sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Daniela Schlogel (Oportunidade?)


O Jhony é muito malandro, dizem até que ele é mau caráter e quando surgiu a proposta de dar uma vaga de estagiário a ele com acompanhamento da assistente social, todos foram contra, tinha um ou outro que era a favor, não muito a favor, podemos dizer que quem era a favor, era só porque sabia que os do contra ganhariam. E entre o discurso dos do contra dizia-se:
“Ah, aquilo ali é bandido”, “Dar emprego pra ele é arrumar sarna pra se coçar”.

E mesmo assim, havia quem acreditava que dar o emprego ao menino seria proporcionar a ele algumas horas de vivência em um ambiente moralmente saudável. E mandou-se o menino para a empresa e não era uma empresa qualquer, era uma empresa pública, economia mista e coisa e tal. No primeiro dia de trabalho colocaram-no para picotar papel, toda a manhã, e enquanto isso os funcionários trataram de espalhar a boa nova aos outros funcionários ainda desinformados.

”Aquele ali já foi preso num sei quantas vezes”, “Se eu não me engano já vi ele no programa Aterrorizando a Massa”.

E assim entre picotes de papel e nenhuma cordialidade dos companheiros chegou ao fim o primeiro dia de trabalho de Jhony e é claro que passou pela cabeça dele inúmeras observações:

“Será que vou passar o mês inteiro picotando papel?”, “Nem pra ter uma telefonista gatinha nesse lugar”, “Olha o tipo desse careca, fica só me olhando de cara feia”, “Ia ser mais massa se tivesse alguém pra conversar”.

No segundo dia o novo estagiário foi até sua orientadora de referência para saber a ordem do dia e ela foi categórica

– “Como você já picotou todo o papel e hoje eu tenho muitas tarefas financeiras as quais você não pode auxiliar, vai cuidar do nosso Laboratório de informática, fica ali na última porta a esquerda, não vai muita gente lá, todos os computadores devem ficar desligados e se alguém for até lá você deve ligar para pessoa utilizar e anotar o nome e o tempo que a pessoa permaneceu fazendo uso do mesmo. Sabe ligar o computador?”
– “Sim Senhora”.
– “Então pode ir”

E lhe passou as chaves. Jhony entrou naquela sala silenciosa, sentou-se e mais um milhão de observações lhe passaram na cabeça, estava sentado, olhando pro nada e com um “bico” que demonstrava indignação, quando chegou o careca, aquele careca que só ficava olhando pra ele de cara feia e a primeira pergunta que o careca fez foi

– “Por que você teve passagem?”

O menino não entendeu bem a pergunta e ele se explicou dizendo que queria saber o que o menino tinha feito de errado para ter sido apreendido, sem pudor nenhum. O menino contou ao careca que se desdobrou em perguntas, a cara do careca tinha mudado de descaso para interesse e isso fez o menino se sentir o grande protagonista, afinal ele tinha a atenção do careca e mais que isso ele despertou o interesse de outra pessoa, coisa que não lembrava ter acontecido muitas vezes desde a infância. Todos os fatos que o menino descreveu ao careca, é claro, chegariam aos ouvidos de todos os outros funcionários, mas o menino nem pensou nisso e nem em imagem perante aos colegas e nem em nada, a verdade é que o menino se embriagou na sensação de “ser interessante”.

Quando o careca deixou a sala, o menino estava convencido mesmo sem saber de que era realmente “do crime”. Era aonde as pessoas lhe reconheciam como pessoa. A experiência profissional estava reafirmando sua situação de exclusão. Ele teve a oportunidade, mas não aceitação e muito menos o pertencimento.

Antes de sair naquele dia, Jhony abriu um computador e tirou uma peça, ele nem sabia para quê servia, mas sabia que devia valer algum dinheiro. Escondeu a peça e não soube bem como fechar o gabinete aberto do PC. Foi embora e nunca mais retornou ao local. Aqueles que já não acreditavam no menino desde o início usaram a tão famosa frase “Eu já sabia”. Há alguns que dizem que isso se trata da profecia que se autocumpre. Todos nós queremos ser alguma coisa independente do que seja.
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Daniela Schlogel é educadora em Foz do Iguaçu, Pr.

Fontes:
Jornal Guata. Foz do Iguaçu
Imagem = http://oglobo.globo.com/blogs/moreira

Cruz e Sousa (Poemas Humorísticos e Irônicos II)


VELHO VENTO

Velho vento vagabundo!
No teu rosnar sonolento
Leva ao longe este lamento,
Além do escárnio do mundo.

Tu que erras dos campanários
Nas grandes torres tristonhas
E és o fantasma que sonhas
Pelos bosques solitários.

Tu que vens lá de tão longe
Com o teu bordão das jornadas
Rezando pelas estradas
Sombrias rezas de monge.

Tu que soltas pesadelos
Nos campos e nas florestas
E fazes, por noites mestas,
Arrepiar os cabelos.

Tu que contas velhas lendas
Nas harpas da tempestade,
Viajas na Imensidade,
Caminhas todas as sendas.

Tu que sabes mil segredos,
Mistérios negros, atrozes
E formas as dúbias vozes
Dos soturnos arvoredos.

Que tornas o mar sanhudo,
Implacável, formidando,
As brutas trompas soprando
Sob um céu trevoso e mudo.

Que penetras velhas portas,
Atravessando por frinchas...
E sopras, zargunchas, guinchas
Nas ermas aldeias mortas.

Que ao luar, pelos engenhos,
Nos miseráveis casebres
Espalhas frios e febres
Com teus aspectos ferrenhos.

Que soluças nos zimbórios
Os teus felinos queixumes,
Uivando nos altos cumes
Dos montes verdes e flóreos.

Que te desprendes no espaço
Perdido no estranho rumo
Por entre visões de fumo,
Das estrelas no regaço.

Que de Réquiens e surdinas
E de hieróglifos secretos
Enches os lagos quietos
Revestidos de neblinas.

Que ruges, brames, trovejas
Ó velho vândalo amargo,
No sonâmbulo letargo
De um mocho rondando igrejas.

Que falas também baixinho
Lá da origem do mistério,
Trazendo o augúrio sidéreo
E certa voz de carinho...

Que nas ruas mais escusas,
Por tardes de nuvens feias,
Como um ébrio cambaleias
Rosnando pragas confusas.

Que és o boêmio maldito,
O renegado boêmio,
Em tudo o turvo irmão gêmeo
Do sonhador Infinito.

Que és como louco das praças
Nos seus gritos delirantes
Clamando a pulmões possantes
Todo o Inferno das desgraças.

Que lembras dragões convulsos,
Bufantes, aéreos, soltos,
Noctambulando revoltos
Mordendo as caudas e os pulsos.

Ó velho vento saudoso,
Velho vento compassivo,
Ó ser vulcânico e vivo,
Taciturno e tormentoso!

Alma de ânsias e de brados,
Consolador companheiro
Sinistro deus forasteiro
D'espaços ilimitados!

Tu que andas, além, perdido,
Tateando na esfera imensa
Como um cego de nascença
Nos desertos esquecido...

Que gozas toda a paragem,
Toda a região mais diversa,
Levando sempre dispersa
A tua queixa selvagem.

Que no trágico abandono,
No tédio das grandes horas
Desoladamente choras,
Sem fadigas e sem sono.

Que lembras nos teus clamores,
Nas fúrias negras, dantescas,
Torturas medievalescas
Dos ímpios inquisidores.

Que és sempre a ronda das casas,
A gemente sentinela
Que tudo desgrenha e gela
Com o torvo rumor das asas.

Que pareces hordas e hordas
De hirsutos, intonsos bardos
Vibrando cânticos tardos
Por liras de cem mil cordas.

Ó vento lânguido e vago,
Ó fantasista das brumas,
Sopro equóreo das espumas,
Ó dá-me o teu grande afago!

Que a tua sombra me envolva
Que o teu vulto me console
E o meu Sentimento role
E nos astros se dissolva...

Que eu me liberte das ânsias
De ansiedades me liberte,
Pairando no espasmo inerte
Das mais longínquas distâncias.

Eu quero perder-me a fundo
No teu segredo nevoento,
Ó velho e velado vento,
Velho vento vagabundo!

[COMO FORTES GARGALHADAS]

Como fortes gargalhadas
Por um templo de cristal,
Sonoramente vibradas,
Como fortes gargalhadas,
Sinto idéias baralhadas
N’um frágil descomunal
Como fortes gargalhadas
Por um templo de cristal.

[DA BRUMA PELOS PAÍSES]

Da bruma pelos países
Pelos países da bruma,
Longe dos astros felizes,
Da bruma pelos países,
Tu vais perdendo os matizes
Da luz e da glória em suma,
Da bruma pelos países,
Pelos países da bruma.

À REVOLTA

A Cassiano César

O século é de revolta — do alto transformismo,
De Darwin, de Littré, de Spencer, de Laffite —
Quem fala, quem dá leis é o rubro niilismo
Que traz como divisa a bala-dinamite!...

Se é força, se é preciso erguer-se um evangelho,
Mais reto, que instrua — estético — mais novo
Esmaguem-se do trono os dogmas de um Velho
E lance-se outro sangue aos músculos do povo!...

O vício azinhavrado e os cérebros raquíticos,
É pô-los ao olhar dos sérios analíticos,
Na ampla, social e esplêndida vitrine!...

À frente!... — Trabalhar à luz da idéia nova!...

— Pois bem! Seja a idéia, quem lance o vício à cova,
— Pois bem! — Seja a idéia, quem gere e quem fulmine!...

ESCÁRNIO PERFUMADO

Quando no enleio
De receber umas notícias tuas,
Vou-me ao correio,
Que é lá no fim da mais cruel das ruas,

Vendo tão fartas,
D'uma fartura que ninguém colige,
As mãos dos outros, de jornais e cartas
E as minhas, nuas — isso dói, me aflige...

E em tom de mofa,
Julgo que tudo me escarnece, apoda,
Ri, me apostrofa,

Pois fico só e cabisbaixo, inerme,
A noite andar-me na cabeça, em roda,
Mais humilhado que um mendigo, um verme...

DECADENTES

Richepin, Rollinat! gritos sangrentos
Da carne alvoroçada de desejos,
Mosto de risos, lágrimas e beijos,
Estertores de abutres famulentos.

Desesperado frêmito dos ventos,
De harpas, sutis, fantásticos harpejos,
Clarins de guerra, e cânticos e adejos
De aves — todos os vivos elementos.

Tudo flameja e nas estrofes canta,
Estruge, zune, em borbotões levanta
Noites, luares, fulgurantes dias.

Mas nessa ideal temperatura forte
Tudo isso é triste como a flor da morte
Que brota dentro das caveiras frias...
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Fonte:
Cruz e Sousa Poemas Humorísticos e Irônicos. Ministério da Cultura. Fundação Biblioteca Nacional.

Antonio Ozaí da Silva (A Experiencia da Dor)


Segunda-feira. Deveria ser mais um dia como outro qualquer, mas uma dor aguda, quase imperceptível, indicava que algo não estava bem. Mesmo assim, saí e fui fazer coisas que não gosto, mas que a rotina obriga, como ir ao banco. O corpo não me enganara, os pressentimentos revelaram-se reais. A dor, insidiosamente, aumentava de intensidade até tornar-se insuportável. Precisei antecipar o retorno. Depois, o médico diagnosticaria o que parecia o óbvio: mais uma crise da coluna, ou, como digo em tom de brincadeira, era o “nervo asiático”. Injeções, comprimidos de vários tipos e repouso – eufemismo que indica a condição em que nos vemos forçados a permanecer deitados a maior parte do tempo, dormindo sob o efeito dos medicamentos ou em estado de sonolência. E assim passaram-se os dias da semana…

O que fazer quando não é possível permanecer em pé ou mesmo sentado? O que fazer quando a vida limita-se ao espaço de alguns metros quadrados, do tamanho da cama, e a dor torna-se a companheira indesejável, porém inseparável? Só resta dormir, tomar remédios, dormir novamente e torcer para que a química comece a surtir os efeitos desejados e apazigúe a dor que teima em permanecer. Até que, finalmente, ela cede, diminui de intensidade e já é possível se movimentar um pouco, fazer as refeições à mesa e, até mesmo, escrever um texto – embora sentado na cama e com precauções, pois ela, a dor, ainda está perto e o corpo denuncia a sua presença.

A imobilidade forçada é angustiante. A dor não altera a consciência do que é preciso ser realizado, das tarefas pendentes que são adiadas. Fossem outros tempos, sem computadores e, portanto, sem emails a responder, revistas eletrônicas a encaminhar, Orkut e redes de relações sociais a manter, atividades acadêmicas virtuais a fazer, etc., a angústia seria atenuada. Nos novos tempos, porém, a tecnologia torna-se extensão do corpo e até mesmo as relações sociais passam a ser influenciadas e determinadas pela capacidade de permanecer conectado. O enfermo em sua cama sente-se impotente por não conseguir dar conta das tarefas já incorporadas ao cotidiano virtual e solitário em sua dor.

Há, porém, aspectos compensadores. Inativo, forçado a permanecer deitado, ele tem tempo mais do que suficiente para pensar. Mesmo na sonolência, a mente se torna um turbilhão de idéias, reflexões e lembranças. E, inevitavelmente, passa a refletir sobre a própria dor. Ele recorda do período em que leu a obra de Milan Kundera e da brincadeira que ele faz em um dos seus livros com o dito cartesiano “Penso, logo existo”. A medida da existência, na verdade, é dada pela dor. Portanto, talvez seja mais correto afirmar: “Sinto, logo existo”. A dor parece resumir tudo, torna-se a síntese do viver.

Mas o que é a minha dor diante do sofrimento do torturado? E como explicar o absurdo de um ser humano infligir dor a outro e, ainda mais, sentir prazer? O que significa diante do que sente alguém com o corpo perfurado por uma bala ou sofreu um acidente e está entre a vida e a morte na UTI? O que é a minha dor diante da tragédia que vitima milhares de seres humanos no Haiti? Como somos egoístas diante da dor!

“A verdade da dor reside naquele que a sofre”, leio em História do Corpo.* Aliás, uma leitura que vem a calhar, mas que, ironicamente, não foi planejada para este momento. Enquanto a dor cede e permite concentrar-se, o tempo do ócio, ainda que em condições não muito propícias, pode ser dedicado ao aprendizado e reflexão sobre o corpo, um corpo histórico mas tão real e humano quanto o meu. A leitura me faz compreender melhor o corpo, a dor e o sofrimento humano, mas não cessa a dor que sinto. Conheço-me um pouco mais, mas preferia não passar por esta experiência.
––––––––––––––––––––-
* CORBIN, Alain. Dores, sofrimentos e misérias do corpo. In: História do corpo: da Revolução à Grande Guerra, sob a direção de Alain Corbin, Jean-Jacques Courtine e Georges Vigarello, Petrópolis,RJ: Vozes, 2009.

Fontes:
Colaboração do autor Antonio Ozai da Silva
Imagem = http://blogs.diariodepernambuco.com.br

Ignácio de Loyola Brandão (O homem cuja orelha cresceu)


Estava escrevendo, sentiu a orelha pesada. Pensou que fosse cansaço, eram 11 da noite, estava fazendo hora-extra. Escriturário de uma firma de tecidos, solteiro, 35 anos, ganhava pouco, reforçava com extras. Mas o peso foi aumentando e ele percebeu que as orelhas cresciam. Apavorado, passou a mão. Deviam ter uns dez centímetros. Eram moles, como de cachorro. Correu ao banheiro. As orelhas estavam na altura do ombro e continuavam crescendo. Ficou só olhando. Elas cresciam, chegavam a cintura. Finas, compridas, como fitas de carne, enrugadas. Procurou uma tesoura, ia cortar a orelha, não importava que doesse. Mas não encontrou, as gavetas das moças estavam fechadas. O armário de material também. O melhor era correr para a pensão, se fechar, antes que não pudesse mais andar na rua. Se tivesse um amigo, ou namorada, iria mostrar o que estava acontecendo. Mas o escriturário não conhecia ninguém a não ser os colegas de escritório. Colegas, não amigos. Ele abriu a camisa, enfiou as orelhas para dentro. Enrolou uma toalha na cabeça, como se estivesse machucado.

Quando chegou na pensão, a orelha saia pela perna da calça. O escriturário tirou a roupa. Deitou-se, louco para dormir e esquecer. E se fosse ao médico? Um otorrinolaringologista. A esta hora da noite? Olhava o forro branco. Incapaz de pensar, dormiu de desespero.

Ao acordar, viu aos pés da cama o monte de uns trinta centímetros de altura. A orelha crescera e se enrolara como cobra. Tentou se levantar. Difícil. Precisava segurar as orelhas enroladas. Pesavam. Ficou na cama. E sentia a orelha crescendo, com uma cosquinha. O sangue correndo para lá, os nervos, músculos, a pele se formando, rápido. Às quatro da tarde, toda a cama tinha sido tomada pela orelha. O escriturário sentia fome, sede. Às dez da noite, sua barriga roncava. A orelha tinha caído para fora da cama. Dormiu.

Acordou no meio da noite com o barulhinho da orelha crescendo. Dormiu de novo e quando acordou na manhã seguinte, o quarto se enchera com a orelha. Ela estava em cima do guarda-roupa, embaixo da cama, na pia. E forçava a porta. Ao meio-dia, a orelha derrubou a porta, saiu pelo corredor. Duas horas mais tarde, encheu o corredor. Inundou a casa. Os hospedes fugiram para a rua. Chamaram a polícia, o corpo de bombeiros. A orelha saiu para o quintal. Para a rua.

Vieram os açougueiros com facas, machados, serrotes. Os açougueiros trabalharam o dia inteiro cortando e amontoando. O prefeito mandou dar a carne aos pobres. Vieram os favelados, as organizações de assistência social, irmandades religiosas, donos de restaurantes, vendedores de churrasquinho na porta do estádio, donas-de-casa. Vinham com cestas, carrinhos, carroças, camionetas. Toda a população apanhou carne de orelha. Apareceu um administrador, trouxe sacos de plástico, higiênicos, organizou filas, fez uma distribuição racional.

E quando todos tinham levado carne para aquele dia e para os outros, começaram a estocar. Encheram silos, frigoríficos, geladeiras. Quando não havia mais onde estocar a carne de orelha, chamaram outras cidades. Vieram novos açougueiros. E a orelha crescia, era cortada e crescia, e os açougueiros trabalhavam. E vinham outros açougueiros. E os outros se cansavam. E a cidade não suportava mais carne de orelha. O povo pediu uma providência ao prefeito. E o prefeito ao governador. E o governador ao presidente.

E quando não havia solução, um menino, diante da rua cheia de carne de orelha, disse a um policial: "Por que o senhor não mata o dono da orelha?"

Fontes:
SILVA, Deonísio da (seleção). Os melhores contos de Ignácio de Loyola Brandão. SP: Global Editora, 1993.
- Imagem = http://d3low.files.wordpress.com

Eloisy Oliveira Batista (Graciliano Ramos: escritor, narrador, autor e herói. Uma leitura do “eu” na obra Memórias do Cárcere)


Resumo: Esse artigo discute o modo como a escrita autobiográfica revela a construção do “eu” de Graciliano Ramos, que em Memórias do Cárcere assume os papéis de escritor (profissional), narrador (voz que encena a história), autor (que garante a unidade do texto) e herói (personagem). A obra é um relato das experiências vividas por Ramos quando ele esteve preso durante a Ditadura de Getúlio Vargas, no ano de 1936. Para tanto, algumas questões são centrais: a primeira delas é a relação entre tempo e espaço que se apresenta de modo constitutivo na própria estrutura do texto, “o tempo deixara de existir” (RAMOS, 1953); a segunda é o uso dos pronomes que revelam a construção do gênero autobiográfico e da identidade dos participantes do discurso, “desgosta-me usar a primeira pessoa” (RAMOS, 1953); e a terceira é a discussão do “estilo” da autobiografia, "Quem dormiu no chão deve lembrar-se disto, impor-se disciplina, sentar-se em cadeiras duras, escrever em tábuas estreitas” (RAMOS, 1953).

Palavras-chave: memória, autobiografia, tempo, narrativa

A obra Memórias do Cárcere foi escrita por Graciliano Ramos a partir de sua vivência quando preso durante a Ditadura Vargas, em 1936, e o título dessa narrativa apresenta o seu propósito mais evidente: relatar as lembranças dessa experiência Nosso objetivo é fazer uma reflexão sobre como a escrita autobiográfica revela a construção do “eu” de Graciliano Ramos nesse relato, revelando que esse “eu” assume os papéis de escritor, narrador, autor e herói.

Ramos permaneceu em poder da polícia por dez meses, embora tenha sido condenado sem processo jurídico; por isso, não se sabe oficialmente qual a causa de sua prisão, mas tudo faz crer que ele foi vítima de vingança política por suas decisões quando diretor da Instrução Pública de Alagoas. Ao longo das memórias, ele não insiste na tentativa de desvendar esse mistério, ou seja, mostra-se mais interessado em relatar a experiência do que em buscar respostas.

Enquanto presidiário, Ramos transitou por diferentes lugares que são recuperados por fases em sua narrativa da memória, ou seja, a ordem cronológica dos acontecimentos é submetida à ordem de lugares em que ele vivenciou as experiências: primeiro no 20º Batalhão, em Maceió; em seguida em um quartel, no Recife; depois no porão do navio Manaus; mais tarde na Casa de Detenção no Rio de Janeiro, onde ficou no Pavilhão dos Primários; houve ainda o período em que permaneceu no Pavilhão dos Militares; também a Colônia Correcional, em Ilha Grande; na Polícia Central, novamente no Rio de Janeiro e, por último, na Casa de Correção. O espaço é, portanto, o eixo organizador da experiência traumática; uma escolha totalmente coerente a partir da constatação de que “o tempo deixara de existir” (RAMOS, 1953, vol. 4, p. 7)

. Nesse caso, a questão temporal é de extrema importância, pois o narrador faz diversas considerações a esse respeito ao longo da obra; mas, além disso, Márcio Seligmann-Silva afirma tratar-se de uma constante em narrativas que abordam experiências de presídio ou perseguições políticas:

Uma das características mais marcantes da experiência em instituições totais (ou sob regimes de exceção), onde a qualquer momento e por qualquer motivo absurdo pode-se perder a vida, é a temporalidade marcada pela ditadura do agora. (SELIGMANN–SILVA, 2006, p. 55)

A opção de utilizar o espaço como substituto da referência temporal é muito significativa, pois, do ponto de vista da linguagem, a relação entre tempo e espaço é intrínseca, o que se comprova nas metáforas que utilizamos para falar do tempo. Metáforas como: passar do tempo, anos atrás, daqui para frente, pertencem a princípio ao universo semântico do topos, pois só podemos pensar sobre o abstrato passando pelo sensível. Em outras palavras, não somos capazes de falar do tempo sem nos referirmos ao espaço (como metáfora), mesmo que esse vocabulário espacial não seja suficiente para tratar da atividade espiritual. Nesse sentido, observa Gagnebin (1997):

Não basta, pois, passar de uma noção espacial exterior do tempo a uma noção espacial interior, mesmo que houvesse aí um progresso em direção a uma descrição mais específica de como agimos ‘no’ tempo, com o tempo, ‘sobre’ o tempo. Ramos, portanto, no que se refere ao tempo, abre mão do processo metafórico e utiliza a linguagem de modo mais concreto. Trata-se de sua linguagem seca e direta tantas vezes comentada pelos crítico s, mas também da escrita de um "eu" que quer ser o mais autêntico e verossímil possível.

Foi mantida a grafia original em todas as citações.

Graciliano, portanto, dialoga com o questionamento sobre a (im)possibilidade da divisão do tempo primeiramente proposto por Santo Agostinho. Esse filósofo fundamental para se entender o pensamento acerca do tempo afirma que o passado e o futuro somente existem no presente. Além disso, ele reflete sobre a “veracidade” da memória, uma outra questão cara para Graciliano Ramos:

Ainda que se narrassem os acontecimentos verídicos já passados, a memória relata, não os próprios acontecimentos que já decorreram, mas sim as palavras concebidas pelas imagens daqueles fatos, os quais, ao passarem pelos sentidos, gravaram no espírito uma espécie de vestígios. (Santo Agostinho, 1973, livro XI, 18\23, p. 246)

A relação entre memória e imagem mencionada na citação é fundamental também para Ricoeur (2007), para quem a memória é uma possibilidade da imaginação, com a diferença de que ela exige uma associação entre a imagem do presente e a do passado.

É na contracorrente dessa tradição de desvalorização da memória, nas margens de uma crítica da imaginação, que se deve proceder a uma dissociação da imaginação e da memória, levando essa operação tão longe quanto possível. Sua idéia diretriz é a diferença, que podemos chamar de eidética, entre dois objetivos, duas intencionalidades: uma, a da imaginação, voltada para o fantástico, a ficção, o irreal, o possível, o utópico; a outra, a da memória, voltada para a realidade anterior, a anterioridade que constitui a marca temporal por excelência da 'coisa lembrada', do 'lembrado' como tal. (RICOEUR, 2007, pp. 25-26)

Ricoeur observa também que o fenômeno da memória só existe porque há passagem do tempo, ou seja, é preciso uma situação de anterioridade. A obra aqui estudada tem um caráter bastante específico em relação ao tempo nessa concepção. Ela começou a ser escrita em 1946 e foi publicada em 1953, sendo que os acontecimentos narrados datam de 1936. Portanto, há uma gr ande distância temporal entre os acontecimentos e a imagem, os "vestígios" e a palavra; o que evidencia a diferença entre o escritor (profissional), o autor (aquele que garante a unidade literária do texto), o narrador (voz que encena a história) e o herói (personagem); elementos distintos, mas que possuem uma identidade comum a fim de garantir a realização dessa autobiografia.

Sobre a imaginação, Memórias do Cárcere também suscita reflexões, pois trata-se da obra de um romancista, ou seja, de um hábil manipulador de palavras, que sabe criar, ainda que respeite o referencial. A desconfiança da veracidade de seu testemunho é legítima, até porque suas obras ficcionais trazem também elementos da sua realidade vivida, filtrados de outra maneira, evidentemente, mas que sinalizam o quanto é rico esse enfrentamento de escritor no que diz respeito a delimitação de um gênero. Ele se utiliza dessa desconfiança e interage com ela, por isso, ele assume a sua parcialidade e se permite narrar o esquecimento:

Foi ali com certeza que achei meio de renovar a minha provisão de fósforos e cigarros. Não me recordo. Também não sei como nos forneciam água. Lembro-me de que ela se achava à entrada, perto do camarote do padeiro, mas esqueci completamente se estava em balde ou ancoreta, se vinha de encanamento. Afasto a última suposição, estou quási certo de que não existia nenhuma torneira. Esta lacuna me revela o desarranjo interno, pois a sêde era grande, estávamos sempre a beber. (RAMOS, 1953, vol. 1, p. 160)

Starobinski (1970) afirma que a autobiografia não é um gênero “regrado”, mas que possui como condição indispensável uma identificação entre o narrador e o herói, assim como é necessário que seja uma narração e não uma descrição. Notadamente, exige-se que a narração aborde uma experiência pessoal que interesse a outras pessoas, pressuposição que legitima o uso de uma experiência passada como tema do discurso.

Starobinski afirma ainda que o “eu” é confirmado em sua função de sujeito permanente pela presença do “tu”, que aparece como motivação da escrita. Memórias do Cárcere corresponde à definição de Starobinski, no entanto, apresenta especificidades, especialmente com relação ao uso dos pronomes.

Vamos nos concentrar principalmente no primeiro capítulo da obra, quando há uma apresentação dos motivos que a provocaram. Esse é um capítulo que se distingue dos demais, pois apresenta de modo mais evidente a voz do autor. Embora seja apresentado como um capítulo qualquer – recebe numeração como os outros, ou seja, não aparece intitulado como introdução – nota-se uma distinção da voz narrativa: "Resolvo-me a contar, depois de muita hesitação, casos passados há dez anos – e, antes de começar, digo os motivos por que silenciei e por que me decido". (RAMOS, 1953, vol. 1, p. 5)

Esse tom “justificatório”, que pode ser recorrente em muitas outras autobiografias, não volta a aparecer no texto de Memórias do Cárcere, no qual possui apenas o papel de definir - "antes de começar" - qual o tipo de texto apresentado, ou seja, funciona muito mais como uma necessidade do “gênero” (Gênero, nesse caso, aparece entre aspas pelo fato de ser uma categoria não discutida nesse momento.) do que como um elemento da narrativa propriamente dita, que começa, de fato, a partir do segundo capítulo:

No começo de 1936, funcionário na instrução pública de Alagoas, tive a notícia de que misteriosos telefonemas, com veladas ameaças, me procuravam o endereço. Desprezei as ameaças: ordinariamente o indivíduo que tenciona ofender o outro não o avisa. Mas os telefonemas continuaram. (RAMOS, 1953, vol. 1, p. 12)

Observa-se, portanto, que a partir do segundo capítulo a narração assume um tom muito mais romanesco. O primeiro funciona como um pacto inicial, um “pacto autobiográfico” (Conceito amplamente difundido por Philippe Lejeune em Le pacte autobiog raphique, 1975), no qual o autor oferece os parâmetros para a leitura de sua obra:

Nesta reconstituição de factos velhos, neste emiuçamento, exponho o que notei, o que julgo ter notado. Outros devem possuir lembranças diversas. Não as contesto, mas espero que não recusem as minhas: conjugam-se, completam-se e não dão hoje impressão de realidade. (RAMOS, 1953, vol. 1, p. 10)

Nota-se uma apresentação daquilo que, para o autor, classifica a sua obra como memorialista. O próprio termo memórias que aparece no título é significativo. Paul Ricoeur (1997, p. 41) nomeia aquilo de que nos lembramos como lembranças, o que exige de nós um esforço de retomada do passado; para ele, o termo memória é singular, pois seria o ato de se voltar para o passado. Esse termo, que aparece no título no plural, conjuga a experiência do lembrar e a lembrança em si, ou seja, enfoca não apenas o ocorrido, mas também o processo de rememoração.

O termo lembrança é também instigante, visto que, pertence ao campo conceitual de Walter Benjamin (Benjamin escreveu no mesmo período que Graciliano Ramos, por isso, é quase certo que um não conheceu a obra do outro. Mesmo assim, Walter Benjamin é um teórico importante no sentido de pensar questões e conceitos muito relacionados com o período histórico em que o autor escreveu; portanto, esse presente histórico vivenciado pelos dois autores têm sentido em suas respectivas obras. Assim, é possível aproximá-los, apesar da distância espacial, buscando coerências discursivas esclarecedoras.) em diferente par de opostos. Em "O narrador" (1980), Benjamin propõe uma comparação entre lembrança (do domínio da narrativa) e recordação (do domínio do romance) nos seguintes termos: a lembrança é uma retomada do passado o mais próximo possível do acontecido, nela há o compromisso com a verdade; já a recordação refere-se a muitos acontecimentos dispersos, escolhidos em função do presente.

Pode-se considerar que o uso de memórias para Ramos é a conjugação também dessas duas possibilidades, pois há justamente uma tentativa de recuperação do passado com um certo respeito pelo acontecido, mas há também a consciência da impossibilidade de se obter sucesso nessa tentativa. Graciliano Ramos lida, portanto, com um material riquíssimo: dados de uma vivência que contam uma outra versão da história do país, não a versão oficial; e a sua própria visão de mundo após essa experiência, após Segunda Guerra Mundial e após o seu reconhecimento como escritor.

O comprometimento com o passado centra-se em um elemento fundamental também mencionado no capítulo inicial: o uso da primeira pessoa. Desgosta-me usar a primeira pessoa. Se se tratasse de ficção, bem: fala um sujeito mais ou menos imaginário; fora daí é desagradável adoptar o pronomezinho irritante, embora se façam malabarismos por evitá-lo. Desculpo-me alegando que êle me facilita a narração. Além disso não desejo ultrapassar o meu tamanho ordinário. (RAMOS, 1953, vol. 1, p. 5)

O “tamanho ordinário”, a “insignificância”, essa modéstia que contrasta com a noção de que alguém considera a sua experiência digna de ser relatada também está presente no texto de forma abundante e participa do pro cesso de definição do “eu”. Essa visão de si próprio é uma maneira de Ramos transformar em valor estético o uso da primeira pessoa "necessário" à autobiografia, ou seja, acaba definindo também o que Starobinski denomina “estilo”.

Starobinski (1970) observa que a autobiografia oferece um quadro muito amplo de possibilidades, que permite a manifestação de uma grande variedade de estilos particulares. O estilo de Graciliano Ramos revela não apenas o seu talento como escritor, mas também a imagem que ele constrói do “eu” em sua narrativa, que funciona como uma chave de leitura da obra. O próprio autor apresenta no primeiro capítulo três aspectos que nortearão o estilo que predominará em sua escrita. Em primeiro lugar, com relação ao “tom” da narrativa: "Quem dormiu no chão deve lembrar-se disto, impor-se disciplina, sentar-se em cadeiras duras, escrever em tábuas estreitas. Escreverá talvez asperezas, mas é delas que a vida é feita: inútil negá-las, contorná-las, envolvê-las em gaze." (RAMOS, 1953, vol. 1, p. 7)

Em segundo, com relação ao conteúdo dela: "Omitirei acontecimentos essenciais ou mencioná-los-ei de relance, como se os enxergasse pelos vidros pequenos de um binóculo; ampliarei insignificâncias, repetí-las-ei até cansar, se isto me parecer conveniente." (RAMOS, 1953, vol. 1, p. 9)

E, também, de acordo com o seu direcionamento político: "Esgueirar-me-ei para os cantos obscuros, fugirei às discussões, esconder-me-ei prudente por detrás dos que merecem patentear-se." (RAMOS, 1953, vol. 1, p. 11)

Starobinski (1970) afirma que o estilo é o índice da relação entre o escritor e o seu próprio passado. Portanto, ao observarmos as citações anteriores, o estilo de Graciliano Ramos nos revela que seu sentimento para com o passado é áspero, não totalmente compreendido e destituído de um posicionamento político.

Graciliano Ramos vai privilegiar em sua narrativa os episódios vivenciados ao lado de seus companheiros de prisão. Ricoeur afirma que, entre todas as coisas de que nos lembramos, privilegiamos os acontecimentos: "No plano fenomenológico, no qual nos situamos aqui, dizemos que nos lembramos daquilo que fizemos, experimentamos ou aprendemos em determinada circunstância particular". (2007, p. 42) Portanto, no estudo de um texto memorialista é imprescindível atentar para o "quem" se lembra, pois é o centro da circunstância. O acionamento da lembrança é particular não só pela parcialidade da vivência, mas também por aquilo que Ricouer chama de "fundo memorial":

Sob esse aspecto, as lembranças podem ser tratadas como formas discretas com margens mais ou menos precisas, que se destacam contra aquilo que poderíamos chamar de um fundo memorial, com o qual podemos nos deleitar em estados de devaneio vago. (RICOEUR, 2007, p. 41)

O fundo memorial é, portanto, o que nos constitui como indivíduos, ou seja, uma espécie de indefinível conjugação de todas as nossas experiências. Dessa forma, percebemos que o uso do "eu " não é uma escolha indiferente.

Benveniste, em Problémes de linguistique générale (1966), discute o sentido dos pronomes pessoais na estrutura das relações entre as pessoas verbais. Esse teórico faz a diferenciação entre a primeira, a segunda e a terceira pessoa a partir da distinção proposta pelos gramáticos árabes, segundo os quais: a primeira pessoa é aquela que fala, a segunda é aquela com quem se fala e a terceira é a que está ausente. Essa distinção demonstra que a primeira pessoa se impõe à necessidade de Graciliano Ramos porque a sua verdade está dita por todas as “vozes” possíveis no texto (escritor, autor, narrador e herói), portanto, a terceira pessoa não estaria de acordo com o seu projeto de escrita.

A primeira pessoa de Memórias do Cárcere não se dirige diretamente ao seu interlocutor, embora a sua presença seja constituinte do discurso; comprovando a afirmação de Benveniste de que a primeira e a segunda pessoa somente existem uma em função da outra. Ele defende também que as duas primeiras pessoas não se colocam no mesmo plano da terceira, que não é tratada como uma verdadeira “pessoa” verbal. No entanto, a terceira pessoa tem posição privilegiada nas Memórias, pois é a partir da relação com o outro (que no passado exerceu o papel de segunda pessoa) que o “eu” vai aos poucos compreendendo a si próprio. Portanto, a relação discursiva entre o narrador e o leitor é muito mais de apresentação da experiência do que de diálogo; em outras palavras, há uma espécie de encenação do passado.

De fato, Graciliano Ramos não escreve as memórias com o intuito de servir de exemplo, como Santo Agostinho em suas Confissões; também não precisa se justificar, como o faz Rousseau nas suas; e nem faz uma escrita de denúncia, como se poderia supor pelo cenário político apresentado. Ramos não diz claramente qual é o seu objetivo, mas insinua querer registrar sua “ressurreição”.

Aqui findo o resumo dos empecilhos até hoje apresentados à narração que inicio. Terão eles desaparecido? Alguns se atenuaram, outros se modificaram, determinam o que impediam, converteram-se em razões contrárias. Estarei próximo dos homens gordos do primado espiritual? Não, felizmente. Se me achasse assim, iria roncar, pensar na eternidade. (...) Contudo é indispensável um mínimo de tranqüilidade, é necessário afastar as miseriazinhas que nos envenenam. Fìsicamente estamos em repouso. Engano.

O pensamento foge da folha meio rabiscada. Que desgraças inomináveis e vergonhosas nos chegarão amanhã? Terei desviado esses espectros? Ignoro. Sei é que, se obtenho sossego bastante para trabalhar um mês, provavelmente conseguirei meio de trabalhar outro mês. Estamos livres das colaborações de jornais e das encomendas odiosas? Bem. Demais já podemos enxergar luz a distância, emergimos lentamente daquele mundo horrível de treva e morte. Na verdade estávamos mortos, vamos ressuscitando. (RAMOS, 1953, vol. 1, p. 7)

O termo ressurreição aproxima Graciliano Ramos do Walter Benjamin ( LÖWY, 2005) das "Teses sobre o conceito de história", que atribui ao passado grande importância na busca pela redenção e pela felicidade. Benjamin, assim como Ramos, não tem entusiasmo pelo futuro. A intenção de ambos é observar o passado e acertar as dívidas para transformar o presente. Trata-se, possivelmente, de uma necessidade de reagir contra o esquecimento:

Buscamos aquilo que tememos ter esquecido, provisoriamente ou para sempre, com base na experiência ordinária da recordação, sem que possamos decidir entre duas hipóteses a respeito da origem do esquecimento: trata-se de um apagamento definitivo dos rastros do que foi aprendido anteriormente, ou de um impedimento provisório, este mesmo eventualmente superável, oposto à sua reanimação? Essa incerteza quanto à natureza profunda do esquecimento dá à busca o seu colorido inquieto. (...) A recordação bem-sucedida é uma das figuras daquilo a que chamaremos de memória 'feliz'. (RICOEUR, 2007, p. 46)

Assim, por mais que as recordações sejam doloridas, a recuperação delas pode gerar uma espécie de bem-estar, devido a sensação de tarefa cumprida, talvez. Ramos participa ao leitor a informação de que os outros exigem dele essa narrativa do passado e que ele considera a exigência justa: “Acho que estão certos: a exigência se fixa, domina-me” (RAMOS, 1953, vol. 1, p. 7). É evidente também a auto-exigência a que o escritor se submete, pois ele fez diversas anotações durante o período em que esteve preso, mas elas se perderam. Nota-se que Ramos, como autor, considera seu o papel de registrar uma experiência que deve ser narrada.

O narrador das memórias, nesse caso, é um narrador apto e comprometido, mas que na realização da escrita goza de liberdade. Ele não promete relatar a verdade, quer apenas oferecer ao leitor a sua percepção a respeito do passado. Ao se referir às tentativas frustradas de registrar os fatos no momento presente das experiências, comenta:

Quási me inclino a supor que foi bom privar-me dêsse material. Se êle existisse, ver-me–ia propenso a consultá-lo a cada instante, mortificar-me-ia por dizer com rigor a hora exacta de uma partida, quantas demoradas tristezas se aqueciam ao sol pálido, em manhã de bruma, a côr das fôlhas que tombavam das árvores, num pátio branco, as formas dos montes verdes, tintos de luz, frases autênticas, gestos, gritos, gemidos. Mas que significa isso? Essas coisas verdadeiras podem não ser verossímeis. (RAMOS, 1953, vol. 1, p. 9)

Sabe-se que não é possível recuperar no presente um acontecimento tal qual ele ocorreu pela própria definição de passado; no entanto, Paul Ricoeur (2007) defende a memória como sendo a única e mais eficiente maneira de acessarmos uma experiência anterior. Ele enfatiza o saldo positivo da memória:

A meu ver, importa abordar a descrição dos fenômenos mnemônicos do ponto de vista das capacidades das quais eles constituem a efetuação 'bem sucedida'. (...) o que justifica essa preferência pela memória 'certa' é a convicção de não termos outro recurso a respeito da referência ao passado, senão a própria memória (...). (RICOEUR, 2007, p. 40)

Dessa forma, fica evidente a importância do testemunho, que, para Ricoeur, é o elemento de transição entre a memória e a história; e a "verdade" é resultado do confronto de diversos testemunhos, sendo definidos quais são confiáveis e quais não o são; ou quais são convenientes e quais não o são.

Ramos conta uma história paralela à historiografia oficial e constrói sua relação com o “outro” (leitor) segundo a noção de Benveniste (1966, p. 232) do “tu” como sendo a pessoa “não-eu ”, no sentido de não-identificação. Ao contrário de muitos narradores de autobiografias, seu narrador não demonstra interesse nem no reconhecimento de sua escrita como documento histórico, nem na aproximação com o leitor.

Em certo sentido, a sua narrativa pode ser considerada mais “realista”, pelo seu principal propósito: o de encenar alguns episódios. Realista entre aspas, pois, como já foi dito, a memória não retoma um fato em si, que não pode nunca ser dito de maneira justa pela inevitável interferência da subjetividade de quem narra.

Graciliano Ramos esclarece ao seu leitor o que parece óbvio: afirma que não vai escrever um romance, entendido como ficção, pois os personagens existiram; mas avisa que os acontecimentos narrados podem ser frutos de sua imaginação. O escritor dá vazão a sua memória, mas o autor disciplina as imagens que surgem em sua lembrança a fim de alcançar a verossimilhança.

Em Memórias do Cárcere é evidente o distanciamento entre o narrador e o herói. O narrador está no presente da narração e o herói está no passado, porém, é especialmente a relação entre ambos que nos dá a noção do “eu” que perseguimos. A distância temporal e o ato da escrita os diferenciam a ponto de o narrador perceber e comentar com estranhamento algumas atitudes e alguns pensamentos do herói. “Na atrapalhação da partida, esquecera-me de um aviso importante. De facto não havia importância, mas ali, ausentando-me do mundo, começava a dar às coisas valores novos. Sucedia um desmoronamento”. (RAMOS, 1953, vol. 1, p. 41)

Essa citação exemplifica um outro elemento q ue coloca Memórias do Cárcere nos poucos parâmetros com que Starobinski define a autobiografia, trata-se da transformação:
Ajoutons encore cette remarque: Il n’y aurait pas eu de motif suffisant pour une autobiographie, s’il n’était intervenu, dans l’existence antérieure, une modification, une transformation radicale: conversion, entrée dans une nouvelle vie, opération de la Grâce. (STAROBINSKI, 1970, p. 261 ) – Tradução “caseira”: Acrescentamos ainda esta observação: não haveria motivo suficiente para uma autobiografia, se não houvesse intervindo, em uma existência anterior, u ma modificação , uma transformação radical: conversão, entrada em uma nova vida, operação da Graça.

A transformação do “eu” de Memórias do Cárcere acontece sempre a partir da convivência com seus companheiros. De forma que se retoma aqui a importância da terceira pessoa. São os outros, aqueles que estão ausentes na interação discursiva entre narrador e leitor que motivaram a escrita do autor. Não é contingente o fato de que quando o narrador utiliza a primeira pessoa no plural está sempre retomando a si e aos seus companheiros de prisão. Benveniste (1966, p. 233) observa que a passagem do singular para o plural no caso dos pronomes pessoais não apresenta apenas uma pluralização, mas que em muitas línguas há uma diferenciação da forma verbal da primeira pessoa do plural sobre aspectos inclusivos e exclusivos que apresentam uma complexidade particular. Observe a seguinte passagem: Formámos um grupo muito complexo, que se desagregou. De repente nos surge a necessidade urgente de recompô-lo. Define-se o ambiente, as figuras se delineiam, vacilantes, ganham relevo, a acção começa. (RAMOS, 1953, vol. 1, p. 10)

O narrador exclui o leitor, na medida em que une “eu” a “eles”. A primeira pessoa do plural é sempre enunciada por um “eu” que predomina em relação aos outros, por isso, quando Ramos utiliza essa forma pronominal não abandona o seu projeto autobiográfico, apenas marca a constituição de seu herói junto daqueles que lhe acompanharam e a muitos dos quais ele atendeu a exigência da escrita. Ao leitor cabe o papel de espectador ou de testemunha, conforme o envolvimento a que se disponha.

Assim se percebe de que maneira Graciliano Ramos articula as palavras a fim de se apresentar como escritor, autor, narrador e herói. Seu trabalho é tão exato que ele conseguiu coerência inclusive em um quesito que Starobinski não menciona como exigência da autobiografia: “Estou a descer para a cova, este novelo de casos em muitos pontos vai emaranhar-se, escrevo com lentidão – e provavelmente isto será publicação póstuma, como convém a um livro de memórias”. (RAMOS, 1953, vol. 1, p. 8)

A “publicação póstuma” de fato ocorreu. Graciliano Ramos deixou o livro incompleto com um único capítulo faltante que, segundo relato de seu filho Ricardo Ramos, traria as “sensações de liberdade” (RAMOS, 1953, vol. 4, pp. 162-164). O que nos interessa nesse estudo é perceber que a obra Memórias do Cárcere independe do fim e da finalidade, mas que se constitui nessa construção sempre incompleta do “eu”. E, assim, essas reflexões se encerram, aproveitando a possibilidade que o próprio Graciliano Ramos nos oferece de manter em aberto as possibilidades de leitura, sem a responsabilidade da “verdade”.

Fonte:
Revista Espaço Acadêmico. N. 100. Maringá: UEM. Setembro de 2009.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Olga Agulhon (O Dito e o não dito)


As palavras são cruéis e desobedientes;
não são humildes servas.
Fazem-nos cócegas
e depois que saem da boca,
não tornam a ela,
por mais que imploremos;
mas também não vão embora;
ficam ressoando no ar
e nos perseguem para sempre.
Por isso, busco o silêncio;
só ele nos deixa em paz.
As palavras...
prefiro prendê-las no papel.
Se viro a página
ou fecho o livro,
as silencio.
Vingo-me.
Venço.
Torno-me rei.
-----------------

Fontes:
Colaboração da poetisa.

Cláudio Bazzoni (Trabalho integrado para ensinar a ler)


Numa escola que põe a leitura em primeiro plano, o coordenador e o professor de Língua Portuguesa são centrais

CLAUDIO BAZZONI "Para formar leitores ativos, é preciso combinar e desenvolver procedimentos comuns em todas as áreas do saber."

Para você que leu este especial de cabo a rabo, partes dele ou mesmo se apenas passou os olhos na capa, no índice e nas reportagens, talvez o que eu vá dizer agora não seja novidade, mas não custa repetir: o desenvolvimento da competência leitora e escritora é imprescindível para a aprendizagem dos conteúdos de Arte, Ciências, Educação Física, Geografia, História, Língua Estrangeira, Língua Portuguesa e Matemática. Essa constatação deveria ser suficiente para que coordenadores e professores passassem a encarar a leitura e a escrita como o foco do trabalho. Para concretizar essa prática de forma eficiente, é preciso combinar, aplicar e exercitar procedimentos comuns, que façam os alunos interagir com ideias alheias, estudá-las e apreendê-las – e que os tornem leitores ativos, capazes de usufruir de diferentes modos de ler.

Que procedimentos devem fazer parte desses combinados? Uma opção são os de estudo: resumos, fichamentos, resenhas, paráfrases, esquemas e respostas a questionários – enfim, gêneros escritos de apoio à leitura, que funcionam bem para a recuperação de ideias significativas ou para uma compreensão mais aprofundada. Pode-se definir, por exemplo, que nenhum docente proponha grifar sem explicitar a razão por que essa atividade foi proposta, discutir critérios para sublinhar ou não as passagens do texto e monitorar a tarefa. Além disso, cada professor deve ser modelo: é condição de aprendizagem que os alunos vejam e entendam como um leitor competente faz para grifar um texto.

Para que essa articulação funcione, o coordenador pedagógico tem um papel fundamental a cumprir. Cabe a ele conduzir as discussões, propor pautas e investigações dos referenciais e materiais de orientação pedagógica que trazem sugestões de procedimentos de estudo. Também é sua função fazer um levantamento dos gêneros mais frequentes nas disciplinas e definir, juntamente com os professores, os procedimentos a adotar nas aulas e nos projetos de pesquisa. Por fim, deve garantir que todos se inteirem das combinações para colocá-las em prática. Seguindo caminhos como esses, as reuniões pedagógicas tornam-se espaço de troca, em que os professores das diferentes disciplinas debatem as práticas de linguagem mais apropriadas para ensinar a ler e a escrever textos.

Outro profissional essencial para fazer o trabalho avançar é o professor de Língua Portuguesa. Por desenvolver mais costumeiramente as habilidades leitoras dos alunos, ele ajuda a analisar os dispositivos composicionais que envolvem textos dos gêneros específicos das outras disciplinas. Ao colocar a serviço da escola sua formação e atuação, se coloca como um parceiro mais experiente quando a leitura entra em cena.

Planejar um trabalho integrado que efetivamente desenvolva habilidades de leitura e de produção de texto e que proporcione diferentes modos de ler é ainda um desafio. Mas ele pode ser superado com o empenho de coordenadores e de professores de todas as áreas do conhecimento que considerem, no ensino de leitura, o papel fundamental das estratégias de abordagem e de construção de sentidos dos textos.
–––––––––––––-
Claudio Bazzoni é assessor de Língua Portuguesa da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo e selecionador do PrêmioVictor Civita – Educador Nota 10.

Fontes:
Colaboração Revista Nova Escola. Edição Especial. Janeiro de 2010.

Programação das Livrarias Saraiva Megastore


21/1, quinta-feira

19h30 – Rio Sul Shopping (Rio de Janeiro)
Lançamento dos livros dos Blogs: Aventuras Gastronômicas, Bichinhos de Jardim, Dinheirama, Kibe Loco, Guanabara, Papo de Homem, Pergunte ao Urso, Planejando Meu Casamento, Poltrona.tv, Sallete Ferreira, Sexto Sexo e Vi o Mundo, Editora Blogbooks
O livro reúne os melhores posts dos blogs mais populares do país, destaques em 2008/09 nas categorias artes e cultura, comunicação e negócios, entretenimento, gastronomia, humor, política, quadrinhos, religião, sexo, tecnologia, universo feminino e masculino.

19h30 – Moinhos Shopping (Porto Alegre)
Papos & Ideias Leitura: Janelas para o Mundo, com Luiz-Olyntho Telles da Silva
O programa Leituras: Janelas para o Mundo abordará livros surpreendentes, valorizando escritores de todos os tempos que nos ajudam a compreender o mundo em que vivemos. No primeiro encontro o tema será o livro O silêncio da chuva, de Luiz Alfredo Garcia-Roza

23/1, sábado

15h – Shopping Iguatemi (Campinas)
Hora da Criança Era uma vez: Conto de Fadas, com Cia Galhofas e Dramas
Com a utilização de objetos que fazem parte da história, as crianças precisam adivinhar que conto será contado. Depois, elas confeccionam gorros mágicos. Adivinha que conto é esse?!

16h – Praia de Belas Shopping (Porto Alegre)
Hora da Criança Contação de Histórias, com Rosane Castro

16h – Shopping Iguatemi (Porto Alegre)
Hora da Criança Contação de História e Oficina Temática, com Leonor Pereira
Conheça a história Quando o dia engoliu a noite, de Sônia Rosa, Editora Paulinas. Através dos olhos da protagonista desta poética história, podemos observar um dos maiores espetáculos da Terra: a chegada de um novo dia! A criançada ficará encantada

16h – Morumbi Shopping (São Paulo)
Hora da Criança Os Bichos... Brincadeira entre amigos, com a Cia Teatral La Mariquita
Conheça Passaquelo e Jacaronçalinha, mistura de vários bichos do Brasil. Com orelha de coelho e pé de pato, eles não sabem quem são seus pais e se aventuram a descobrir. No meio da confusão, ouça a história do Macaco e da Cotia e as canções especiais.

16h – Saraiva Pátio Paulista (São Paulo)
Hora da Criança Muito Rei Para Pouco Reino, com Deny Montserrat e Affif Neto
Dois reis, um reino e muita confusão. Um lugar onde os súditos existem somente nas histórias antigas, contadas por dois nobres com verdade e autoridade. Se o fato é real ou não, não nos cabe julgar, e sim ouvir e guardar as conclusões para nós mesmos.

16 às 17h – Manaura Shopping (Manaus)
Hora da Criança com Artcena Produções
Os atores da Artcena contarão histórias baseadas nas lendas amazônicas.

19h – Shopping Iguatemi (Fortaleza)
Lançamento dos livros Santa Terezinha: O Morro de uma Cidade, de Fernanda Oliveira; Carnaúba - A Árvore que Arranha, de Sheila Oliveira; Quem Somos Nós, de Celso Oliveira; e O Livro das Horas da Praça do Ferreira, de Jarbas Oliveira; todos pela Editora Tempo D´imagem
Os fotógrafos chamados Oliveiras, integrantes do Ifoto, reúnem-se para apresentar seus trabalhos publicados neste coquetel de lançamento.

24/1, domingo

16 às 17h – Manaura Shopping (Manaus)
Hora da Criança com Artcena Produções
Os atores da Artcena contarão histórias baseadas nas lendas amazônicas. Não perca!

16h – Morumbi Shopping (São Paulo)
Hora da Criança Muito Rei Para Pouco Reino, com Deny Montserrat e Affif Neto
Dois reis, um reino e muita confusão. Um lugar onde os súditos existem somente nas histórias antigas, contadas por dois nobres com verdade e autoridade. Se o fato é real ou não, não nos cabe julgar, e sim ouvir e guardar as conclusões para nós mesmos.

17h – Shopping Ibirapuera (São Paulo)
Hora da Criança Contação de História especial Editora Globo, com Zenaide Paludo.
Olivia é uma porquinha bem sapeca, que agita sem parar, sonha alto e topa todos os desafios. É uma menina hiperbólica: prova todas as roupas do armário, canta a plenos pulmões, constrói castelos de areia iguais ao Chrysler Building, pinta a parede do seu quarto imitando Jackson Pollock (para desespero de sua mãe). O que ela detesta mesmo é tirar uma soneca. Mesmo na hora de dormir, continua firme e forte, barganhando com sua mãe o número de livros a serem lidos na cama. Ao terminar a leitura, sua mãe dá-lhe um beijo e diz: “Sabe, você me cansa de verdade. Mas, de todo jeito, eu te amo.” E antes de adormecer e sonhar que é Maria Callas, Olivia responde: “Eu também te amo.”

25/1, segunda-feira

19h – Praia de Belas Shopping (Porto Alegre)
Segundas Literárias Porto Verão Alegre 2010 apresenta: Claudia Tajes e Paula Taitelbaum
O público encontra os autores e suas obras, pulbicadas pela L&PM, em um agradavél bata-papo onde a literatura é a grande atração

30/1, sábado

15h – Rio Sul Shopping (Rio de Janeiro)
6º Encontro do Clube do Livro Saraiva
Para os amantes da boa leitura, nada melhor do que um encontro para trocar ideias e dicas de livro. Participe da sexta edição do Clube do Livro Saraiva.

15h – Moinhos Shopping (Porto Alegre)
Hora da Criança A Bruxinha que virou fada, com Elza Machado
Conheça a história A Bruxinha que virou fada com a arte-educadora Elza Machado.

16h – Shopping Iguatemi (Porto Alegre)
Hora da Criança Contação de Histórias, com Rosane Castro

16h – Barra Shopping Sul (Porto Alegre)
Hora da Criança Contação de História e Oficina Temática, com Leonor Pereira
Conheça a história Quando o dia engoliu a noite, de Sônia Rosa, Editora Paulinas. Através dos olhos da protagonista desta poética história, podemos observar um dos maiores espetáculos da Terra: a chegada de um novo dia! A criançada ficará encantada!

17h – Shopping Ibirapuera (São Paulo)
Hora da Criança Oficina Palavra Cruzada, com Paulo Netho
O recitador comanda o cruzamento dos gêneros textuais preparando o meio de campo para que todos se divirtam com a alegria de poder dizer, com as próprias palavras, qualquer texto que tenham vontade de falar.

19h30 – Morumbi Shopping (São Paulo)
Sala Especial Loaded recebe a banda Continental Combo, gravadora independente
O programa de rádio Loaded foi transportado para a Saraiva para apresentar música de qualidade, garimpagem, informação sobre a cena independente e muita descontração. Convidamos você a conhecer a banda Continental Combo nesta primeira edição.

31/1, domingo

16h – Shopping Recife (Recife)
Hora da Criança Contação de História, com tia Érica
Viaje pelo mundo do faz de conta com as histórias que pulam do Baú Mágico da Tia Érica! Vamos cantar, dançar e interagir com muitos personagens divertidos e engraçados!

17h – Morumbi Shopping (São Paulo)
Hora da Criança Contação de História especial Editora Globo, com Zenaide Paludo.
Olivia é uma porquinha bem sapeca, que agita sem parar, sonha alto e topa todos os desafios. É uma menina hiperbólica: prova todas as roupas do armário, canta a plenos pulmões, constrói castelos de areia iguais ao Chrysler Building, pinta a parede do seu quarto imitando Jackson Pollock (para desespero de sua mãe). O que ela detesta mesmo é tirar uma soneca. Mesmo na hora de dormir, continua firme e forte, barganhando com sua mãe o número de livros a serem lidos na cama. Ao terminar a leitura, sua mãe dá-lhe um beijo e diz: “Sabe, você me cansa de verdade. Mas, de todo jeito, eu te amo.” E antes de adormecer e sonhar que é Maria Callas, Olivia responde: “Eu também te amo.”

Fonte:
Livraria Saraiva Megastore

Carlos Leite Ribeiro (Esta Juventude ...)


(lamentos dos mais velhos...)

Mais velhos, não direi, talvez os mais antigos – de acordo?

No nosso tempo não se via disto – uma frase que se ouve com certa frequência aos mais antigos. Agora, vimos os jovens sempre agarradinhos e aos beijinhos por todo o lado.

No nosso tempo, não se via “esta vergonha” não; tínhamos uma enorme ingenuidade quase a roçar a santidade. Nós quase não olhávamos para as jovens pois tínhamos grande pudor e éramos demasiadamente envergonhados e tímidos. No meu tempo nem tínhamos tentação de saber se as carnes da nossa moça eram rijas ou moles; se ela sabia beijar bem; nem sequer um encosto mais apertado. Nada disso. Éramos uma perfeição. Nos bailes, dançávamos afastados das moças pelo menos um palmo; no escurinho do cinema, ficávamos sempre com as mãos em posição de oração e nunca por nunca a fazer pesquisas por sítios proibidos; para mais, tínhamos sempre a mamã sentada a nosso lado. Nenhuma parte de nosso corpo reagia à aproximação ou quando estamos junto da nossa amada. Nos dias de chuva, nunca procurávamos a entrada de um edifício ou mesmo o vão de uma escada; nunca (o pior era quando esses espaços já estavam ocupados por outro casal).

Nunca por nunca invejámos e muito menos desejámos a namorada dos outros ou mulher casada; nunca!

Rapazes como nós, já não existem.

Um certo colega, o Mário, certa vez foi apanhado por uma vizinha a fazer algo que não “devia” com uma moça. A dita (cuja) vizinha, chamou-o a sua casa para lhe dar uma grande lição de moral e, ao mesmo tempo, dar-lhe umas lições de sexologia prática; no dizer desta senhora já viúva há muitos anos, as lições seriam vinte… Mas o Mário contou a situação aos amigos e, quando a vizinha marcou nova lição, aparecemos a sua porta cerca de dez amigos. Resultado: não passou da primeira lição. O que éramos capazes para perder a nossa ingenuidade para nos integrarmos no mundo dos já muito adultos!

Volto a repetir: rapazes como nós, já não existem…

Também é preciso não esquecer que namorávamos com a moça à janela, mesmo que morasse num 5º andar enquanto o rapaz ficava na rua. Não tínhamos hipóteses nenhumas … Embora há quem diga que nós tínhamos uma “engenharia deveras criativa”; mas isso são boatos!

O caso melhorou (só um pouco) quando apareceram as “lambretas” que só tinham dois lugares e a mamã tinha que ficar de fora. O pior era quando a tal mamã marcava que de dez em dez minutos tínhamos que passar à sua porta ou num local pré-combinado.

E quando apareceram os Volkswagens de três mudanças para a frente e uma para trás? Para “conduzir” era precisa certa “habilidade” pois senão saiam dentro do carro que dolorosos torcicolos.

Rapazes como nós, já não existem…

Em 2001, escrevi este apontamento “MOMENTOS MARCAM UMA ÉPOCA ...”

Há nomes que nos marcam para sempre, principalmente, quando se referem à nossa juventude. Para mim, o nome Nan, traz-me recordações da minha meninice.

Teria uns dez anos, morava num rés-do-chão de um prédio da Pascoal de Melo (Estefânia – Lisboa), e no último andar, por sinal o 4º, morava a Nan, uma moça que na altura teria uns 16 ou dezassete anos. A mãe da moça, de nome Sen, viúva de um obscuro subchefe de uma repartição da função pública, era uma figura muito castiça: Muito magra, não muito alta, sempre vestida de preto e, fosse em que estação do ano fosse, andava sempre de sombrinha. Quando aqui em Portugal passou a telenovela “Tieta do Agreste” (que eu parodiei para a radiodifusão), logo me lembrei da D. Sen, que a vi retratada na “Charifú” desta novela. A Nan era filha única e sua mãe a defendia de todos e quaisquer “Moinhos de Vento” (eram como as mamães tratavam os rapazes). Se a moça lhe ia fazer algum recado (compra) perto de casa, logo a mãe se empoleirava na varanda começando logo a berrar assim que ela saía do prédio: “Nan ! não te demores, olha que eu estou aqui à tua espera !” ; ou “Nan ! estás a demorar muito ! Que estás para aí a fazer ?...”. Se nas traseiras da casa, a moça estava a estender a roupa na varanda, lá estava sua mãe ralhando comigo:

- “Olha lá menino, estás a olhar para as pernas da Nan ... etc ...”.

Recordo-me uma vez minha tia dizer em voz alta para ela ouvir bem:

- “Carlitos, não olhes para cima !Podes estar a cobiçar umas pernas que não valem nada ... “.

Claro que a opinião era de minha tia, porque a minha, embora não me recorde bem, talvez fosse uma “bela panorâmica” !

Mas voltando à Nan, andava num colégio de feiras, onde a mamã a ia levar e trazer. Recordo-me de um carnaval no Clube Estefânia, em que a D. Sen quando notava (?) que o par da filha a estava a agarrar “demais”, levantava-se e o ia afastar do corpo da filha. De tantas vezes que repetiu, que se tornou um escândalo hilariante. Nessa altura, um D. Juan da época, virou-se para a D. Sen, perguntando-lhe:

- “Olhe lá minha senhora, é católica ?”. A senhora olhando-o de frente, replicou-lhe:
- “Sou sim, seu desavergonhado !.

Então o “malandreco” respondeu-lhe perante a hilaridade de todos:

- “Então vá com Deus e deixe sossegada a sua filha!”.

Era assim a vida da Nan ...

Meses depois, a pequena, não se sabendo muito bem porquê, apareceu grávida. É verdade !. Já na gravidez avançada, tanto a mãe como ela, juravam a pés juntos que não sabiam com “aquilo tinha acontecido”. Algumas vizinha, (daquelas mais aconselhadas), aconselharam a D. Sen a ir a uma senhora de grande virtude, que morava na Horta das Tripas (Casal de Santa Luzia – Rua D. Estefânia) para que ela expulsasse o “Mafarrico” do corpo da moça, porque tal só podia ter sido “obra do diabo”. Outras menos “cultas” diziam que tinha era sido “obra e graça do Espírito Santo”...

Fosse como fosse nasceu um bebé que teve como nome Francisco (o Chiquinho).

Muito mais tarde, já a D. Sen tinha entregado a alma a Deus e o corpo à terra fria, a Nan confessou que “talvez fosse obra de um ajudante de limpa-chaminés”. Na altura, existiam em Lisboa o “limpa-chaminés” que subiam aos telhados, ponham uma corda muito comprida dentro das chaminés e tiravam a “ferrugem”; pelo menos faziam muito lixo. Normalmente quem tinha a chave da porta que dava para o telhado era o locatário do último andar. Assim, um dia, a Nan foi abrir a porta ao ajudante de limpa-chaminés, enquanto o mestre ficava junto às chaminés das cozinhas, segurando a corda, o ajudante abanava - a no telhado.
Ainda segundo o relato da Nan “foi tudo muito rápido”. Nós podemos acrescentar: Rápido e Eficiente! Ficámos sem saber se teria sido no abrir da porta, ou, ao abanar da corda. Mas isso também não interessa.

Claro que a moça teve depois vários namorados.

Enquanto estes esperavam pela dama, havia sempre um “malandreco” a avisá-lo:

- “Não cuspas para cima que ela pode engravidar ...”.
E assim, o nome de Nan, ficou sempre gravado na minha memória ...

(von Trina - Março 2001)

Fonte:
Colaboração do Autor.

Graciliano Ramos (Vidas Secas)


A obra começa com a fuga de uma família da trágica seca do sertão nordestino: Fabiano, o pai, Sinhá-Vitória, a mãe, os dois filhos e a cachorra Baleia. Fabiano é um vaqueiro, homem bruto que tem enorme dificuldade em articular palavras e pensamentos, que se sente um bicho e muitas vezes age como tal, grunhindo e se portando como um selvagem. Não tem aspirações e nem esperanças, do mesmo modo como não se tolera e não tolera o mundo em que vive. Sinhá-Vitória, sua esposa, se sai melhor em seus pensamentos e diálogos, apesar de restritos. Seu sonho é uma cama de couro, como a de um homem chamado Tomás da bolandeira. Essa personagem, que nunca aparece a não ser na memória das outras personagens, é também uma espécie de herói e modelo para Fabiano: culto, detentor de sabedoria, da arte da palavra e do pensamento, por isso mesmo admirado. O menino mais novo parece não ter nome e nem uma forma comum de se comunicar. Sua única aspiração é ser como Fabiano. Nas mesmas situações está o filho mais velho, que só quer um amigo, conformando-se com a presença da cachorra Baleia. Esta, muitas vezes, parece ter um pensamento mais linear e humano que o resto da família, portando-se não só como um bicho, mas como um ente, uma companheira que ajuda Fabiano e sua gente a suportar as péssimas condições.

A história se desenvolve com o estabelecimento da família numa fazenda e a contratação de Fabiano como vaqueiro. Este, certa ocasião, vai até a venda comprar mantimentos e se põe a beber. Aparece um policial, chamado por Fabiano de Homem Amarelo, que o chama para jogar baralho com outros. O jogo acontece e, numa desavença com o Soldado Amarelo, Fabiano acaba sendo preso, maltratado e humilhado. Aumenta sua insatisfação com o mundo, com sua própria condição de homem bruto e selvagem do campo, e o desprezo de outras pessoas, encarnadas agora na figura do Soldado Amarelo. Solto nosso herói, a vida segue na fazenda. Sinhá-Vitória começa a desconfiar do patrão, que parece roubar nas contas de Fabiano. Este se aborrece, mas não pode fazer nada. Não entende as complicadas contas que o patrão faz, e não sabe dialogar com ele. A festa de natal na cidade só serve para aumentar o descontentamento de Fabiano e sua família com o resto do mundo. Sentem-se diferentes, inferiores, desprezados e humilhados por milhares de "patrões" e "soldados amarelos". Baleia adoece e Fabiano e vê na árdua tarefa de sacrifica-la.

Fere o pobre bicho com um tiro, mas não consegue matá-lo, já que este foge para longe. Baleia vem a falecer durante a noite, perto da casa, sonhando com um mundo cheio de lebres... Sentindo-se cada vez mais lesado pelo patrão, Fabiano resolve argumentar contra esse, mas, sob ameaça de despejo, resolve deixar o assunto quieto, o que lhe causa uma indignação cada vez maior. Sua indignação com o mundo chega ao extremo quando encontra, na volta da venda após ter tomado alguns goles, o Soldado Amarelo, que estava perdido no mato. Fabiano percebe o seu medo e seu corpo franzino em relação ao seu, e tem a idéia de matá-lo, descontar toda a sua raiva e seu descontentamento. Sentindo-se, entretanto, fraco e impossibilitado, resolve deixar pra lá, ensinando o caminho de volta para a cidade ao soldado. Seu sentimento de revolta é agora intensificado pela impotência... Como não bastasse, a seca atinge a fazenda e faz com que toda a família fuja novamente, só que esta vez para o sul, em busca da cidade grande, sem destino e sem esperança de vida.

CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA

Os abalos sofridos pelo povo brasileiro em torno dos acontecimentos de 1930, a crise econômica provocada pela quebra da bolsa de valores de Nova Iorque, a crise cafeeira, a Revolução de 1930, o acelerado declínio do nordeste condicionaram um novo estilo ficcional, notadamente mais adulto, mais amadurecido, mais moderno que se marcaria pela rudeza, por uma linguagem mais brasileira, por um enfoque direto dos fatos, por uma retomada do naturalismo, principalmente no plano da narrativa documental, temos também o romance nordestino, liberdade temática e rigor estilístico.

Os romancistas de 30 caracterizavam-se por adotarem visão crítica das relações sociais, regionalismo ressaltando o homem hostilizado pelo ambiente, pela terra, cidade, o homem devorado pelos problemas que o meio lhe impõe.

Graciliano Ramos (1892-1953) nasceu em Quebrângulo, Alagoas. Estudou em Maceió, mas não cursou nenhuma faculdade. Após breve estada no Rio de Janeiro como revisor dos jornais "Correio da Manhã e A Tarde", passou a fazer jornalismo e política elegendo-se prefeito em 1927. Foi preso em 1936 sob acusação de comunista e nesta fase escreveu "Memórias do Cárcere", um sério depoimento sobre a realidade brasileira. Depois do cárcere morou no Rio de Janeiro. Em 1945, integrou-se no Partido Comunista Brasileiro. Graciliano estreou em 1933 com "Caetés", mas é São Bernardo, verdadeira obra prima da literatura brasileira. Depois vieram "Angustia" (1936) e Vidas Secas (1938) inspirando-se em Machado de Assis. Podemos justificar isto com passagens do texto:

"Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos."

"A caatinga estendia-se de um vermelho indeciso salpicado de manchas brancas que eram ossadas"

"Resolvera de supetão aproveitá-lo (papagaio) como alimento..."

"Miudinhos, perdidos no deserto queimado, os fugitivos agarraram-se, somaram as suas desgraças e os seus pavores".

ESTUDO DOS PERSONAGENS

Baleia - cadela da família, tratada como gente, muito querida pelas crianças.

Sinhá Vitória - mulher de Fabiano, sofrida, mãe de 2 filhos, lutadora e inconformada com a miséria em que vivem, trabalha muito na vida.

Fabiano - nordestino pobre, ignorante que desesperadamente procura trabalho, bebe muito e perde dinheiro no jogo.

Filhos - crianças pobres sofridas e que não tem noção da própria miséria que vivem.

Patrão - contratou Fabiano para trabalhar em sua fazenda, era desonesto e explorava os empregados.

Outros personagens: o soldado, seu Inácio (dono do bar).

ESTUDO DA LINGUAGEM

Tipo de discurso: indireto livre

Foco narrativo: terceira pessoa

Adjetivos, figuras de linguagem:
Metáfora: " - você é um bicho, Fabiano".

Prosopopéia: compara Baleia como gente

ANÁLISE DAS IDÉIAS

Comentário Crítico: Esse livro retrata fielmente a realidade brasileira não só da época em que o livro foi escrito, mas como nos dias de hoje tais como injustiça social, miséria, fome, desigualdade, seca, o que nos remete a idéia de que o homem se animalizou sob condições sub-humanas de sobrevivência.

RESUMO DA OBRA

Mudança

Em meio à paisagem hostil do sertão nordestino, quatro pessoas e uma cachorrinha se arrastam numa peregrinação silenciosa_ . O menino mais velho, exausto da caminhada sem fim, deita-se no chão, incapaz de prosseguir, o que irrita Fabiano, seu pai, que lhe dá estocadas com a faca no intuito de fazê-lo levantar.

Compadecido da situação do pequeno, o pai toma-o nos braços e carrega-o, tornando a viagem ainda mais modorrenta. A cadela Baleia acompanha o grupo de humanos agora sem a companhia do outro animal da família, um papagaio, que fora sacrificado na véspera a fim de aplacar a fome que se abatia sobre aquelas pessoas. Na verdade, era um papagaio estranho, que pouco falava, talvez porque convivesse com gente que também falava pouco_ . Errando por caminhos incertos, Fabiano e família encontram uma fazenda completamente abandonada. Surge a intenção de se fixar por ali. Baleia aparece com um preá entre os dentes, causando grande alegria aos seus donos. Haveria comida. Descendo ao bebedouro dos animais, em meio à lama, Fabiano consegue água. Há uma alegria em seu coração, novos ventos parecem soprar para a sua família. Pensa em Seu Tomás da bolandeira. Pensa na mulher e nos filhos.

A inesperada caça é preparada, o que garante um rápido momento de felicidade ao grupo. No céu, já escuro, uma nuvem – sempre um sinal de esperança. Fabiano deseja estabelecer-se naquela fazenda. Será o dono dela. A vida melhorará para todos.

Fabiano

Em vão Fabiano procura por uma raposa. Apesar do fracasso da empreitada, ele está satisfeito. Pensa na situação da família, errante, passando fome, quando da chegada àquela fazenda. Estavam bem agora . Fabiano se orgulha de vencer as dificuldades tal qual um bicho. Agora ele
era um vaqueiro, apesar de não ter um lugar próprio para morar. A fazenda aparentemente abandonada tinha um dono, que logo aparecera e reclamara a posse do local. A solução foi ficar por ali mesmo, servindo ao patrão, tomando conta do local. Na verdade, era uma situação triste, típica de quem não tem nada e vive errante. Sentiu-se novamente um animal, agora com uma conotação negativa. Pouco falava, admirava e tentava imitar a fala difícil das pessoas da cidade. Era um bicho.

A uma pergunta de um dos filhos, Fabiano irrita-se. Para que perguntar as coisas? Conversaria com Sinhá Vitória sobre isso. Essas coisas de pensamento não levavam a nada. Seu Tomás da bolandeira, apesar de admirado por Fabiano pelas suas palavras difíceis, não acabara como todo
mundo? As palavras, as idéias, seduziam e cansavam Fabiano.

Pensou na brutalidade do patrão, a tratá-lo como um traste. Pensou em Sinhá Vitória e seu desejo de possuir uma cama igual à de Seu Tomás da bolandeira. Eles não poderiam ter esse luxo, cambembes que eram. Sentiu-se confuso. Era um forte ou um fraco, um homem ou um bicho? Sentia, por vezes, ímpeto de lutador e fraqueza de derrotado. Lembrando dos meninos, novamente, achou que, quando as coisas melhorassem, eles poderiam se dar ao luxo daquelas coisas de pensar. Por ora, importante era sobreviver. Enquanto as coisas não melhorassem, falaria com Sinhá Vitória sobre a educação dos pequenos.

Cadeia

Fabiano vai à feira comprar mantimentos, querosene e um corte de chita vermelha. Injuriado com a qualidade do querosene e com o preço da chita, resolve beber um pouco de pinga na bodega de seu Inácio. Nisso, um soldado amarelo convida-o para um jogo de cartas. Os dois acabam perdendo, o que irrita o soldado, que provoca Fabiano quando esse está de partida. A idéia do jogo havia sido desastrosa. Perdera dinheiro, não levaria para casa o prometido. Fabiano, agora, pensava em como enganar Sinhá Vitória, mas a dificuldade de engendrar um plano o atormentava.

O soldado, provocador, encara o vaqueiro e barra-lhe a passagem. Pisa no pé de Fabiano que, tentando contornar a situação à sua maneira, agüenta os insultos até o possível, terminando por xingar a mãe do soldado amarelo. Destacamento à sua volta. Cadeia. Fabiano é empurrado, humilhado publicamente.

No xadrez, pensa por que havia acontecido tudo aquilo com ele. Não fizera nada, se quisesse até bateria no mirrado amarelo, mas ficara quieto. Em meio a rudes indagações, enfureceu-se, acalmou-se, protestou inocência. Amolou-se com o bêbado e com a quenga que estavam em outra cela. Pensou na família. Se não fosse Sinhá Vitória e as crianças, já teria feito uma besteira por ali mesmo. Quando deixaria que um soldadinho daqueles o humilhasse tanto? Arquitetou vinganças, gritou com os outros presos e, no meio de sua incompreensão com os fatos, sentiu a família como um peso a carregar.

Sinhá Vitória

Naquele dia, Sinhá Vitória amanhecera brava. A noite mal dormida na cama de varas era o motivo de sua zanga. Falara pela manhã, mais uma vez, com Fabiano sobre a dificuldade de dormir naquela cama. Queria uma cama de lastro de couro, como a de Seu Tomás da bolandeira, como a de pessoas normais. Havia um ano que discutia com o marido a necessidade de uma cama decente e, em meio a uma briga por causa das "extravagâncias" de cada um, Sinhá Vitória certa vez ouviu Fabiano dizer-lhe que ela ficava ridícula naqueles sapatos de verniz, caminhando como um papagaio, trôpega, manca. A comparação machucou-a.

Agora, ela irritava-se com o ronco de Fabiano ao lembrar-se de suas palavras. Circulando pela casa, fazia suas tarefas em meio a reza e a atenção ao que acontecia lá fora. Por pensar ainda na cama e na comparação maldosa de Fabiano, quase esqueceu de pôr água na comida. Veio-lhe
a lembrança do bebedouro em que só havia lama. Medo da seca. Olhou de novo para seus pés e inevitavelmente achou Fabiano mau. Pensou no papagaio e sentiu pena dele. Lá fora, os meninos brincavam em meio à sujeira. Dentro de casa, Fabiano roncava forte, seguro, o que indicava a Sinha Vitória que não deveria haver perigo algum por ali. A seca deveria estar longe. As coisas, agora, pareciam mais estáveis, apesar de toda a dificuldade. Lembrou-se de como haviam sofrido em suas andanças. Só faltava uma cama. No fundo, até mesmo Fabiano queria uma cama nova.

O Menino mais novo

A imagem altiva do pai foi que lhe fez surgir a idéia. Fabiano, armado como vaqueiro, domava a égua brava com o auxílio de Sinha Vitória. O espetáculo grosseiro excitava o menor dos garotos, impressionado com a façanha do pai e disposto a fazer algo que também impressionasse o irmão mais velho e a cachorra Baleia. No dia seguinte, acordou disposto a imitar a façanha do pai. Para tanto, quis comunicar a intenção ao mano, mas evitou, com medo de ser ridicularizado.

Quando as cabras foram ao bebedouro, levadas pelo menino mais velho e por Baleia, o pequeno tomou o bode como alvo de sua ação. Sentia-se altivo como Fabiano quando montava. No bebedouro, o garoto despencou da ribanceira sobre o animal, que o repeliu. Insistente, tentou se aprumar, mas foi sacudido impiedosamente, praticando um involuntário salto mortal que o deixou, tonto, estatelado ao chão. O irmão mais velho ria sem parar do ridículo espetáculo, Baleia parecia desaprovar toda aquela loucura. Fatalmente seria repreendido pelos pais. Retirou-se humilhado, alimentando a raivosa certeza de que seria grande, usaria roupas de vaqueiro, fumaria cigarros e faria coisas que deixariam Baleia e o irmão admirados.

O Menino mais velho

Aquela palavra tinha chamado a sua atenção: inferno. Perguntou à Sinha Vitória, vaga na resposta. Perguntou a Fabiano, que o ignorou. Na volta à Sinha Vitória, indagou se ela já tinha visto o inferno. Levou um cascudo e fugiu indignado. Baleia fez-lhe companhia tentando alegrá-lo naquela hora difícil. Decidiu contar à cachorrinha uma história, mas o seu vocabulário era muito restrito, quase igual ao do papagaio que morrera na viagem. Só Baleia era sua amiga naquele momento. Por que tanta zanga com uma palavra tão bonita ? A culpa era de Sinha Terta, que usara aquela palavra na véspera, maravilhando o ouvido atento do garoto mais velho.

Olhou para o céu e sentiu-se melancólico. Como poderiam existir estrelas? Pensou novamente no inferno. Deveria ser, sim, um lugar ruim e perigoso, cheio de jararacas e pessoas levando cascudos e pancadas com a bainha da faca. Sempre intrigado, abraçou-se à Baleia como refúgio.

Inverno

Todos estavam reunidos em volta do fogo, procurando aplacar o frio causado pelo vento e pela água que agitava a paisagem fora da casa. Chegara o inverno, e isso reunia a família próxima à fogueira.

Pai e mãe conversavam daquele jeito de sempre, estranho, e os meninos, deitados, ficavam ouvindo as histórias inventadas por Fabiano, de feitos que ele nunca tinha realizado, aventuras nunca vividas. Quando o mais velho levantou-se para buscar mais lenha, foi repreendido severamente pelo pai, aborrecido pela interrupção de sua narrativa. A chuva dava à família a certeza de que a seca não chegaria por enquanto. Isso alegrava Fabiano. Sinha Vitória, porém, temia por uma inundação que os fizesse subir ao morro, novamente errantes. A água, lá fora, ampliava sua invasão.

Fabiano empolgava-se mais ainda em contar suas façanhas. A chuva tinha vindo em boa hora. Após a humilhação na cidade, decidira que, com a chegada da seca, abandonaria a família e partiria para a vingança contra o soldado amarelo e demais autoridades que lhe atravessassem o caminho. A chegada das águas interrompera aqueles planos sinistros. Em meio à narrativa empolgada, Fabiano imaginava que as coisas melhorariam a partir dali; quem sabe, Sinha Vitória até pudesse ter a cama tão desejada. Para o filho mais novo, o escuro e as sombras geradas pela fogueira faziam da imagem do pai algo grotesco, exagerado. Para o mais velho, a alteração feita por Fabiano na história que contava era motivo de desconfiança. Algo não cheirava bem naquele enredo. Sempre pensativo, o menino mais velho dormiu pensando na falha do pai e nos sapos que estariam lá fora, no frio.

Baleia, incomodada com a arenga de Fabiano, procurava sossego naquela paisagem interior. Queria dormir em paz, ouvindo o barulho de fora.

Festa

A família foi à festa de Natal na cidade. Todos vestidos com suas melhores roupas, num traje pouco comum às suas figuras, o que lhes dava um ar ridículo. A caminhada longa tornava-se ainda mais cansativa por causa daquelas roupas e sapatos apertados. O mal-estar era geral, até que Fabiano cansou-se da situação e tirou os sapatos, metendo as meias no bolso, livrando-se ainda do paletó e da gravata que o sufocava. Os demais fizeram o mesmo. Voltaram ao seu natural. Baleia juntou-se ao grupo.

Chegando à cidade, foram todos lavar-se à beira de um riacho antes de se integrarem à festa. Sinha Vitória carregava um guarda-chuva. Fabiano marchava teso. Os meninos maravilham-se, assustados, com tantas luzes e gente. A igreja, com as imagens nos altares, encantou-os mais
ainda. O pai espremia-se no meio da multidão, sentindo-se cercado de inimigos. Sentia-se mangado por aquelas pessoas que o viam em trajes estranhos à sua bruta feição. Ninguém na cidade era bom. Lembrou-se da humilhação imposta pelo soldado amarelo quando estivera pela última vez na cidade.

A família saiu da igreja e foi ver o carrossel e as barracas de jogos. Como Sinha Vitória negou-lhe uma aposta no bozó, Fabiano afastou-se da família e foi beber pinga. Embriagando-se, foi ficando valente. Imaginava, com raiva, por onde andava o soldado amarelo. Queria esganá-lo. No meio da multidão, gritava, provocava um inimigo imaginário. Queria bater em alguém, poderia matar se fosse o caso. Vez ou outra, interrompia suas imprecações para uma confusa reflexão. Cansado do seu próprio teatro, Fabiano deitou no chão, fez das suas roupas um travesseiro e dormiu pesadamente.

Sinha Vitória, aflita, tinha que olhar os meninos, não podia deixar o marido naquele estado. Tomando coragem para realizar o que mais queria naquele momento, discretamente esgueirou-se para uma esquina e ali mesmo urinou. Em seguida, para completar o momento de satisfação, pitou num cachimbo de barro pensando numa cama igual à de seu Tomas da bolandeira . Os meninos também estavam aflitos. Baleia sumira na confusão de pessoas, e o medo de que ela se perdesse e não mais voltasse era grande. Para alívio dos pequenos, a cachorrinha surge de repente e acaba com a tensão. Restava, agora, aos pequenos, o maravilhamento com tudo de novo que viam. O menor perguntou ao mais velho se tudo aquilo tinha sido feito por gente. A dúvida do maior era se todas aquelas coisas teriam nome. Como os homens poderiam guardar tantas palavras para nomear as coisas?

Distante de tudo, Fabiano roncava e sonhava com soldados amarelos.

Baleia

Pêlos caídos, feridas na boca e inchaço nos beiços debilitaram Baleia de tal modo que Fabiano achou que ela estivesse com raiva. Resolveu sacrificá-la. Sinha Vitória recolheu os meninos, desconfiados, a fim de evitar-lhes a cena. Baleia era considerada como um membro da família, por isso os meninos protestaram, tentando sair ao terreiro para impedir a trágica atitude do pai. Sinha Vitória lutava com os pequenos, porque aquilo era necessário, mas aos primeiros movimentos do marido para a execução, lamentou o fato de que ele não tivesse esperado mais para confirmar a doença da cachorrinha.

Ao primeiro tiro, que pegou o traseiro da cachorra e inutilizou-lhe uma perna, as crianças começaram a chorar desesperadamente. Começou, lá fora, o jogo estratégico da caça e do caçador. Baleia sentia o fim próximo, tentava esconder-se e até desejou morder Fabiano. Um nevoeiro turvava a visão da cachorrinha, havia um cheiro bom de preás. Em meio à agonia, tinha raiva de Fabiano, mas também o via como o companheiro de muito tempo. A vigilância às cabras, Fabiano, Sinha Vitória e as crianças surgiam à Baleia em meio a uma inundação de preás que invadiam a cozinha. Dores e arrepios. Sono. A morte estava chegando para Baleia.

Contas

Fabiano retirava para si parte do que rendiam os cabritos e os bezerros. Na hora de fazer o acerto de contas com o patrão, sempre tinha a sensação de que havia sido enganado. Ao longo do tempo, com a produção escassa, não conseguia dinheiro e endividava-se. Naquele dia, mais uma vez Fabiano pedira a Sinha Vitória para que ela fizesse as contas. O patrão, novamente, mostrou-lhe outros números. Os juros causavam a diferença, explicava o outro. Fabiano reclamou, havia engano, sim senhor, e aí foi o patrão quem estrilou. Se ele desconfiava, que fosse procurar outro emprego. Submisso, Fabiano pediu desculpas e saiu arrasado, pensando mesmo que Sinha Vitória era quem errara.

Na rua, voltou-lhe a raiva. Lembrou-se do dia em que fora vender um porco na cidade e o fiscal da prefeitura exigira o pagamento do imposto sobre a venda. Fabiano desconversou e disse que não iria mais vender o animal. Foi a uma outra rua negociar e, pego em flagrante, decidiu nunca mais criar porcos. Pensou na dificuldade de sua vida. Bom seria se pudesse largar aquela exploração. Mas não podia! Seu destino era trabalhar para os outros, assim como fora com seu pai e seu avô.

As notas em sua mão impressionavam-no. "Juros", palavra difícil que os homens usavam quando queriam enganar os outros. Era sempre assim: bastavam palavras difíceis para lograr os menos espertos. Contou e recontou o dinheiro com raiva de todas aquelas pessoas da cidade. Sinha Vitória é que entendia seus pensamentos.

Teve vontade de entrar na bodega de seu Inácio e tomar uma pinga. Lembrou-se da humilhação passada ali mesmo e decidiu ir para casa. o céu, várias estrelas. Deixou de lado a lembrança dos inimigos e pensou na família. Sentiu dó da cachorra Baleia. Ela era um membro da família.

O Soldado Amarelo

Procurando uma égua fugida, Fabiano meteu-se por uma vereda e teve o cabresto embaraçado na vegetação local. Facão em punho, começou a cortar as quipás e palmatórias que impediam o prosseguimento da busca. Nesse momento, depara-se com o soldado amarelo que o humilhara um ano atrás.

O cruzar de olhos e o reconhecimento durou fração de segundos. O suficiente para que Fabiano esfolasse o inimigo. O soldado claramente tremia de medo. Também reconhecera o desafeto antigo e pressentia o perigo. Fabiano irritou-se com a cena. O outro era um nadica. Poderia matá-lo com as mãos, sem armas, se quisesse. A fragilidade do outro aos poucos foi aplacando a raiva de Fabiano. Ponderou que ele mesmo poderia ter evitado a noite na cadeia se não tivesse xingado a mãe do amarelo. No meio daquela paisagem isolada e hostil, só os dois, e se ele pedisse passagem ao soldado? Aproximou-se do outro pensando que já tinha sido mais valente, mais ousado. Na verdade, na fração de segundo interminável Fabiano ia descobrindo-se amedrontado. Se ele era um homem de bem, para que arruinar a sua vida matando uma autoridade? Guardaria forças para inimigo maior. Sentindo o inimigo acovardado, o soldado ganhou força. Avançou firme e perguntou o caminho. Fabiano tirou o chapéu numa reverência e ainda ensinou o caminho ao amarelo.

O Mundo Coberto de Penas

A invasão daquele bando de aves denunciava a chegada da seca. Roubavam a água do gado, matariam bois e cabras. Sinha Vitória inquietou-se. Fabiano quis ignorar, mas não pôde; a mulher tinha razão. Caminhou até o bebedouro, onde as aves confirmavam o anúncio da seca. Eram muitas. Um tiro de espingarda eliminou cinco, seis delas, mas eram muitas. Fabiano tinha certeza, agora, de uma nova peregrinação, uma nova fuga. Era só desgraça atrás de desgraça. Sempre fugido, sempre pequeno. Fabiano não se conformava, pensava com raiva no soldado amarelo, achava-se um covarde, um fraco. Irado, matou mais e mais aves. Serviriam de comida, mas até quando ? Quem sabe a seca não chegasse...Era sempre uma esperança. Mas o céu escuro de arribações só confirmava a triste situação. Elas cobriam o mundo de penas, matando o gado, tocando a ele e à família dali, quem sabe comendo-os. Recolheu os cadáveres das aves e sentiu uma confusão de imagens em sua cabeça. Aquele lugar não era bom de se viver. Lembrou-se de Baleia, tentou se convencer de que não fizera errado em matá-la, pensou de novo na família e no que as arribações representavam. Sim, era necessário ir embora daquele lugar maldito. Sinha Vitória era inteligente, saberia entender a urgência dos fatos.

Fuga

O céu muito azul, as últimas arribações e os animais em estado de miséria indicavam a Fabiano que a permanência naquela fazenda estava esgotada. Chegou um ponto em que, dos animais, só sobrou um bezerro, que foi morto para servir de comida na viagem que se faria no dia seguinte.

Partiram de madrugada, abandonando tudo como encontraram. O caminho era o do sul. O grupo era o mesmo que errava como das outras vezes. Fabiano, no fundo, não queria partir, mas as circunstâncias convenciam-no da necessidade. O vermelhidão do céu, o azul que viria depois assustavam Fabiano. Baleia era uma imagem constante em seus confusos pensamentos. Sinhá Vitória também fraquejava. Queria, precisava falar. Aproximou-se do marido e disse coisas desconexas, que foram respondidas no mesmo nível de atrapalhação. Na verdade, ele gostou que ela tivesse puxado conversa. Ela tentou animar o marido, quem sabe a vida fosse melhor, longe dali, com uma nova ocupação para ele. Marido e mulher elogiam-se mutuamente; ele é forte, agüenta caminhar léguas, ela, tem pernas grossas e nádegas volumosas, agüenta também. A cidade, talvez, fosse melhor. Até uma cama poderiam arranjar. Por que haveriam de viver sempre como bichos fugidos?

Os meninos, longe, despertavam especulações ao casal. O que seriam quando crescessem? Sinhá Vitória não queria que fossem vaqueiros. O cansaço ia chegando à medida que avançava a caminhada, e assim houve uma parada para descanso. Novamente marido e mulher conversavam, fazendo planos, temendo o mau agouro das aves que voavam no céu.

Sinhá Vitória acordou os pequenos, que dormiam, e seguiu-se viagem. Fabiano ainda admirou a vitalidade da mulher. Era forte mesmo! Assim, a cada passo arrastado do grupo um mundo de novas perspectivas ia sendo criado. Sinhá Vitória falava e estimulava Fabiano. Sim, deveria haveria uma nova terra, cheia de oportunidades, distante do sertão a formar homens brutos e fortes como eles.

Fonte:
Prof. Wagner Lemos