abismo entre o ensaio e a resenha.

O pouco espaço reservado ao jornalismo literário e os novos tipos de leitores transformaram a crítica em divulgação e apreciação ligeira. Ela mais pontua que analisa. O jornalista inventa maneiras de chamar a atenção do leitor, através de resumos de obras e sugestões de leituras.

Chegamos a uma questão prosaica: continuam existindo várias formas de crítica literária, em função do público a quem se destina. Talvez o editor tenha razão ao afirmar que uma crítica não desbanca um autor da moda, por mais desfavorável que seja. A crítica sofre os embates do mercado, e tenta situar-se livre dos números e das listas de mais vendidos. Mesmo com baixo poder de fogo, mesmo dispondo de espaços menores e desprestigiados, a crítica continua ajudando não apenas a provocar e criar leitores, mas também a fazer escritores.

Fontes:
Colaboração de Digestivo Cultural. (http://www.digestivocultural.com)
– Imagem = http://overdriver.wordpress.com

Abertas inscrições para editais de literatura


Serão investidos R$ 915 mil em projetos de incentivo ao livro e a literatura. Inscrições vão até 19 de fevereiro na sede da Fundação Pedro Calmon.

A partir de segunda-feira, dia 21 de dezembro, a Secretaria de Cultura do Estado da Bahia, através da Fundação Pedro Calmon, estará com inscrições abertas para quatro editais de estímulo à cadeia produtiva do livro, através do apoio à editoras, escritores e à promoção da leitura. A iniciativa, realizada pela primeira vez em 2008, este ano traz ainda mais investimentos em cada categoria. Os quatro editais a serem lançados são: Edital de Apoio à edição de livros de autores baianos; Apoio à coleção editorial; Apoio à criação literária e Edital de incentivo à leitura. As inscrições vão até o dia 19 de fevereiro, na sede da FPC ou via Correio.

Desde 2008, a Secult, através da FPC, vem estimulando a dinamização da cadeia produtiva do livro através de editais, que segundo o diretor geral da Fundação Ubiratan Castro de Araújo, “é um instrumento transparente e democrático para fomentar a cultura, sem privilégios a pessoas ou grupos”. Os editais são lançados através do Fundo de Cultura da Bahia.

As inscrições deverão ser realizadas até 19 de fevereiro de 2010, na Fundação Pedro Calmon-FPC, localizada na Avenida Sete de Setembro, nº 282, Ed. Brasilgás, 7º andar, sala 709 - Centro, de segunda a sexta-feira, das 9h às 12h e das 14h às 17h, ou enviadas para Caixa Postal nº 2505, CEP 40060-001, Salvador/Bahia.

Editais –

Apoio a Edição de Livros de Literatura de Autores Baianos selecionará 15 (quinze) projetos inéditos nas categorias Poesia, Romance, Contos e Literatura Infanto-Juvenil. Também foi acrescentada a categoria, de memórias e ensaios, contemplando gêneros que até então não tinham apoio. O valor do apoio foi ajustado para R$25 mil, assim como o número mínimo da tiragem para 1500.

O Apoio a Coleção Editorial para edição de coleção de livros objetiva incentivar o mercado editorial e a criação literária na Bahia. O edital contemplará três editoras no valor de até R$ 70 mil (setenta mil reais) cada.

O Edital de Criação Literária selecionará oito projetos de apoio a autores baianos para criação literária nas categorias correspondentes aos gêneros lírico (poesia) e narrativo (romance, conto, crônica e novela), no valor de até R$18.750,00 (dezoito mil e setecentos e cinqüenta reais) cada.

O Edital de Incentivo à Leitura selecionará 10 (dez) projetos de estímulo ao hábito da leitura no valor de até R$18 mil (dezoito mil reais) cada, totalizando R$ 180 mil (cento e oitenta mil reais).

Fontes:
Colaboração de Douglas Lara.
http://ibahia.globo.com/plantao/noticia/default.asp?id_noticia=220466&id_secao=31
http://www.cultura.ba.gov.br/noticias/plugcultura/secretaria-de-cultura-lanca-novos-editais-de-literatura

Jean-Pierre Bayard (História das Lendas) Parte XXVII – final


IX. — Riquet à la Houppe
Ritual nupcial, Riquet mostra o poder mágico do amor sobre o ente amado.

1. — As variantes

Saintyves analisa esses contos nos quais o amor transforma a cônjuge. A mutação animal pode ser completa e constante (Le crapaud ) (O sapo) ou episódica (Le loup gris, L’homme Crapaud) (O lobo cinzento, O homem-sapo). O marido pode deixar sua mulher que não soube guardar um segredo (Le roi de Pietraverde). O homem, transformado em bicho, torna ao seu estado assim que uma mulher se decidir a beijá-lo ou a desposá-lo. (A Bela e a Fera, O Pentameron). As vezes a esposa é o personagem encantado (Perceval, La chaise de crapauds) (Parsifal, A cadeira dos sapos).

2. — Interpretações

A bela — a aurora — desposou o Sol que obscureceu; mas ao tornar-se cintilante ela deve segui-lo do Oriente ao Ocidente até a porta do palácio da noite.

Essa proibição de interrogar o ente amado significa para Saintyves o respeito de tabus nupciais. La veuve et ses filles torna-se ma das variantes de Barba-Azul: a história do casamento infeliz. Essas metamorfoses se referem às práticas de sociedades secretas pagãs ou religiosas: os membros, durante sua iniciação, revestiam peles de animais ou máscaras de animais.

É assim que essas narrativas mágicas de metamorfoses deram origem aos Pururavas, a Psiquê, a Riquet à la Houppa ou aos contos de Mme Leprince de Beaumont (Kusa le prince spirituel) (Cusa, o príncipe espiritual).

X. — O gato de botas

1. — Variantes

Se encontramos um conto semelhante em Pentameron (Gagluso), o conto de Zanzibar Sultant Darai assemelha-se muito ao nosso Gato de Botas. Mas quando a gazela benfeitora adoece, Darai esquece o que lhe deve; somente o povo lhe dedicará funerais públicos.

2. — Interpretações

A raposa da versão mongol é, sem dúvida, esse animal sagrado da Ásia mediterrânica, o gato é um animal feiticeiro (Europa); os gatos pretos acompanham as feiticeiras (Bodin). O gato calçado como os oficiantes persegue ritualmente a raposa e sem dúvida liga-se à liturgia egípcia: é o servidor do Sol.

Esse papel de proteção relaciona-se ao ritual da instauração dos antigos padres-reis das sociedades primitivas. Saintyves observa que o casamento prepara a ascensão ao trono e o futuro esposo troca de nome bem como o futuro rei.

Purificado pelas águas do rio, o herói veste novos trajes, é o cerimonial do coroamento; os súditos encontrados prestam obediência ao novo rei que toma posse do seu palácio: ritual de instauração real. Na maior parte dos contos o homem é ingrato; mas o animal pode demitir o rei que tem obrigações para com o seu povo.

A água é o emblema da ressurreição e da vida eterna. Com as águas maternais adquire-se um corpo novo que é o ritual do batismo. A água, essa fonte de Juvência, permitirá que Hera volte à virgindade depois de cada imersão na fonte de Canatos em Nauphie; eis ai uma reencarnação da qual aproveita o nosso marquês de Carabas.
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BIBLIOGRAFIA SUMÁRIA

LANGLOIS, Monuments littéraires de l’Inde (Lefêvre, 1827).
FALIGAN, Ernest. Histoire de la légend de Faust (Hachette, 1887).
A. VAN GENNEP, La formation des légendes (Flamamarion, 1910).
MENENDEZ PIDAL, L’épopée Gastillane (Colin, 1910).
GENDARME DE BEVOTTE, La légende de Don Juan (Hachette, 1906 e 1911).
J. LOTH, Romans de la Table Ronde (Paris, 1912).
PARIS, Gaston. Légendes du Moyen Age (Hachette, 1912).
BÉDIER, Joseph. Les légendea épiques (Champion, 1914).
COSQUIN, Emmanuel. Etudes folkloriques (Champion, 1922).
BOISSONNADE, La chanson de Roland (Champion, 1923).
PAUPHILET, Quête du Graal (Champion, 1923).
SAINTYVES, Les contes de Perrault (Nourry, 1923).
A. VAN GENNEP, Le folklore (Stock, 1924).
GUENON, Le roi da Monde (Paris, 1927).
LORENZI DE BRADI, Don Juan (Librairie de France, 1930).
BIANQUIS, Genevieve. Faust à travers quatre siècles (Droz, 1935).
SAINTYVES, Manuel de folklore (Nourry, 1936).
DONTENVILLE, Henri. La mythologie française (Payot, 1949).
LOEFFLER-DELACHAUX, La symbolisme des légendes (L’Aréhe, 1950).
MARX, Jean. La légende arthurienne (Presses Universitaires de France, 1952).
SAUVAGE, Micheline. Les cas Don Juan (Le Seuil, 1953).

Fonte:
BAYARD, Jean-Pierre. História das Lendas. (Tradução: Jeanne Marillier). Ed. Ridendo Castigat Mores

Jerônimo Mendes (História da Poesia Universal – Breve Relato ) Parte VIII


2. A POPULARIDADE DA POESIA ATRAVÉS DA MÚSICA

Alguns estudiosos da literatura afirmam que a poesia vive hoje o seu apogeu no mundo artístico através da música popular. Muitos compositores ou mesmo intérpretes se valeram de trechos encontrados em poemas de autores conhecidos e mesmo desconhecidos da poesia universal. Nos poetas da antigüidade descobrimos a conjunção da poesia e do teatro cênico, representada nas grandes tragédias e declamadas ao som da lira, como recurso único de elevação do espírito poético e provocação da emoção da platéia presente.

Robert Burns, poeta camponês e glória da literatura escocesa, levou uma vida atribulada e miserável, mas entre bebedeiras e prostitutas, compôs centenas de canções líricas e satíricas, que se adaptavam às melodias tradicionais correntes na Escócia de seu tempo e que são cantadas até hoje pelos escoceses; muitas delas, no entanto, mereceram composições originais – Mendelssohn ((Pianista, compositor e músico alemão do Século XIX) musicou algumas.

Apollinaire, estudado no capítulo Os Grandes Poetas, foi um dos primeiros a registrar seus poemas em disco com seu célebre poema “ Le Pont Mirabeau ” e descobriu que música e poesia estão intimamente ligadas. Discorrendo aqui por minha conta e risco, ao desenvolver o capítulo pareceu-me muito familiar a associação existente entre poesia e música, do ponto de vista cultural e artístico, ao lembrar as composições da nossa própria terra, expressa nos versos de Ari Barroso, Noel Rosa, Pixinguinha, Chico
Buarque, Milton Nascimento ou mesmo nos contemporâneos como Renato Russo e Herbert Viana entre outros.

Quem não consegue enxergar a poesia em estado puro presente nos versos da composição de Pais e Filhos, grande sucesso musical de Renato Russo, líder do conjunto Legião Urbana, falecido recentemente ?

“ É preciso amar as pessoas
como se não houvesse amanhã ”
.

Ou então nos versos inesquecíveis de John Lennon, ex-integrante dos Beattles quando, já separado de seus companheiros, foi capaz de exprimir em versos tudo que a população da Terra sentia, ao final da Guerra do Vietnã, através da composição Imagine, em 1970 :

Imagine there´s no heaven
(Imagine que não existe o céu)
It´s easy if you try
(é fácil se você tentar)
No hell below us
(nem inferno abaixo de nós)
Above us only sky
(acima de nós apenas o céu)
You may say I´m a dreamer
(você pode dizer que sou um sonhador)
But I´m not the only one
(mas eu não sou o único)
I hope someday you´ll join us
(Eu espero junte-se a nós algum dia)
And the world will be as one . . .
(e o mundo será somente um)

Não dá para separar a música do poema. Seguramente, a união é indissolúvel, existe a música e a poesia e uma sem a outra talvez não tivesse feito tanto sucesso nem surtido o efeito necessário para promover a reflexão e trabalhar a emoção dos ouvintes, nem seria eternizada na memória e na cultura do povo inglês e todos aqueles o idolatram.

Grandes compositores como Mozart, Schubert, Strauss, Vivaldi e Bach curvaram-se à exploração da poesia como forma de enriquecer suas músicas e ao ouvirmos as composições, lembramos e até chegamos a comprovar o conceito formal de poesia descrito no início da monografia, de autoria do estudioso e poeta Eno Teodoro Wanke : “ Quando ... o artista consegue transmitir sentimento, fazer com que o leitor, o ouvinte se sinta comovido, sublimado, arrebatado, terá ele atingido a poesia ”.

No Brasil, Noel de Medeiros Rosa, reconhecidamente O Poeta da Vila, era um carioca impenitente e acabou unindo o útil ao agradável quando resolveu musicar seus versos de amor à Vila Isabel, bairro famoso do Rio de Janeiro, e sensibilizou a alma do povo, não somente pela melodia contagiante, mas, sobretudo, pelo sabor dos seus versos. Em seu versos, o poeta Noel Rosa procurava retratar, ainda que metaforicamente, um país ilhado em pobreza, com a fome e a miséria alastrando-se como praga. Foi parabenizado pela originalidade de suas letras e engenho sidade do seu samba, que ele próprio cantava com graça e especial sabor, imprimindo sua marca pessoal, notável principalmente pelo fraseado, pela habilidade com que pronunciava, nítida e rapidamente, os versos longos nos quais um intérprete menos ágil tropeçaria.

Rendo aqui minha singela homenagem também ao poeta Luiz Gonzaga do Nascimento, o Rei do Baião , cantor, músico e compositor nordestino que popularizou a poesia de sua terra em todo o Brasil, tornando-se um dos artistas mais admirados no país. Asa Branca, toada de 1947, consagrou-se um hino nordestino e foi adaptada em diversas línguas, flagrante do folclore e espírito do povo do nordeste.

Em seu extenso reinado da música, o Rei do Baião gravou 192 discos e deixou um precioso legado musical. Com Asa Branca, soube transmitir com emoção todo sofrimento de um povo castigado pela seca e miséria :

Quando olhei a terra ardendo
qual fogueira de São João,
eu perguntei a Deus do céu,
por que tamanha judiação ?

Por fim, Vinícius de Moraes e Tom Jobim se revelaram os maiores expoentes da poesia aliada à musica no Brasil. Suas famosas canções, escritas em parceria, são dotadas da mais profunda inspiração poética, aliadas ao ritmo, balanço, melodia e harmonia existente entre os dois compositores. Vinícius sempre soube deixar as gerações para trás quando se sentia envelhecido. Ao sentir que a grande poesia estava tirando o vigor do seu coração, mudou de turma e soube perseguir o tempo sem perder o passo. Seus novos parceiros atuaram como zeladores do compromisso da experiência com a poesia.

Há quem afirme que a dupla Tom/Vinícius se desfez por ciúmes do encontro de Vinícius com novos parceiros. Tom nunca se afastou completamente de Vinícius. Em 1977, quando já contabilizam 56 músicas em parceria, os dois subiram ao palco do Canecão para mais um dos shows inesquecíveis da casa.

Tom Jobim nunca negou que devia tudo, ou quase tudo, ao sentimentalista poeta Vinícius de Moraes e tinha medo de que a música viesse a incomodar os versos e a poesia do amigo e companheiro. Vinícius sempre renegou a posição de mestre. Tom testemunhou que para o poeta, o mais atroz de todos os enigmas era a mulher, que tantos versos lhe inspirou. Juntos, unindo música e poesia, criaram belas canções como Garota de Ipanema, O Grande Amor, Eu Sei Que Vou te Amar e A Felicidade, aqui representada pelo seu refrão inesquecível : “Tristeza não tem fim, felicidade sim “.

Num curto espaço de tempo, consigo lembrar razoavelmente de alguns poucos mestres provável e perfeita união entre música e poesia, mesmo deixando diversos poetas-compositores de lado, por falta de tempo para aprofundar-me num assunto extremamente rico e cativante. Diversos artigos que consultei nos periódicos mais expressivos do país, tratam a música quase sempre como impossível de ser realizada sem a junção com a poesia, mesmo que não expressa em versos e somente no interior
daquele que se responsabilizou pela união de ambas.

Como exemplo, cito alguns títulos de reportagens envolvendo poetas e músicos ao mesmo tempo ou de músicas expressando poesias :
“ A VIVA VOZ - Poesias de Helena Kolody vão ser lançadas em CD até o final do ano”“ (Gazeta do Povo, 30/08/97).
“ AO SOM DA POESIA DA LETRAS BRASILEIRAS ” (O Estado do PR, 07.09.97).
“ O BARDO MULTIMÍDIA - Poesia Musical de Arnaldo Antunes ” (Folha de São Paulo, 05.12.97).
“ TOM E VINÍCIUS - Os Poetas compositores e parceria “ (Jornal Revista da Poesia, Ano III, N.º 10, Curitiba).

Muito mais encontraríamos, certamente, mas encerramos o capítulo com a mais profunda certeza de que poesia e música se completam, e talvez seja este o motivo que faça a poesia resistir a todas as tormentas provocadas pela mudança na cultura dos povos, divididos entre a leitura e o computador, a miséria e a riqueza, a paz e a guerra.

Fonte:
Monografia feita pelo autor em Curitiba / PR , março de 2001

terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Mario Pontes (1932)



Mario Pontes nasceu em Novas Russas/CE (1932).

Reside no Rio de Janeiro desde 1958.

Além de contista, é romancista e ensaísta. É outro que, vivendo há muitos anos longe do Ceará, tem seu nome poucas vezes citado nos artigos e ensaios de literatura cearense.

Tornou-se jornalista aos 16 anos de idade. Durante meio século trabalhou em revistas culturais e suplementos literários, como o do Jornal do Brasil, que editou por muitos anos.

Estreou em 1977, com o volume Milagre na Salina, embora catalogado como romance. No entanto, o próprio Mario Pontes explica, em nota prévia, o que é seu livro: “histórias da Salina”.

Em 1999 editou pela Bertrand Brasil, do Rio de Janeiro, o volume Andante Com Morte – Quatro Ficções, composto das novelas “A Morte Infinita”, “Sentinelas da Noite”, “A Engrenagem Universal” e “A Nova Rota da Seda”, catalogadas como contos.

Tem traduzido importantes obras filosóficas e literárias, entre as quais do Prêmio Nobel espanhol Camilo José Cela e textos teatrais de Julio Cortázar.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Panorama do Conto Cearense.

Mário Pontes em Xeque


A história de Mario Pontes dava para escrever um romance. Ele nasceu, há 74 anos, numa pequena cidade no Ceará chamada Nova Russas, e conta que houve um período na história recente do Brasil em que era necessário cautela quando tinha de dizer o nome daquela cidade: “Muita gente confundia Russas com Rússia”, lembra.

Filho de um carpinteiro interessado em livros, aprendeu a ler nos jornais que o pai levava para casa. Os grandes assuntos da ocasião, a Guerra Civil Espanhola e, depois, a Segunda Guerra Mundial, despertaram nele o sonho do jornalismo. Ainda adolescente, quando se mudou de sua cidade para outra maior, onde havia uma daquelas pequenas porém selecionadas bibliotecas do Instituto Nacional do Livro, extinto no governo Collor, passou a ler dezenas de volumes por ano, o que também ajudou a introduzir a literatura em sua corrente sangüínea.

Nesta entrevista a Associação Brasileira de Imprensa (ABI Online), Mario — que, algumas vezes, de longe em longe, também pinta aquarelas relacionadas com seus contos — revela, entre outras coisas, que sua preocupação com as mudanças climáticas vêm de longe. No Caderno Especial do Jornal do Brasil publicou muitos textos sobre assuntos como o fracasso da chamada Revolução Verde, que destruiu muitas terras nos países pobres, graças aos seus experimentos de produção acelerada. Nos anos 90, seu livro de ficção “Andante com morte” (publicado pela Bertrand), continha uma pequena novela sobre sangrentas guerras entre pedestres e motoristas, que aconteceriam neste século XXI, o fim do petróleo e a elevação dos mares. O título da novela era “A nova rota da seda”.

ABI Online — Antes de mais nada, por que esse nome, Nova Russas?

Mario Pontes — No Leste do Ceará há uma cidade muita antiga chamada Russas, do tempo das guerras holandesas. E no Oeste, então, tem Nova Russas, quase na divisa com o Piauí, em pleno sertão, sertãozão daqueles. Nasci ali, em 32.

ABI Online — Sertão muito pobre...

Mario — Sim. Lá, o progresso era representado unicamente pela a estrada de ferro (hoje dedicada somente ao transporte de cargas) que nos assegurava o contato com o mundo. Aprendi a ler com meu pai. Ele gostava de ler os jornais que, três vezes na semana, o trem trazia de Fortaleza. Aprendi a ler, lendo as notícias das guerras. Em 38, já lia muito bem. Foi bom, porque muito cedo comecei a adquirir uma consciência da História e do que se passava ao redor. Durante muito tempo os jornais foram, praticamente, minha única fonte de leitura. A cidade não tinha biblioteca, não tinha livraria.

ABI Online — Vivia longe dos livros e da escola?

Mario — De fato. Mas em 39, um jovem intelectual do Crato — uma cidade antiga, aristocrática, situada no Sul do Ceará — foi parar em Nova Russas e criou ali um colégio que, segundo seu plano, ensinaria até o segundo grau. O nome dele era Pedro Teles. Ele havia estudado no célebre seminário de sua cidade, pelo qual passaram rebeldes de 1817, mas na última hora desistiu da batina. Um tio meu, que estava em situação bem melhor do que nós, ofereceu-se para pagar meus estudos. E foi assim por dois anos. Mas em 41 houve uma grande seca e meu tio disse que não poderia mais pagar o colégio. Como meu pai também não tinha dinheiro, eu ia ficar sem escola. A essa altura, Pedro Telles resolvera mudar-se para Fortaleza, e tinha trazido do Crato um rapaz que já havia concluído seus estudos pré-universitários. Alderico Damasceno e eu descobrimos imediatamente que havia várias pontes entre nós: eu, como já disse, era filho de um carpinteiro e ele, de um telegrafista de estrada de ferro. Naquele tempo havia uma forte associação entre o telégrafo e a ferrovia. Alderico foi à minha casa e disse a meu pai que por falta de dinheiro eu não deixaria de estudar. Em troca, sempre que pudesse, meu pai devia fazer umas carteiras para os alunos do colégio.

ABI Online — São esses pequenos milagres que acontecem...

Mario — Pois é. E foi assim que completei o primário. O Alderico revelou-se, pelo menos para mim, uma figura notável, um mestre e não um mero professor. Ele me ensinou o francês — que acabei de aprender, mais tarde, lendo os romances e as peças de Sartre — e um pouco de inglês. Ele me emprestava livros de sua estante. O primeiro foi um volume sobre Viriato, o herói português na luta contra os romanos. Depois, passou a me emprestar biografias de grandes filósofos.

ABI Online — A família toda se mudou para Crateús?

Mario — Lá, nossa situação financeira continuou precária. Meu pai era muito pobre e tive de ajudá-lo de alguma forma. Mas havia uma biblioteca maravilhosa, daquelas distribuídas, naquela época, pelo Instituto Nacional do Livro. Foram criadas pelo poeta gaúcho Augusto Meyer, que tinha vindo para o Rio de Janeiro, no fim do Governo Vargas, para dirigir a Biblioteca Nacional. O Instituto tinha um sistema de distribuição de livros e criação de bibliotecas no interior, numa época em que o livro era uma coisa muito rara. Foi uma das grandes iniciativas em favor da leitura neste País. Augusto Meyer deveria ter um monumento que o lembrasse por isso.

ABI Online — Então leu muito em Crateús?

Mario — Em pouco mais de quatro anos, li quase todos os 400 livros da biblioteca, começando por “O mandarim”, de Eça, e terminando por “Sagarana”, de Guimarães Rosa. Aquela biblioteca foi minha universidade. Os livros — de história, literatura brasileira e estrangeira — eram muito bem selecionados pelo INL. Um dia, voltando a Nova Russas, fui visitar o professor Alderico. Ele quis saber o que eu estava lendo. Citei vários títulos. Ele me perguntou: “Já leu ’Dom Quixote’?” Respondi que não. “Então venha cá.” Tirou da prateleira o livro de Miguel de Cervantes, e disse: “Sente aí. Leia o que puder. Depois procura ler o resto.” Logo depois, de volta a Crateús, aconteceu uma coisa importante: me tornei tipógrafo. Trabalhava com uma caixa de tipos móveis e um prelo manual.

ABI Online — Nessa caixa, os tipos não são distribuídos conforme uma ordem lógica.

Mario — De fato. Era uma “caixa” francesa, e nela a distribuição é mais ou menos a seguinte: no alto à esquerda as maiúsculas, à direita às letras acentuadas, embaixo as minúsculas. Nas caixas inglesa e alemã a distribuição é diferente. Graças a estes conhecimentos, pude ir para Fortaleza, onde trabalhei, primeiramente, na tipografia do jornal O Democrata. Seis meses depois, já estava no linotipo.

ABI Online — Onde aspirou aqueles “saudáveis” gases de chumbo.

Mario — E onde levei um choque elétrico violento, quase morri. Logo depois me levaram para a redação e me tornei repórter. O Democrata circulava com seis páginas diárias. Era um pequeno jornal de esquerda e de oposição ao Governo do estado. De vez em quando, o Governador não gostava do que o jornal dizia e mandava empastelar as páginas já enramadas e dar umas cacetadas em que estivesse na redação e nas oficinas. Nesses dias o jornal não saía. Isso aconteceu várias vezes. Mas a editora tinha outros títulos registrados e, no dia seguinte, lá estava o jornal na banca, com outro nome. Meus começos foram por aí.

ABI Online — Um começo com choque elétrico e sopapos.

Mario — Cheguei a secretário de redação e fiquei naquele jornal de 49 a 56, o ano do levante dos húngaros contra a União Soviética. Em Fortaleza, fui para O Estado, que não existe mais; depois trabalhei em dois jornais dos Diários Associados — o matutino Unitário (fundado no século XIX por João Brígido, figura lendária e pioneira no jornalismo cearense, um homem de coragem que trabalhava com o bacamarte em cima da mesa) e no vespertino Correio do Ceará. Por ter passado pelos Diários Associados, também fiz um pouco de rádio, na Verdes Mares, sempre nos noticiários. Em 59 vim para o Rio.

ABI Online — Aqui, estreou onde?

Mario — No Diário Carioca, como copidesque. Trabalhei algum tempo na Petrobras, editando revistas, livros e outras publicações. Comecei a experimentar a tradução em O Detetive, uma revista do grupo O Cruzeiro. Em 69, fui para a Editora Vozes, onde me tornei editor de livros leigos,por vários anos. Uma grande experiência. Lá editei e traduzi livros sobre vários assuntos. Trabalhei também com os Bloch, para quem também traduzi dois livros, um deles de natureza filosófica. Em 69 fui para o Jornal do Brasil. Me tornei redator do Departamento de Pesquisa, formado por um grupo que tinha de ser necessariamente de bom nível intelectual. Quando saí do JB, traduzi muitos livros, principalmente para as editoras Zahar e Bertrand.

ABI Online — Como se faz tradução?

Mario — Hoje há cursos que ensinam como traduzir. Alguns, pelo que se publica sobre eles, me parecem muito teóricos. Traduzo com base nos meus conhecimentos, meu gosto pela literatura e a filosofia e minha curiosidades pelas línguas. Como sei que nunca é possível se saber de tudo, tenho muitos dicionários, perto de 300. Uns 20 de inglês, o mesmo de francês e de espanhol, e um monte de dicionários de línguas que não sei. Afora os temáticos.

ABI Online — Para evitar surpresas?

Mario — Posso estar traduzindo um livro sobre história dos gregos e topar, de repente, com um termo turco ou sânscrito. Como traduzir corretamente esses termos se não tiver um dicionário de turco e pelo menos um de sânscrito? Tenho dicionários muito específicos. Por exemplo, vários de expressões próprias de regiões da América Latina. Um dicionário de expressões usadas em Honduras...

ABI Online — Os hondurenhos têm um linguajar muito característico. A capital, por exemplo, eles chamam de “Teguz”.

Mario — Pois é, eles chamam Tegucigalpa desta forma mais curta e têm uma linguagem interiorana, do campo, muito diferente daquela que se fala nas cidades. Mesmo na Espanha isso acontece. Traduzi alguns livros do Camilo José Cela, que morreu em 2002; mesmo sendo membro da Real Academia Espanhola, nunca deixou de ser um galego. Quando escrevia, ele misturava as línguas e enchia o texto com palavras e expressões galegas, que eu não conhecia. Tive de aprender o essencial da língua galega para traduzir corretamente. Comprei gramática de galego, dicionários de galego...

ABI Online — E quanto tempo se gasta numa tradução?

Mario — Depende. Eu sempre gasto muito tempo, porque sou metódico. Apesar de os computadores informarem quantos milhares de letras ou palavras acabei de escrever, minha referência continua sendo a lauda de 30 linhas com média de 72 batidas cada. É com ela que meço meu trabalho.

ABI Online — Mas, digamos, um livro de 200 páginas...

Mario — Depende do livro.

ABI Online — Um mês?

Mario — Não, eu não seria capaz de fazer em um mês. Levo mais tempo, sou perfeccionista. Tenho amigos que traduzem em um mês. Eu não consigo.

ABI Online — Qual é a sua rotina? Vai de manhã para o escritório e...

Mario — Dedico umas seis horas por dia ao meu trabalho. Mais que isso não agüento. A exigência intelectual é muito grande. Há um livro que fiquei mais de um ano e meio traduzindo. Foi um dos últimos que traduzi, e ainda não está publicado, deve sair este ano, para a Bienal. Intitula-se “O saber grego”. Deverá sair pela Editora Bertrand, com a qual me dou muito bem. É uma obra de 1.200 páginas, dividida em três partes. A primeira dedicada aos filósofos gregos, dos primeiros até os do fim da Antigüidade. A segunda parte é dedicada aos outros saberes gregos. Medicina, matemática, cosmologia. Traduzir o capítulo sobre cosmologia foi de enlouquecer, porque, para os gregos, a Terra era o centro do Universo. A ginástica mental que eles fizeram para provar isso...

ABI Online — A teoria geocêntrica...

Mario — Os artifícios criados pela inteligência grega para comprovar essa tese são de deixar a gente tonta. Já a parte final do livro é dedicada às escolas que se desenvolveram a partir do pensamento dos filósofos abordados no início. Tivemos na primeira parte um grande capítulo sobre Aristóteles; agora, na última, outro sobre o aristotelismo. O mesmo no caso de Platão, Várias pessoas tinham olhado para aquele “tijolo” e desistido. Para mim era um desafio. Queria testar a que ponto havia chegado, provar a mim mesmo que havia adquirido cultura suficiente para encarar uma tarefa como aquela.

ABI Online — Quantos livros já traduziu?

Mario — Exatamente 30. Conheço colegas que já traduziram mais de 500. Mas nós, que trabalhávamos na pesquisa do Jornal do Brasil, estávamos sempre traduzindo textos estrangeiros, às vezes bem difíceis. Não sei quantos traduzi lá.

ABI Online — Dizem que um livro traduzido pelo senhor é tão bom quanto o original.

Mario — Não é verdade. Veja, ali está um livro que traduzi (aponta para a prateleira): “Verdade ao amanhecer”, do (Ernest) Hemingway, um original que a família publicou 50 anos depois de sua morte. Como tudo de Hemingway, tem passagens muito boas. E outras nada boas. Por causa da pressa. Porque Hemingway estava descontente com a vida, com tudo. Neste caso, claro, uma ou outra passagem da tradução pode ser melhor que o original. Mas isso é único na minha lista de traduções.

ABI Online — E os livros que o senhor escreveu?

Mario — Durante muitos anos não pude escrever os livros que tinha em mente, porque, no meu caso. sempre foram muito difíceis as condições de trabalho no JB. E foram 25 anos! Durante muito tempo, editei sozinho o caderno Livro. Não tinha ninguém para ajudar e por isso fiquei quatro anos sem tirar férias. Somente em 77, quando eu já tinha 40 e tantos anos, lancei meu primeiro livro, “Milagre na Salina”, um conjunto de contos. Publiquei pouco depois, pela Codecri, um volume de estudos sobre a poesia popular do Nordeste: “Doce como diabo”. Em 99, a Bertrand editou o volume “Andante com morte”, composto de quatro ficções mais ou menos curtas: “A morte infinita”, “Sentinelas da noite” e “A engrenagem universal” e “A nova rota da seda”. As três primeiras histórias dizem respeito ao sertão e as mudanças que lá vêm ocorrendo. Um resenhador de São Paulo disse que eu era conservador, só escrevia sobre coisas antigas... A última história — que, literariamente, considero um pouco fraca — prevê que, em algum momento desta primeira metade do século XXI, o excesso de automóveis fará explodir uma guerra violenta e sem fim, entre pedestres e motoristas, provocando milhares de mortes em cada grande cidade do mundo. A indústria automobilística cria, então, para os que têm mais dinheiro, uma gigantesca rodovia, que sai do centro da Europa, passa pela Turquia e chega até a China, com muitas pistas para o motorista reprimido e desesperado com os eternos engarrafamentos, correr a 300, 400 quilômetros por hora e morrer do jeito que quiser.

ABI Online — A rota da seda de Marco Pólo...

Mario — Só que, quando ela começa a alegrar a morte dos gloriosos suicidas da gasolina, o petróleo se acaba e as grandes potências, ou melhor, a grande potência vai lá e toma tudo ou o restinho que sobrou. A essa altura, as calotas polares já derreteram e os oceanos inundaram quase tudo. Um brasileiro da Baixada Fluminense, que vai para a Europa num navio velho, é quem conta como se chega à Nova Rota da Seda, a rota do embuste. Ele se associa a um grupo de vagabundos, liderados por um filósofo. Aquele mesmo resenhador, que disse que os três primeiros contos refletiam um pensamento atrasado, classificou este último de um devaneio do meu futurismo apocalíptico de nordestino...

ABI Online — Os três primeiros eram muito atrasados e este era muito moderno...

Mario — Tudo o que eu disse ali está agora em todas as manchetes do mundo. O petróleo vai acabar logo e estão aí o efeito estufa, o derretimento das calotas... Os mares vão subir exatamente como se descreve no meu conto. Ninguém mais tem dúvida de que este será o século de radicais mudanças climáticas. Este é, hoje, o maior problema da humanidade. Todos os estudos apontam nesse sentido. Até o Arnold Schwarzenegger — apesar de pertencer ao partido republicano — já tenta controlar as emissões de carbono na Califórnia, contra a vontade do Bush. Ele se opõe à política ambiental da Casa Branca. É um absurdo meter a cabeça na areia, tentar ignorar o problema. Tenho a impressão de que, em termos de ficção, fui o primeiro a escrever, no Brasil, sobre esses desastres que nos esperam. Parece que muitas pessoas têm medo de tocar certos assuntos como o do ambiente, encarar certas verdades. Parece que têm medo dos poderoso, sei lá.

ABI Online — Vamos falar agora sobre o JB.

Mario — Trabalhei dez anos na Editora Vozes. Um ano em Petrópolis, os outros nove no Rio, dividindo o dia com o JB. Na editora dos franciscanos, meu trabalho mais constante era o de participante da editoria da Revista de Cultura Vozes, dirigida por frei Clarêncio Neotti e editada por Moacy Cirne. Para mim foram anos de muita liberdade, muita criatividade. Como não podíamos falar sobre as coisas óbvias que aconteciam embaixo do nariz da gente, recorríamos à antropologia, à sociologia, à lingüística, para dizer pelo menos um pouco daquilo que nos era vetado. Em 69 fui para o Departamento de Pesquisa do JB, quando aquela editoria estava em um bom momento. Éramos oito redatores. Tínhamos de escrever bons textos sobre os mais diferentes assuntos. Era um trabalho que exigia muito, muito mesmo. Numa segunda-feira, ao chegar no jornal, mandaram que me apresentasse ao editor, Alberto Dines. Ele me disse: “Está vendo este livro? Quero que você vá pra casa e o leia. Sexta-feira você volta e me escreve uma página dupla do Caderno Especial.” Era um livro de umas 300 páginas, intitulado “The american way of war”, uma variação do conhecido american way of life. O livro tratava da idéia norte-americana de estratégia, das guerras da Independência até o Vietnã, a guerra deles naquele momento

ABI Online — Não era um assunto dos mais simples...

Mario — Não. Li tudo e, na sexta, voltei para o jornal com as páginas prontas. A gente trabalhava muito, mas tinha orgulho de pertencer ao grupo. Nem assinávamos as matérias. Saía só o crédito “Pesquisa JB”. Éramos anônimos, mas gostávamos do que fazíamos. Cada dia era um desafio intelectual para cada um de nós. Quando o Dines saiu, o Departamento — tal como existia — acabou. Fui para o Caderno B, onde fiquei vários anos como subeditor. O jornal publicava o suplemento Livro, criado em 72 e editado pelo Remy Gorga Filho. Sempre achei muito bom o trabalho do Remy, que, para variar, fazia aquilo sozinho, não tinha redator. Em 77, ele saiu do jornal e eu fui escolhido para editar o caderno, só que com várias restrições: na prática, ele passava a publicar unicamente resenhas, pequenas resenhas, conforme o modelo de The New York Times. E, como todos sabem, era uma época de censura e auto-censura. Muitos professores, escritores, pessoas que tinham o que dizer, não queriam ou não podiam escrever para o suplemento. Então, pensei: vou procurar jovens escritores e mexer com o orgulho deles. Eu lhes dizia mais ou menos o seguinte: “Dou a você uma oportunidade de aparecer; mas, como você não tem experiência de escrever para jornal, me autoriza a ‘mexer’ em sua resenha, não para mudar suas idéias, mas para torná-las mais legíveis. Uns 99% deles aceitaram.

ABI Online — Foi até quando isso?

Mario — Acho que até meados de 86. Creio que foi naquele ano que o Zuenir Ventura foi para lá, editar a Revista de Domingo e, em seguida, o Caderno B. Nesse meio tempo, fui cooptado para escrever editoriais, tarefa que não consegui desempenhar por muito tempo. Não é fácil tentar convencer todo o dia o leitor a aceitar como sua uma idéia que não é sua.

ABI Online — É a do jornal.

Mario — Pois é... Voltei para a editoria do B. Nesse meio tempo, Zuenir tinha transformado o Livro em Idéias — um tablóide com linha menos estrita. E que tinha, pelo menos, dois redatores para editá-lo: o Luciano Trigo e a Vivian Wiler. Com a saída do Zuenir e do Trigo, lá fui eu, de novo, para os livros e a literatura. Fiquei uns tempos fazendo o caderno, mais uma vez sozinho. Mas a certa altura adoeci gravemente, e então a editoria do caderno passou para outras mãos. Permaneci apenas como redator. Depois, a editoria do Idéias dividiu-se: na quinta editava-se um Idéias dedicado aos livros (publicado aos sábados), e na sexta, outro Idéias, que era o Caderno Especial de cara nova (publicado no domingo). Nessa época, trabalhei com três bons editores, Zé Castello, uma pessoa muito culta, Wilson Coutinho, um companheiro estimulante, com excelentes conhecimentos de filosofia, e o Cláudio Bojunga, que além de culto e experiente, sempre foi uma pessoa finíssima e de temperamento muito estável. Mas, para mim, essa junção de editorias significou, antes de tudo, um pouco mais de trabalho...

ABI Online — E quando o senhor deixou o JB?

Mario — Saí em meados dos anos 90 e me aposentei.
ABI Online — Vamos falar sobre meio ambiente, um tema que lhe interessa muito.

Mario — É um sinalzinho que apareceu muito cedo em minha consciência. Nasci num lugar muito seco. E, por causa da devastação secular, mais pobre de vegetação do que naturalmente era. Aprendi a valorizar a água, a árvore, o lagarto, a coruja. Foi uma coisa natural. E esse homem (aponta para a foto de Alderico Damasceno) também tinha essa consciência e se esforçava para que cada um de nós a adquirisse em alguma medida. Estive no ano passado em minha cidade. Fui lá para o aniversário do último tio que me resta, um homem muito inteligente que teve apenas 15 dias de escola. Foi lavrador, comerciante, e conseguiu juntar algumas propriedades. Agora, depois de velho, resolveu escrever. No primeiro livro, suas memórias. Ele me mandou os textos e eu tive de “traduzi-los” para o português, porque ele escreve em “outra coisa”... Mas fiz aquilo com o maior prazer, pois tenho muita admiração por ele, é um grande homem e uma boa pessoa. Mesmo sem ser muito religioso, sem ser beato, está sempre preocupado com o próximo. No segundo livro revela suas preocupações com a cidade e elogia aqueles que a construíram, os carreteiros, os sapateiros... O lançamento foi no clube da cidade. Estavam lá o vice-prefeito e o Secretário de Educação; teve sermão do padre, projeção de um pequeno documentário etc. Pelo programa, eu tinha de dizer algumas palavras sobre o meu tio e acabei pedindo desculpas para falar também algumas verdades que estavam entaladas na minha garganta.

ABI Online — Não podia perder a chance...

Mario — Pedi licença para falar, primeiro, do pequeno rio da cidade, que era bonito e hoje é um banco de areia com um filete d’água; da mata ciliar — com suas grandes árvores, como a oiticica, e arbustos, alguns deles aromáticos — que destruíram pelo simples prazer de destruir. A 200 metros da Prefeitura, eu tinha visto uma pirâmide de lixo, com milhares de garrafas “pet”. “Não sei como se consegue conviver com tanta sujeira”, disse. Se eu pudesse, teria procurado os estudantes da cidade a fim de convencê-los a replantar o que foi devastado. Porque isso — eu também disse na solenidade – deve ser feito pelo povo, pelos cidadãos. A experiência diz que não se deve esperar por nenhum dos governos, seja federal, estadual ou municipal.” Bem antes desse episódio, eu havia começado a pesquisar nos jornais e revistas do Rio e São Paulo, tudo que encontro sobre ecologia e meio ambiente. Recorto e envio para uma senhora, Dona Terezinha, que distribui esse material nas escolas.

ABI Online — E a garotada já adquiriu alguma consciência?

Mario — Olha, diz ela que algumas escolas estão conseguindo progressos com seus alunos. Mas isso não se consegue de uma vez. Nossa família — eu, meus cinco irmãos que vivem em Brasília e mais alguns parentes — criou em Nova Russas uma escola de música para tirar os meninos das ruas e lhes ensinar uma profissão. A escola funciona em um salãozinho da Sociedade São Vicente de Paula. Durante a semana, os meninos têm aulas regulares. No sábado e domingo, aprendem música. Antes, os instrumentos eram da própria Prefeitura. Mas eram muito ruins, mal conservados. Eu me lembro da primeira vez que fui vê-los. Fiquei absolutamente pasmo com o progresso dos meninos. Em dois anos de aprendizado, eles estavam tocando Pixinguinha, que compôs uma música supercomplexa. Um estava tocando o clarinete quando, de repente, metade do instrumento caiu no chão. As duas partes estavam ligadas com cera de abelha. Tirei o dinheiro que tinha no bolso e disse para os outros: bem, completem e comprem um clarinete para aquele menino. Nem que seja de segunda mão. Eu estava muito emocionado.

ABI Online — Em breve será uma orquestra.

Mario — Já conseguimos, aqui e ali, quase todos os instrumentos. O importante, porém, é que vários adolescentes já foram admitidos em orquestras populares de cidades vizinhas. Ou seja: estão empregados Também tirei 2.300 livros das minhas estantes e doei à prefeitura, para que criasse uma biblioteca. Tem uma área na cidade, onde funciona a Secretaria da Educação, que foi transformada em campus avançado de uma universidade regional, com sede em Sobral. Soube que agora temos uma faculdade nesse campus avançado. As coisas estão melhorando.

ABI Online — Hoje o senhor se considera mais tradutor, mais jornalista ou mais ambientalista?

Mario — Não sei o que sou. Traduzo, mas não penso só em tradução. E escrevo também. Às vezes me pedem colaboração para o Idéias, mas, em termos de jornalismo, a única coisa que estou fazendo com regularidade é escrever para um pequeno jornal de Minas, chamado O Cometa Itabirano. Uma folha que o Drummond prezava muito. Soube até que ele deixou uma cláusula no testamento, segundo a qual o Cometa pode sempre utilizar qualquer coisa dele sem ter de pagar direitos autorais. Mas como eles lá são muito sóbrios, raramente se valem desse direito. O jornalzinho estava no fim, mas alguns amigos, jornalistas e publicitários de Belo Horizonte, se juntaram e resolveram salvá-lo, editando-o gratuitamente, conseguindo alguns anúncios para garantir, pelo menos, a compra do papel. Eles me convidaram para colaborar gratuitamente e me deram um espaço para escrever com toda a liberdade. É claro que, aos 74 anos, já não sinto necessidade daquela ênfase juvenil. Digo mais com a razão.

ABI Online — O senhor também foi professor de Jornalismo?

Mario — Puro acaso. Nos anos 70, Moacy Cirne, Muniz Sodré e Antonio Sérgio Mendonça deram a partida ao Curso de Jornalismo da Universidade Federal Fluminense (UFF). A Nadiá, mulher do Antonio, o Samuel Katz e o Nelson Pereira dos Santos eram professores da faculdade de Comunicação. Havia lá uma cadeira de Desenho Jornalístico, que tem a ver com a história e uso dos tipos, a criação da página, a programação visual de um livro, uma revista, um jornal etc. Eles me chamaram para substituir um professor que morrera de repente. Ponderei que não tinha curso nenhum — apenas o primário. Apelaram lá para a brecha do “notório saber” e acabei contratado. Subia na barca com aqueles livros debaixo do braço, e na sala de aula tudo o que eu tinha era giz e um quadro-negro. Se houvesse algo que eu quisesse mostrar à turma, tinha de passar o volume de mão em mão. Disse ao Antonio Sérgio e ao Muniz que ficaria somente um ano. Quando fui legalizar minha situação, tive que ir ao Departamento de Ordem Política e Social.

ABI Online — Para ter o famigerado atestado ideológico...

Mario — Exato. O Dops se recusou a me dar o tal atestado. Eu tinha trabalhado no Ceará naquele jornal de oposição em que comecei a vida. E me demitiram da Petrobras sem dizer porquê. Resultado: trabalhei um ano inteiro na UFF e não recebi um centavo. Seis anos depois, já no processo da “abertura democrática”, conseguiram me pagar. Mas o dinheiro recebido só deu para convidar o Muniz e o Antonio Sérgio e pagar um almoço. A inflação tinha comido os meus salários.

ABI Online — Como nasceu “Milagre na Salina” e em que se baseia este seu primeiro livro?

Mario — Num dos momentos mais difíceis da vida de nossa família, lá em Nova Russas, fomos parar numa pequena rua de casas de taipa. A rua se chamava da Salina, porque, originariamente, aquelas casinhas tinham sido utilizadas por um rico comerciante como armazéns de sal grosso. O sal é um produto precioso no sertão. Como quase não há agricultura, a pequena pecuária é o mais comum. O fazendeiro mata o boi, e o preparo da carne-de-sol requer muito sal. A vaca também precisa de sal na sua alimentação, para melhorar a qualidade do leite. Enfim, o sal é importante, e aquela rua passou a ser conhecida como da Salina. Para todos nós era muito humilhante morar ali, até porque, antes do sal, algumas casinhas tinham sido habitadas por mulheres de “vida fácil”. Agora, a maioria dos habitantes era formada por carreteiros, homens fortes que carregavam os vagões dos trens de carga, principalmente com sacos de oiticica. Os americanos tinham perdido a China para os japoneses, o com ela o óleo de tungue, importante na produção de tintas. Mas logo descobriram que a oiticica, árvore do Nordeste brasileiro, produzia um óleo semelhante. Imediatamente criaram companhias para a exploração dos pequenos frutos da oiticica... Aquelas pessoas da Salina se tornaram importantes na minha vida. Mesmo quando saí de lá, eu me recordava de cada uma delas, de sua grandeza, da solidariedade, de como sabiam dividir o pouco que obtinham. O livro fala dessa gente.

ABI Online — Por que o senhor, que circula tão bem nos meios acadêmicos, nunca sonhou com uma cadeira na Academia Brasileira de Letras?

Mario — Várias vezes estive na ABL, até palestrei lá sobre “O conto em tempo de febre”, uma abordagem jornalística e sociológica do que aconteceu nos anos 70, quando milhares de jovens se transformaram em contistas da noite para o dia, porque necessitavam de um canal para se expressar. Acho que a Academia está em um bom momento, levou muita gente boa para lá nos últimos anos. Quanto a mim. Bem... não consigo me imaginar acadêmico. Pertenço a uma sociedade de cearenses no Rio, que, como outras do mesmo porte, embora seja bem informal, dá a si mesma o nome de “Academia”. Me convidaram muitas vezes para ser um deles. Como eu sempre escapava, puseram-se a dizer que eu esnobava o Ceará. Isso, sim, me incomodava. Assim, acabei por aceitar o convite. Mas, ao contrário de muitos amigos, não me sinto atraído pela vida realmente acadêmica.

Fonte:
Associação Brasileira de Imprensa. Entrevista realizada por Claudio Carneiro, em 12/01/2007. Disponível em http://www.abi.org.br/paginaindividual.asp?id=1814

Vilma Cunha Duarte (Album de Poesias Poetas del Mundo)



Mais versos...

Hoje’u amanheci poesia
Derramando em versos
Amor guardado no peito

Lágrimas salgam a rima
No rosto estrofe saudade
Poema que o vento levou

Ninar a noite...

Tomei a noite nos braços
Pra acarinhar sua insônia
Dos olhos abertos em lua
Faiscando tantas estrelas
Que ninguém sabe contar.

Por que noite não dorme?
Indagam meus devaneios
Acordados pela ansiedade
De adivinhar tais segredos
Que ela esconde da gente.

Noite conhece as histórias
Que dia nem ousa sonhar
Ah! Esses amores insones
E os desamores notívagos
Cochila.Hoje sou teu berço.

Nome de Flor

Se ... renascesse um dia
Com o ofício de ser flor
Ó, bom Deus, qual seria

A rosa rainha encarnada
Rubra paixão enfeitada
Em ramalhetes de amor?

Rosa, nunca eu voltaria
Tem espinhos e poderia
Ferir a beleza com a dor.

Violeta, tulipa agapanto
Consolo vigia no pranto
Cravo, lírio a margarida

Flores mil bem da vida
Têm nome e esplendor.
Se brotasse com alegria

No jardim desse mundo
Com nome Flor-Poesia
Aroma o amor profundo

Florava rimas e versos
Unia poemas dispersos
Para acalentar desamor.
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Fonte:
Poetas del Mundo